A redução de danos como estratégia educacional na sociedade de consumo

June 29, 2017 | Autor: Pedro de Faria | Categoria: Paulo Freire, Educação, Drogas, Redução De Danos, Política De Drogas, Proibicionismo
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9 772358 022003

ISSN 2358-0224

São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014

Qual o papel da educação na sociedade de consumo?

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A redução de danos como estratégia educacional na sociedade de consumo Ed Carlos Corrêa de Faria1 Pedro Henrique de Faria2 Luís Fernando Tófoli3

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O presente trabalho tem como objetivo analisar a utilização da redução de danos como estratégia educacional na relação entre as drogas e o sujeito, inseridos em um contexto proibicionista, entendidos a partir da fenomenologia das drogas apresentada por Marcelo Sodelli, comparada a modelos educacionais de Paulo Freire.

Há uma questão que qualquer pesquisador, ao encarar o tema drogas, não de-

veria ignorar: as drogas têm uma relação íntima com a humanidade e a acompanha desde o surgimento de sua história. Somente a partir do fim do século XIX, entre-

tanto, o uso das drogas passou a crescer exponencialmente e a representar, para as nações hegemônicas, um “mal” à sociedade. Esse período marca a ascensão da sociedade industrial americana, que, eivada de princípios puritanos e avidez por lucro, passa a construir uma ética de trabalho da temperança, que tem por justificativa a construção de uma classe trabalhadora 1 Bacharel em Psicologia e mestrando em Ensino na Saúde pela Faculdade de Medicina da Unicamp, membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi). E-mail: [email protected] 2 Bacharel em Direito pela Facamp, membro do Leipsi. E-mail: [email protected] 3 Bacharel e doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria (FCM-Unicamp), membro do Leipsi. E-mail: [email protected] São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014 • 34

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subserviente e produtiva, livre dos perigos do álcool, uma sociedade da “temperança” (RUMBARGER, 1989, p. 15). O filósofo Antonio Gramsci percebeu a gênese desse movimento de separação entre a moral trabalhadora e a das demais classes apontando que: O proibicionismo já forneceu um exemplo desta separação. Quem consumia álcool introduzido de contrabando nos Estados Unidos? O álcool tornara-se uma mercadoria de grande luxo e nem mesmo os mais altos salários podiam permitir que fosse consumido pelos mais amplos estratos das massas trabalhadoras [...] (GRAMSCI, 2007, p. 268).

Essa visão de temperança, criada durante a ascensão do fordismo, saiu das fábricas e tomou a cultura norte-americana, e na ascensão da indústria cultural tomou a forma de uma propaganda em que a perfeição era o padrão e o desvio, uma falha. A contracultura na década de 1960 foi veementemente atacada como agressora desse estilo de vida. O movimento hippie foi suprimido. O LSD e outras novas drogas que surgiram no período foram absolutamente demonizados pela indústria cultural. Os países periféricos tornaram-se escravos dessa “cruzada farmacológica”

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(ESCOHOTADO, 2007). A proibição das drogas ilícitas imperou enquanto política de controle social sobre nossa moral, nossa liberdade e nossos hábitos de consumo, Apesar disso, a história nos mostrou que as tentativas do Estado em controlar os hábitos das pessoas relativos ao uso de substâncias psicoativas fracassaram, à medida que o consumo da substância pelo mundo apenas aumentou com a proibição. A droga, ainda que ilícita, tornou-se um bem de consumo, de oferta quase ilimitada. As regras que deveriam servir para conter o consumo de drogas parecem apenas estimular o tráfico, na medida em que, quanto maior o risco envolvido na atividade criminosa, maiores os lucros dos traficantes que realizam os seus negócios sem prestar qualquer contrapartida à sociedade, sem recolher qualquer tributo. Diante desse cenário conflituoso sobre o tema, por que o consumo de drogas é algo tão presente na humanidade? O que leva o homem a usar drogas? Para responder a tais questões recorreremos a Sodelli (2010, p.639), que aponta, com base no existencialismo de Heidegger, que há duas condições ontológicas fundamentais para o ser humano — ser mortal e ser livre — que são vivenciadas por meio do sentimento de angústia. Freud (2011), apesar de uma linha de pensamento distinta da supracitada, converge para a existência de uma condição ontológica de sofrimento e afirma que abandonamos nossos instintos e deixamos de lado nossos desejos para a vida mais protegida em sociedade: o ser humano vive, então, um inevitável mal-estar. Assim, a alteração do estado da consciência experimentada ao usar uma substância psicoativa oferece ao indivíduo a possibilidade de sair momentaneamente dessa condição ontológica; em outras palavras, oferece ao ser humano uma alternativa a uma condição fundamental geradora de sofrimento. Portanto, qualquer proposta de cuidado ou prevenção aos riscos relacionados ao uso de substâncias psicoativas que ignore a indissolubilidade entre o ser humano e a sua busca por estados alterados e, portanto, pretenda o fim do uso de drogas, não resultará em êxito (SODELLI, 2010, p. 640-641). Temos, porém, de assumir que há importantes riscos nesse uso, e que o uso se expressa de uma maneira particular na sociedade de consumo. Não devemos nos São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014 • 36

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furtar da responsabilidade de buscar formas mais eficazes de dar cuidado a quem faz uso nocivo de drogas e de preveni-lo. Para tal, primeiro devemos compreender esse uso. Aqui concordamos com Sodelli (2010, p. 641), ao afirmar que a droga, o indivíduo e o meio social devem ser levados em consideração simultaneamente, ou seja, não se pode captar o padrão do uso de drogas apenas pelas propriedades farmacológicas das substâncias. A fim de pensar uma estratégia de prevenção aos riscos devido ao uso de drogas, destacamos o ensino escolar, pois abrange a quase totalidade dos indivíduos que estão em idade de ter o seu primeiro contato, e também por ocupar grande parte de suas rotinas. No Brasil, os programas de prevenção primária na educação datam da década de 1980 e coincidem com as primeiras propostas de redução de danos proveniente do aumento da incidência de HIV na população brasileira. Desde sua criação, a prevenção primária foi feita em especial por médicos e policiais e buscou-se evitar o primeiro contato de crianças e adolescentes com as drogas ilícitas. Podemos destacar aqui o Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd), por abranger todos os Estados brasileiros. O Proerd foi uma adaptação, importada dos Estados Unidos, do programa Dare (Drug Abuse Resistance Education) e chegou ao Brasil em 1992, efetivando as estratégias que surgiram a partir da “guerra às drogas” estadunidense na década de 1960 (ESPÍNDOLA, 2012, p. 44-47). A estratégia do programa Dare e do Proerd se enquadra no que Moreira e Andreoli (2006, p. 320) vão chamar de “modelo de treinamento para resistir”, que pretende treinar os estudantes para resistir ao uso das drogas. Apesar de esse modelo não ter obtido resultados efetivos nos EUA, ainda assim foi importado para diversos países, incluindo o Brasil. Além da ausência de uma efetividade evidente, uma crítica recorrente ao Proerd é a falta de adaptação cultural do modelo. Por exemplo, é importante nos perguntarmos se a figura do policial no Brasil carrega o mesmo conteúdo simbólico que nos EUA. Levando em consideração os apontamentos que fizemos até aqui e partindo do princípio pelo qual a erradicação das drogas é impossível, pois isso significaria São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014 • 37

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mudar uma condição ontológica da humanidade, uma estratégia pedagógica preventiva para obter resultados positivos deveria caminhar em outro sentido, diferenciando-se de uma abordagem proibicionista. A abordagem pragmática que leva esses elementos em consideração nos campos da saúde e da educação chama-se redução de danos. Como bem definem Trigueiros e Haiek (2006, p. 355-358), a melhor compreensão da noção de redução de danos (RD) é considerar o que o próprio termo indica: reduzir os danos ocasionados pelo uso de drogas. A redução de danos se contrapõe à proposta de abstinência e à “guerra às drogas”, estratégias que idealizam ou prometem o fim das substâncias psicoativas como solução. Coerente com os princípios de uma política universalista, a RD se volta tanto para a prevenção quanto para o cuidado. No caso do usuário ativo de drogas, ela foca no aconselhamento e dá a devida importância à aproximação e à vinculação, levando-o a refletir sobre o uso, conhecendo melhor seus danos e, se assim desejar, fazê-lo de maneira segura a fim de minimizá-los. A estratégia fundadora e mais conhecida da redução de danos, que é a distribuição de seringas e agulhas descartáveis como forma de evitar contaminações decorrentes do uso de drogas injetáveis, foi ampliada quando esses usuários passaram a ser vistos também como membros de uma comunidade e que, portanto, se relacionam, trabalham, têm necessidades outras e são dotados de direitos e deveres. Desde então, o foco deixou de ser somente os usuários, mas também seus parceiros sexuais e a comunidade, como forma de ampliar a prevenção. Seguir por essa via no âmbito escolar significa estabelecer a possibilidade da construção permanente de uma rede de cuidado entre o professor e o aluno. Deixar de lado o controle e a proibição tem resultados sobre a prevenção, pois passa ao diálogo e à ascensão de novas questões. Nessa estratégia, é o próprio aluno que vai em busca de formas de reduzir os danos possíveis do uso de drogas. O professor, nesse caso, não tem como função simplesmente determinar a forma de prevenção, mas sim estimular a reflexão. Essa estratégia caminha com uma pedagogia que vise o fortalecimento para tomadas de decisão enquanto sujeito de sua existência, e o uso ou não da droga entra como mais uma decisão na sua trajetória de vida (SODELLI, 2010). São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014 • 38

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Os pensamentos do educador brasileiro Paulo Freire (1996, p. 21-88) seguem na mesma linha, convergindo com a estratégia de redução de danos no sentido de que, para ele, educação é essencialmente comunicação e diálogo. Mais do que simplesmente transferência de saber, o processo de educar é um encontro de sujeitos que buscam a significação dos significados. Notemos que tal forma de encarar a educação se alinha com a compreensão de acolhimento ao sujeito, imprescindível à redução de danos. Freire (1996, p. 21-88) dá importante atenção ao termo “conscientização”; para ele, o termo se relaciona necessariamente com ação, relação entre o pensar e o atuar, e é o desvelar da razão de ser das coisas. A conscientização se dá mediante um movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação e a práxis. Freire (1987, p. 33-57) considera que a conscientização implica que os indivíduos assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, ou seja, não consiste em uma simples mudança de opinião sobre a realidade, uma mudança na subjetividade de cada indivíduo que deixa intacta a realidade. A conscientização supõe que pessoas se transformem pelo processo de mudança de suas relações com o ambiente ao seu redor e, acima da tudo, com os outros. Essa é a práxis humana, ou seja, a união indissolúvel entre a minha ação e a reflexão que posso fazer sobre o mundo. A conscientização, portanto, torna-se um processo

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pelo qual o sujeito ultrapassa a esfera espontânea de apreensão da realidade para alcançar uma esfera crítica na qual a realidade se dá como algo conhecido e sobre o qual se assume uma posição epistemológica. A RD, portanto, é um recurso que leva em consideração a inevitabilidade do encontro humano com as drogas e procura minimizar o seu impacto por meio do diálogo e da valorização do encontro ontológico que pode se dar no contato pessoa a pessoa. Suas bases se aproximam do pensamento freireano e se organizam dentro de uma perspectiva que extrapola o mero princípio normativo de um mestre que indica a seus aprendizes como estes devem proceder. Mais do que isso, a redução de danos procura escapar da lógica da sociedade de consumo – e aqui falamos do consumo tanto de bens lícitos quanto ilícitos, já que são duas faces de um mesmo mercado, marcadas somente pelas alterações de consciência que são consideradas “aceitáveis” ou não dentro de uma visão cultural predominante. Assim sendo, concluímos este breve texto com a afirmação de que é necessário discutir de forma mais aprofundada as relações entre a redução de danos e a educação como alternativa à lógica do consumismo na contemporaneidade. Isso não é fácil, dada a hegemonia de uma visão sobre as drogas que é marcadamente eivada de valores morais e preconcepções. Mesmo assim, ou justamente por isso, afirmamos, à guisa de conclusão – pois o tema não se esgota em tão poucas linhas –, que essa é uma discussão interdisciplinar da qual não devemos nos furtar a enfrentar. Referências bibliográficas CARNEIRO, H. As necessidades humanas e o proibicionismo do século XX. Revista Outubro, n. 6, p. 115-128, 1998. ESCOHOTADO, A. História general de las drogas. Madri: Espasa, 2007. ESPÍNDOLA, A. O. S. O controle das drogas no direito brasileiro e as políticas públicas de prevenção: Programa Escola Sem Drogas. Goiânia: Banco de Teses da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2012. São Paulo, Ano I, n. 03, set./dez. de 2014 • 40

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