A Redução da Maioridade Penal e o Argumento do Voto aos Dezesseis Anos

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A redução da maioridade penal e O ARGUMENTO DO VOTO AOS DEZESSEIS anos O debate em torno da redução da maioridade penal tem ocupado recentemente um grande espaço espaço na mídia, fóruns de discussão, conselhos de direitos, universidades, igrejas e diversas outras organizações. Na verdade, propostas de redução da maioridade penal circulam no Congresso Nacional desde 1993, ou seja, apenas 3 anos após da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O tema é bastante complexo e deve ser analisado a partir de muitas perspectivas, e não somente a partir de uma discussão travada no âmbito da segurança pública, como tem sido a tônica do atual debate. Minha intenção é discutir sobre os principais argumentos favoráveis e contrários à redução da maioridade penal, a fim de contribuir para esse debate que, ao meu ver, tem sido conduzido na maioria das vezes sem as informações necessárias ou pouco clarificadas.

Neste breve artigo me proponho a refletir especificamente sobre o argumento do direito ao voto aos 16 anos, uma das principais razões pelas quais a redução da maioridade penal deveria ser aprovada, segundo seus defensores. Através desse argumento, questiona-se basicamente a “incoerência” em conceder aos/as adolescentes o direito de escolha dos governantes do país ao passo que lhes é vedada a responsabilização penal proporcional a esse poder em caso de violação das leis. Mas esse argumento carece, ao meu ver, de uma análise mais cuidadosa do contexto no qual esse direito é, ou deveria ser, exercido.

O direito ao voto a adolescentes a partir de 16 anos é facultativo, e foi conquistado pelos movimentos estudantis, cujo principal objetivo era permitir o acesso do/a adolescente a um instrumento de participação política. Essa participação, por sua vez, está alinhada com os princípios do ECA pela promoção da cidadania desses adolescentes, considerados sujeitos de direito. O voto aos 16 anos é, portanto, também um instrumento pedagógico que busca inserir os/as adolescentes em um universo de participação política e cidadã. Sem esse entendimento, a discussão sobre sua responsabilização dos

adolescentes se torna mecânica e descontextualizada.

Como qualquer instrumento pedagógico, o direito ao voto a partir dos 16 anos requer um esforço concreto e contínuo da família, da escola, da sociedade em geral e do estado para que o/a adolescente apreenda e compreenda o valor, o significado e os impactos de tal direito, de modo que possa exercê-lo de maneira realmente consciente e responsável.

Ouço pessoas dizendo que “se adolescentes já podem participar da escolha do/a presidente da república, então deverão ser responsabilizados/as como adultos caso cometam algum crime”, como se a oportunidade de ir às urnas concedesse automaticamente a esses/as adolescentes consciência política. Como se o seu grau de civilidade atingisse, num passe de mágica, um salto de qualidade pelo simples ato de votar. Ou seja, utiliza-se indiscriminadamente o argumento do voto aos 16 anos em um país no qual, uma semana após as eleições, grande parte dos eleitores já não sabe mais em quem votou. Diz-se isso em um país onde a mobilização política da população por cobranças de promessas de campanhas é ainda bastante rarefeita. Com a exceção de grupos de interesse, movimentos de classe, conselhos, fóruns permanentes de discussão, grande parte do eleitorado sequer acompanha o andamento da vida política dos candidatos em quem votou, quanto menos daqueles em quem não votou. Em um país onde grande parte dos eleitores nunca enviou um único e-mail ou fez uma única ligação telefônica ao gabinete de seus candidatos eleitos, nem acompanha suas decisões nas câmaras municipais, assembleias legislativas, congresso nacional, etc. Em um país no qual, após completados 30 anos de redemocratização conquistada à duras penas, uma quantidade significativa de pessoas sai às ruas clamando por intervenção militar, acreditando ser essa a única maneira de conter a onda de corrupção que assola o cenário político nacional.

É bem verdade que nos últimos 2 anos a mobilização política dos brasileiros aumentou, sobretudo a partir dos protestos de junho de 2013, culminando nas mais recentes manifestações por reforma política e responsabilização de governantes corruptos. Ainda assim, é preciso reconhecer que os adultos em geral não são o melhor exemplo aos adolescentes no uso consciente do voto. Então eu me pergunto se é justo utilizar o argumento do voto aos 16 anos para sustentar a proposta de redução da maioridade penal. Formamos uma sociedade na qual muitos não compreendem a complexidade e as

consequências do voto, mas que exige que adolescentes que votam as compreendam, simplesmente pelo fato de que a eles/as é reconhecido esse direito.

Talvez o melhor exemplo dessa contradição seja o fato de que nos últimos 5 anos houve uma acentuada queda no número de eleitores entre 16 e 18 anos incompletos. Segundo reportagem do Diário do Nordeste – utilizando-se de dados fornecidos pelo TSE –, havia em 2010 aproximadamente 2,4 milhões de eleitores entre 16 e 17 anos no país, cuja população nessa faixa etária era de 6,8 milhões. Em 2014, o número de eleitores adolescentes caiu para 1,6 milhão, representando uma queda de 33% em âmbito nacional, sem que o número de brasileiros nessa faixa etária tenha se modificado significativamente. E para piorar, essa porcentagem de 33% será maior se considerarmos a oscilação que houve nas eleições municipais de 2012, na qual 2,9 milhões de adolescentes entre dezesseis e dezessete anos votaram. Nesse caso, a queda no interesse do eleitorado adolescente será de 44%. Só no estado de Goiás foi registrada uma queda de impressionantes 60% no número de adolescentes que têm título de eleitor. A falta de informação sobre o processo político – principalmente no ambiente escolar – e o sentimento de imaturidade estão entre os motivos principais pelo qual esses adolescentes deixaram de votar. Veja aqui no website do TSE estatísticas mais detalhadas sobre o eleitorado adolescente. Esse cenário indica que por mais importantes que tenham sido as manifestações de junho de 2013, com vasta participação da juventude, elas não conseguiram mobilizar o eleitorado adolescente.

Mas, sobretudo, esse cenário indica que nós adultos não contribuímos o suficiente para a consolidação do direito ao voto dos adolescentes. O próprio fato de que o voto aos 16 anos é facultativo, isto é, não obrigatório, como os defensores da redução da maioridade penal fazem parecer, significa que cabe ao arbítrio dos/as adolescentes a opção de participar ou não. Mas com que parâmetros esses/as adolescentes decidirão quando, como e por quê exercer seu direito ao voto se nós adultos não lhes instruímos adequadamente no processo de participação política e cidadã, não desenvolvemos neles o interesse pela vida política nacional, nem lhes damos bons exemplos no que se refere ao nosso próprio comportamento, tanto nos períodos pré e pós-eleitoral? Não podemos nunca perder de vista que, como bem lembrou o sociológo Rudá Ricci, “o processo educacional não é uma virtude individual, mas uma responsabilidade da coletividade”.

É justo reconhecer, entretanto, que existem iniciativas interessantes em curso, cujo objetivo é auxiliar a formação política de crianças e adolescentes quanto ao processo eleitoral, funcionamento dos poderes legislativos e executivos e à participação política de adolescentes através do voto. Várias câmaras municipais espalhadas pelo país, assim como a Câmara dos Deputados, desenvolveram ações educativas denominadas de “parlamentos mirins ”.

Porém muitas dessas iniciativas emperram ou são descontinuadas principalmente pela falta percepção sobre sua eficácia a longo prazo e de investimentos, uma vez que a maioria delas não foi constituída como uma política pública. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) lançou até uma ferramenta lúdica para adolescentes bastante interessante chamada de Jogo do Eleitor, dentro de um projeto maior denominado de Escola Judiciária Eleitoral para Adolescentes, mas quantos profissionais conhecem essas iniciativas ou são estimulados a utilizam-se delas?

Outro ponto importante a ser considerado é que a mesma crise de representatividade, percepção de desconfiança e frustração dos adultos em relação aos candidatos eleitos é encontrada também entre adolescentes, que estão cada vez menos motivados a exercer o direito ao voto e à participação política de maneira geral. Nós adultos alimentamos diariamente o imaginário negativo em relação à atividade política quando reverberamos chavões do tipo: “todos os políticos são corruptos e ladrões”, “é impossível ser eleito para um cargo público e não se corromper”, “não há um partido que se salve”. Já disse certa vez que o pior legado que políticos corruptos deixam para a população é simbólico: a impressão de que a atividade política em si é um mal, algo sujo e que deve ser evitado. E pelo que me consta, esses políticos são todos adultos. E se nós adultos já estamos há tempos desiludidos com a atividade política (e não só com a política partidária), porque então lançar sobre os/as adolescentes uma cobrança tão grande em relação ao peso de seu voto? Na prática, o direito ao voto aos 16 anos não torna os/as adolescentes brasileiros/as conscientes de seu ato político, só os/as coloca na mesma condição que a maioria das pessoas se encontra.

Outro agravante é o fato de que o sistema político brasileiro é desigual e pouco dialoga com os jovens. Dados do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos) apontam que “os jovens, embora

correspondam a 51% da população brasileira, representam somente 6,8% de candidaturas”. Não há, portanto, um esforço intencional e concentrado dos partidos políticos em interagir com adolescentes e jovens e aumentar seu interesse na política como exercício de cidadania e transformação da sociedade. Estes partidos preferem os candidatos “puxa-voto”, como (sub)celebridades, jogadores de futebol e artistas, a fim de conseguirem alguma representatividade, sem no entanto, que isso se converta em interação efetiva com o eleitorado adolescente.

Como disse antes, a oportunidade de votar não torna os/as adolescentes instantaneamente conscientes da importância de tal ato. Essa consciência virá a partir de uma intervenção intencional dos adultos de referência (familiares, amigos/as, professores/as, autoridades, etc.), que forneça aos/às adolescentes as informações e os parâmetros necessários para participar da vida política nacional. Ao invés disso, somos ágeis em argumentar, sem analisar todo o contexto que envolve o atual debate, que se cabe aos/às adolescentes a enorme responsabilidade do voto, lhes cabe também o mesmo rigor aplicado a adultos que violam a lei. Este é mais um exemplo de como camuflamos a nossa irresponsabilidade, negligência e indolência na efetivação de políticas públicas que fortaleçam o sistema de garantia de direitos e que de fato eduquem, instruam e garantam a todos/as adolescentes oportunidades concretas de participação no processo democrático.

Então, antes de repetir o argumento do voto aos 16 anos, os defensores da redução da maioridade penal deveriam refletir sobre a complexidade do contexto no qual esse direito é exercido.

Alexandre Gonçalves

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