\"A Reacção Islâmica ou as II e III Cruzadas\", Visão História. Dezembro de 2014

July 7, 2017 | Autor: Gonçalo Matos Ramos | Categoria: Crusades, Richard I The Lionheart, Battle of Hattin, Sultan Saladin
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Secção da publicação periódica Visão História: O tempo das Cruzadas Título do artigo: A reacção islâmica ou a segunda e terceira Cruzadas Após o momento inicial de 1099, com a conquista de Jerusalém por Godofredo de Bulhão, marcado por intenso fervor religioso e operações militares vitoriosas, os reinos cristãos latinos no Próximo Oriente confrontaram-se, a breve trecho, com uma reacção sustentada por parte das diversas forças islâmicas que, em momentos diferentes do século XII, responderam violentamente a esta “colonização”, gerando, por reflexo, novas reacções cruzadísticas que, genericamente, se malograram perante uma organização militar mais eficiente e um certo esfriamento nas motivações do lado cristão, sobretudo com os problemas internos que afectavam então os reinos ocidentais. É também um dos períodos das Cruzadas mais popularizados na cultura ocidental, vendo actuar figuras mitificadas como S. Bernardo de Claraval (1090-1153), Leonor da Aquitânia (1122/24-1204), Ricardo “Coração de Leão” (1157-1199), Filipe Augusto (1165-1223), Frederico Barba-ruiva (1122-1190) e Saladino (1138-1193). Os romances de Walter Scott, nomeadamente Ivanhoe e a série The Tales of the Crusaders (composto por The Betrothed e The Talisman) reintroduziriam, ao jeito do movimento romântico a que o escritor escocês pertencia, uma concepção da Idade Média que exaltava estas figuras e que estão na base do nosso imaginário contemporâneo acerca deste período. Aliás isto mesmo se constata pelo sucesso de filmes relativamente recentes como O Reino dos Céus, de Ridley Scott, que, apesar de lançado no rescaldo da invasão do Iraque e, por consequência, do simbolismo que uma revisitação histórica das relações entre cristãos e muçulmanos poderia significar naquele contexto político, espelha bem esta visão. De resto, o filme procura equilibrar-se entre os dois pólos do conflito, apresentando os cruzados a uma luz positiva e heróica, representando Saladino, o sultão ayyubida, à mesma luz, como conquistador de Jerusalém e capaz de gestos magnânimos como o da oferta de água gelada a Guy de Lusignan, rei franco, durante a rendição deste (apesar do fim sangrento deste episódio). Em todo o caso, apesar da alteridade religiosa sempre presente, estamos a falar de construções ideológicas que não resistem, senão pontualmente, a um contacto mais directo com a realidade. Na verdade, a II e a III Cruzadas surgem como resposta ao poderio crescente dos muçulmanos (turcos seljúcidas no primeiro caso, os ayyubidas no segundo) e à progressiva fragilização dos reinos latinos do Outremer. Neste confronto, intervinha também o Império Bizantino que, num complexo jogo de alianças, lutava por

uma sobrevivência há muito ameaçada e que terá como resultado mais evidente dessa decadência o saque de Constantinopla, em 1204 e, no limite, a sua queda definitiva, em 1453, às mãos do Império Otomano. Ainda assim, Jerusalém e Damasco as pedrasangulares neste sistema de relações, largamente cobiçadas e principais responsáveis pelos afrontamentos. Por isto mesmo, concentrar-nos-emos em dois momentos diferentes deste processo: a pregação de S. Bernardo de Claraval e a reorientação dos cruzados para a conquista de Lisboa, em 1147, onde exploraremos os antecedentes da II Cruzada e o seu fracasso; e a Batalha de Hattin, em 1187, e as consequências da III Cruzada. São dois episódios exemplares deste mundo, onde se cruzam os emergentes reinos ocidentais, com as potências islâmicas, de proveniência variada, desde as estepes da Ásia Central ao deserto egípcio. 1. S. Bernardo e a II Cruzada: do fracasso no Outremer à conquista de Lisboa S. Bernardo de Claraval, fundador da Ordem de Cister (implantada em Portugal desde pelo menos 1143, teve a sua maior expressão em Alcobaça, fundada c. 1153), paladino da maior reforma religiosa do século XII, com a renovação da antiquíssima regra de S. Bento de Núrsia composta no século VI, foi o principal instigador da II Cruzada, a pedido do Papa Eugénio III. Fora também Bernardo o redactor do louvor aos Cavaleiros Templários, intitulada De Laude Novae Militae, e que desenhou, com base na regra cisterciense, os contornos da nova regra desta ordem religiosa-militar, aparecida em 1118, para defender os peregrinos que se deslocavam à Terra Santa, numa época em que os exércitos muçulmanos se reorganizavam. O pontífice contava, pois, com o enorme prestígio de S. Bernardo como elemento de mobilização dos reinos ocidentais, emitindo para esse efeito a bula Quantum praedecessores, datada de 1 de Dezembro de 1145. Na verdade, esta manobra papal foi uma resposta à queda de Edessa, que ocorrera precisamente um ano antes, às mãos dos seljúcidas, comandados por Zengi, atobeg de Mossul, base de operações deste povo da Ásia Central, que continuara a sua marcha desde o ponto de viragem com a Batalha de Manzikert, já no longínquo ano da Graça de 1070. Aos reinos cristãos do Próximo Oriente abria-se uma nova frente de combate, quando internamente já se encontravam dilacerados por lutas de poder, onde intervêm o imperador bizantino João II Comneno, o rei de Jerusalém Folque de Anjou, o próprio conde de Edessa, Joscelyn de Courtenay, sobretudo em torno da posse de Damasco, que se aliou, alternadamente, com cristãos e muçulmanos. Jogava-se, assim, nestes anos ‘40 do século XII, todo o

equilíbrio geoestratégico do Próximo Oriente e a Cruzada constituía-se como a única resposta possível à manutenção dos entrepostos da Cristandade Latina naquela região. S. Bernardo inicia, portanto, um périplo pelo reino de França e o Sacro-Império Romano-Germânico (designação política do século XIII), pregando apaixonadamente o ideal cruzadístico, atraindo a atenção da nata da nobreza europeia, com especial destaque para Leonor da Aquitânia, rainha de França, mais tarde de Inglaterra, uma das mulheres mais poderosas do século XII, base da dinastia Plantageneta e mãe de Ricardo “Coração de Leão”; Luís VII, rei de França, e Conrado III foram outros dos monarcas arregimentados pelo verbo do pregador de Cister, cuja canonização em 1174 se deveu muito aos milagres que teria realizado durante este período. A adesão foi massiva, ao ponto de S. Bernardo escrever ao Papa dizendo-lhe lapidarmente: “Cidades e Castelos estão agora vazios. Não existe senão um homem para cada sete mulheres e por todo o lado abundam viúvas de maridos ainda vivos”, enunciação muito clara de uma Guerra Santa, onde o propósito era o de morrer em nome da fé cristã na luta contra os inimigos da fé, ao mesmo tempo que poderia anunciar um decréscimo demográfico, que não acontece já que se vive um período de prosperidade económica na Europa, que contrariava as tendências depressivas anteriores ao ano 1000 e que se voltam a manifestar sensivelmente a partir de 1350, com a eclosão da Peste Negra. Por isto mesmo, todas estas movimentações devem ser consideradas como uma “primeira expansão europeia” ou uma primeira abertura da Europa ao mundo. Em todo o caso, o resultado da II Cruzada saldar-se-ia num rotundo fracasso, criando uma cadeia de eventos que, a longo prazo, isolariam ainda mais Jerusalém, abrindo o caminho para a batalha de Hattin, em Setembro e Outubro de 1187. As forças francesas e germânicas, acolhidas no Concílio de Acre, já em 1148, foram destacadas para o cerco a Damasco, mas a resistência da cidade, apoiada por Nur Ad-Din, governador de Aleppo, e Saif Ad-Din Ghazi I de Mosul, opôs-se com êxito a esta tentativa de captura da antiga capital omíada (dinastia que governou a ‘Ummah, a comunidade dos crentes, entre 661 e 750, estabelecendo um Império que se estendia da Península Arábica à Península Ibérica) e sede da quarta mesquita mais importante do Islão, onde repousa Saladino, que morrera em 1193. Segundo se conta, S. Bernardo viveria assombrado o resto da sua vida pelo malogro desta expedição. O único ponto luminoso deste desastre, o único verdadeiro sucesso da II Cruzada terá sido, na opinião de muitos historiadores e até de fontes da época, a conquista de Lisboa, em Outubro de 1147, operada por Afonso Henriques com a preciosa ajuda dos

cruzados norte-europeus (ingleses e flamengos, sobretudo). Entrincheirado em Coimbra desde 1131, solidamente apoiado pela nobreza portucalense (inicialmente de segunda linha, mas que conquistara a proeminência política completa a partir dos anos ’70 do século XI) e pelos cavaleiros de Coimbra (os mais temíveis da Península, segundo o geógrafo Idrisi, que escreve em 1154, portanto poucos anos depois da tomada da urbe lisboeta), Afonso Henriques fizera algumas incursões para sul, procurando viabilizar uma unidade política em formação contra Leão (reino do qual dependia, pelo menos nominalmente, já que Afonso VII, filho de Urraca e Raimundo da Borgonha, primo do primeiro rei português, herdara o título de Imperator totius Hispaniae de seu avô Afonso VI) e contra o Al-Ândalus, então dominado pelo cada vez mais moribundo império almorávida. Servia, pelo menos no plano da ideologia, as pretensões papais, sobretudo no desígnio da Guerra Santa. A conquista de Santarém permitira também ao monarca português maior segurança no Médio Tejo e a melhor oportunidade para atacar a Lisboa muçulmana, cidade periférica no contexto andaluz, mas que se tornaria, a partir de 1250, a mais importante cidade do reino português e a sua verdadeira capitalidade. Em troca do saque e de alguns resgates financeiramente promissores, os cruzados, originalmente a caminho da Terra Santa, permaneceriam na cidade, auxiliando na sua conquista e provocando grande mortandade, mesmo no seio da comunidade moçárabe da cidade, tidos por muçulmanos por homens cuja definição de cristão definitivamente não assentava nos “estranhos homens” que matavam erroneamente. Este é outro aspecto de não somenos importância, demonstrando-nos a própria diversidade interna de dois “blocos” ilusoriamente estanques. 2. Hattin: da reconquista muçulmana de Jerusalém à III Cruzada Nenhuma parte do mundo se encontraria dois príncipes como estes, tão valentes e experientes. Bispo da Salisbúria (referindo-se a Saladino e Ricardo Coração de Leão) De facto, a III Cruzada surge como resposta à batalha de Hattin, em 1187, onde Jerusalém cai, para sempre, em mãos muçulmanas, mais concretamente às mãos do sultão ayyubida Saladino, lendário guerreiro islâmico, que dedica toda a sua vida à reconquista muçulmana e cuja actuação militar e propaganda provocaram vários frémitos de medo nos reinos ocidentais, trazendo para o palco da Terceira Cruzada reis tão importantes como Filipe Augusto de França, Ricardo I “Coração de Leão” de Inglaterra e Frederico Barba-ruiva, Sacro-Imperador, desmultiplicados em várias frentes

de combate e assolados por graves problemas internos nos seus próprios reinos, sobretudo os monarcas alemão e inglês, o primeiro profundamente embrenhado em intermináveis guerras com as cidades italianas (de que temos um saboroso relato no romance de Umberto Eco Baudolino) e o segundo constantemente ameaçado pelo irmão, o famoso João Sem Terra, que assinará em 1215 a não menos conhecida Magna Carta. O afrontamento entre ambos será outra das imagens de marca desta Cruzada, sublimando-se no famoso episódio onde, disputando a respectiva destreza como espadachins, Ricardo corta o pescoço de uma montada, ao que Saladino responde ao seccionar uma almofada e um lenço, evidenciando a sua habilidade superior, pois são as coisas que menos resistência oferecem as mais difíceis de cortar. Após a derrota na batalha de Cresson (Abril de 1187) a frente cristã não só se encontrava numérica, como também mentalmente mutilada. Um olhar atento e anacrónico sobre os dois encontros militares, observará que Cresson terá sido uma espécie de ensaio geral para Hattin. Ibn al-Athir, cronista muçulmano contemporâneo das Cruzadas, afirma até que os cavaleiros leais ao rei Guy ameaçam com o fim do seu apoio. Contudo, no dia 4 de Julho de 1187 as forças cruzadas em massa encontram-se com o poderoso exército de Saladino no Corno de Hattin, a poucos quilómetros a oeste de Tiberíades, sendo derrotadas e colocadas em fuga. Em apenas dois meses Saladino controlará quase todo o corredor sírio-palestiniano. O sultão ayyubida – iniciando a sua carreira ao serviço do seljúcida Nur Ad-Din, tornando-se vizir dos califas fatímidas do Cairo e mais tarde sultão, unificando parcialmente a Síria e o Egipto actuais – entra triunfante a 2 de Outubro em Jerusalém. Mais tarde nesse ano conquista Acre, que passará durante a Terceira Cruzada para mãos francas, só caindo definitivamente sob domínio muçulmano em 1291, altura em que não mais os cruzados terão ambições na Terra Santa. Em suma, marcado por avanços e recuos, a II e a III Cruzadas serão a resposta que os potentados muçulmanos darão à formação de reinos cristãos latinos no Próximo Oriente, assestando o golpe final no sonho papal de um Império cristão universal com Jerusalém como caput mundi (cabeça do mundo), mas permitindo ainda aos reinos ocidentais o acalentar de uma esperança que o tempo acabará por desmentir.

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