A realidade do tempo: uma introdução

May 26, 2017 | Autor: C. Schirmer dos S... | Categoria: Metaphysics of Time
Share Embed


Descrição do Produto

A realidade do tempo: uma introdução César Schirmer dos Santos [email protected] Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Maria 2016

Uma questão embaraçosa O tempo é real? Negar a realidade do tempo requer tempo.

Levando em conta que há ciências investigando a mudança, negaremos a realidade do tempo? De Usberco, João, e Edgard Salvador. 2010. Química: volume único. São Paulo: Saraiva, p. 14.

Newton e Leibniz sobre o tempo Newton, substantivalismo: os momentos do tempo repousam na coisa eterna que é o tempo. (Seria hipálage* atribuir ao tempo o movimento. As coisas mutáveis mudam, o tempo não.) Leibniz, relacionalismo: o tempo é um fenômeno constituído pelas relações causais entre as coisas. * “Hipálage: figura sintática e semântica da transposição das relações naturais de dois elementos em uma proposição (a conexão que logicamente se faria com uma das palavras presentes é feita com outra).” (Houaiss 2009)

Expressamos o tempo através de verbos “Verbo é o que agrega àquilo que ele próprio significa o tempo e cujas partes nada significam isoladamente. … Digo que agrega àquilo que ele próprio significa o tempo, como no exemplo seguinte: saúde é nome, mas tem saúde é verbo. (Aristóteles 2013, cap. 3, 16 b 6–8) Aristóteles. 2013. Da interpretação. Traduzido por José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora UNESP.

Semântica formal O estudo do conhecimento intuitivo do falante, do conhecimento do significado (cf. De Oliveira 2012, 199). De Oliveira, Roberta Pires. 2012. Semântica formal: uma breve introdução. 3ª ed. Campinas: Mercado de Letras.

Frases atemporais e temporais 1. 2. 3. 4.

Cícero = Cícero Cícero = Túlio Cícero morreu em 43 a.C. Cícero morreu.

As três primeiras frases são verdadeiras em qualquer momento, a quarta frase é verdadeira em uns momentos, falsa em outros (cf. De Oliveira 2012, 200).

Frases temporais Sensíveis às circunstâncias de uso. Devem ser avaliadas segundo parâmetros contextuais. Cf. De Oliveira 2012, 200.

Momentos Momento do evento (ME) Momento da fala (MF) 1. 2. 3.

Cícero tá morrendo. (ME = MF) Cícero morrerá. (MF < ME) Cícero morreu. (ME < MF)

Cf. De Oliveira 2012, 205.

Extensão e intensão Semântica extensional: diz respeito ao mundo atual e ao tempo presente. Semântica intensional: ou não diz respeito ao mundo atual, ou não diz respeito ao tempo presente. Nosso entendimento intuitivo do tempo requer uma semântica intensional (De Oliveira 2012, 207). Entender qualquer frase passada ou futura requer isso.

Teste de intensionalidade Se uma frase sobre o passado/futuro é verdadeira, mas aquilo que ela diz não se dá no mundo agora, então a frase é intensional (cf. De Oliveira 2012, 208). 1. 2.

Cícero morreu (e Cícero não tá morrendo agora). O sistema solar deixará de existir (e o sistema solar não está deixando de existir neste momento).

Consequências do poder de expressar o tempo Somos capazes de proferir verdades sobre aquilo que existe presentemente no mundo atual, mas também sobre aquilo que não existe presentemente no mundo atual. Questão metafísica: O que torna verdadeiras nossas expressões do tempo?

Veritador (truth-maker) Aquilo que torna verdadeira uma frase verdadeira. Intuitivamente: ● ●

Um fato passado verita uma frase temporal passada. Um fato futuro verita uma frase temporal futura.

Nossa intuição requer a existência de fatos passados e fatos futuros. Como a realidade deve ser para acolher fatos passados e futuros? Ou nossa intuição falha?

Realidade e aparência Cores e outras qualidades sensíveis Beleza e outras qualidades estéticas O certo e outras qualidades éticas Números e outros objetos abstratos

Cores As cores são propriedades objetivas das superfícies ou propriedades subjetivas da experiência?

Polêmica das redes sociais no início de 2015: o vestido (#thedress) é azul e preto (#blackandblue) ou branco e dourado (#whiteandgold)? Um único objeto, percepções divergentes. Como você percebe depende da sua memória (vinculação de cores a origens iluminantes ou iluminadas), o que você percebe restringe o que você lembrará. Imagem via @iSamuelWayne.

Lafer-Sousa, Rosa, Katherine L. Hermann, e Bevil R. Conway. 2015. “Striking individual differences in color perception uncovered by ‘the dress’ photograph”. Current Biology 25 (13): R545–46. doi:10.1016/j.cub.2015.04.053.

Lafer-Souza, Hermann e Conway 2015

Propriedades absolutas, propriedades relativas Qualidades primárias: propriedades inalienáveis dos objetos físicos. São propriedades absolutas. Qualidades secundárias: sensações produzidas em nós pelas propriedades primárias dos objetos físicos. São propriedades relativas.

Qualidades primárias “As qualidades … que são absolutamente inseparáveis do corpo, seja em que estado ele estiver …. Por exemplo, tome-se um grão de trigo, divida-se o em duas partes; cada parte tem ainda solidez, extensão, figura e mobilidade; divida-se-o novamente, e ele retém ainda as mesmas qualidades ….” (Locke 2010, livro 2, cap. 8, §9, grifos do autor) Locke, John. 2010. “Um ensaio sobre o entendimento humano (1689)”. In Filosofia: textos fundamentais comentados, organizado por Laurence Bonjour e Ann Baker, traduzido por A. N. Klaudat, D. Dall’Agnol, M. A. Franciotti, M. C. dos S. Rocha, M. Tonetto, N. F. Boeira, e R. H. Pich, 2ª ed, 93–106. Porto Alegre: Artmed.

Qualidades secundárias “… nada são nos objetos senão poderes para produzir várias sensações em nós pelas suas qualidades primárias, isto é, pelo volume, pela figura pela textura e pelo movimento das suas partes insensíveis, tais como cores, sons, sabores, etc. Essas eu chamo de qualidades secundárias.” (Locke 2010, livro 2, cap. 8, §10, grifos do autor)

Cores e tempo Se as cores são propriedades relativas ao modo como o corpo do observador interage com os objetos físicos, por que não se daria algo análogo no caso do tempo?

Moral E se as propriedades éticas forem impostas aos objetos? Essa é a visão de Pufendorf.

Beleza A beleza está nos olhos de quem vê? A beleza é algo objetivo? Um objeto belo participa mais e melhormente da Forma ou Ideia?

Samuel Pufendorf, On the law of nature and of nations (1688). Em: Brandom, Robert B. 1994. Making it explicit. Cambridge: Harvard University Press, p. 48.

“Fato moral” Uma mera façon de parler?

Moral e tempo Se as importantíssimas propriedades morais dos objetos e eventos – bondade, maldade – são impostas por nós, por que o mesmo não se daria com as propriedades temporais, como a duração?

Números Não ocupam espaço, nem tempo. Serão meras ficções?

Um diálogo sofístico sobre números – Se não existem números, então há zero números. – Mas, peraí, zero é um número! – Pensando bem, então existem números. – Ou ao menos o número zero. – Se existe o zero, então há um número! Logo, o número um também existe. – Então há ao menos dois números, o zero e o um. – Mas então o dois também existe! – Recontagem: há o número zero, há o número um, há o número dois… – Então há também o três! – Quando vamos jantar? Acho que essa contagem não terminará tão cedo…

Números e tempo Números, se existem, são entes abstratos, pois atemporais e aespaciais. Talvez números sejam meras ficções úteis. Não poderia também o tempo ser uma ficção útil?

As séries do tempo de John McTaggart abcdefgHijklmnopqrstuvwxyz abcdefghIjklmnopqrstuvwxyz Em negrito, os tempos passados. Em maiúsculas, o tempo presente. Em itálicos, os tempos futuros.

Série-A Há diferenças metafísicas entre os eventos passados, presentes e futuros. A mudança é analisável segundo as noções de passado, presente e futuro.

Série-B Todos os eventos são igualmente reais. A mudança é analisável segundo as noções de anterioridade, simultaneidade e posterioridade.

McTaggart sobre a série-B e a necessidade da série-A A série-B é temporal, pois é constituída pelas relações de anterioridade e de posterioridade. No entanto, a série-B não é suficiente para constituir o tempo, pois é uma série imutável, e tempo requer mudança. Assim, outra série, dinâmica, tem que constituir o tempo, e esta outra série é a série-A, constituída pelas propriedades da passadidade, presentidade e futuridade.

Críticos de McTaggart Esse argumento encontrará grande resistência da parte de vários tipos de teóricos-A e teóricos-B. Há dois tipos de críticos. Os primeiros não veem o dinamismo como um aspecto fundamental do tempo. Tudo está parado, movimento é ilusão. Os segundos explicam o dinamismo de uma maneira que não gera o paradoxo de McTaggart.

O paradoxo de McTaggart 1. 2. 3.

Se o tempo é real, então cada evento é passado, presente e futuro. No entanto, nenhum evento pode ser passado, presente e futuro. Logo, por modus tollens, o tempo não é real.

Quando um evento é presente? ● ● ●

Um evento presente é presente no presente. Um evento presente é presente no presente no presente. Um evento presente é presente no presente no presente no presente.

Gera problema filosófico pressupor uma noção temporal para explicar o tempo. Não há saída fácil do paradoxo de McTaggart.

Duas saídas Saída 1: Negar a mudança. Saída 2: Dinamismo. Há quatro opções.

Objetos 3D, objetos 4D Objetos 3D: A cada momento, absolutamente constituídos por uma altura, uma largura, uma profundidade. Um único e mesmo objeto muda ao longo do tempo. Objetos 4D: A cada fase ou parte temporal, uma altura, uma largura e uma profundidade relativa. Um único e mesmo objeto permanece o mesmo é constituído pelos seus volumes e posições espaciais ao longo do tempo.

Dinamismo 1: Presentismo O passado e o futuro não existem. Logo, não há paradoxo. Por dois motivos. Primeiro, porque não é preciso explicar o passado e o futuro. Eles não existem. Segundo, porque não é preciso explicar o presente. O presente é “primitivo”, isto é, inexplicável.

Dinamismo 2: Universo em crescimento A cada momento vem a ser novos eventos que não deixam de fazer parte da realidade quando se tornam passados. (Sobra o suficiente para ½ paradoxo.)

Dinamismo 3: Pluralidade do ser Há mais coisas do que existem. (Meinong, McX e o sr. Y estavam certos.) O passado e o futuro são reais, mas não são existentes. Ser passado é passar do existente ao meramente real, ser futuro é não ter passado do meramente real ao existente. Requer aceitação da pluralidade dos modos de ser.

Dinamismo 4: nova teoria-B do tempo Aceitação do antecedente da premissa 1 do argumento de McTaggart, rejeição do consequente desta premissa. O tempo é real, mas não é verdade que cada evento é passado, presente e futuro. O tempo é real porque a sucessão entre eventos é real.

Nova teoria-B do tempo 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Os eventos se sucedem uns aos outros. Se os eventos se sucedem uns aos outros, então há relações de anterioridade ou posterioridade entre eventos. Segundo a teoria-B do tempo, os eventos se sucedem uns aos outros. Logo, há anterioridade ou posterioridade entre eventos. Sucessão é um tipo de mudança. Logo, segundo a teoria-B, há um tipo de mudança.

Sobre Material da disciplina de Metafísica do Bacharelado em Filosofia da UFSM, 2º semestre de 2016. Uma versão anterior desta fala foi apresentada no VII Seminário da Filosofia e Demais Saberes, na Unifra, em Santa Maria, RS, Brasil, no dia 23 de outubro de 2015. Uma versão atualizada desses slides está disponível aqui.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.