A rainha D. Leonor, 1458-1525: momentos de uma vida

June 14, 2017 | Autor: I. dos Guimarães Sá | Categoria: Queenship in Medieval and Early Modern Europe, Biography and Life-Writing
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A RAINHA D. LEONOR, 1458-1525: MOMENTOS DE UMA VIDA

ISABEL DOS GUIMARÃES SÁ1

A nossa história começa e acaba com dois episódios da vida da rainha D. Leonor, ainda pouco conhecidos dos historiadores. Ambos têm algo em comum: o de relatarem momentos em que se fez transportar em “andas” ou num andor, isto é, foi carregada por outras pessoas. Os dois distam no entanto mais de cinquenta anos entre si. No primeiro episódio, entrava a princesa em Évora, em ano não referido, com a mãe, a poderosa duquesa viúva D. Beatriz, e três irmãos muito pequenos. Trata-se de um ritual de entrada, próprio do momento em que personagens importantes eram recebidas oficialmente pela cidade. Eram entradas triunfais, geralmente organizadas pelas vereações municipais e participadas pelo povo das cidades; neste caso, sabemos que o corregedor da comarca fez um rol de que constavam os nomes das pessoas escolhidas para transportar a princesa. Não vou deter-me aqui sobre a organização destas entradas, porque existe bibliografia especializada que dela se ocupa2. Neste caso, alguém faltou com o respeito devido à princesa, que era já a futura rainha: um dos nobres da cidade, que o corregedor nomeara para ser um dos carregadores das andas, recusou-se a fazê-lo, incorrendo no castigo régio. O episódio tem a data de Janeiro de 1474, e refere-se a três irmãos muito pequenos da rainha. D. João, duque de Viseu, morrera a 16 de Agosto de 14723, e provavelmente os irmãos seriam Diogo, Duarte e Manuel, o mais novo, o futuro rei “felicíssimo”, que andaria pelos cinco anos4. Leonor seria então uma rapariga de dezasseis anos, e tinha casado três anos antes com o príncipe D. João. A narrativa refere o bispo D. Garcia de Menezes, o que confere com a cronologia estabelecida até agora, uma vez que este foi nomeado para a diocese de Évora no ano anterior5. O incidente deixou marcas: em 1482, ainda D. João II, em carta que escrevia à cidade, se manifestava agastado pelo modo como D. Leonor fora recebida6. Cremos que se referia a este episódio, a não ser que posteriormente tivesse havido outro do mesmo teor cujo rasto não tenha chegado até nós. Nem conseguimos ter a certeza do que é que se entendia por andas neste período. Seria algo de parecido com uma cadeira transportável aos ombros dos carregadores, ou seja, uma cadeira de andar? Supomos que o momento exigia que a princesa fosse exibida aos olhares do povo da cidade, pelo que não estaria encerrada num veículo fechado. Mas tudo se encaixa no que sabemos sobre o andar e o passo nas sociedades europeias desta época: raramente alguém numa posição de poder era vista a pé em cerimónias públicas realizadas no exterior. Devia ser exposta ao olhar das pessoas numa posição elevada, sem 11.

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contacto directo com o piso térreo. Se permanecesse num local fixo, a solução, em podendo ser, consistia em assomar a uma varanda ou janela de um paço. Não o havendo, construía-se um cadafalso ad-hoc, – uma estrutura de madeira com uma forma entre a bancada e o palco, onde se sentava a pessoa principal no lugar de destaque, no topo, e os seus acompanhantes nos patamares inferiores. Caso se encontrasse em trânsito, devia ser transportada por animais ou pessoas, num veículo especial. No exemplo vertente, dado que à época ainda não se usavam coches, nem carros triunfais, pelo menos em Portugal, a princesa era transportada em andas. Um dos homens escolhidos para carregar a princesa, de seu nome João Mendes de Oliveira, deve ter entendido a sua tarefa como uma despromoção. É que, se ser carregado era prestigioso, carregar era aviltante. E o momento foi registado num excerto de difícil leitura, e com tons um tanto confusos, para quem lê o trecho quinhentos anos depois. No entanto, conseguimos saber que Oliveira foi chamado à presença do rei e do príncipe (Afonso V e D. João), e pagou uma multa de dez mil reais7. A menina cumpria um destino. Muitos anos mais tarde, seria sistematicamente transportada por terceiros, animais ou homens, por motivos mais imperativos. Garcia de Resende refere que em Maio de 1494 a rainha caiu doente, quase morreu, e que o rei veio a toda a pressa visitá-la em Setúbal. E tece até um comentário: que por ironia este último estaria morto um ano depois, e que a rainha, que lutava pela vida às portas da morte naquele momento, viveria ainda outros trinta, ainda que sempre doente, e reduzida a uma cama8. A segunda fase da vida de D. Leonor, que vai portanto desde os seus 36 aos 67 anos de idade, parece ter sido marcada por uma reduzida mobilidade. Outro trecho a que se tem prestado pouca atenção, diz algo de espantoso acerca da doença da rainha: que ficou com um apostema numa perna conhecido por caranguejo, que todos os dias precisava de ser aplacado com o contacto de duas galinhas mortas. Diz o autor que a ferida comia duas galinhas ao dia 9. Não sabemos que estranha chaga seria esta, mas encontrámos mais testemunhos de que Rui de Pina não mentia quando referia a rainha como passando grande parte da sua vida numa cama. Vários documentos revelam que D. Leonor permanecia cronicamente doente, muitas vezes confinada a uma cama. Frei Afonso de Portugal, provincial dos frades franciscanos da observância que tinha a tutela do convento da Madre de Deus, escreveu ao rei em 1510, dando conta de ter ido ver a rainha ao mosteiro. Na carta referia “a dor de cabeça que [a rainha] sempre tem”10. Estava portanto a rainha viúva na cama, enquanto a peste grassava na zona. Era para dar conta dos seus avanços que o frade escrevia ao rei, registando o estado dos vários conventos situados no vale de Xabregas. Se sabemos que a rainha abandonou Lisboa diversas vezes, onde tanto gostava de morar (“que o tempo que fora dela [da cidade] gastamos, temos que não é viver”, escreveu ela numa das suas cartas11), nem sempre o fez quando a prudência lho exigia. Houve surtos de peste em que preferiu ficar, mesmo quando se morria à sua volta. Noutros, optou por se refugiar nas suas terras, embora não saibamos como se deslocou: supomos que foi sempre transportada. A debilidade física da rainha, que a reduzia a uma cama, no entanto, é referida desde muito cedo. Compreende-se assim a sua obsessão pelo licorne, uma substância no mínimo estranha, porque na verdade correspondia à materialização, por aproximação analógica, de uma fantasia. O licorne era um animal mitológico, um cavalo branco com um corno em espiral, fugidio, que só repousava no colo de uma virgem. O pó de licorne, o elemento físico 12.

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mais característico do animal, e o único que o diferenciava de um simples cavalo branco, constituía uma substância mágica, com o poder de curar as dores de cabeça ou de servir de antídoto a venenos. Os homens do século XV, à falta de licornes, contentaram-se com o pó dos dentes de narval12, e suspeitamos, de qualquer dente moído capaz de produzir o mesmo efeito visual. A rainha foi uma grande consumidora deste produto, a ponto de ter comprado 51 peças do espólio de sua mãe, falecida em 150613. Não seria esta a única vez que adquiriu esta substância: mais tarde, em 1514, D. Manuel ordenava ao seu tesoureiro que entregasse à rainha duas onças de licorne14. Desconhecemos o seu efeito, e até a forma como o licorne era ministrado, mas a uma doença crónica, e portanto sem cura, é lógico que correspondesse uma substância ineficaz em termos terapêuticos, ou que, no máximo, aliviava apenas os sintomas. O certo é que a rainha desaparece progressivamente das cerimónias públicas de teor profano ao longo da primeira década do século XVI. Apenas aparece no baptismo do primogénito do rei e seu herdeiro, o futuro D. João III, num ou noutro auto de Gil Vicente, geralmente encomendado por ela15. O que aproxima estes momentos é a sua sacralidade: eram cerimónias de culto, e não passatempos de corte, porque nesses não há registo de que a rainha tivesse estado presente. As razões que explicam o seu afastamento da corte são tanto físicas como imateriais. Se a rainha tinha uma condição física débil, pode ter agravado a sua condição porfiando numa vida demasiado imóvel. No seu caso, o facto de ser muito rica e detentora de uma vasta casa, pode ter agravado o problema, ao garantir que não teria de fazer esforços físicos de qualquer tipo. Os motivos que a afastavam da mundanidade, porém, não eram apenas de ordem física, e podem ser procurados no tipo de vida que se exigia de uma pessoa com suas opções devocionais. Pelo menos desde a morte do rei seu marido que a rainha estruturou o seu quotidiano em função da sua espiritualidade, chegando a solicitar ao papa que retirasse uma freira do convento para a ajudar a cumprir os seus deveres religiosos16. Os paços em que morou organizavam-se em torno do culto: em Lisboa, o seu paço de S. Bartolomeu comunicava com a igreja do convento dos Lóios, masculino; o de Xabregas, era contíguo ao convento da Madre de Deus. O facto de se tratar de um convento feminino fazia com que a rainha provavelmente tivesse acesso a boa parte do espaço conventual, e não apenas à igreja, como no caso de Santo Éloi17. No entanto, a rainha nunca foi freira, nem viveu inteiramente como tal, contrariamente à sua cunhada e prima D. Joana, reclusa em Aveiro, embora impedida de professar por razões políticas. Enquanto para D. Joana o problema era continuar disponível para o mercado matrimonial e para herdar o trono se necessário, D. Leonor nunca foi freira por razões essencialmente económicas. Se tivesse entrado para o convento, teria tido de prescindir do controle do seu vasto património e rendimentos ao entregá-lo à ordem; por outro lado, passaria a dever obediência à sua madre superiora e ao respectivo provincial. Por essa razão, optou por ser irmã terceira da ordem de São Francisco, o que implicava uma forma de vida com obrigações e interditos explícitos: a rainha devia vestir-se sem ornatos e de panos simples, nunca assistir a festas profanas, e muito menos as da corte (“aonde se trazem as coisas brandas deste mundo”), para além de fazer muitos jejuns e rezar o ofício divino18. É essa a razão porque a vemos envergar um hábito nos dois exemplares de figuração directa de que dispomos 13

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actualmente: a sua representação juntamente com a irmã e a abadessa sor Coleta, no retábulo de S. Auta, ou no Panorama de Jerusalém. Não são retratos, até porque ocupam partes ínfimas do espaço pictórico, mas ainda assim permitem-nos ter uma imagem aproximada da forma como a rainha se apresentava ao olhar em público. É portanto de uma pessoa sedentária que estamos a falar; nunca tanto como teria gostado, porque o estado sanitário de Lisboa não o permitia. Se a rainha efectivamente viajou depois de se fixar em Lisboa no início do reinado do irmão, fê-lo apenas quando houve peste na cidade, e não durante todas os surtos que sabemos terem ocorrido. E chegamos ao segundo episódio da vida da rainha que queremos contar aqui. O de um dia de Janeiro de 1521 em que D. Manuel conseguiu finalmente mostrar Lisboa à sua terceira mulher, sobrinha das duas anteriores, D. Leonor19. Era irmã de Carlos V e o povo chamava-lhe a “Alemoa”, porque tinha sido criada pela tia Margarida de Áustria em Malines, na actual Bélgica, e provavelmente falava uma língua que não era nem o castelhano nem o português. Casara com o rei em Novembro de 1518 mas passaram-se dois anos antes que o rei conseguisse vir a Lisboa com a nova rainha, por causa da peste que então assolava a cidade. O rei saiu com D. Leonor de Áustria e os filhos de Almeirim para o Lavradio, de onde embarcaram para Lisboa. Antes de entrar na cidade, o barco onde o rei e nova rainha estavam “...veio tomar defronte de Xabregas onde estava a rainha D. Leonor que saiu em seu andor e veio à praia e el rei chegou muito na borda de água donde as rainhas se viram e falaram assim por então...” 20. D. Leonor não se deslocava sozinha, não frequentava a corte em nenhuma circunstância, e esperava que o irmão fosse até ela. D. Manuel, sempre atencioso para com a irmã, fazia desta forma com que as duas rainhas, a velha e a nova, se encontrassem face a face, ainda que provavelmente (o trecho não é muito claro) com água a separá-las. Fica-nos a imagem de uma velha senhora, deslocando-se em cima de um andor, afastada das luzes da ribalta, mas por quem o rei seu irmão inegavelmente nutria afecto e reverência. São dois momentos da vida da rainha que fazem apelo a um lado menos lembrado da sua existência: a sua corporalidade21. Ficamos a saber que para D. Leonor o corpo terá sido uma limitação e um escolho. Não para a sua espiritualidade, que sabemos que desenvolveu, nem para a sua acção enquanto mulher de poder. O facto de se manter afastada sistematicamente do epicentro dos acontecimentos da corte não implicava para D. Leonor ausência de influência política. Parece ser uma daquelas figuras que permanecem na sombra, aparentemente imóveis, mas que, não obstante, actuam no momento certo. Ou pelo menos, se não agia, a rainha permanecia informada de tudo o que se passava. Como sabemos, fora D. Leonor a dar os passos decisivos no sentido de obrigar o marido a designar D. Manuel como sucessor do trono. Fora ela, juntamente com a irmã duquesa viúva de Bragança e a mãe duquesa de Beja, que convencera D. João II, já muito doente, a designar D. Manuel por sucessor. Os cronistas relatam que nesse dia se colocou um ponto final às desavenças entre D. Leonor e o rei seu marido, motivadas pela insistência do rei em legitimar o seu bastardo D. Jorge. A historiografia actual não tem qualquer dúvida de que, se D. Manuel subiu ao trono, foi por obra da irmã. É o que diz, sem margem para dúvidas, Damião de Góis, num dos trechos da sua crónica de D. Manuel I: foi “causa única” de ele ter sido escolhido como sucessor de D. João II no respectivo testamento que fez aprovar antes da sua última viagem ao Algarve, semanas antes de morrer22. Comprovam-no também as numerosas mercês e doações que D. Leonor conseguiu obter do irmão, aumentando 14

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substancialmente o seu património desde que este subiu ao trono, e que são prova da gratidão que o monarca lhe devia23. Há sinais inequívocos de que influenciava profundamente D. Manuel, conforme chegou a ser relatado por alguns observadores, que chegaram a afirmar que D. Manuel não decidia nada sem a consultar. E também episódios que não cabe narrar agora, demonstram o afecto profundo e a consideração que o irmão lhe votava, a ponto de os cortesãos pedirem a intercessão de D. Leonor em matérias em que D. Manuel se mostrava renitente24. Há também a evidência das misericórdias, que corrobora a empatia existente entre os irmãos. Como se sabe, a rainha fundou a primeira misericórdia em Lisboa durante um período de regência em 1498, mas quando D. Manuel regressou ao reino, continuou a promover a sua fundação, como que a dar o seu consentimento à iniciativa da irmã. Inclusivamente, alguns dos privilégios que estruturaram a actuação da confraria tinham já sido promulgados em alvará pela rainha, como a assistência aos presos25. Quando D. Manuel regressou de Saragoça, em Outubro desse ano, retomando o seu ofício de rei, a criação das misericórdias continuou, agora, sob o seu patrocínio, mas dentro dos moldes estabelecidos pela rainha para a Misericórdia de Lisboa26. Existem portanto dados que nos permitem afirmar que D. Manuel a ouvia, e se deixava influenciar por ela. E que tinha por D. Leonor uma grande reverência, indo até ela quando a rainha não vinha até ele. Até ao fim do reinado, como naquele dia de Janeiro de 1521 quando a viera cumprimentar com a nova mulher ao chegar a Lisboa. Nesse mesmo ano, meses antes, quando a princesa sua filha D. Beatriz estava prestes a partir na viagem que a levaria ao encontro do seu marido, o duque de Sabóia, D. Manuel foi com a mulher e todos os infantes ao paço de S. Bartolomeu levar Beatriz a despedir-se da tia. É outro dos momentos em que pressentimos a proximidade entre ambos. O rei, a rainha, e os numerosos filhos do primeiro – de notar que Beatriz era a primeira de todos a casar-se – subiram em parada desde o paço da Ribeira a colina do Castelo até ao paço de D. Leonor, hoje desaparecido, mas que sabemos ter-se situado no local da actual praça dos Lóios27. A fortuna de D. Leonor enquanto eminência parda do rei parece ter diminuído um pouco depois da morte do irmão em Dezembro de 1521, à qual ainda sobreviveu quatro anos. O sucessor no trono, seu afilhado, respondia afirmativamente aos pedidos da tia, geralmente relacionados com procedimentos administrativos que só ele podia resolver, mas não parece ter feito da tia confidente ou conselheira, como sabemos ter acontecido com D. Manuel I. No entanto, até ao ano da sua morte, e a poucos meses de distância desta, a rainha arranjava maneira de estar a par do que se passava. Quando Catarina de Áustria chegou a Portugal para se receber com o rei D. João III, procedente de Castela, a rainha D. Leonor encomendou um relato do que se tinha passado na viagem desde a entrada da nova rainha no reino até se encontrar com o rei28. Provavelmente, alguém lho leu, e D. Leonor escutou-o na sua cama. Se foi das últimas coisas que fez, não sabemos: a rainha morreria meses depois da entrada de D. Catarina. Não é provável que se tenham sequer chegado a conhecer, porque Lisboa se encontrava mais uma vez impedida pela peste. Até a rainha D. Leonor se encontrava ausente, tendo chegado à Madre de Deus pouco antes de morrer29. Mas é importante, por isso mesmo, o relato da chegada de D. Catarina: se D. Leonor o encomendou, significa não só que estava lúcida, mas continuava a querer saber o que se passava. Mas mais uma 15

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vez, temos uma prova de que mobilidade reduzida não era sinónimo de alheamento, e que a rainha quis, até ao fim, ser informada do que ia acontecendo. É difícil imaginar hoje uma cena onde as pessoas principais de uma cidade devem prestar vassalagem a três crianças e uma adolescente acompanhadas de sua mãe viúva, sendo que uma delas tem estatuto de futura rainha. Mais difícil ainda imaginar uma velha senhora a ser transportada num “andor” até uma praia ao encontro de dois recém casados. Embora tenhamos hoje o convento da Madre de Deus no seu sítio original, a praia desapareceu, bem como a vista sobre o rio; a linha do comboio separa o terreno do convento das margens do Tejo. Mas creio que o tema da comunicação de hoje agradaria à rainha. Não podemos hoje afirmar que o gosto de D. Leonor pela espiritualidade tardo-medieval, a sua amizade pela observância franciscana com o seu elogio da pobreza voluntária, implicassem o seu completo despojamento material. Para uma rainha, a pobreza voluntária tinha limites bastante evidentes. Apenas a forma de vida escolhida pretendia afastá-la das vaidades do mundo, um programa que a rainha cumpriu ao isolar-se nos seus paços e afastar-se da corte régia. Ainda assim com uma corte numerosa – contámos mais de cem cortesãos seus depois da sua morte. Nem outra coisa seria de esperar: mesmo os tratados da época – o de Christine de Pisan, por exemplo, que a rainha fez publicar em letra de forma – não advogavam a renúncia a todos os bens materiais. Apenas às jóias, porque o vestuário e o trem de vida tinham de ser os adequados a uma rainha30. D. Leonor pugnou sempre ao longo da vida pela manutenção do que lhe cabia por linhagem e casamento, devidamente acompanhado por todas as seguranças patrimoniais e de rendimento31. Pelo menos no plano político, podemos dizer que a rainha conseguiu ultrapassar a sua situação física desfavorável, primeiro mantendo-se próxima do rei seu irmão, e mais tarde, morto este, dispondo de riqueza e influência suficiente para fazer chegar até si as informações necessárias para estar ao corrente dos assuntos mais importantes. Mas a sua imobilidade, à qual corresponde não só uma opção de vida como uma saúde débil, corresponde afinal a um tema caro da sua espiritualidade: o da vulnerabilidade da condição humana, e da inutilidade dos bens terrenos perante os seus infortúnios. Um assunto que reis e rainhas compreendiam talvez melhor do que outras pessoas: nada os poderia livrar das dores do mundo. Presa ao corpo, portanto.

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal. 4 vols., Porto: Portucalense Editora, 1967-1971. ALVES, Ana Maria, As Entradas Régias Portuguesas. Uma Visão de Conjunto. Lisboa: Livros Horizonte, s.d. ANDRADE, Ferreira de, Palácios Reais de Lisboa (Os Dois Paços de Xabregas, o de S. Bartolomeu e o de Alcáçova). 2.ª ed., Lisboa: Vega, s.d. (1.ª edição 1949). BERTELLI, Sergio, The King’s Body: Sacred Rituals of Power in Medieval and Early Modern Europe. Philadelphia: Penn State University Press, 2003. BUESCU, Ana Isabel, Catarina de Áustria (1507-1578). Infanta de Tordesilhas Rainha de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, 2007. Constituições geraes para todas as freiras, e religiosas sujeitas à obediência da Ordem de N P S Francisco nesta Família Cismontana de novo recompiladas das antigas, e acrescentadas com acordo, consentimento e aprovação do capítulo geral celebrado em Roma em 11 de Junho de 1639... Lisboa: na off. de Miguel Deslandes, 1693. CORREIA, Gaspar, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533), ed. José Pereira da Costa. Lisboa: Academia das Ciências, 1992. CORREIA, Gaspar, Crónicas dos Reis de Portugal e Sumários de suas Vidas, ed. José Pereira da Costa. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1996. Crónicas de Rui de Pina, ed. M. Lopes de Almeida: Porto: Lello & Irmão, 1977. FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade. 3 vols., Lisboa: Relógio d’Água, 1994. FREIRE, Anselmo Braamcamp, “Inventário da infanta D. Beatriz 1507”. Arquivo Historico Português, vol. IX, Lisboa, 1914, p. 64-110.

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FREIRE, Anselmo Braamcamp, Crítica e Historia. Estudos, 2 vols., reedição facsimilada. Lisboa: Gulbenkian, 1996. GÓIS, Damião de, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel. 4 vols, Coimbra: por ordem da Universidade, 1949-1955. KANTOROWICZ, Ernst, The King’s Two Bodies. Princeton: Princeton University Press, 1981. PIZAN, Christine de, O Livro das Três Vertudes ou Insinança das Damas, ed. Maria de Lurdes Crispim, Lisboa, Caminho, 2002. RESENDE, Resende, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea. Lisboa: INCM, 1973. RUSSELL, Nicolas e VISENTIN, Hélène (eds.), French Ceremonial Entries in the Sixteenth Century. Event, Image, Text. Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 2007. S. PAULO, Jorge de, 0 Hospital das Caldas da Rainha até ao ano de 1656. 3 vols., Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1967-1968. SÁ, Isabel dos Guimarães, D. Leonor e as Misericórdias: uma reavaliação. Penafiel: Câmara Municipal, 2009 (no prelo). SÁ, Isabel dos Guimarães, Leonor, 1458-1525. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010 (no prelo). SENNETT, Richard, Flesh & Stone. The Body and the City in Western Civilization. New York: Norton, 1993. SOUSA, Ivo Carneiro de, A Rainha da Misericórdia na História da Espiritualidade em Portugal na Época do Renascimento. Porto: Universidade do Porto, 1992, 3 vols, dissertação de doutoramento policopiada.

1 Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho; investigadora associada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 2 A título de exemplo, cf. Alves, As Entradas Régias Portuguesas; Russell e Visentin (eds.), French Ceremonial Entries in the Sixteenth Century. 3 Biblioteca da Ajuda, cod. 51-V-69, fl. 174. 4 Creio que D. Isabel, a segunda filha dos duques de Viseu, não estava neste cortejo, por ser já então casada com o duque de Bragança. Houve outros irmãos, que morreram muito cedo, mas sabemos que Duarte ultrapassou a primeira infância. Trata-se de uma reconstituição conjectural, uma vez que não existem datas para a sua morte. A de D. João, o filho varão mais velho, que chegou a herdar o título por morte do pai em 1471, só recentemente foi encontrada (cf. nota anterior). 5 Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. I, p. 506-507. 6 Arquivo Distrital de Évora, Livro 2.° de Originais (72), “Carta de D. João II à câmara de Évora, queixando-se que a rainha D. Leonor não tinha sido devidamente recebida na cidade quando lá fora a partir de Montemor”, fl. 87. [1482.04.27]. 7 Biblioteca da Ajuda, cod. 51-V-69, fls. 175v e 191. 8 Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, p. 254. Rui de Pina confirma o estado crónico de doença da rainha depois desta data, ainda que não tão detalhadamente (Crónicas de Rui de Pina, p. 1019-1020). 9 Correia, Crónicas dos Reis de Portugal e Sumários de Suas Vidas, p. 271 e 305. 10 IAN/TT, Livro 47 da Reforma das Gavetas, fl. 136-136v [1510.07.31, Xabregas]. 11 “Cartas, textos e outros documentos”, in Sousa, A Rainha da Misericórdia na História da Espiritualidade em Portugal na Época do Renascimento, vol. II, p. 85. 12 Cetáceo do Ártico, caçado pelos noruegueses durante a Idade Média. Um dos dois dentes do macho da espécie crescia em espiral, podendo alcançar o comprimento de três metros, e o seu preço era equiparado ao do ouro. 13 Freire, “Inventário da infanta D. Beatriz 1507”, p. 64-110. 14 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 15, doc. 96 [1514.07.27, Lisboa]. 15 Como exemplo, cite-se a representação a D. Manuel do Auto da Alma, em 1508, na noite de Endoenças no paço da Ribeira, por encomenda da rainha. Nas matinas do Natal de 1518, a 25 de Dezembro, é representado no Hospital de Todos os Santos, perante D. Leonor, o Auto da Barca do Purgatório. Todavia, a corte estava ausente de Lisboa: D. Manuel casara em Novembro desse ano em Almeirim com D. Leonor de Áustria, só regressando à cidade em Janeiro de 1521. 16 “Cartas”, in Sousa, A Rainha da Misericórdia, vol. II, pp. 149-151 [1507.11.23, Alenquer]. 17 Garcia de Resende refere paços contíguos ao seu convento de Xabregas (In Crónica, p. 255). Sobre o paço da rainha na freguesia de S. Bartolomeu, vejam-se Andrade, Palácios Reais de Lisboa pp. 69-102 e Freire, Crítica e História, vol. I, pp. 350-355. 18 Regra instituída por Leão X em 1521, in Constituições geraes para todas as freiras, e religiosas sujeitas à obediência da Ordem de N P S Francisco nesta Família Cismontana de novo recompiladas das antigas, e acrescentadas com acordo, consentimento e aprovação do capítulo geral celebrado em Roma em 11 de Junho de 1639..., p. 58 e seguintes. 19 Sobre o contexto deste casamento, inicialmente projectado para o príncipe herdeiro, cf. Buescu, Catarina de Áustria (1507-1578), p. 111-115. 20 Correia, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533), p. 128. 21 O estudo do corpo tem vindo a ocupar um lugar crescente nas ciências sociais e humanas. Entre os autores de referência para os historiadores, cf. Foucault, História da Sexualidade e Sennett, Flesh & Stone. Especificamente sobre o corpo dos reis, Kantorowicz, The King’s Two Bodies e Bertelli, The King’s Body. 22 Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, parte I, p. 9. 23 Freire, Crítica e História, vol. I, pp. 97-132. 24 Sá, Leonor, 1458-1525 (no prelo). 25 Cartas de 12 e 13 de Setembro de 1498, in Sousa, A Rainha da Misericórdia, vol. II, pp. 107, 109 e 110. 26 Sá, D. Leonor e as Misericórdias: uma reavaliação. 27 Resende, Crónica..., p. 326. 28 Biblioteca da Ajuda, “Carta que foi escrita à Rainha D. Leonor sobre a vinda e recebimento da Rainha D. Catarina, mulher do rei D. João o 3º deste nome nosso senhor que Deus guarde”, cód. 51-VI-40, fls. 41-54. Também citado por Buescu, Catarina de Áustria, p. 158 e seguintes. 29 S. Paulo, O Hospital das Caldas, vol. I, p. 209-210. 30 Pizan, O Livro das Três Vertudes, p. 113. 31 Freire, Crítica e História, vol. I, pp. 97-132.

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