A RAZÃO DO OUTRO: uma perspectiva histórica intercultural como referência para a educação 1

June 3, 2017 | Autor: L. Fernandes de O... | Categoria: RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCAÇÃO, Modernidade/Colonialidade
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A RAZÃO DO OUTRO: uma perspectiva histórica intercultural como referência para a educação1. Luiz Fernandes de Oliveira2

Quando os colonizadores europeus começaram a traficar africanos para as Américas, não se imaginava, a época, que os africanos escravizados e seus descendentes seriam capazes de resistir. Com suas culturas, desprendidas das formas sociais originárias, eles recriaram e reterritorializaram meios de convívio e organização, principalmente na órbita religiosa, fora do controle dos europeus. Essas características africanas de resistir, segundo Luz (1995), hoje são mal interpretadas e recalcadas nos meios acadêmicos. Entretanto, na entrada do século XXI, esta má interpretação se atenuou significativamente, principalmente com as intensas reflexões e produções historiográficas dos últimos 15 anos. Não nos cabe aqui fazer um histórico detalhado da escravidão africana no continente americano, pois este já foi realizado por muitos estudiosos, historiadores e antropólogos. Nossa tarefa aqui é reorientar o foco de analise da resistência negra colocando-a numa nova linha de interpretação, que nos leva talvez, a repensar a luta antirracista no Brasil, em especial, no campo educacional sob a perspectiva da interculturalidade. Numa análise instigante, Henrique Cunha Jr (1996), afirma que os africanos e seus descendentes são milenares na história da humanidade. Neste sentido, afirma que os processos e dinâmicas societárias africanas foram interrompidas pelos brancos europeus e obrigou os africanos a reelaborarem suas culturas no Brasil e nas Américas, sob uma poderosa pressão econômica e política. Assim, o conceito central – político e analítico – de africanidade brasileira é “o reprocessamento pensado e produzido no coletivo e na individualidade que deram novo teor as culturas africanas de origem” (CUNHA JR, 1996, p. 11). E mais: a idéia de reelaboração é importantíssima, ela tem o conteúdo da produção intelectual dos afrodescendentes. Ela introduz a idéia do pensado, do nacional, do produzido através de bases civilizadas importantes preexistentes

(CUNHA JR, 1996, p. 11). O autor cita a importância de se pensar os conceitos de africanidade brasileira e de reelaboração a partir do seguinte relato pessoal: 1

Texto publicado no livro: CANDAU, Vera Maria (Org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016. 2 Doutor em Educação pela PUC – Rio, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares – PPGEDUC/UFRRJ e da Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC).

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Me impressionou muito a apresentação de um grupo de Steel Band. Steel Band são barris metálicos cortados e abaulados, através de um martelo que produz um processo de afinação. Sai daí um instrumento de percussão. São instrumentos produzidos por grupos de afrodescendentes do Caribe, vivendo em regiões portuárias. Dada a revolução industrial, os portos recebiam grande quantidade de barris metálicos. O Steel Band é um instrumento que produz os sons de todos os quatros grupos de instrumentos de uma orquestra sinfônica. Trata-se de um quinto grupo de instrumentos com vários tamanhos e formas. É um instrumento inexistente na África e na Europa, entretanto aparece no Caribe, graças a reelaboração da base Africana de música e percussão, sob a referência de novo contexto de disponibilidades materiais. Não é uma construção simples, ingênua, casual. Seria impossível conceber tal instrumento, sem uma elaboração sistemática, instruída de bases dos conhecimentos de processos racionais (CUNHA JR, 1996, p. 12).

A partir deste exemplo, segundo Henrique Cunha Jr., se descortina um novo horizonte para se pensar as religiões de matriz africana no Brasil, a capoeira, os quilombos e várias manifestações culturais e sociais dos afrodescendentes. Pois, estas manifestações se caracterizam antes de tudo como “reelaboração de base africana” (CUNHA JR, 1996). Essa caracterização pode nos demonstrar que existiu e existe um processo dinâmico de resistência-adaptação, continuidade na descontinuidade. As comunidades religiosas (candomblé e umbanda), por exemplo, constituem-se em instituições irradiadoras de processos societários e culturais dos afrodescendentes e nos fornece uma perspectiva para pensar a interculturalidade em educação.

Não só resistência, mas também afirmação negociada

A luta dos africanos escravizados e de seus descendentes contra o racismo e a opressão se caracterizou nas mais diferentes formas, conforme o contexto histórico. Ela assumiu desde as guerras regulares ou de guerrilha, nos infinitos quilombos, na rebeldia frente ao embarque nos navios tumbeiros, nas revoltas nesses navios, no suicídio, no aborto, na acumulação de recursos para obter cartas de alforria, nas insurreições, como a Revolta dos Malês em Salvador em 1835, até a implantação de instituições (os quilombos, as irmandades religiosas, o candomblé, a umbanda, a capoeira, etc.) que mantém a continuidade de vários de seus valores originários, que promoveram e promovem a coesão grupal e a ocupação de espaços sociais negados pela política de embranquecimento da sociedade hegemônica. Estas resistências, como vimos, se configuraram em meio as piores atrocidades cometidas pela política genocída-etnocída branca europeia.

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A luta do povo negro até hoje tem se caracterizado por uma tentativa continua de afirmação de seus valores, de uma insurgência negra que se evidencia na tentativa de um continum de valores societários de diversas comunidades africanas (LUZ, 1995). Esta lógica de construção nos leva a afirmação que os africanos e seus descendentes realizaram e realizam uma ocupação de espaços no seio de uma sociedade que os queria e os quer de fora. Suas formas de lutas, resistências e afirmação existencial os fizeram sondar o terreno, verificando pontos suscetíveis para avanços e recuos, e quando foi preciso, quebraram as resistências opressoras se afirmando culturalmente e socialmente. O conceito de “africanidade brasileira” refere-se aos reprocessamentos pensados e produzidos no coletivo e nas individualidades, que deram novo teor as culturas de origem. Entretanto, pode-se afirmar também em outras palavras que os africanos escravizados e seus descendentes na diáspora, reterritorializaram sua visão de mundo, sua “cultura de Arkhé”. Arkhé, aqui, significa ter origem e destino coletivos (SODRÉ, 2002). Aos africanos desprovidos de um território físico restou a possibilidade de se reterritorializar na diáspora através de um patrimônio (memória cultural africana) simbólico e nestas diversas formas de reterritorialização/reelaboração, seja mítica, simbólica ou cultural, adquiriram contornos explicitamente políticos diante das pressões de toda ordem exercidas contra eles. Neste sentido, afirma Muniz Sodré (2002): os espaços que aqui se refaziam, tinham motivações ao mesmo tempo mística e política. Veja-se o caso do quilombo: Não foi apenas o grande espaço de resistência guerreira. Ao longo da vida brasileira, os quilombos representavam recursos radicais de sobrevivência grupal, com uma forma comunal de vida e modos próprios de organização (p. 68).

Para os africanos na diáspora, valorizar a África ou construir uma suposta pureza caracterizada como padrões ritualísticos originais, parecia tática de construção de uma identidade outra, pois nos espaços da sociedade branca, eles eram coisas, mercadorias, semoventes. Entretanto, a construção destes espaços não se afirmou somente através de soluções radicais, expressas no embate aberto contra a ordem branca (revoltas, guerrilhas, insurreições etc.), mas fundamentalmente com táticas visando à disputa de espaços, visão de mundo e de afirmação existencial. Ao contrário do que podem parecer, esses reprocessamentos e reelaborações de base africanas nada tem a ver, para estes sujeitos históricos, com sincretismos, interesses corporativos, embranquecimento ou miscigenação. Vejamos a seguir, alguns exemplos.

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Irmandades

Graças às diversas pesquisas historiográficas, sabe-se hoje que, em meio ao terror da escravidão, os africanos desenvolveram formas paralelas de organização social e econômica. Uma delas foram às confrarias de resistência mútua sob o disfarce de atividades religiosas cristãs. Estas ordens ou irmandades representavam a ampliação, além dos quilombos, de sua luta estratégica contra a escravidão nas cidades nascentes do Brasil colônia e Império. Vários são os exemplos como no tempo das minas e do ouro, entre paredes de uma igreja, na fadiga das minas e nos garimpos, ocultando o ouro e as pedras da vista dos brancos, ocupando o espaço social urbano, africanizando o catolicismo. Diversos historiadores afirmam que as irmandades somente se realizaram devido às intenções da igreja no sentido de construir uma massa de manobra capaz de aumentar o poder eclesiástico frente à coroa portuguesa, entretanto, outros recentes estudos, evidenciam que os africanos e seus descendentes aproveitavam o espaço das irmandades para reconstruírem suas identidades culturais de origem e também a utilizavam e a gerenciavam como recursos necessários à compra de cartas de alforria. Luz (1995) nos recorda do exemplo de Chico Rei. Escondendo ouro em seus cabelos, comprou sua alforria e libertou muitos companheiros e contribuiu enormemente para erguer a irmandade de Santa Ifigênia, além de ter sido proprietário de uma mina de ouro na cidade de Vila Rica. Este é apenas um pequeno exemplo que nos informa que os africanos souberam aproveitar os interstícios da sociedade colonial brasileira, pois era imprescindível ocupar espaço e sondar o terreno, para a reconstrução de suas identidades, na intenção de reconstruir um continum cultural no âmbito das irmandades católicas.

Capoeira

Outro exemplo é a capoeira. Os negros baianos afirmam que capoeira se luta, se joga, se brinca, é algo que se faz entre amigos. Todo o corpo é simbolizado na capoeira, que se expressa dinamicamente em esquivas e golpes, com seus diversos termos: rasteira, meia lua, martelo, rabo de arraia, benção, chibata, tesoura etc. O que se parece buscar é a inclusão, a atração do oponente para a luta e para a brincadeira. O modo rítmico do jogo não representa o estilo individual do jogador. O que define este estilo é a chamada ginga, o balanço do corpo, da dança e esquivas ao mesmo tempo, tudo

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isto com mandinga (feitiçaria, encantamento, malícia) de gestos, sorrisos, com o objetivo de desviar o oponente de seu caminho. Semelhante à estratégia da aranha: evita-se o confronto direto, e se estabelece a sedução do capoeirista sob o adversário que acontece na roda - o espaço circular, envolvendo-o, enlaçando-o, cansando-o para um possível golpe final, ou não. A capoeira implicava/implica num jogo de resistência e acomodação. “Luta com aparência de dança, dança que aparenta combate, fantasia de luta” (SODRÉ, 2005, p. 155). A capoeira sobrevive por ser um jogo cultural. Um jogo em que se finge lutar, e “se finge tão bem que o conceito de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e – ai dele - do adversário desavisado” (SODRÉ, 2005, p. 155). Na arte-jogo da capoeira, malícia indica com precisão a capacidade negra de burlar a ideologia branca do corpo – expressa nas regras que obrigam um determinado uso do corpo – e adotar uma atitude nova. Solto no seu movimento, seduzido pelo ritmo, o corpo encontra seu caminho, a ocasião certa para o golpe fatal (SODRÉ, 2005). Para enfrentar a opressão, os africanos tiveram que agir com malícia, procurando dissimular verdadeiras intenções, uma forma particular de fazer política. Capoeira é, simbolicamente, uma luta em que a “manha” e a malícia se sobrepõem a força física, posto que o mais forte não é aquele fisicamente avantajado, porém, o mais malicioso, o mais mandingueiro. Enfim, um jogo de contra poder (SODRÉ, 2005). Neste sentido, a luta contra a escravidão e o racismo se expressa na capoeira como afirmação de um corpo orgulhoso de sua vitalidade e conhecedor dos seus segredos, de sua mandinga. O corpo capoeirista se define “pela plasticidade necessária aos herdeiros de uma cultura em movimento de autopreservação e continuidade” (SODRÉ, 2005, p. 161).

Futebol

Numa brilhante afirmação, Marco Aurélio Luz (1995) afirma: o tempo do futebol brasileiro é o ritmo da temporalidade cósmica da visão de mundo negra. A bola corre de pé em pé, cadenciando, com ritmo, com gestos, com dança... (p. 611-612)

Inventados pelos ingleses, o futebol no Brasil foi africanizado. Pois, diferente do estilo inglês, disciplinado e mecanizado, pertinente às dimensões mensuráveis, matematizáveis, pragmáticas e ascéticas; o futebol brasileiro é considerado até hoje, apesar de toda mercantilização e industrialização desse esporte, inclusive no Brasil, capaz de envolver os

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adversários, colocando-os na roda, seduzindo com dribles, impondo um ritmo, como a beleza de uma dança que ocupa espaços. Ainda Luz (1995) vai citar um famoso jogador dos anos de 1950 – Didi. A época, se destacando como um dos maiores jogadores do mundo, ele contestou os comentaristas esportivos europeus que conjecturavam o que seria um bom jogador europeu. Numa entrevista, Didi retrucou com uma máxima que se celebrizou: “quem corre é a bola”. Mario Filho (1964) escreveu que os ingleses reagiram a esta africanização realizada no Brasil, na excursão da seleção brasileira à Europa em 1956: Nas folhas londrinas, o futebol brasileiro tinha tudo de um circo, o comedor de fogo, o engolidor de faca, os acrobatas, os trapezistas, até os palhaços. Só não tinham essa coisa elementar que era um time. (p. 373).

A cadência do futebol brasileiro é especialmente caracterizada pela roda. A roda de capoeira, a roda ritual, a roda de samba. O futebol brasileiro, com seus grandes jogadores negros, mas também brancos, se assentou também nas linguagens da luta-dança da capoeira, num perceptível “repertório de gestos cadenciados que se evidencia num fantástico uso do corpo...” (LUZ, 1995, p. 615) A ginga é mais uma vez usada e, do futebol técnico passa-se ao futebol arte. “O jogo do corpo, que constitui o drible, capaz de tornar a bola e o corpo do jogador invisível, tava aqui e não tá mais” (LUZ, 1995, p. 616). Mas, este estilo de futebol não se afirmou de forma fácil. Nas primeiras décadas do século até os anos 50, os negros eram impedidos de participarem dos grandes clubes. Na copa de 1958, por exemplo, a equipe médica da seleção dizia que somente os jogadores brancos poderiam agüentar o clima frio sueco. Assim, jogadores como Djalma Santos, Zito, Zózimo, Garrincha, Vavá e Pelé ficaram de fora. Participaram ao final somente após a destituição da autoridade da comissão técnica que temia um fracasso total. (LUZ, 1995) Ao final, os negros só tomaram conta do cenário nacional do futebol após comprovarem sua força-arte e dar grandes vitórias a seus clubes e a seleção brasileira. Na gloriosa carreira de Pelé e Garrincha, eles expressavam no futebol o terreno onde a “alma africana” se manifestava intensamente, fortalecendo a identidade nacional, com marcas negras, combatendo e insurgindo-se à política genocída de embranquecimento desenvolvida pela sociedade oficial. Em gestos simples, mas com profundas raízes, Garrincha, por exemplo, afirmava suas origens negras: Nenhum zagueiro conseguia odiar Mané, porque quando pensava que estava sendo ridículo, motivo dos risos das torcidas, e olhava com raiva para o

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semblante concentrado de Garrincha, sério, humilde, quase a pedir desculpas pelo drible, se desarmava inteiramente. Não havia ofensa nem deboche em seu olhar. Havia respeito à arte do futebol, do jogo, do lúdico, da brincadeira de que só o negro brasileiro foi capaz de fazer com uma linguagem oriunda da Inglaterra. Mané era um artista que aprendera em meio à natureza, com as árvores, com as folhas, com os bichos, com preás e garrincha, tradição dos caçadores, cultura emergente das matas. (LUZ, 1995, p. 621)

O futebol como orgulho nacional hoje, não vem do esporte bretão, mas das reelaborações de origem africana do jogo europeu.

Religiosidade

O fenômeno da religiosidade de matriz Africana é o lugar onde mais se expressa o racismo no Brasil, entretanto, é também onde a resistência negra demonstrou uma capacidade de afirmação de identidades outras surpreendente. O candomblé, por exemplo, refere-se ao ser humano em sua totalidade existencial, na qual espírito e matéria não se dissociam. É uma cosmovisão, em que tudo interage e tem ligação, onde nada pode ser isolado da vida. O candomblé é fundamentalmente um culto à cabeça, voltado para o desenvolvimento pleno da pessoa, é autoconhecimento, uma concepção que prega a autonomia, em que o Ori (cabeça) é o mais importante. O Borí (alimentar a cabeça) é um ritual importante que significa o desenvolvimento do Axé, é alimentar as próprias energias. Axé, a força vital que move o mundo. Desenvolver o Axé significa, sobretudo, pensar em coletividade. Os iniciados ao candomblé, nas diversas formulações de antropólogos e historiadores, é a extensão da família africana reterritorializada no Brasil. Na iniciação se passa a fazer parte dessa família, que na sua concepção é extensiva, propiciando a construção de identidades que podem ser partilhadas por negros e brancos de qualquer origem e, pelo processo iniciático, todos se tornam irmãos ao introjetarem os mesmos padrões simbólicos. Os terreiros representam espaços de liberdade, territórios não institucionalizados pela lógica sociocultural dominante e pelo Estado Brasileiro. São comunidades que tomam a forma simbólica africana, mantendo vários aspectos das culturas yorubá, Banto ou Jejê, com o culto aos Orixás (forças da natureza) e o culto dos Eguns (antepassados). No Brasil, estas estruturas foram sintetizadas e reelaboradas. Quando se afirma isto, o que se evidencia é que este patrimônio negro brasileiro afirmou-se na diáspora como território político-mítico e religioso para sua transmissão e preservação. Expressou a grande possibilidade de reterritorialização de um patrimônio de

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identidades africanas, consubstanciado nos cultos aos deuses, à institucionalização de festas, dramatizações e formas musicais. É o chamado Egbé, o terreiro, que aparece na primeira metade do século dezenove. (SODRÉ, 2002) Estes espaços africanos reelaborados, na sua matriz, não surgiram para excluir os parceiros do jogo (brancos, mestiços, índios etc.), nem para rejeitar o território local, mas para permitir a prática de uma visão de mundo exilada. Algumas dessas formas litúrgicas foram definidas como sincréticas, mas para as comunidades negras o objetivo era reelaborar e redefinir as regras de origem com o objetivo de preservar uma matriz fundadora, a Arkhé (SODRÉ, 2002). O exemplo disto é o caboclo e seu culto. Apesar de toda sua simbologia indígena, é uma reelaboração do culto banto (de angola) aos ancestrais, pois o índio, para o terreiro negro é o dono original desta terra. O chamado sincretismo (na visão branca) na verdade foi uma transação, um acerto interétnico, pois o entrecruzamento das diferenças foi um jogo de contatos, com vistas à preservação de um patrimônio comum de origem e a conquista de um território social mais amplo para os negros. A posição liturgico-existencial do negro foi sempre a de trocar com as diferenças, de entrar num jogo de sedução simbólica, de encantamento, desde que pudesse assegurar alguma identidade e expandir-se. Não vigora, nesta cosmovisão, o princípio do terceiro excluído, a contradição, os contrários se atraem, banto também é nagô, sem deixar de ser banto. (SODRÉ, 2002, p. 61).

Ainda na esteira das análises de Sodré (2002 e 2005), ao contrário de alguns estudiosos, isto não é sincretismo, pois este se define por transformações litúrgicas de parte a parte. O que não houve no Brasil, porque o catolicismo é uma visão de mundo incompatível com as cosmologias negras. Sendo o catolicismo comprometido com uma perspectiva vocacionada para a dominação universal do espaço humano, não se compatibiliza com os cultos nagôs, Bantos ou Jejês, que têm motivações patrimonialistas de grupo, ecológicas e não apenas religioso. As associações feitas entre santos e orixás, por exemplo, não sincretizava nada para os negros, mas o respeito e a sedução das diferenças, graças à analogia de símbolos e funções. Ou seja, uma estratégia de reterritorialização. Vários exemplos disto podem ser vistos em diversos terreiros espalhados pelo país, como vemos numa comunidade da Baixada Fluminense3, onde um quadro com a figura de 3

Refiro-me a comunidade-terreiro denominada Asé Iyá Nasso Oká Ilè Osum, dirigido por Mãe Débora de Oxum, que herdou o cargo de Mãe Nitinha de Oxum. O terreiro localiza-se em Miguel Couto, no município de Nova Iguaçu - RJ.

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São Jorge nunca foi cultuada. Mas, quando acontece de um santo católico ser cultuado num terreiro – Umbanda, por exemplo – ele é na verdade uma entidade espiritual vocacionada ao crescimento do axé ou das energias positivas da natureza. Ou seja, o conteúdo pode ser católico, ocidental, religioso, mas a forma litúrgica tem raízes nas culturas míticas e de Arkhé. Ao invés da salvação, o culto a São Jorge se articula em torno do crescimento de Axé ou das energias da natureza. Isto nos demonstra mais uma estratégia negra, ou seja, consolidar identidades próprias e firmar-se no território brasileiro era uma questão política. Mas, também, uma perspectiva intercultural, de negociação de espaços, de estabelecimento de acordos e trocas simbólicas. Uma prática social e histórica intercultural que também se constituiu como base de afirmação e resistência. Enfim, podemos inferir que estes territórios rompem limites espaciais, para ocupar lugares imprevistos na trama das relações sociais da vida brasileira? E que estas reterritorializações/reprocessamentos, tiveram como práxis política e cultural uma perspectiva intercultural Crítica?

A Razão do Outro e a educação Enrique Dussel (1993) escreve que a categoria “razão do outro” significa a compreensão de que os conhecimentos construídos pelos povos e grupos subalternizados pela colonização não são despojados de uma estrutura racional, mas composto por um complexo simbólico funcional de relacionamento com o real e que institue a vida coletiva. Esta “razão do outro” se contrapõe historicamente a razão colonial/racional/ocidental e tenta estabelecer, por meio de uma postura intercultural, projetos de existência que promovam trocas culturais autênticas e não baseado em dominação política, epistêmica e identitária. De acordo com Walsh (2005), a interculturalidade não pode deixar de ser crítica, pois não é compreendida somente como um conceito ou termo novo para referir-se ao simples contato entre o ocidente e outros povos, mas como algo inserido numa configuração conceitual que propõe um giro epistêmico, ou seja, capaz de produzir novos conhecimentos e uma outra compreensão simbólica do mundo, sem perder de vista a colonialidade4. Essa 4

Colonialidade representa, apesar do fim do colonialismo, “um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre sí através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça”. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131). A colonialidade sobrevive até hoje “nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos

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interculturalidade representa a construção de um novo espaço epistemológico que promove a interação entre os conhecimentos subalternizados e os ocidentais, questionando a hegemonia destes e a invisibilização daqueles. Para Walsh (2005), a interculturalidade crítica representa a (re)construção de um pensamento crítico-outro - um pensamento crítico de/desde outro modo -, precisamente por três razões principais: primeiro porque está vivido e pensado desde a experiência vivida da colonialidade (...); segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global (p. 25).

Pois bem, se pensarmos nas perspectivas de reconstruções, “reprocessamentos” e “retorritorializações” realizadas pelos africanos escravizados e seus descendentes, veremos que para eles, ocupar espaços e territórios, medir as conseqüências de um movimento, combater o racismo se afirmando sutilmente, como expressa na política da capoeira (fingir que se brinca quando se luta), foi crucial politicamente, mas também representou práticas sociais interculturais na medida em que, usando a tática da aranha para construir um terreiro, camuflando o orixá na forma de santo - pois assim seduzia o olhar preconceituoso e permitia o estabelecimento de um ritual - e, além disso, se utilizando do espaço branco do futebol para afirmar um corpo estranho ao olhar racista, se evidenciou uma práxis insurgente e propositiva de sociabilidades e uma lógica cultural diferenciada. A interculturalidade critica neste aspecto, foi um modus operandi de resistência e afirmação existencial negra-africana, ou, em outros termos, um modus operandi da “razão do outro”. Neste sentido, muito temos que aprender com estes processos históricos para pensar uma interculturalidade crítica na educação brasileira. A interculturalidade crítica em educação requer a construção da diversidade como referência nas práticas pedagógicas, além disso, requer o reconhecimento da relação entre os diversos tipos de conhecimentos e a promoção de relações de solidariedade entre sujeitos e grupos diferentes culturalmente. Entretanto, para tal empreendimento, faz-se necessário o questionamento político das desigualdades sociais, das discriminações, do racismo, o questionamento dos currículos monoculturais, a promoção da afirmação do outro não ocidental como sujeitos políticos e coletivos e a negação das diferenças como fator de desigualdades sociais.

acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna”. (idem).

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Estas perspectivas, como podemos observar, se caracterizam como iniciativas essencialmente políticas, pois numa sociedade hegemonizada por uma lógica opressiva e excludente, não é possível promover praticas interculturais críticas sem politizar os debates, as reflexões e as práticas pedagógicas no espaço acadêmico e escolar. Como vimos anteriormente, as praticas culturais negras - expressas nas irmandades, na capoeira, no futebol ou na religiosidade - nos trazem elementos para se pensar na interculturalidade crítica em educação. Os desafios estão postos a uma escola cada vez mais massiva, com públicos diferenciados, ritmos de aprendizagens diversas, que trazem ao interior da escola problemas sociais cada vez mais acentuados, ou ainda, contradições e conflitos culturais e raciais que estão cada vez mais expostos na sociedade brasileira, e que revelam dramaticamente que as lógicas das atividades pedagógicas e docentes nem sempre coincidem com as dinâmicas da formação inicial docente que, se caracteriza com a forte presença de uma perspectiva monocultural. Assim, a diversidade e as diferenças identitárias e étnico-raciais se apresentam com força, colocando em cheque a pedagogia escolar. Neste sentido, um novo período de reflexões pedagógicas se anuncia na escola massiva, e precisamos refletir sobre o que chamamos de interculturalidade crítica referenciada nas histórias de afirmação e resistência negra no Brasil. As novas identidades estudantis que se apresentam, estão começando a estabelecer um confronto com a cultura escolar hegemônica (modos de regulação, regimes de gestão e produção simbólica) amalgamadas para resistir aos novos conteúdos, novos significados ou novas perspectivas de reconceitualizações identitárias ou étnicoraciais. Como poderíamos pensar, neste contexto, uma educação que promova a interculturalidade crítica tendo como exemplos a história negra brasileira? Como seria a tática da aranha na educação, como fizeram no campo religioso e cultural? Como afirmar corpos negros no espaço escolar se inspirando na africanização do futebol brasileiro? Como estabelecer espaços negros nos currículos, inspirados nas táticas das irmandades religiosas dos africanos escravizados. Esses, podem se caracterizar como desafios e tarefas quase colossais, pois as escolas devem aprender a educar as novas gerações diferentes e permitir-lhes outra imagem, diferente daquela padronizada, estereotipada e racializada. Mas, do ponto de vista teórico-pedagógico, nosso desafio enquanto intelectuais-docentes é, fundamentalmente, sermos mais humildes e aprender com as diferenças, pois, como afirma Maldonado-Torres (2009), “no mundo, há muito para aprender com aqueles outros que a modernidade tornou invisíveis” (p. 376).

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Referências:

CUNHA JR., Henrique. Afrodescendência e africanidade brasileira. A condição necessária, porém não suficiente para compreensão da história sociológica do povo brasileiro. Teresina: mimeo, 1996. DUSSEL, Enrique. 1492. O encobrimento do outro. A origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993. LUZ, Marco Aurélio.

Agadá, Dinâmica da Civilização africano-brasileira, Salvador:

SECNEB, 1995. MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/Universidad Central-IESCO/Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 127167. ___. A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento: modernidade, império e colonialidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 337-382. MARIO FILHO. O negro e o futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. A forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro/Salvador: Imago/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002. ___. A verdade seduzida. Por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, Catherine. (Org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005, p. 13-35.

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