A Recife de Josué: Resenha do Livro “A cidade do Recife: Ensaio de Geografia Urbana”

May 31, 2017 | Autor: M. Albuquerque | Categoria: Geography, Human Geography, Geografia, Geografía Humana, Geografia Urbana
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Revista do Instituto Arqueológico, Histórico, Geográfico de Pernambuco; número 68 – 2015. ISSN 0103-1945

A Recife de Josué: Resenha do Livro “A cidade do Recife: Ensaio de Geografia Urbana”

Mariana Zerbone Alves de Albuquerque Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco

Resumo O Livro “A cidade do Recife: Ensaio de Geografia Urbana”, publicado em 1954, é uma obra de Josué de Castro de relevante valor tanto para a Geografia e História da cidade do Recife, quanto metodologicamente para a Geografia enquanto ciência. Apesar de suas obras mais conhecidas estarem mais relacionadas com as questões sobre alimentação e fome, como Geografia da Fome (1952) e Geopolítica da Fome (1952-1953), Josué busca nessa obra, como recifense, segundo ele, associar “à tarefa profissional de geógrafo o prazer de reviver num trabalho de criação a paisagem humana da cidade onde nascemos.” (p.8), e é isso que ele faz, “reconstrói” a paisagem do Recife analisando desde o sítio natural, passando pela análise de diversas influências no processo de ocupação da cidade do Recife. Palavras Chave: Recife; Geografia Humana; Paisagem Abstract The book "A cidade do Recife: Ensaio de Geografia Urbana", published in 1954 , is a work of Josué de Castro of great value for both the geography and history of the city of Recife, and methodologically for Geography as a science . Although his best known works are more related to issues about food and hunger , as Geografia da Fome (1952) and Geopolítica da Fome (1952 to 1953 ), Josué, native of Recife, search in this work to associate "the professional task geographer pleased to revive job creation in the human landscape of the city where we were born." ( p.8 ) , and that's what he does, "reconstructs" the landscape of Recife analyzing from the natural site, through the analysis of several influences in the process of occupation of the city of Recife. Keywords: Recife; Human Geography; Landscape 351

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Em um primeiro momento, no livro “A cidade do Recife: ensaio de geografia urbana”, Josué de Castro apresenta a importância de se estudar a cidade na perspectiva geográfica e o método para analisá-la. Não basta analisar apenas a cidade como obra, mas as relações que se estabelecem entre o sítio original e as transformações provenientes da ação humana. Ele afirma que “Nenhum estudo poderia, pois, interessar mais a uma disciplina como a Geografia Humana, cujo objetivo central é o estudo da humanização da paisagem, do que o estudo de uma cidade dentro de um ponto de vista geográfico procurando destacar a ação dos fatores naturais e dos fatores culturais que determinaram sua fundação, a sua evolução e sua expressão singular.” (p.13) Josué de Castro, neste sentido, propõe uma análise crítica e investigativa da origem da cidade do Recife, identificando os fatores e as inter-relações entre os que compõem a cidade, se esquivando de uma análise descritiva e monográfica do Recife. Apesar de muitas terminologias apontarem para uma geografia determinista, Josué se apresenta de vanguarda, com uma proposta avançada de estudo da geografia urbana, para a geografia da década de 1950. Como ele mesmo afirma, “é um ensaio muito mais interpretativo do que descritivo”(p.14). Ele se baseia na geografia urbana que passa a ser desenvolvida na França, Inglaterra e Estados Unidos, na perspectiva da moderna Geografia Regional, pois ele afirma que “o que domina no estudo geográfico de uma cidade é uma análise das correlações entre o elemento humano que cria e entretêm esse organismo artificial e os fundamentos naturais que possibilitaram a sua existência.” (p.16). Josué traz uma perspectiva muito interessante da análise, não distinguindo o estudo de uma área urbana de uma área rural, pois ele se baseia na Geografia Regional, isso fica claro quando ele afirma que “Constitui, pois, o estudo geográfico de uma cidade, um exemplo típico de Geografia Regional, em muitos pontos idênticos a um estudo geográfico de uma região rural.” (p.25) E nesse sentido, sua ideia de cidade é que ela “é sempre um produto das possibilidades geográficas e da capacidade de utilização das mesmas pelo grupo humano local e nela se refletem sempre as influências do meio natural e as influencias do grupo cultural. (...) a mais completa e grandiosa expressão material da ação do homem como fator geográfico” (p.26). De certa forma, Josué de Castro aponta para a centralidade da cidade em uma dinâmica regional, quando ele afirma que a cidade é “produto de uma tal força expressiva, que alonga sempre sua influência além dos seus limites materiais, mudando os fáceis regionais em seus

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mais profundos recônditos, impregnando a região inteira dessa realidade sutil mas tenaz, a alma da cidade.” (p.26) Ao analisar os fundamentos fisiográficos do Recife, ou seja, sua base natural com seus elementos primários, Josué destaca a necessidade de se analisar o sítio onde a cidade será assentada, exercício esse não muito simples, pois exige a necessidade de uma abstração ao desconstruir os elementos, segundo ele, artificiais que lhe dão expressão cultural. (p. 31) Entretanto, ele não se propõe a uma análise exaustiva da forma, mas sim expõe a relevância de, em suas palavras, “por em destaque as conexões estabelecidas entre o organismo urbano e os fundamentos geográficos da região, dentro da qual a cidade se encontra enquadrada, assim como a conexão dessa região com o resto do mundo.”(p.29). Deste modo, fica evidente a preocupação de Josué de articulação entre as escalas no processo de produção do espaço, que não apenas os fatores locais são responsáveis pela construção de uma cidade, principalmente de uma metrópole. Nesse sentido, para a análise da produção de um espaço urbano, Josué se aporta na ideia de localização relativa, baseada em Landon White e George Renner, quando afirmam que uma cidade depende por tal forma de localização. A primeira vista, aparenta ser uma teoria determinista, em que o sítio determinaria a sua ocupação, mas de fato a dialética se apresenta quando se percebe que não se trata de uma determinação, mas sim de uma inter-relação de fatores naturais, econômicos, sociais, políticos e culturais, e suas contradições, caracterizando uma singularidade no contexto da totalidade. Ainda nesse capítulo Josué vai mais além, se utilizando da geologia para compreender o sítio do Recife, sua formação físico natural, composta por sua planície flúvio-marinha, os arrecifes de arenito e cinta sedimentar de colinas.

A cidade assenta nas baixas terras de extensa planície aluvionar que se estende desde as cotas marinhas frisadas, em quase toda sua extensão por uma linha de arrecifes de pedra, até uma cadeia irregular de outeiros terciários, que a envolvendo em semi-círculo, a separa das terras mais onduladas do interior. É essa planície constituída de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos brações dágua dos rios que, rompendo passagem através da cinta sedimentar de colinas, se espraiam remansosos pela planície inundável. Foi nesses bancos de solo ainda mal consolidado - mistura ainda incerta de terra e água – que cresceu a cidade anfíbia, como Amesterdão e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro da água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas. (CASTRO, 1954, p.33) 353

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E é no que Josué chama de Baía Entulhada que se estabeleceu a cidade do Recife, sendo esta planície, até hoje a parte mais valorizada da cidade, espaço de conflito de classes, e de valorização e desvalorização baseado no valor atribuído aos elementos naturais, ficando para o colar de colinas sedimentares, como ele denomina, uma área desvalorizada se comparada à planície, que se configura até mesmo como uma barreira para a expansão do Recife como município, como se percebe nos dias atuais. Nos demais capítulos, Josué de Castro aponta as influências e as escolhas no processo de ocupação e expansão do Recife urbano, a partir de condições técnicas, culturais e interesses específicos e povos distintos no processo povoação do Recife em quase 400 anos. Para Josué de Castro, a influência para ocupação da planície foi holandesa, visto que os portugueses tinham aversão a este sítio alagado e preferiram ocupar as colinas de Olinda. Contudo, mesmo com a expulsão dos holandeses, a povoação urbana continuou a se concentrar em Recife (Ilha do Recife, Santo Antônio e São José) e se expandir para as povoações dos arrabaldes, onde se localizavam os engenhos, hoje bairros do Recife (Madalena, Torre, Casa Forte, Apipucos, Jiquiá, Caxangá, Monteiro, Cordeiro, entre outros), isso em um intervalo de aproximadamente 300 anos. Na verdade Recife não surge para ser cidade, mas sim como porto de Olinda, contudo os aspectos históricos que se deram nesse território modificaram a intenções iniciais de ocupação do território, gerando uma dinâmica que se estende espacial e temporalmente na configuração desse espaço urbano. A fim de explicar a localização e o crescimento da cidade do Recife na sua atualidade, 1950, Josué de Castro faz um resgate da ocupação humana inicial e a fundação da cidade do Recife, em uma perspectiva Geográfica, descrevendo e a alisando a transformação da paisagem levantando os fatores expressivos para as transformações, relacionando os aspectos naturais e os construídos, ou seja, como ele mesmo menciona, “a transformação da paisagem natural em paisagem humanizada”. Segundo Josué de Castro

A evolução da cidade será encarada em nosso estudo apenas em sua realidade total, como o processo da dinâmica geográfica, através do qual foi tomando corpo e expressão a atual fisionomia da cidade. Não vamos apresentar aqui essa sequência, sempre tão sugestiva, de perfis temporários da cidade, de sucessivos retratos ou cortes de sua anatomia urbana, 354

Revista do Instituto Arqueológico, Histórico, Geográfico de Pernambuco; número 68 – 2015. ISSN 0103-1945 indispensáveis a um estudo propriamente da evolução urbana – mas tão somente, analisar quais os fatores que agiram nesse processo evolutivo, determinando finalmente a atual expressão da cidade em suas correlações imediatas com o meio natural.” (CASTRO, 1954, p. 130)

Josué destaca a importância dos bairros iniciais na caracterização do Recife e sua influência na reprodução do espaço e sua expansão, mesmo com as mudanças políticas de gestão do território. Segundo Josué “Crescendo sob a pressão de inúmeros fatores de progressão (...), já fora da influência direta dos holandeses, a cidade nunca se livrou de sua pressão modeladora inicial e três séculos depois ainda lembra muito o seu modelo de imitação – Amesterdão.” (p. 128). E ele parte da ideia da cidade com uma criação da vontade humana, que segundo ele “essa vontade só se concretiza quando corresponde à satisfação das necessidades materiais ou psicológicas, de caráter coletivo.”(p.78) A partir dessa perspectiva, o que diria Josué de Castro hoje sobre a cidade do Recife? Talvez ele dissesse que a ideia de cidade mudou, ou Recife não é mais uma cidade, visto que o caráter coletivo tem se tornado uma utopia, tendo em vista as ações hegemônicas que têm definido a dinâmica da produção e reprodução da cidade do Recife. Ainda nesse sentido, será que Josué de Castro conseguiria desconstruir Recife de seus elementos construídos para chegar à paisagem natural, ou menos ainda, será que é possível contar a história do Recife a partir dos elementos espaciais dispostos na atualidade? Será que a metodologia de análise urbana de Josué de Castro daria conta de compreender a realidade atual do Recife? Diante de todas as estratégias e articulações que têm se estabelecido para a produção atual do espaço do Recife, a abordagem de Josué seria importante, porém ingênua, visto que elementos que “contam” a história do Recife estão cada vez mais raros em uma cidade com tendência de homegeinização da paisagem com elementos que não revelam a memória e a história da cidade. É preciso compreender os novos processos de valorização, desvalorização e revalorização dos espaços da cidade, dos elementos naturais e culturais que compõem o Recife, visto que não tem sido mais estabelecido pelo caráter coletivo, mas sim por interesses específicos e hegemônicos, não articulando as novas obras humanas ao que foi produzido historicamente, anulando a cultura, a diversidade e as possibilidades, visto que um paredão de vidro vale mais do que anos de história, como se tem percebido em discursos superficiais, porém introjetados como se fosse verdade absoluta em grande parte das 355

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população recifense, porém o que se observa são projetos elaborados não na perspectiva de cidade nem de totalidade, mas apenas para satisfazer o lucro momentâneo de um grupo, que se autodestrói ao destruir as especificidades de uma cidade como Recife, transformando uma cidade com tanta história, como conta Josué de Castro, em um lugar comum.

Referência CASTRO, Josué. A cidade do Recife: ensaio de geografia urbana. São Paulo: Gráfica Carioca, 1954. 167 p.

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