A realidade é dinâmica: um breve olhar sobre a arte, a história e o direito

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A realidade é dinâmica: um breve olhar sobre a arte, a história e o direito um ensaio de Maurilio Montanher1

Segundo Tchekhov, se uma arma aparece em cena, em algum momento da trama ela tem de ser disparada. Essa ideia sintetiza um princípio narrativo utilizado amplamente por aí: no cinema e na literatura, na televisão e nos quadrinhos. Onde quer que haja uma história sendo contada, lá estará a arma de Tchekhov2, que, na verdade, nem precisa ser uma arma. O ponto é: todos os elementos presentes numa história devem contribuir para a construção da narrativa. Assim, a arte não se limita a reproduzir aspectos da realidade, mas os organiza. Na vida, a tentativa de imitar a arte é constante. Um garoto apaixonado que se limita a trocar olhares com a pessoa que faz seu coração palpitar, sendo tímido demais para tomar qualquer iniciativa, adoraria que aquele mero fato se encaixasse num grande esquema narrativo onde, naturalmente, ele seria conduzido ao encontro com o seu amor. No mínimo, aquela pessoa estaria presente em seu futuro. Afinal, seu sentimento aflorado não poderia ser uma ponta solta na história (deveria servir para mover o plot para frente). Na realidade, o mocinho e a mocinha vivem em histórias diferentes. Podem muito bem nunca mais se ver. Dois protagonistas oriundos de universos paralelos. A existência se apresenta como uma história gigantesca onde todos são protagonistas. A lógica conveniente das narrativas simplesmente não se aplica. Assim, nos refugiamos na arte: pois ela se apossa dos elementos da vida e os recheia, os embeleza, e os organiza de modo coeso para nosso puro deleite. Apesar da realidade não ser ordenada e linear como as narrativas ficcionais, é deste modo que muitos historiadores tentam interpretá-la. Mas há outras abordagens possíveis, como a utilizada por Michel Foucault (1926–1984). Em seu método genealógico3, ele inova ao buscar averiguar o desenvolvimento das ideias identificando 1

Bacharel em direito (UEM) e escritor. @maumontanher. TV Tropes. Disponível em: . O site reúne inúmeros exemplos de recursos narrativos em diversas mídias. 3 Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: . “Foucault intended the term “genealogy” to evoke 2

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acontecimentos dispersos que não caberiam numa intrincada teia histórica causal. O desenvolvimento da sociedade não pode ser compreendido pela análise de fatos cronológicos, sendo que o desencadeamento deles não trouxe resultados inevitáveis; não é como se houvesse uma linha do tempo onde cada fato decorresse de outro até chegarmos ao presente. Ao contrário: a situação atual é explicada através de elementos diversos que podem parecer inconsequentes, mas que se revelam substanciais para explicar o status quo. Em Vigiar e Punir, Foucault alterna entre cenas, como a de um sujeito preso sendo conduzido pelas ruas de Paris para sofrer a execução de sua pena. Assim, ele analisa a realidade com sua câmera que não permanece inerte registrando os acontecimentos no automático. Tampouco a foca só em “protagonistas da história”, ou nas “pessoas que tomam as decisões importantes”, direcionando-a para acontecimentos dispersos. Muitos zoom in e zoom out. Essa descontinuidade histórica reflete o dinamismo da sociedade, que se constrói a partir de contingências diversas. Para o direito, o dinamismo da sociedade se apresenta como um propulsor de evolução, visto que a ciência e o ordenamento jurídicos se desenvolvem para resolver os conflitos presentes em determinado tempo e local, atendendo às demandas sociais presentes. Uma preocupação constante, geradora de amplos debates, é a subsunção — o processo de aplicação do fato à norma. Algo mais complexo do que pode parecer. A sociedade é rica de fatos. Tudo borbulha, de modo efervescente. Inovações e tendências surgem a todo instante. A sociedade civil, a vida profissional, a vida social, o trabalho, a cultura, as tecnologias. Tudo muda. Everything flows. Então as normas abstratas do direito têm de lidar com uma realidade dinâmica; o que faz com que estejam em constante renovação. Busca-se com elas certo grau de objetividade, de modo que a todos os casos — conflitos, litígios, demandas — semelhantes aplica-se o direito contido na mesma norma. Uma vez aplicado o direito, chega-se a pacificação social, tendo o Estado-juiz cumprido o papel que lhe foi democraticamente — e constitucionalmente — atribuído. Mas não é tão simples. Para se interpretar o direito Nietzsche's genealogy of morals, particularly with its suggestion of complex, mundane, inglorious origins—in no way part of any grand scheme of progressive history. The point of a genealogical analysis is to show that a given system of thought (itself uncovered in its essential structures by archaeology, which therefore remains part of Foucault's historiography) was the result of contingent turns of history, not the outcome of rationally inevitable trends.”

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contamos com a hermenêutica4, que estatui um princípio segundo o qual a lei não pode conter palavras inúteis5. Afinal, na aplicação de uma norma, as palavras inúteis teriam tanta eficácia quanto as úteis. Mas a lei não trata do supérfluo. Dessa forma, se nas narrativas os elementos inúteis não contribuem com o enredo, no direito são fator de insegurança na aplicação da lei. Já a lente de Foucault mira justamente naquilo que é ignorado, supérfluo e contingente a fim de tentar compreender nossa delicada conjuntura social. Sempre complexa e efêmera. A realidade, normatizada pelo direito, embelezada pela arte e interpretada pela filosofia, tão fracionada pelas ciências, sempre existiu como uma coisa só: enxergada como um grande mistério pela humanidade. Sendo o todo demais para nós, precisamos fracionar. Nossa interpretação do mundo sempre depende de que fração estamos partindo. Assim, para a realidade caber na mente humana, há que se reduzi-la a migalhas.

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“A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados ao longo da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a ideia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite e, portanto, esclarece, o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexibilidade do problema hermenêutica. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes determinados sentido.” STRECK, Lênio Luiz. Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta. In: TRIBE, Laurence e DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Trad. Almarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. xiii e xiv. 5 Verba cum effectu, sunt accipienda. “Brocardo que afirma não haver, na lei, palavras supérfluas, de modo que todas devem ser interpretadas como tendo algum significado.” ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. 3º ed. São Paulo: Rideel, 2009, p. 955. Assim, no ordenamento jurídico, as palavras devem ser entendidas com efeito.

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