A RECEPÇÃO DA METODOLOGIA DE SAVIGNY NO BRASIL E EM PORTUGAL (BENJAMIN HERZOG) Tradução por JOÃO CARLOS METTLACH PINTER. Revisão da tradução e notas de revisão por OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR

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A RECEPÇÃO DA METODOLOGIA DE SAVIGNY NO BRASIL E EM PORTUGAL THE RECEPTION OF SAVIGNY’S METODOLOGY IN BRAZIL AND PORTUGAL BENJAMIN HERZOG Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Ruprecht-Karl de Heidelberg. Advogado em Bruxelas (Bélgica). Foi Assistente na Universidade Ruprecht-Karl de Heidelberg (Professor Catedrático Christian Baldus) e bolsista do DAAD no Brasil e em Portugal. [email protected]

Tradução por JOÃO CARLOS METTLACH PINTER Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. [email protected]

Revisão da tradução e notas de revisão por OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR Professor Doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. [email protected]

Recebido: 02.01.2016 Aprovado: 28.03.2016 ÁREA DO DIREITO: Filosofia; Civil RESUMO: O autor analisa a recepção do pensamento metodológico de savigny no Brasil e em Portugal – um pensamento que tem por característica ser histórico, fortemente vinculado a um sistema e, sobretudo, fundamentalmente livre de finalidades. Ele mostra de qual forma esse pensamento ainda influencia a hermenêutica nesses dois países e se distancia de um entendimento de interpretação das regras jurídicas com apoio nas finalidades (o que foi introduzido, sobretudo, a partir de Jhering).

ABSTRACT: The author analyses the reception of Savigny’s methodology of interpretation of norms in Brazil and Portugal. This methodology can be characterized as being historic, strongly bound by systematic thinking, and, above all, as one which does not require the utilisation of “objectives” for the process of interpreting norms. The author shows how far Savigny’s methodology has influenced the process of interpretation in Brasil and Portugal and distances himself from the approach of considering “objectives” in the process of interpreting norms (which was introduced by Jhering).

PALAVRAS-CHAVE: Savigny – Interpretação – Recepção – Portugal – Metodologia.

KEYWORDS: Savigny – Interpretation – Reception – Portugal – Methodology.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A metodologia de Savigny – 3. Recepção no Brasil – 4. Recepção em Portugal: 4.1 O “pensamento legislativo” do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966; 4.2 A “relação jurídica” do 2.º título da parte geral do Código Civil de 1966 – 5. Conclusão. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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1. INTRODUÇÃO “Savigny global”1 – foi este o título da conferência internacional, sediada em Hannover, para a qual o Prof. Stephan Meder convidou especialistas de todo o mundo. O objetivo da conferência era debater o significado da recepção de Savigny no mundo 200 anos após a publicação de seu manifesto “Da vocação de nosso tempo para a Legislação e Jurisprudência” (1814). “Global”, segundo o Professor Stephan Meder, em seu discurso de saudação aos participantes, não deveria ser compreendido apenas no sentido da exegese do processo de recepção ocorrido no passado, mas também em um sentido que aponte para o futuro: quais lições da Escola histórica do direito poderiam ser trazidas para o presente?NR-1 Este artigo funda-se nesse ponto. Partindo-se da recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal, quer-se questionar o significado do jurista para o presente. A partir da razão pela qual “Savigny” conseguiu se impor em Portugal ao invés do Brasil, podem-se tirar lições de seu significado também para a ciência jurídica alemã. Assim, esta contribuição parte da tese, parcialmente controversa, de que a metodologia de Savigny tem por característica ser histórica,2 fortemente vinculada a um sistema e, sobretudo, fundamentalmente livre de finalidades.NR-2

1. Após a publicação deste artigo no Brasil, ele será também objeto de publicação em alemão na seguinte obra coletiva, ainda inédita: MEDER, Stephan; MECKE, Christoph-Eric (orgs.). Savigny global 1814 – 2014. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2016, que reúne o teor de conferências de especialistas sobre Savigny em Hannover, encontro esse organizado pelo Prof. Stephan Meder no ano de 2014. Agradeço à editora Vandenhoeck & Ruprecht pela autorização da publicação do artigo no Brasil, ao Prof. Otavio Luiz Rodrigues Junior pela oportunidade de publicá-lo em português e de modo ainda inédito nesta revista e a João Carlos Mettlach Pinter pela tradução. NR-1 As notações usadas nas citações seguem o padrão utilizado pelo autor, conforme a tradição acadêmica alemã. Não se procedeu à adaptação às normas brasileiras por se tratar de uma tradução. Do contrário, estar-se-ia a comprometer a integridade do texto original. Excetuaram-se traduções para o português de termos como página, edição, volume, tomo, organizadores e editores. As citações de obras portuguesas e brasileiras com ortografia do século XIX não foram atualizadas, conservando-se a forma léxica primitiva. Manteve-se também a grafia original anterior à Reforma Ortográfica de 2009 para os textos de Portugal mais recentes. 2. Para uma interpretação histórica, cf. C. BALDUS, Gut meinen, gut verstehen? Historischer Umgang mit historischen Institutionen, in: ID. F. THEISSEN; F. VOGEL (org.), Gesetzgeber“und Rechtsanwendung. Entstehung und Auslegungsfähigkeit von Normen”, Tübingen, 2013, p. 5-28 (p. 22 e ss.). NR-2 No original, o autor usou da expressão “zweckfrei”, que foi traduzida por “livre de finalidades”. Em português e espanhol, também se encontra a correspondência de “Zweck” com “fim”, tal como já se traduziu “Der Zweck im Recht”, de Rudolf von Jhering, para o português como “O fim do direito”, para o espanhol como “El fin en el derecho”. A mais conhecida tradução no Brasil desse livro de Jhering, porém, é a de José Antonio Faria Correa, de HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL A seguir, tratar-se-á brevemente da compreensão da metodologia de Savigny de acordo com a visão adotada neste trabalho (cf. item 2). Depois, expor-se-ão determinados aspectos da recepção da metodologia do autor no Brasil (cf. item 3) e em Portugal (cf. item 4).3 Por fim, esboçar-se-ão algumas possíveis lições, retiradas dessas duas experiências históricas.

2. A METODOLOGIA DE SAVIGNY Sabe-se que a metodologia de Savigny foi, desde há muito, objeto de intensa pesquisa. Uma dessas controvérsias refere-se à importância da influência de Immanuel Kant em seu pensamento jurídico. Exposto de forma muito simplificada, há dois grupos que se confrontam em torno desse tema: um deles realça o caráter romântico de Savigny e delineia uma forte contradição com o Iluminismo. Seus integrantes contestam de modo veemente a tese de que a teoria da interpretação de Savigny tenha sido influenciada de forma decisiva por Kant.4 O outro grupo realça a fidelidade do autor às ideias do Iluminismo,5 observando que a transição do Iluminismo ao Romantismo não precisa necessariamente ser vista como uma ruptura,6 mas antes como uma mudança fluída.7

1976, publicada pela Editora Rio, com o seguinte título “A finalidade do direito”. A noção de “finalidade” aproxima-se do que comumente se reconhece no Brasil como “fins da lei” ou “fins do direito”. Um exemplo disso está na expressão consagrada na Lei de Introdução ao Código Civil (hoje Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), em seu art. 5.º (“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”). 3. O item relativo ao direito brasileiro antecede ao direito português de forma intencional, pois a recepção que interessa é observada antes no Brasil do que em Portugal. 4. Por exemplo, J. RÜCKERT, Idealismus, Jurisprudenz und Philosophie bei Friedrich Carl von Savigny, Ebelsbach, 1983. 5. Como em H. UNBERATH, Der Nachhall der metaphysischen Anfangsgründe der Rechtslehre im System des heutigen römischen Rechts, in: ZSStRG (GA) 127 (2010). p. 142187, p. 157 e p. 161 e ss. 6. S. MEDER, Urteilen. Elemente von Kants reflektierender Urteilskraft in Savignys Lehre von der juristischen Entscheidungs-und Regelfindung, Frankfurt am Main, 1999. p. XIV, p. 11 e ss.; H. KIEFNER, Der Einfluss Kants auf Theorie und Praxis des Zivilrechts im 19. Jahrhundert, in: J. BLÜHDORN; J. RITTER (orgs.), Philosophie und Wissenschaft. Zum Problem ihrer Beziehungen im 19. Jahrhundert, Frankfurt am Main, 1968. p. 3-25; W. FIKENTSCHER, Methoden des Rechts in vergleichender Darstellung, Band III – Mitteleuropäischer Rechtskreis, Tübingen, 1976. p. 37 e ss. 7. A convencional descrição do Romantismo como oposição radical ao Iluminismo é analisada criticamente também por C. MÄHRLEIN, Volksgeist und Recht. Hegels Philosophie der Einheit und ihre Bedeutung in der Rechtswissenschaft, Würzburg, 2000. p. 57 e ss. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 É provavelmente mais correto, porém, realçar que as afirmações de Savigny são antes contraditórias, de forma que uma classificação tendente a uma ou outra vertente seria deveras inútil.8 A respeito da controvérsia esboçada, já tomei posição em outra ocasião.9 É de se acrescentar à discussão da conferência de Hannover algumas poucas observações: ainda que haja comprovações, como na correspondência de Savigny, de que este concedia grande importância a termos românticos como “amizade”, “amor” e “sociabilidade”, não se deve por isso excluir a possibilidade de que o autor, em suas declarações sobre metodologia jurídica no System, tenha-se mantido fiel a premissas fundamentais do Iluminismo em determinadas questões, particularmente as relativas à liberdade de finalidades das relações jurídicas. Mesmo que se refira ao fato de o autor não se ter posicionado de forma inequívoca na correspondência que documenta o desenvolvimento do § 52 do System (“Natureza das relações jurídicas”),10 a formulação final de tal parágrafo não obsta a que se sustente a tese de que, nesse ponto, o “Savigny romântico” não tenha prevalecido. É, sem dúvida, importante ressaltar que seria errôneo querer imputar ao autor atributos políticos correntes nos dias atuais como “socialista”, “conservador” ou “liberal”. Ressalta-se corretamente que tais categorias surgiram apenas na primeira metade do século XIX. Ademais, sabe-se também que Savigny manteve contato com defensores da Revolução Francesa.11 Entendê-lo exclusivamente como “reacionário” seria, de fato, incorreto. De acordo com a concepção aqui defendida, tanto o entendimento sistemático geral quanto a metodologia de Savigny baseiam-se, de certa forma, no imperativo

8. S. MEDER, Urteilen... cit., p. 23, n. 4. Cf. também M. SANDSTRÖM, Friedrich Carl von Savigny und die, juristische“rechtswissenschaftliche Methode”, in: A. KIEHNLE; B. MERTENS; G. S CHIEMANN (orgs.): Festschrift für Jan Schröder zum 70. Geburtstag, Tübingen, 2013. p. 145-167, p. 167: A respeito de Savigny, parece justificado falar-se em “Savignys no plural”. 9. B. HERZOG, Anwendung und Auslegung von Recht in Portugal und Brasilien. Eine rechtsvergleichende Untersuchung aus genetischer, funktionaler und postmoderner Perspektive. Zugleich ein Plädoyer für mehr Savigny und weniger Jhering, Tübingen, 2014. p. 59-71. 10. Para a história do surgimento de tal parágrafo, cf. sobretudo H. KIEFNER, Einfluss Kants... cit., p. 156 e ss.; cf. também M. AVENARIUS, “Eles exercem, por assim dizer, um negócio missionário (...)”. Religiöse Grundlagen von Savignys Rechtstheorie und das Privatrecht des Zarenreichs zwischen Kodifikation und wissenschaftlicher Kolonisation, in: C. PETERSON (org.): Rechtswissenschaft als juristische Doktrin. Ein rechtshistorisches Seminar in Stockholm 29. bis 30. Mai 2009, Stockholm, 2011. p. 17-82 (p. 74 e ss.); T. REIS, Savignys Theorie der juristischen Tatsachen, Frankfurt am Main, 2013. p. 118 e ss. 11. D. N ÖRR , Savignys philosophische Lehrjahre. Ein Versuch, Frankfurt am Main, 1994. p. 27-34, esp. p. 33. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL categórico kantiano. A “relação jurídica” é, em sua obra, o “terreno do domínio independente da vontade individual”. Hans Kiefner descreveu tal ponto da seguinte forma: haja vista que as relações jurídicas se fundam em direitos subjetivos, elas possibilitam o agir moral. A declaração de vontade seria, assim, o meio pelo qual a pessoa cria relações jurídicas e, consequentemente, direitos subjetivos. Seria, portanto, o poder de governar-se, dentro de sua área de domínio, por meio da vontade individual.12 A relação jurídica é, repise-se, a chave para a compreensão da metodologia de Savigny: “Toda lei destina-se a determinar a natureza da relação jurídica, isto é, explicitar quaisquer pensamentos, simples ou complexos, por meio das quais a existência daquela relação jurídica é protegida contra o erro e o arbítrio (...). Para que se atinja tal objetivo, todos aqueles que tenham contato com a relação jurídica devem compreender, de maneira clara e completa, aquele pensamento. Isso ocorre colocando-os no ponto de vista do legislador, repetindo em si intelectualmente a atividade deste, isto é, permitindo que a lei lhes surja de novo em suas mentes. Essa é a atividade de interpretação, que podemos definir como a reconstrução do pensamento imanente à lei”.13 A reconstrução do “pensamento imanente à lei” não se inicia com a lei propriamente, mas antes com a relação jurídica. É preciso justificar-se a natureza da relação jurídica, sendo a lei, nesse processo, mero apoio. Haja vista que a relação jurídica, de acordo com a concepção aqui adotada, baseia-se em direitos subjetivos, a interpretação serve, sobretudo, para assegurar a esfera de liberdade do indivíduo quando em interação com outros. A interpretação, portanto, não tem como função principal a revelação do pensamento do legislador.14 Para a descoberta do “pensamento imanente à lei”, aponta Savigny, sobretudo para elementos que, segundo o entendimento moderno, equiparam-se a uma interpretação histórica (em sentido amplo)15 e a uma interpretação sistemática. Por ou-

12. H. KIEFNER, Einfluss Kants... cit., p. 10 e ss. 13. F. C. V. SAVIGNY, System des heutigen Römischen Rechts, Berlin, 1840. t. I, p. 213. 14. Ver também: J. RÜCKERT, Idealismus, Jurisprudenz und Philosophie bei Friedrich Carl von Savigny, Ebelsbach, 1983. p. 354; S. MEDER, Mißverstehen und Verstehen. Savignys Grundlegung der juristischen Hermeneutik, Tübingen, 2004. p. 125; C. BALDUS, Rezension zu Schröder, Jan, Recht als Wissenschaft. Geschichte der juristischen Methodenlehre in der Neuzeit (1500-1933), in: Gemeinschaftsprivatrecht, 2012. p. 249; W. P. REUTTER, Objektiv Wirkliches“in Friedrich Carl von Savignys Rechtsdenken, Rechtsquellen-und Methodenlehre”, Frankfurt am Main, 2011. p. 328. 15. Para a interpretação histórica, cf. C. BALDUS, Historische und vergleichende Auslegung im Gemeinschaftsprivatrecht. Zur Konkretisierung der “geringfügigen VertragswidriHERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 tro lado, o autor recusa-se àquilo que hoje seria entendido como interpretação teleológica, pois o conhecimento dos motivos da lei, isto é, da ratio legis, poderia “ser mais ou menos preciso”.16 Para fins de interpretação, portanto, os motivos da lei seriam apenas “admissíveis com grande cautela”.17 Por isso, Savigny diferencia, no System, os motivos gerais dos motivos especiais da lei. Enquanto os últimos poderiam ser utilizados na atividade de interpretação, os primeiros não seriam admissíveis. É de se aclarar se “o pensamento que resulta de nossa interpretação é o verdadeiro pensamento do legislador, ou se é apenas aquele que coerentemente deveria ter sido”.18 No último caso, não mais se retificaria apenas a expressão, mas o próprio pensamento.19 Para Savigny, a interpretação contrária ao texto legal também era possível nesse sentido. Importava-lhe, no entanto, evitar ainda as manipulações cometidas pelo intérprete.

3. RECEPÇÃO NO BRASIL Para se classificar a recepção da metodologia de Savigny no Brasil, é mister que, a seguir, se trace um panorama sobre as condições gerais de meados do séc. XIX. Quando, em 29.11.1807, o príncipe regente D. João, juntamente com toda a Corte portuguesa, fugindo das tropas napoleônicas, retirou-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, estabeleceu-se um claro processo emancipatório no Brasil. Tal processo levou a que o filho de D. João IV, nesse ínterim coroado Rei e já retornado a Portugal, declarasse a separação do país. Foi o filho, D. Pedro, coroado Imperador do Brasil. Em 1823, promulgou-se uma lei segundo a qual toda a legislação baixada pela Coroa portuguesa deveria manter sua validade até que fossem editadas novas leis “brasileiras”. Assim, mesmo com a independência do Brasil em face de Portugal, não houve uma completa ruptura. Eis o motivo de o desenvolvimento brasileiro tanto na legislação quanto na ciência do direito ligar-se intimamente com o desenvolvimento português. Em 1827, deu-se a fundação de faculdades nacionais de direito em Olinda e em São Paulo, as quais, todavia, logo foram dominadas por juristas formados ainda em Portugal.

gkeit”, in: C. BALDUS; P. C. MÜLLER-GRAFF (orgs.): Die Generalklausel im Europäischen Privatrecht. Zur Leistungsfähigkeit der deutschen Wissenschaft aus romanischer Perspektive, München, 2006. p. 1-24; ID., Gut meinen, gut verstehen?... cit., p. 22 e ss. 16. F. C. V. SAVIGNY, System… cit., I, p. 218. 17. Idem, p. 220. 18. Idem, I, p. 238. 19. Idem, I, p. 235. Para os detalhes, cf. B. Herzog, Anwendung und Auslegung von Recht... cit., p. 89-96. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL Uma verdadeira emancipação em relação aos juristas de formação portuguesa ocorreu pouco a pouco. Isso pode ser observado na primeira obra-modelo sobre metodologia20 concebida por um jurista nascido e exclusivamente formado no Brasil. Francisco de Paula Baptista descreveu, em 1860, em seu “Compêndio de Hermenêutica Jurídica”, a hermenêutica como um sistema de regras de interpretação, referindo-se de forma decisiva a Savigny.21 Isso ainda não ocorrera anteriormente nem no Brasil, tampouco em Portugal. Paula Batista lera o System de Savigny no original, isto é, em alemão,22 diferentemente do que era habitual, àquele tempo, em Portugal. Esse voltar-se à ciência jurídica alemã não é um fenômeno pontual no Brasil: os representantes da assim chamada Escola do Recife23 orientaram-se pelo direito alemão, certos também de emancipar-se dos estudiosos portugueses. Não obstante, a influência da metodologia de Savigny, àquele tempo, era, a rigor, limitada. Assim, Paula Batista não seguiu Savigny na decisiva questão relativa à fundamental recusa de fazer uso dos motivos da lei (ratio legis) como auxílio interpretativo. Na verdade, Paula Baptista adotou, em determinadas partes, a formulação de Savigny a respeito do “pensamento”. Os conceitos relacionados a este último, porém, não são incorporados a um entendimento sistemático completo (sobretudo no que se refere ao papel das relações jurídicas), de forma que a nomenclatura de Savigny acaba sendo misturada com a antiquada hermenêutica do Iluminismo.24 Ademais, Paula Baptista não compartilha do ceticismo de Savigny no que concerne à ratio legis: “Os motivos da lei (ratio legis), mostrando o pensamento do legislador, podem servir de base a conjecturas mui justas e a argumentos mui luminosos, para com alto grau de certeza indicarem um sentido, que desfaça toda ambiguidade e equívoco, resultante de defeito na redação”.25

20. No Brasil, sabe-se que Teixeira de Freitas foi bastante influenciado por Savigny. Mesmo assím, nem na Consolidação das Leis Civis, nem no Esboço, se encontra uma profunda análise do pensamento metodológico (interpretação e aplicação das leis) de Savigny. 21. F. DE PAULA BAPTISTA, Compêndio de hermenêutica jurídica. 3. ed. Recife, 1872, in: A. TOMASETTI JR. (coord.), Clássicos do direito brasileiro. Hermenêutica jurídica. São Paulo, 1984, § 1. 22. A respeito do estado atual relativo ao acesso linguístico da ciência alemã pela ciência brasileira, cf. V. G. FERREIRA, Einflüsse der deutschen Rechtswissenschaft auf die Auslegung des Allgemeinen Teils in Brasilien, in: C. BALDUS; W. DAJCZAK (org.), Der Allgemeine Teil des Privatrechts. Erfahrungen und Perspektiven zwischen Deutschland, Polen und den lusitanischen Rechten, Frankfurt am Main, 2013. p. 513-526 (p. 524 e ss.). 23. A respeito dessa escola, cf. C. LIMA MARQUES, Cem anos de Código Civil alemão: O BGB de 1896 e o Código Civil brasileiro de 1916, RFDUFRGS, vol. 13/14, p. 71-97, 1997; e I. STRENGER, A dogmática jurídica. Contribuição do Conselheiro Ribas à dogmática do direito civil brasileiro. 2. ed. São Paulo. 1964. p. 94. 24. F. DE PAULA BAPTISTA, Compêndio... cit., §§ 8-11. 25. Idem, § 31. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 Na verdade, também Paula Baptista distingue, com apoio na diferenciação de Savigny entre motivos especiais e gerais, diversas espécies de “motivos da lei”, ainda que sem as mesmas consequências. Haveria, assim, por um lado, “motivos remotos” ou “extrínsecos”, e, de outro lado, “motivos próximos” ou “intrínsecos”. No entanto, a relação dessas categorias com sua admissibilidade na atividade de interpretação extensiva não fica clara. Ademais, Paula Baptista é da opinião de que o “fim da lei” poderia auxiliar a revelação do “motivo da lei”.26 Savigny, porém queria evitar ao máximo tal uso que, aludindo à intenção do legislador, aproxima-se da hermenêutica do Iluminismo. Por esse motivo, desenvolveu ele as categorias do pensamento, certamente romântico. No System, afirma que: “Ao contrário, é de se evitar a intenção por ser ela ambígua: pode, assim, aludir também ao objetivo que se encontra fora do conteúdo da lei, sobre o qual a lei só atuará de forma indireta”.27 Assim, não era de importância a intenção no sentido de uma intenção da regra, segundo Savigny. O “pensamento” brasileiro, no sentido de Paula Baptista, não se pôde desenvolver no decorrer do tempo, mas, ao contrário, foi desbancado por conceitos como “motivo” e “fim”. O “fim da lei” desenvolveu-se, posteriormente, como elemento-chave da metodologia brasileira. A maior prova dessa evolução pode ser encontrada no art. 5.º da LINDB, promulgada em 1942 (à época, art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1942), isto é, nos tempos da ditadura do Estado Novo: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum”. Ainda que o conteúdo e o significado da norma não sejam claros na ciência jurídica brasileira,28 costuma-se enxergar no “fim social”, a que o intérprete deve sempre atentar, uma ênfase na teleologia. Isso, por sua vez, vem acompanhado de uma tendência ao alargamento das competências do judiciário em detrimento das do legislador. Parece, assim, que ocorreu no Brasil exatamente aquilo que Savigny advertira: com o recurso ao fim da lei, pode o intérprete erigir-se ao posto de verdadeiro legislador.

26. Idem, § 32. 27. Cf. F. C. V. SAVIGNY, System… cit., I, p. 213. 28. Cf. também J. P. SCHMIDT, Zivilrechtskodifikation in Brasilien. Strukturfragen und Regelungsprobleme in historisch-vergleichender Perspektive, Tübingen, 2009. p. 423. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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4. RECEPÇÃO EM PORTUGAL Enquanto, no Brasil, o ceticismo de Savigny em relação a elementos teleológicos não encontrou repercussão, é de se constatar, por vezes, uma segura sensibilidade a esse respeito em Portugal. Isso também pode ser reconduzido à virada da ciência jurídica portuguesa em direção à Pandectística a partir do início do século XX. Após ter entrado em vigor em Portugal, no ano de 1867, um Código Civil fundado no Código Napoleão, a virada da ciência jurídica portuguesa em direção à Pandectística levou à substituição do Código Civil de 1867 por um novo Código, em 1966. Da nova codificação, devem-se destacar especialmente dois aspectos que fornecem um esclarecimento a respeito da recepção da metodologia de Savigny: o “pensamento legislativo” do art. 9.º, I, e a “relação jurídica” do segundo título da parte geral do Código Civil português.

4.1 O “pensamento legislativo” do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966 O art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966 dispõe que: “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo, sobretudo, em conta, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. A formulação gira em torno do assim chamado “pensamento legislativo”, uma mudança que não lembra os pensamentos de Savigny, salvo de modo acidental. A primeira recepção dos pensamentos de Savigny teve lugar no final do século XIX. Em sua tese de 1871, discutiu Manuel de Oliveira Chaves e Castro o direito subsidiariamente aplicável no sentido do art. 16 do Código Civil de 1867, o que, por razões históricas, conservava importância em Portugal. Assim, tratou ele do objetivo da interpretação, referindo-se ao System de Savigny, que ele lera na tradução francesa de Charles Guenoux. “Toda a lei é destinada a fixar uma relação de direito; e para esta relação seja bem determinada, é mister que o interprete comprehenda o pensamento da mesma lei inteiramente e em toda a sua pureza e verdade. Para conseguir este fim, diz Savigny, deve o interprete collocar-se no mesmo ponto de vista do legislador, reproduzir artificialmente suas operações, e recompor a lei pelo pensamento: portanto a interpretação doutrinal é a reconstrucção do pensamento contido na lei”.29

29. M. DE O. CHAVES E CASTRO, Estudo sobre o artigo XVI do Codigo Civil Portuguez. E especialmente sobre o direito subsidiario civil portuguez, Coimbra, 1871. p. 38. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 A fórmula “reconstrucção do pensamento contido na lei” é Savigny em toda sua pureza. Seu significado, porém, era, antes de tudo, limitado. Enquanto a recepção de Chaves e Castro de 1871 ocorreu em uma fase de transição, na qual se discutia, sobretudo, o art. 16 do Código Civil de 1867, a recepção da metodologia de Savigny foi, desde o início do século XX, marcada por uma forte proximidade com a Pandectística. Guilherme Alves Moreira, considerado o importador da Pandectística alemã em Portugal,30 não faz mais referências, em suas Instituições de 1907, ao art. 16 do Código Civil de 1867. A respeito do objetivo da interpretação, afirmava ele: “Nem sempre é facil, porém, reconstruir o pensamento do legislador ou a mens legis, e sérias difficuldades póde offerecer a applicação das normas juridicas aos casos particulares, isto é, a determinação das relações que regulam ou os factos nellas contemplados, e os effeitos que dessa applicação resultarão. Para isso é necessario recorrer a certos elementos e processos de investigação, a que se dá o nome de interpretação”.31 Na verdade, aí também se faz referência ao “pensamento”. No entanto, este não aparece mais na forma na qual era encontradiço em Savigny e em Chaves e Castro. Em razão da expressão “pensamento do legislador”, poder-se-ia classificar Alves Moreira, em um primeiro momento, de entre os assim chamados subjetivistas. Nesse grupo, incluem-se aqueles que defendem ser o objetivo da interpretação subjetivo-histórico (mens legislatoris), e não objetivo-teleológico (mens legis), como os assim chamados objetivistas.32 Ao aderir, todavia, também à formulação “ou a mens legis”, manteve-se ele neutro, provavelmente consciente de tal posição. O debate entre os assim chamados subjetivistas e objetivistas levou à fórmula de compromisso do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966. Não se trataria nem do “pensamento do legislador”, tampouco do “pensamento da lei”, mas do “pensamento legislativo” que contém tanto elementos objetivos quanto subjetivos.

30. A respeito de sua biografia, cf. E. JAYME, Guilherme Moreira (1861 – 1922) und die deutsche Pandektistik, in: E. JAYME; H.-P. MANSEL (orgs.), Auf dem Weg zu einem gemeineuropäischen Privatrecht: 100 Jahre BGB und die lusophonen Länder, Baden-Baden, 1997. p. 63-71. 31. G. ALVES MOREIRA, Instituições do direito civil português. Coimbra, 1907. vol. 1 – Parte Geral, p. 36 e ss. 32. A respeito, E. A. KRAMER, Juristische Methodenlehre. 3. ed. München, 2010. p. 116 e ss.; B. RÜTHERS; C. FISCHER; A. BIRK, Rechtstheorie. Begriff, Geltung und Anwendung des Rechts. 6. ed. München, 2011. p. 471 e ss. Analisando criticamente essa divisão, cf. C. BALDUS, Anstelle eines rapport des synthèse, in: C. BALDUS-W. DAJCZAK (orgs.), Der Allgemeine Teil des Privatrechts. Erfahrungen und Perspektiven zwischen Deutschland, Polen und den lusitanischen Rechten, Frankfurt am Main, 2013. p. 527-531 (p. 529). HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL Embora a expressão “pensamento” no art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966, em um primeiro momento, pareça refletir apenas a versão portuguesa do pensamento de Savigny, é de se ver também nessa norma uma continuação da tradução portuguesa. Há uma oposição entre “texto” e “pensamento legislativo”, isto é, um antagonismo entre a letra da lei e o seu oposto, como era já comum, desde há séculos, em Portugal. Nas discussões científicas ocorridas após o processo legislativo, o “pensamento legislativo” do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966, passou a ser identificado ocasionalmente com o termo “espírito”, isto é, um conceito que, desde o Iluminismo, era comumente entendido como o polo oposto à letra da lei. Os debates a respeito do entendimento do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966 desviam-se do próprio dispositivo legal. Passou tal artigo a ser entendido como ligado a uma “metodologia tradicional”, segundo a qual a interpretação fica demasiado adstrita à lei. É de se apontar, aliás, que as teorias encontradiças na ciência do direito alemão no pós-guerra, como a assim chamada Wortlautgrenze,33-NR-3 não exerceram influência diminuta. Em Portugal, porém, tem-se, de regra, descurado que a Codificação de 1966 pode-se ter acostado a outra solução possível: o recurso à relação jurídica de Savigny.

4.2 A “relação jurídica” do 2.º título da parte geral do Código Civil de 1966 A virada da ciência jurídica portuguesa em direção à Pandectística no início do século XX teve ainda outra consequência: a adoção da categoria “relação jurídica”. Esta, por sua vez, encontra-se em lugar de destaque no Código Civil de 1966: a saber, como título de uma das duas divisões da parte geral. Enquanto a primeira parte carrega o título “Das leis, sua aplicação e interpretação”, contendo prescrições sobre fontes do direito, metodologia e direito internacional privado, a segunda parte é batizada de “Das relações jurídicas”. Sua subdivisão assemelha-se à da parte geral do Código Civil alemão. Encontram-se, assim, subtítulos dedicados a pessoas e coisas, aos assim chamados fatos jurídicos34 e ao exercício e proteção dos direitos.35 A “importação” da relação jurídica pode também ser reconduzida a Guilherme Alves Moreira. Nas suas Instituições de 1907, afirma ele o seguinte no § 12:

33. Não é óbvio, porém, que historicamente devesse existir tal limitação à dicção legal, cf. C.BALDUS, § 3 Gesetzesbindung, Auslegung und Analogie: Römische Grundlagen und Bedeutung des 19. Jahrhunderts, in: K. RIESENHUBER (org.): Europäische Methodenlehre. Handbuch für Ausbildung und Praxis. 2. ed. Berlin, 2010. p. 26-111 (nota marginal 141). NR-3 Literalmente, “fronteira do teor da palavra”. 34. Encontram-se nessa parte algumas disposições sobre negócio jurídico e sobre prescrição. 35. Encontram-se nessa parte algumas regras a respeito da produção de provas. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 “Das noções de direito objectivo e subjectivo que démos (§ 1.º) resulta que, em virtude das normas coactivamente impostas aos individuos em sociedade e pelas quaes se garantem os seus interesses communs, elles podem obter o reconhecimento social de certos factos e das consequencias que delles derivam, quando o fim desses factos represente um interesse que seja considerado legitimo, ou, por outros palavras, não offenda os interesses communs, que o direito objectivo garante. Os poderes que o direito objectivo reconhece aos individuos exercem-se pela constituição de relações da vida real, que teem o nome de juridicas, quando sejam no todo ou em parte regulados pelo direito”.36 Assim, as relações da vida real apresentam-se como relações jurídicas quando passam a ser reguladas juridicamente. Formulações semelhantes podem ser encontradas posteriormente em obras de juristas importantes, como Luís Cabral de Moncada,37 Manuel A. Domingues de Andrade38 e Carlos Alberto da Mota Pinto (em atualização e ulterior coautoria post-mortem de António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto).39 Na literatura mais recente, indica-se explicitamente que a “relação jurídica” portuguesa remonta a Savigny.40 A relação jurídica foi constante tema de debates científicos em razão de sua destacada posição no Código Civil de 1966. Um desses debates gira em torno da exata estrutura da relação jurídica. Exposto de forma simplificada, podem-se identificar dois grupos: o primeiro entende a “relação jurídica”, sobretudo de forma subjetiva; o segundo, de forma objetiva. Em favor de uma visão mais subjetiva e, com isso, de um fundamento mais próximo na obra de Savigny, colocam-se, sobretudo Manuel A. Domingues de Andrade e Carlos Alberto da Mota Pinto. O primeiro afirma o seguinte: “Relação jurídica (...) vem a ser ùnicamente a relação da vida social disciplinada pelo direito, mediante a atribuição a uma pessoa (em sentido jurídico) de um direito subjectivo e a correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição”.41

36. G. ALVES MOREIRA, Instituições... cit., p. 121. 37. L. C. DE MONCADA, Lições de direito civil, Parte Geral, Coimbra. 1931-1932. vol. 1, p. 231. 38. M. DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, Sujeitos e Objecto, Coimbra. 1960 (reimpr. 2003). vol. 1, p. 2. 39. C. A. DA MOTA PINTO; A. PINTO MONTEIRO; P. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil. 4. ed. Coimbra, 2005. p. 177 e ss. 40. R. CAPELO DE SOUZA, Teoria geral do direito civil. 4. ed. Coimbra, 2007. p. 162 e ss.; P. P. DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil. 4. ed. Coimbra, 2007. p. 240. 41. Cf. M. A. D. DE ANDRADE, Teoria geral... cit., p. 2. Com praticamente as mesmas palavras, cf. C. A. DA MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, Coimbra, 1976. p. 133. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL A relação jurídica é, portanto, determinada pelo direito subjetivo de uma pessoa em face da outra. Haja vista que o direito subjetivo se baseia apenas na vontade do sujeito de direito, afirma Carlos Alberto da Mota Pinto,42 ainda mais acuradamente, que ele é manifestação e meio do exercício da autonomia privada. Diferentemente de Jhering, afirma Mota Pinto: “Definimos o direito subjectivo como um poder jurídico, (...). Afastámo-nos assim (...) de uma posição como a de IHERING que define o direito subjectivo como o‚ interesse juridicamente protegido”.43 O direito subjetivo, e, indiretamente, também a relação jurídica, foram definidos, por Jhering, como fundados no interesse, em vez de fundados na vontade. Essa mudança foi acompanhada de um distanciamento em relação a Savigny, como se pôde bem observar em Portugal. Aqueles que negam a caracterização subjetiva da “relação jurídica” baseiam-se também nos argumentos da assim chamada teoria do interesse. Já Guilherme Alves Moreira definira o direito subjetivo como fundado no interesse.44 Na obra de Cabral de Moncada, esse distanciamento é expresso de maneira ainda mais óbvia. Seria evidente que, “se tomarmos, porém, em consideração as relações fundadas nas actividades conscientes, ou na vontade dos homens, como relações criadas por êles mesmos (...), só estas é que poderão ser verdadeiramente relações jurídicas, estabelecidas à sombra do direito objectivo, para realizar o direito subjectivo. Mas então não é menos evidente (...) que o conceito da Relação Jurídica se nos reduzirá nas mãos, quási sem darmos por isso, a um conceito de tal modo restrito, por outro lado, que a sua teoria gral, que neste caso se torna possível fazer, só abrangerá a-final as relações resultantes dos ‚negócios jurídicos‘, como manifestações da vontade, sem que possamos estendê-la a restante vida do direito”.45 Cabral de Moncada, no trecho citado, teme que a “relação jurídica” seja esvaziada caso essa se reduza à mera interação com a vontade subjetiva. Seria mister, assim, reservar-se a possibilidade de reconduzi-la ao “restante da vida jurídica”. No “restante da vida jurídica”, denota-se não apenas uma virada em direção ao interesse de Jhering, mas também um distanciamento do pensar desprovido de finalidades de Savigny. Esse ponto é precisamente identificado por Kiefner:

42. Idem, p. 135. 43. Idem, p. 136. 44. G. ALVES MOREIRA, Instituições... cit., p. 4 e ss. 45. L. C. DE MONCADA, Lições... cit., p. 232 e ss. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 7 “A finalidade, expulsa de forma enérgica por Kant e, seguindo-o, também por Savigny, logrou adentrar, com grande força, novamente à teoria do direito com o pensamento ulterior de Jhering”.46 Como já insinuado, os vínculos entre a estrutura da “relação jurídica” com a metodologia, em um sentido, diga-se, mais tradicional, não são claramente vistas em Portugal. Podem ser mencionadas duas razões principais para tal fenômeno. Em primeiro lugar, o debate metodológico ficou sempre às voltas da nova norma interpretativa, isto é, do art. 9.º, 1, do Código Civil de 1966. Em segundo lugar, debateu-se em Portugal, nos anos 1970, a partir de uma suposta crítica ao positivismo, se não se deveria abandonar as doutrinas interpretativas mais vinculadas à norma em favor de um método no qual se valorizasse o caso a ser resolvido, isto é, um método no qual o caso fosse colocado em uma posição central.47 Segundo tal teoria, que se poderia chamar de teoria da aplicação orientada a problemas, a interpretação da norma não poderia estar no primeiro plano. A norma seria mero critério de orientação.48 Mesmo aí, porém, pode ser visto um retorno a Savigny, pois, ainda para ele, a reconstrução do “pensamento imanente à lei”, como descrito, não começa pela norma, mas, antes, pela relação jurídica. Na verdade, a teoria da “relação jurídica” submeteu-se também a muitas críticas, sobretudo por não ser teoricamente apta a esclarecer os direitos de domínio do campo dos direitos reais.49 Não foi posta em dúvida, contudo, a função da relação jurídica em si, a saber, a de atuar como um plano entre a lei e a realidade da vida, e, assim, facilitar tanto a aplicação quanto a interpretação do direito. De certa maneira, nesse ponto, retorna-se hoje a Savigny: Menezes Cordeiro também não recorre mais à já desgastada relação jurídica portuguesa, mas, antes prefere fazê-lo ao instituto jurídico de Savigny. Assim, tratar-se-ia de um “conjunto concatenado de normas e de princípios que permite a formação típica de modelos de decisão”.50 Menezes Cordeiro logra, dessa maneira, unir a influente teoria da aplicação orientada a problemas com a tradição portuguesa-pandectística.

46. H. KIEFNER, Einfluss Kants... cit., p. 23 e ss. 47. A respeito, B. HERZOG, Anwendung und Auslegung von Recht... cit., p. 395-400. 48. F. J. BRONZE, Lições de introdução ao direito. 2. ed. reimpr. Coimbra, 2010. p. 887. 49. Pode-se, em alemão, diferenciar entre uma relação jurídica relativa (relatives Rechtsverhältnis), isto é, entre pessoas; e uma absoluta (absolutes Rechtverhältnis), entre pessoa e coisa. Isso, porém, não é passível de tradução ao português: uma “relação relativa” não é possível. Cf. J. DE OLIVEIRA ASCENSÃO, As relações jurídicas reais, Lisboa, 1962. p. 27. 50. A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português. 3. ed. Coimbra, 2005. vol. 1 (Parte Geral). t. 1, p. 364. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

DOUTRINA INTERNACIONAL Essa tentativa de reanimação do instituto jurídicoNR-4 em Portugal talvez explicite que aspectos da metodologia de Savigny podem, ainda hoje, guardar uma certa importância. O instituto jurídico pode ser usado, da mesma forma como a relação jurídica, como um ponto de orientação para a interpretação, que se fixa entre a norma legal e as circunstâncias da vida. Ademais, quando se compreende o instituto jurídico como historicamente construído e encaixado em um determinado sistema, pode-se, com seu auxílio, combater as intromissões manipuladoras do intérprete.

5. CONCLUSÃO Os desenvolvimentos descritos no Brasil e em Portugal podem ser meras gotas no oceano das investigações sobre a recepção de Savigny. Considerando-se, no entanto, que ambos os ordenamentos jurídicos se encontram próximos da ciência jurídica alemã em razão de seus Códigos civis pandectísticos, assume a pesquisa relativa a esta recepção um significado especial.51 Não se pode, todavia, sucumbir à tentação de explicar às ciências portuguesa e brasileira qual seria o suposto “verdadeiro” Savigny. Na verdade, aquilo que foi feito, ou que se deixou de fazer de Savigny, tanto no Brasil quanto em Portugal, pode mostrar à ciência jurídica alemã a que resultado levaria um pouco mais de “Savigny” (ou de “Jhering”). Da visão adotada neste trabalho há boas razões para que se combata o crescente pensamento orientando a fins na aplicação e na interpretação das normas do BGB. A ciência brasileira, por sua vez, tem de refletir se um pouco mais de “Savigny” seria o caminho adequado para o desenvolvimento da hermenêutica jurídica nacional.

NR-4 No original, Rechtsinstitut.

51. Seria incorreto, porém, como foi comentado repetidas vezes durante a conferência em Hannover, descrever a recepção das ideias de Savigny com base na figura dos “legal transplants”, ainda que de acordo com a visão aqui defendida o conceito mais inebria do que ajuda. Um conjunto de problemas, como falsificações de conteúdo, intencionais ou não; problemas linguísticos no momento da “tradução”; e, por fim, o entrelaçamento de diversas vias de recepção tornam, segundo a experiência, praticamente impossível que uma ideia seja transferida, em toda sua pureza, de um sistema jurídico a outro. A respeito, cf. também T. DUVE, Von der Europäischen Rechtsgeschichte zu einer Rechtsgeschichte Europas in globalhistorischer Perspektive, Research Series Paper n. 2012/01, Max Planck Institute for European Legal History. Disponível em: [http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_ id=2139312]. p. 54; e B. HERZOG, Anwendung und Auslegung von Recht... cit., p. 738-744. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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PESQUISAS DO EDITORIAL Veja também Doutrina • Direito subjetivo I: conceito, teoria geral e aspectos constitucionais, de Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio – RDPriv 52/29 (DTR\2012\451282); • Direito subjetivo, interesse simples, interesse legítimo, de José Renato Nalini – RePro 38/240 (DTR\1985\15); e • Relatividade dos direitos subjetivos, de Leandro de Oliveira Stoco – RT 797/89 (DTR\2002\141).

HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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