A redução fenomenológica de Merleau-Ponty

May 22, 2017 | Autor: L. Aguiar de Sousa | Categoria: Phenomenology, Maurice Merleau-Ponty, Edmund Husserl
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A redução fenomenológica de Merleau-Ponty

I A posição de Merleau-Ponty face à redução fenomenológica de Husserl é ainda hoje objecto de debate entre os seus comentadores1. Aqueles que vêem em Merleau-Ponty um pensamento completamente oposto ao de Husserl e que consequentemente consideram que o primeiro rejeitaria completamente a ideia de redução fenomenológica costumam socorrerse de uma passagem do prefácio da Fenomenologia da percepção de acordo com a qual uma “redução completa” é “impossível”: “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” (PhP 142). Se atentarmos bem, esta passagem fornece ampla evidência de que a posição de Merleau-Ponty a este respeito é, na melhor das hipóteses, ambígua. Dizer que uma “redução completa” é “impossível” não é a mesma coisa que rejeitar por completo a ideia de uma redução. Ou, pelo menos, fica em aberto a possibilidade de Merleau-Ponty defender uma versão da redução diferente da de Husserl. De facto, existem muitas passagens na Fenomenologia da percepção, para além da referida, nas quais a atitude de Merleau-Ponty relativamente à redução é positiva (ver PhP 15, 17, 73). Além do mais, se Merleau-Ponty rejeitasse completamente a redução fenomenológica seria difícil de explicar que ele passe a maior parte da Fenomenologia da percepção (e até parte considerável da sua carreira filosófica) a defender a superioridade do ponto de vista husserliano (ou pelo menos daquela que ele veria como sendo a última fase de Husserl) relativamente a todos os outros tipos de sistema filosófico, em particular a filosofia transcendental de tipo kantiano, que ele tende a ver como intelectualista, e até apresentando, de maneira um pouco controversa, o ponto de vista husserliano como sendo o seu próprio. Neste artigo, procurarei defender que não só Merleau-Ponty não rejeita a ideia de redução, mas também que ele a considera como o ponto de partida de toda a investigação filosófica. Iremos demonstrar esta tese através de uma leitura dos principais momentos de todo o capítulo introdutório à Fenomenologia da percepção em que se procurará pôr evidência 1

Só para dar alguns exemplos: Carman defende que, apesar de Merleau-Ponty ter tentado interpretar a redução de um modo que fosse frutífero para a sua própria filosofia, ela é incompatível com os seus princípios filosóficos (2008: 39). Posição muito semelhante tem também Hass. Segundo Hass, MerleauPonty reconstrói e chega mesmo a distorcer a filosofia de Husserl com um intuito que esta possa ser vista como uma predecessora directa da sua própria (2008: 164). Já, por exemplo, Romdehn-Romluc 2011 defende que Merleau-Ponty aceita uma determinada versão da redução fenomenológica, nomeadamente aquele que é apresentada por Husserl na Krisis. Também Akhtar (2010: 152ss., 248) defende que Merleau-Ponty aceita uma certa versão da redução fenomenológica. Para outras interpretações da posição de Merleau-Ponty face à redução fenomenológica husserliana cf. Bhenke (2002), Bruzina (2002), Depraz (2002), Heinamäa (2002), Matthews (2002: 23ss.), Priest (1998: 13ss., 230ss.), Seebohm (2002). 2 Referir-nos-emos à edição francesa de A fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945) através da sigla “PhP” seguido do número de página. Todas as traduções para português são da minha responsabilidade.

que este serve precisamente a mesma função para Merleau-Ponty que a redução husserliana desempenhava na fenomenologia husserliana. Visto que o tipo de redução fenomenológica que Merleau-Ponty realiza é diferente da husserliana, ficaremos incumbidos de mostrar também o que Merleau-Ponty critica na redução husserliana, mas também aquilo que ele, de facto, aceita e apropria dela. A este propósito defenderemos que a diferença entre os dois tipos de redução não é apenas formal ou metodológico. O que determina a diferença entre o procedimento merleau-pontyano e o procedimento husserliano são considerações de natureza substantiva relativas à própria natureza daquele que é, afinal, o grande tema de investigação de A fenomenologia da percepção: a subjectividade. É a teoria da subjectividade de MerleauPonty, cuja primeira explicitação é a própria Fenomenologia da percepção, que determina retrospectivamente o tipo específico de redução fenomenológica que Merleau-Ponty pratica. Isto quer dizer também que a validade da sua redução só pode ser confirmada pelos resultados da Fenomenologia da percepção como um todo, não se tratando de um procedimento metodológico que, uma vez executado, pudesse ser deixado totalmente para trás (como uma escada wittgensteiniana que, uma vez usada, se pudesse deitar fora).

II A julgar pelas aparências, a fenomenologia de Merleau-Ponty propriamente dita começa com uma crítica da noção de sensação e a introdução da noção de forma (Gestalt) como unidade mínima de sentido antes de se fazer menção a qualquer tipo de “redução fenomenológica”. Contudo, a crítica da noção de sensação representa precisamente o começo da realização da sua “redução fenomenológica”. Por outras palavras, em lugar de se suspender a crença na existência do mundo exterior sem qualquer tipo de mediação, como Husserl faz nas Ideias I, Merleau-Ponty pensa que a fenomenologia deve começar numa crítica interna da atitude natural e científica. A filosofia ou a fenomenologia não devem ignorar o que a “nossa melhor ciência” nos diz sobre o modo como a percepção se dá:

“Eis porque tivemos de começar pela psicologia uma investigação sobre a percepção. Se não o tivéssemos feito, não teríamos compreendido todo o sentido do problema transcendental, visto que não teríamos seguido metodicamente os procedimentos que conduzem até ele a partir da atitude natural.” (PhP 90-91)

Há uma razão substantiva para este procedimento, na qual só podemos entrar detalhadamente mais tarde, que passa pela ideia de que a reflexão filosófica nunca pode abandonar a ideia de que a consciência, pelo menos como consciência perceptiva, tem uma natureza fáctica e que, portanto, nunca pode ser separada da sua existência concreta no mundo. Obviamente que este procedimento contrasta fortemente com a perspectiva husserliana, pelo menos nas suas introduções mais conhecidas à fenomenologia como as Ideias I e as Meditações cartesianas. O traço comum às várias tentativas de Husserl de apresentar a redução é a de que esta tem de passar necessariamente por suspender a nossa

crença tácita na existência do mundo – ela implica, portanto, não fazer uso de nenhuma tese relativa ao mundo provinda da atitude natural ou científica.3 (A este respeito, o procedimento de Merleau-Ponty é mais semelhante ao de Hegel, cuja Fenomenologia do espírito se inicia precisamente com a observação e crítica interna do modo mais imediato de consciência, a certeza sensível.) É necessário alertar desde já para a confusão que pode ser gerada no leitor pela circunstância de, pelo menos na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty ter a tendência para apresentar a sua posição como se fosse idêntica à de Husserl ou, pelo menos, à do último Husserl que Merleau-Ponty conhecia, o da Krisis. Uma das teses principais deste artigo é precisamente a de que, embora Merleau-Ponty pratique uma redução fenomenológica, esta não pode ser entendida como equivalente à redução transcendental-fenomenológica de Husserl. Como vamos mostrar, esta tese pode ser comprovada pelo próprio texto da Fenomenologia da percepção. Antecipando um pouco o que vamos expor detalhadamente mais abaixo, podemos dizer que Merleau-Ponty vê a redução de Husserl, pelo menos na sua última forma, a da Krisis, como sendo realizada em dois passos. O primeiro consistiria, para encurtar de razões, num retorno do mundo do senso comum e da ciência ao mundo da vida (Lebenswelt). Veremos que é a redução fenomenológica como redução ao mundo da vida que Merleau-Ponty aceita e pretende praticar (embora a forma em que o faz difira significativamente da que é apresentada por Husserl na Krisis). Merleau-Ponty estava, no entanto, ciente de que a redução husserliana envolve muito mais do que a redução ao Lebenswelt. Por exemplo, ele reconhece explicitamente que, mesmo na Krisis, Husserl ainda falava da necessidade de realizar uma segunda redução, que nos reconduziria do “mundo da vida” até à vida transcendental do ego, onde o “mundo da vida” seria, por sua vez, constituído:

“Husserl, na sua última filosofia, admite que toda a reflexão deve começar por regressar à descrição do mundo vivido (Lebenswelt). Mas ele acrescenta que, por uma segunda ‘redução’, as estruturas do mundo vivido devem, por seu turno, ser reintegradas no fluxo transcendental de uma constituição universal onde todas as obscuridades do mundo seriam esclarecidas.” (PhP 423n1)

Assim, pode-se dizer, por agora, que Merleau-Ponty aceita a redução fenomenológica husserliana na medida em que esta é entendida exclusivamente como uma redução ao “mundo da vida” (Lebenswelt ou monde vécu). Mas que tipo de procedimento está envolvido nesta redução ao mundo da vida aos olhos de Merleau-Ponty? Em lugar de “pôr em suspenso” a crença na existência do mundo, esta redução envolve, antes, pôr em suspenso uma determinada versão daquilo em que o mundo consiste – uma versão que tende silenciosamente a ser pressuposta no modo como quer o senso comum quer a atitude

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Abstrairemos aqui da distinção entre a epoché como suspensão da crença na existência do mundo e a redução fenomenológica propriamente dita como uma redução à esfera do ego transcendental. Apesar de ela se encontrar em Husserl (ver, por exemplo, Krisis 154). Esta distinção não joga nenhum papel relevante na leitura de Merleau-Ponty que aqui apresentamos.

científica vêem o mundo e correlativamente o acesso a ele (a percepção).4 Para ser breve, pode-se dizer que a versão do mundo que Merleau-Ponty pretende “pôr em suspenso” consiste na ideia de que o mundo é totalmente determinado e composto por partes atómicas em relações estritamente causais umas com as outras e de que o corpo percipiente é ele próprio apenas mais um objecto entre objectos. É esta imagem do mundo que a “Introdução” pretende pôr em causa sob o título de o “preconceito do mundo”.

III De acordo com Merleau-Ponty, a imagem da realidade que descrevemos brevemente no final da secção anterior é tão evidente que é partilhada por sistemas de pensamento aparentemente antagónicos. Segundo o filósofo francês, estes sistemas podem ser divididos em dois grandes grupos: os empiristas e os intelectualistas. Por conseguinte, as primeiras duas secções da Fenomenologia da percepção focam-se nos mecanismos em que os empiristas habitualmente se baseiam para explicar a nossa percepção do mundo – trata-se de fenómenos como a “sensação” (primeiro capítulo da “Introdução”), a “associação de ideias” e a “projecção de memórias” (segundo capítulo da “Introdução”). Um breve olhar sobre estes tópicos é suficiente para se perceber que o que está em causa nestes capítulos é, antes de mais, teorias empiristas da percepção. Merleau-Ponty pensa que há uma dialéctica interna entre estes diferentes “mecanismos” de tal modo que, por exemplo, a “associação de ideias” só entra em jogo para acudir o falhanço da noção de “sensação” para dar conta do fenómeno da percepção. Assim também, os fenómenos associados às teorias intelectualistas da percepção como a “atenção” e o “juízo” entram em cena para remediar o falhanço das teorias empiristas da percepção. Por outras palavras, Merleau-Ponty defende implicitamente que o intelectualismo é uma posição a que se chega dado o falhanço do empirismo para explicar a percepção. Todavia, a verdadeira tese de fundo que atravessa os três primeiros capítulos da “Introdução” é que há um pressuposto de fundo comum quer ao empirismo quer ao intelectualismo. É a este pressuposto que Merleau-Ponty chama o “preconceito do mundo” (préjugé du monde). A “Introdução” realiza uma redução fenomenológica na medida em que serve precisamente para pôr em causa este “preconceito”. Na última secção, dissemos que o “preconceito do mundo” consistia numa determinada concepção do mundo e de nós próprios na medida em que temos acesso a ele. A este respeito, a diferença entre o empirismo e o intelectualismo reside apenas no modo como cada um explica a nossa relação com mundo dada esta ontologia implícita. Para os empiristas, o mundo existe fora do organismo e independentemente da nossa percepção dele. O seu esforço consiste em explicar o nosso acesso ao mundo a partir do pretenso facto de que os objectos agem causalmente sobre os órgãos dos sentidos. Os sistemas intelectualistas, pelo contrário, nascem precisamente quando se começa a pôr em causa a ideia de que o mundo tem uma existência independente da nossa cognição. Estes sistemas procuram explicar a nossa consciência do mundo como um produto da actividade constitutiva do sujeito. Deve-se referir que Merleau-Ponty tende a considerar aquela que ele via como sendo a segunda fase da obra 4

Isto mostra também que já a Fenomenologia da percepção, e não só o Visível e o invisível, envolve, para além de teses epistemológicas, teses ontológicas.

de Husserl, a correspondente às Ideen I, como intelectualista neste sentido. Como referimos, Merleau-Ponty mantém uma atitude ambígua relativamente à putativa terceira fase da obra de Husserl, a da Krisis. Por um lado, esta última mostra Husserl a esboçar uma forma nãointelectualista de redução fenomenológica (a redução ao “mundo da vida”), sem que no entanto tenha abdicado da ideia de uma redução ao domínio da consciência transcendental que implica a suspensão da crença na existência do mundo. Como é fácil de adivinhar a partir do que foi dito, o primeiro passo da redução fenomenológica merleau-pontyana consiste precisamente na crítica à noção de sensação. É, aliás, a partir desta crítica que todos os outros conceitos, introduzidos em primeiro lugar pelo empirismo e depois pelo intelectualismo, são derivados. Assim, uma boa parte da redução fenomenológica de Merleau-Ponty tem como ponto de partida as teses empiristas, seguidas das intelectualistas, até chegar à posição que eventualmente constitui uma superação daquela oposição. É a crítica da sensação que, levada ao seu termo, culmina numa redução ao que Merleau-Ponty designa como “campo fenomenal”, que, como iremos ver, é equivalente ao Lebenswelt husserliano.5

IV É precisamente com a crítica à noção de sensação que se inicia a parte introdutória da Fenomenologia da percepção. Como foi dito, a sequência de capítulos introdutórios apresenta uma progressão dialéctica que faz lembrar a Fenomenologia do espírito de Hegel. Assim, a sensação é o processo cognitivo a ser considerado antes de todos os outros dado que parece ser “imediato e claro” (PhP 25), ainda que na verdade se trate da “mais confusa das noções” (ibidem). É precisamente o falhanço da sensação como processo que pudesse dar conta do fenómeno perceptivo tal como este se apresenta para nós que leva Merleau-Ponty a passar à “associação de ideias” e assim por aí adiante. Aqui não vamos poder entrar em todos os detalhes da crítica da sensação. Bastar-nos-á demonstrar que a crítica da sensação – que inclui, no seu sentido mais lato, toda a progressão das secções introdutórias, isto é, a crítica da associação de ideias, do juízo, etc. – nos conduz ao ponto de vista fenomenológico e cumpre as mesmas funções de entrada nele que a “redução fenomenológica” cumpria no sistema husserliano. A crítica do empirismo toma a forma de uma crítica da sensação porque, como vamos ver, o princípio último de todo o empirismo é a ideia de que os perceptos são constituídos por componentes atómicas a que se chama qualidades ou sensações conforme a dimensão que se quer realçar, a subjectiva ou a objectiva respectivamente. Por conseguinte, as sensações seriam percepções atómicas a partir das quais seriam “construídas” todas as percepções mais complexas. A redução dos perceptos às sensações resulta do facto de os empiristas considerarem que a percepção é o produto da acção causal do mundo exterior sobre o nosso organismo, em particular sobre os órgãos dos sentidos. Por este motivo, o empirismo está,

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Neste ponto afastamo-nos da interpretação de Romdehn-Romluc. Romdehn-Romluc (2011: 23) distingue o campo fenomenal do Lebenswelt, procedimento para o qual não vemos nenhum fundamento no texto de Merleau-Ponty.

segundo Merleau-Ponty, comprometido com a chamada “hipótese de constância” (PhP 30). Esta é a hipótese de acordo com a qual a cada percepto atómico, para cada sensação, corresponde uma determinada “impressão” nos órgãos dos sentidos. Por exemplo, para cada ponto da retina corresponderia um percepto visual atómico. Contra isto Merleau-Ponty defende que a ideia de “percepto atómico” é uma mera construção teórica e “não corresponde a nada na nossa experiência” (PhP 25). Se existissem perceptos atómicos, cada um deles seria um termo absoluto sem nenhuma relação com os outros. O mais simples percepto que se possa imaginar envolve já uma relação com outros, de tal modo que nunca é absolutamente simples. Além disso, para Merleau-Ponty, a percepção não é nunca coincidência absoluta com o percepcionado, como seria o caso se fosse constituída por sensações. A percepção é, nos termos de Merleau-Ponty, “intencional”, isto é, o seu objecto “significa” sempre alguma coisa. Por outras palavras, o correlato da percepção é sempre um todo perceptivo cujo sentido é irredutível às suas partes. (Este é, aliás, segundo MerleauPonty, o grande ensinamento da psicologia da Gestalt). Nunca se dá o caso de estarmos confrontados com puras sensações sem que estas se refiram a um todo do qual façam parte e de cujo sentido dependem – motivo pelo qual nunca há um branco que não seja o branco da parede, da mesa, do carro, etc. Em geral, pode-se dizer que a estrutura fenomenológica mais geral da percepção é aquela que diz respeito à distinção entre figura e fundo (também chamados, em contexto fenomenológico, tema e horizonte6 respectivamente). Segundo Merleau-Ponty trata-se de um a priori da percepção (PhP 26). Toda a percepção exibe esta distinção estrutural, o que impede que a noção de sensação tenha algum papel a desempenhar numa teoria da percepção. A noção de sensação resulta, como já dissemos, da “hipótese de constância”, isto é, de se atribuir à percepção as propriedades dos seus objectos – neste caso, o facto de sabermos que os objectos da percepção são feitos de partes leva-nos a tratar a percepção como se esta fosse também composta por partes tal como os objectos no espaço. Esta confusão entre a percepção e o seu objecto é também aquilo a que Merleau-Ponty chama “erro de experiência” (PhP 27). Este consiste no facto de “pressupormos imediatamente na nossa consciência das coisas o que sabemos estar nas coisas. Construímos a percepção por intermédio do percepcionado. E como o percepcionado, ele próprio, não é acessível a não ser através da percepção, acabamos por não compreender nem um nem outro” (ibidem). Por exemplo, ao contrário dos objectos que percepcionamos pela vista, o campo visual não é feito de partes exteriores umas às outras, como já vimos. De novo, se tudo o que percepcionamos das coisas fosse feito de sensações, veríamos, de cada vez, apenas a parte do mundo que, a cada momento, é reflectida na nossa retina. Mas o que percepcionamos com os olhos é sempre visto como sendo parte de qualquer coisa que o excede. A nossa percepção é sempre acompanhada por um horizonte no qual o que estamos correntemente a percepcionar se encontra localizado. Nada disto seria possível se a nossa percepção resultasse meramente de um dado puro. Fenómenos como os de horizonte, que acompanha incessantemente a percepção, servem para mostrar que uma das propriedades do campo perceptivo é o seu carácter ambíguo e indeterminado. Ao contrário do que sabemos ser o caso com os objectos, as coisas 6

Sobre as noções de figura, fundo, tema e horizonte ver Dillon 1988: 66ss..

que aparecem no campo perceptivo podem exibir propriedades indeterminadas ou até mesmo contraditórias. O campo perceptivo não é totalmente determinado. Como diz Merleau-Ponty, “é preciso reconhecer o indeterminado como um fenómeno positivo” (PhP 28). Para apresentar um exemplo que torne isto evidente, Merleau-Ponty recorre ao exemplo das rectas de Müller-Lyer (PhP 28). Como pode ser visto na imagem em baixo, os segmentos de recta parecem ser de comprimentos diferentes, embora na realidade possuam o mesmo comprimento:

Merleau-Ponty comenta que os dois segmentos de recta da ilusão de Müller-Lyer “não são nem iguais nem desiguais, é no mundo objecto que essa alternativa se impõe” (PhP 28). Isto é, as linhas têm igual comprimento apenas num mundo considerado “em si mesmo”, do ponto de vista objectivo. No campo perceptivo, os comprimentos não são nunca totalmente determinados, muito menos absolutos: “Temos de reconhecer o indeterminado como um fenómeno positivo” (PhP 28). De tudo isto resulta que a sensação, longe de ser um ingrediente genuíno da percepção, é uma construção científica e teórica relativamente recente. É uma abstracção criada com o intuito de explicar o fenómeno da percepção:

“A noção clássica de sensação não era um conceito de reflexão, mas um produto tardio do pensamento voltado para os objectos, o termo último da representação do mundo, o mais afastado da fonte constitutiva e por essa razão o menos claro.” (PhP 33)

A sensação deve a sua origem à assunção filosófica implícita de que a experiência, os fenómenos, têm de estar estruturados do mesmo modo que os seus objectos. A ciência faz dos perceptos coisas e aplica-lhes categorias que são apropriadas apenas às últimas. No entanto, de acordo com Merleau-Ponty, nenhuma das categorias que aplicamos às coisas intramundanas têm sentido quando aplicadas à nossa percepção delas. As teorias da sensação constroem objectos que, ao contrário do que se encontra realmente na percepção, estão isentos de ambiguidade. As “coisas reais” no “mundo

objectivo” ou são ou não são. As “coisas” do “mundo perceptivo” possuem um modo de presença peculiar não subsumível pelas categorias lógicas do ser e do não ser. Por exemplo, no “mundo percepcionado”, o fundo determina a qualidade que a figura adquire no campo perceptivo (como se vê no exemplo das linhas de Müller-Lyer). É necessário fazer referência aqui a algo que pode gerar confusão no leitor. Embora acima tenhamos contrastado as coisas com a nossa percepção delas e agora falemos de um mundo percepcionado distinto de um mundo objectivo, não se trata de duas realidades necessariamente diferentes. O que é passível de gerar confusão é que, segundo MerleauPonty, o mundo objectivo constitui-se a partir do mundo percepcionado. Na verdade, embora as coisas me apareçam na percepção como indeterminadas, elas tendem para a determinação à medida em que a nossa atenção se foca nelas, isto é, à medida em que são convertidas em figura por contraposição ao que se encontra no fundo. A própria percepção consiste neste movimento do indeterminado ao determinado. Ora, este movimento, ínsito na percepção, é simultaneamente um movimento de objectivação. O objecto abstracto e completamente determinado da ciência corresponde ao resultado do processo perceptivo, em que se abstrai precisamente do facto de ser resultado de um processo. No entanto, às coisas no “curso do seu aparecer”, às coisas tais como elas nos aparecem no processo perceptivo, não se podem aplicar as mesmas categorias que se aplicam às coisas tais como são tomadas em abstracto. Em suma, as teorias empiristas, que recorrem à noção de sensação, pressupõem uma determinada concepção de ser e correlativamente de conhecimento que não é apropriada para dar conta do modo peculiar de presença dos perceptos:

“A teoria da sensação, que compõe todo o saber de determinadas qualidades, constrói-nos objectos esvaziados de toda a equivocidade, puros, absolutos, que são mais o ideal de conhecimento do que os seus temas efectivos. Ela só se aplica à superestrutura tardia da consciência.” (PhP 34)

A referida concepção de ser, pressuposta pelas teorias empiristas, isto é, a sua ontologia implícita, corresponde precisamente ao “preconceito do mundo”. Segundo o filósofo francês, quer a ciência quer a filosofia partilham do “preconceito do mundo”. Como já foi referido acima, esta é a ideia segundo a qual o mundo tem uma existência em si e é consequentemente completamente determinado – o que é, é, o que não é, não é, não havendo espaço para o modo de ser a que Merleau-Ponty chama ambíguo. Note-se que o “preconceito do mundo” não é apenas o preconceito de que o mundo existe independentemente do sujeito, mas também de que existe independentemente de qualquer perspectiva. Esta última cláusula é relevante porque, como veremos, as filosofias de cariz intelectualista e idealista partilham do preconceito do mundo tanto quanto as empiristas. Embora as primeiras abandonem o postulado de que o mundo existe em si independentemente do sujeito, não abandonam a ideia de que este sujeito vê o mundo de “lado nenhum”. A “redução fenomenológica” de Merleau-Ponty consistirá, portanto, em pôr em causa o “preconceito do mundo” e dessa forma superar quer o empirismo quer o intelectualismo.

V Depois de ter criticado a noção de sensação, Merleau-Ponty passa à análise da “associação de ideias”. A “associação de ideias” é o mecanismo encontrado pelo empirismo para explicar o modo como os perceptos são construídos a partir de sensações, pois sem ela teríamos contacto apenas com puros átomos de percepção. O recurso à associação de ideias resulta, pois, do reconhecimento por parte dos empiristas que o correlato imediato da percepção não são puras sensações, mas sim determinadas totalidades de sentido perceptivas, e da necessidade de explicar como estas são formadas a partir de sensações elementares. O recurso à associação de ideias pode ser traduzido na seguinte ideia: quando duas ou mais sensações ocorrem frequentemente em conjunto, associamo-las, quer dizer, passamos a vê-las como fazendo parte do mesmo todo perceptivo. No entanto, a estratégia empirista falha de novo. De acordo com Merleau-Ponty, a associação de ideias cria apenas relações extrínsecas entre sensações, ao passo que as partes dos todos perceptivos exibem uma conexão muito mais íntima (interna) do que aquela que é possível criar através da associação. O argumento principal de Merleau-Ponty contra a “associação de ideias” (e como veremos também contra a “projecção de memórias”) é muito similar ao argumento de Kant contra o empirismo na “Dedução Transcendental das Categorias” da primeiro edição da Crítica da razão pura (Kant, 1974, A 100ss.) Isto não significa, contudo, que Merleau-Ponty seja um kantiano. Na verdade, para além de criticar o empirismo, Merleau-Ponty argumenta também contra o que ele acredita ser o intelectualismo de Kant. Como Kant já havia mostrado, a teoria da associação pressupõe aquilo que quer explicar. A associação é incapaz de produzir a unidade que os objectos da percepção possuem. É apenas porque já percepcionamos totalidades de sentido, a que correspondem os objectos quotidianos da percepção, que podemos começar a procurar analiticamente aquilo que possa dar unidade às suas partes, por exemplo, a contiguidade ou a semelhança entre elas. É preciso, no entanto, ter em mente que Merleau-Ponty não nega o fenómeno da “associação”. Ao invés, ele pensa que a associação chega sempre tarde demais para desempenhar a função que era suposto desempenhar: em lugar de produzir totalidades perceptivas de sentido, a associação sempre já as pressupõe. É também isto que se pode traduzir pela ideia de que a associação é um procedimento analítico: temos primeiro que percepcionar totalidades de sentido antes de começar a procurar pela relação entre as suas partes, por exemplo, contiguidade espacial ou temporal, semelhança, etc. Depois de rejeitar a ideia de que a associação de ideias é capaz de explicar a nossa percepção de totalidades sintéticas, Merleau-Ponty passa a considerar aquela que é apenas uma modalidade da associação de ideias. Trata-se da chamada “projecção de memórias”7. Esta consiste na tentativa de explicar o facto de que, a cada instante, percepcionamos muito mais do que está efectivamente dado aos sentidos, recorrendo ao que foi dado em percepções passadas. Os dados sensoriais passados seriam projectados para completar os presentes, 7

Nomeadamente, a “projecção de memórias” é a dimensão da associação de ideias que diz respeito exclusivamente ao passado.

constituindo um percepto total. Merleau-Ponty dá como exemplo deste processo o acto de ler – sabe-se que os nossos olhos não vêem de facto os caracteres escritos numa página – ao projectar automaticamente as memórias passadas das letras que estou presentemente a ver, poder-se-ia explicar que consiga ler sem presentemente precisar de ver os caracteres na sua totalidade. Como já dissemos, a projecção de memórias é, de facto, apenas uma instância particular da associação de ideias porque não introduz nenhum novo princípio de unificação das sensações dispersas – basta lembrarmo-nos dos exemplos clássicos dos empiristas – por exemplo, uma voz familiar traz-me à mente imediatamente o rosto e o nome da pessoa. Por conseguinte, a mesma objecção que se aplicava à associação de ideias, aplica-se mutatis mutandi à projecção de memórias. A memória só pode contribuir para a percepção porque somos, antes de mais, capazes de reconhecer o sentido imanente do percepto. Caso contrário, não saberíamos que memórias teriam de ser evocadas a propósito de cada percepto. Como se pode inferir do que foi dito, Merleau-Ponty não nega que a memória, tal como a associação de ideias, tenha um papel a desempenhar na percepção. A memória é de facto indispensável à percepção. A este respeito, o problema é o de saber que tipo de presença a percepção passada tem na presente e de que maneira contribui para ela. Segundo Merleau-Ponty, na esteira de Husserl, cada presente aparece acompanhado de um horizonte de passado imediato. Assim, o tipo de memória que contribui para a percepção é aquela que Husserl chamou “memória primária” ou “retenção”, que, como se sabe, é distinta da chamada “rememoração”, isto é, a evocação explícita de um evento passado como passado (Husserl, 1966, §§12, 16, 19). O passado está, pois, presente na percepção como um horizonte implícito. É apenas devido a esta presença implícita que somos capazes de dirigir a nossa atenção para o passado e, como diz Merleau-Ponty, “reabri-lo” (PhP 46). Este tipo de memória só desempenha um papel na percepção quando não sou capaz de identificar o percepto e faço uso explícito da memória para estabelecer a sua identidade.

VI Depois da “sensação”, da “associação de ideias” e da “projecção de memórias”, Merleau-Ponty volta-se, no terceiro capítulo da “Introdução”, para os fenómenos da atenção e do juízo. Neste ponto, o alvo da crítica já não são apenas as teorias empiristas da percepção, mas também as intelectualistas. Estas últimas conduzem a uma concepção do objecto da percepção como construído pela mente e pelas suas operações. As teorias intelectualistas da percepção estão confrontadas com o mesmo problema que as empiristas: como dar conta do sentido que aparece na percepção. Só que a resposta intelectualista a este problema parte exactamente dos mesmos pressupostos que a resposta empirista (o modelo intelectualista surge, aliás, segundo Merleau-Ponty, precisamente como tentativa de remediar o falhanço do empirismo). Por outras palavras, o intelectualismo entende este problema como o problema de saber como se compõem sensações de forma a gerar totalidades de sentido perceptivo. O intelectualismo explica o facto de percepcionarmos directamente coisas providas de sentido argumentando que é, antes de mais, a actividade intelectual de síntese do sujeito que lhes dá sentido. As Gestalten, as totalidades de sentido perceptivas seriam, portanto, produzidas pelo próprio intelecto. Este possuiria a “lei da sua constituição” (PhP 249). Como já foi dito, Merleau-Ponty vê as teorias intelectualistas da percepção como resultando de uma crítica

interna das teorias empiristas. A despeito disto, veremos como, em última análise, as teorias intelectualistas da percepção partilham a mesma ontologia implícita que as empiristas, isto é, partilham do “preconceito do mundo”. Embora, como foi dito, o intelectualismo partilhe, no fundamental, a mesma ontologia que o empirismo, existe uma diferença substancial entre os dois sistemas de pensamento. Ao passo que o empirismo deseja suprimir a subjectividade a todo o custo, o intelectualismo tenta explicá-lo através da sua recondução ao poder constitutivo do sujeito. Este sujeito, para o qual o mundo existe, é entendido pelo intelectualismo como um sujeito transcendental, um sujeito que não faz, ele próprio, parte do mundo que constitui. Merleau-Ponty partilha a posição intelectualista na medida em que rejeita a ideia empirista de que os perceptos não possuem qualquer sentido superveniente à sensação e se podem reduzir a “amontoados” de sensações. Isto é, Merleau-Ponty está próximo do sistema de pensamento que caracteriza como intelectualista por reconhecer o fenómeno do sentido como irredutível (ao contrário do empirismo que o nega). Apesar disso, como foi dito, os intelectualistas reconduzem o sentido a sínteses subjectivas de carácter intelectual. De acordo com esta concepção, o sujeito reconhece coisas providas de sentido apenas porque foi ele que o pôs lá em primeiro lugar. Ao contrário dos intelectualistas, Merleau-Ponty reconhece um sentido imanente aos perceptos. O sentido que estes apresentam não provém de nós, pelo menos de nós entendidos como sujeitos transcendentais (mas sim como corpos-sujeito, como veremos no final). Aliás, a este respeito, a grande diferença entre Merleau-Ponty e os intelectualistas é que enquanto estes últimos julgam possuir o “segredo” (PhP 64) mais íntimo das coisas e tê-las, portanto, diante de si em total transparência, para o primeiro, as coisas e o sentido que possam exibir permanecem fundamentalmente opacos. Não estamos, portanto, em condições de dar uma explicação última, uma elucidação completa do sentido com que as coisas nos aparecem na percepção, ainda que o reconheçamos. Este é, aliás, um paradoxo a que Merleau-Ponty volta sempre ao longo de A fenomenologia da percepção. Depois desta breve introdução da ideia de intelectualismo e da sua relação quer com o empirismo quer com a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty, voltemos à sucessão de processos cognitivos que Merleau-Ponty estuda na “Introdução”. Como já sucedia com a “associação de ideias” e a “projecção de memórias”, o empirismo usa a noção de “atenção” para tentar explicar a diferença entre aquilo que alegadamente nos é dado pela sensação e o que, de facto, percepcionamos. O argumento empirista é que, se prestássemos atenção ao que realmente percepcionamos, descobriríamos os elementos últimos da consciência, isto é, as sensações e poderíamos confirmar a “hipótese de constância”8. Com efeito, para os empiristas, a atenção é um poder universal e incondicionado que é capaz de iluminar qualquer conteúdo que seja. No entanto, como Merleau-Ponty muito bem aponta, se aceitarmos o quadro em que o empirismo se move, não haveria nenhum motivo para “prestar atenção” ao que quer que seja. Visto que para o empirismo não há espaço para a 8

Refira-se, a este respeito, que, de acordo com Merleau-Ponty, a “hipótese de constância” não pode ser refutada empiricamente. O empirismo pode sempre, em condições artificiais, pôr em marcha determinadas experiências que a parecem confirmar (PhP 31n2).

ambiguidade e os conteúdos são todos plenamente determinados, o acto de “prestar atenção” teria de ter origem numa decisão não motivada do sujeito. Isto implica também, segundo Merleau-Ponty, que os novos conteúdos revelados pela atenção estariam apenas exteriormente ligados aos anteriores. Uma vez que, de acordo com este modelo, a atenção não pode ser despertada por um percepto, a relação entre o resultado do acto de atenção e o percepto anterior seria meramente contingente. Não há modo de assegurar a identidade do objecto antes e depois do acto de atenção se focar nele. Para o intelectualismo, por outro lado, a função da atenção é a de revelar a verdade implícita do objecto, isto é, de o pôr perante nós em transparência total. Por esta razão, ao contrário do empirismo, o intelectualismo não tem dificuldade em dar conta da identidade do objecto antes e depois do acto de atenção se debruçar sobre ele. Isto porque, para o intelectualismo, a relação entre o percepto que precede e convoca o acto de atenção e o que lhe sucede é intrínseca ou interna. Segundo a descrição intelectualista do acto de atenção, este é entendido como o revelar do próprio objecto. Mas esta descrição contradiz os próprios princípios do intelectualismo. Se a consciência constitui o objecto, se o último é o resultado dos meu poder de constituição, porque seria necessário o acto de atenção para revelar a verdade do objecto (e a de mim próprio como sujeito transcendental)? Vemos que o acto de atenção se torna supérfluo de acordo com os próprios pressupostos da abordagem intelectualista. Para um objecto atrair a atenção sobre ele, tem de se dar, pelo menos até certo ponto, como indeterminado. O acto de atenção pressupõe que o percepto pode despertar a minha atenção, pode motivar-me a “olhar mais de perto”. Nem o empirismo nem o intelectualismo conseguem dar conta deste processo. Isto é, não conseguem dar conta do facto de haver uma “intenção ainda ‘vazia’, mas já determinada” (PhP 52). Neste contexto, Merleau-Ponty chega a referir-se implicitamente à famosa passagem do Ménon de Platão – não posso começar a procurar pelas coisas que já conheço porque já as conheço; por outro lado, não posso procurar pelas que não conheço, porque não as conheço. De acordo com Merleau-Ponty, este problema resulta de um falso pressuposto ontológico:

“O empirismo não vê que temos necessidade de saber o que procuramos, caso contrário não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que temos necessidade de ignorar o que estamos à procura, caso contrário, de novo, não o procuraríamos. Eles coincidem no facto de nem um nem o outro apreenderem a consciência no processo de aprender [en train de apprendre], não tem em conta essa ignorância circunscrita, essa intenção ainda “vazia”, mas já determinada que é a própria atenção. (PhP 52)

Contrariamente ao que o empirismo e o intelectualismo defendem, a atenção é, para Merleau-Ponty, um acto criativo. Isto significa que a atenção transcende tudo o que nos é dado num determinado momento. Por outras palavras, a atenção não se limita a iluminar o aquilo que já está pré-dado a cada momento, como pensavam empiristas e intelectualistas. Em primeiro lugar, a atenção pressupõe a constituição de um “horizonte”, de um “fundo”, ou de

um “campo”, – tudo expressões que neste caso são sinónimas – dentro do qual possa dirigir o seu foco. De acordo com Merleau-Ponty, o horizonte é precisamente o que garante a identidade do objecto na mudança de foco da atenção (um problema que os empiristas não podiam explicar, visto que para eles não havia nenhuma conexão intrínseca entre a consciência anterior e posterior ao acto de atenção):

“O horizonte é, portanto, o que assegura a identidade do objecto no curso da exploração, ele é o correlato do poder imediato que o meu olhar guarda sobre os objectos que acabou de percorrer e o que ele tem já sobre os novos detalhes que vai descobrir.” (PhP 96)

Um dos exemplos que Merleau-Ponty dá para ilustrar a noção de horizonte diz respeito ao reconhecimento de cores por parte das crianças. De acordo com os estudos empíricos conhecidos do fenomenológo francês, as crianças deveriam ser capazes de discriminar cores diferentes antes de atingirem o nono mês de idade, embora não o consigam ainda de facto (PhP 54). Antes de serem capazes de distinguir as cores, as crianças adquirem primeiro a capacidade de fazer distinções mais básicas como aquela entre “área colorida” e “área não-colorida” e entre “tons quentes” e “tons frios”. Por outras palavras, por exemplo, a percepção de áreas coloridas por contraposição a áreas não-coloridas abre um horizonte ainda indeterminado no interior do qual são possíveis distinções mais “finas” (como a distinção entre tons quentes e frios). O acto de atenção só é inteligível sob o pressuposto do fenómeno do horizonte. Como já vimos, o acto de atenção tem de ser um acto motivado. Tem de haver qualquer coisa no modo como uma determinada coisa se me oferece que me desperte a atenção. O quadro conceptual em que quer o intelectualismo quer o empirismo se movem não permite explicar o carácter motivado do acto de atenção. O carácter de indeterminação do horizonte, tanto externo como interno, é precisamente o que explica que qualquer coisa possa solicitar a minha atenção, pois me promete mais dela. Tendo como pressuposto a constituição prévia de um determinado horizonte, o procedimento através do qual o acto de atenção propriamente dito é realizado consiste em destacar uma determinada característica ou parte do horizonte que ainda estava escondida, isto é, pô-la no centro da consciência, torná-la tema ou figura. (Deve-se ter em mente que os horizontes de que Merleau-Ponty fala não são apenas perceptivos. Por exemplo, como vimos, a distinção entre uma área colorida e não-colorida pode funcionar como horizonte. Uma determinada língua pode funcionar como horizonte também. Horizonte é, no fundo, o “solo” em que a consciência ou o pensamento se move.)

“Prestar atenção não é mais meramente clarificar dados pré-existentes, é antes realizar neles uma articulação nova, tomando-os como figuras. Eles estão pré-

formados apenas como horizontes, eles constituem verdadeiramente novas regiões no mundo total.” (PhP 54)

O produto ou resultado dos actos de atenção, o seu adquirido, pode ulteriormente servir de fundo a novos actos de atenção. É sempre possível estabelecer novas “distinções” num determinado “campo”. Apenas de modo retrospectivo, o produto dos actos de atenção aparece-nos como já contido no que até aí eram apenas os seus horizontes indeterminados, da mesma forma que a distinção entre cores aparece-nos como pré-existindo a nossa capacidade de as distinguir.9 Em suma, Merleau-Ponty mostra que a atenção é um fenómeno que não é susceptível de ser explicado nem através de princípios intelectualistas nem empiristas. Para além disso, o fenómeno da atenção, se correctamente compreendido, mostra que a ontologia implícita do intelectualismo e do empirismo está errada. Por essa razão, a atenção pode ser vista como um fenómeno que é paradigmático na revelação da estrutura do mundo da percepção. O estabelecimento de uma nova ontologia fundada no modo como as coisas nos aparecem no nosso campo perceptivo é, do nosso ponto de vista, um dos temas mais recorrentes da Fenomenologia da percepção como um todo. (Embora Merleau-Ponty apenas formule esta ontologia de forma explícita em O visível e o invisível, a Fenomenologia da percepção já aponta nessa direcção). Como referimos, a descrição que Merleau-Ponty faz do acto de atenção tem como função iluminar a peculiar estrutura do mundo da percepção. Actos de atenção só podem ter lugar se 1) o mundo da percepção for, até certo ponto, indeterminado e eu não estiver em completa posse dele e 2) se o mundo da percepção não for um todo construído a partir das suas partes, mas antes um todo que funciona como o horizonte primordial de sentido que vai sendo determinado progressivamente. Mas o fenómeno da atenção serve também para iluminar a estrutura da própria percepção. De um modo meramente indicativo, ela pode ser descrita do seguinte modo. Através da percepção encontramo-nos sempre já lançados num mundo. Vimos já que as teorias intelectualistas e empiristas são incapazes de explicar o modo que estamos abertos a um mundo (e isto quer dizer também, para Merleau-Ponty, o modo como estamos abertos ao sentido). Viver num mundo de sentido significa viver no quadro de determinados horizontes já constituídos na nossa história perceptiva. Estes horizontes não se encontram perante nós em transparência total. Eles pressupõem um horizonte primordial, o mundo como horizonte de todos os horizontes, e apontam para um passado primordial que nunca poderá ser completamente explicitado através da reflexão, “um passado original, um passado que nunca foi um presente” (PhP 289). A constituição deste horizonte primordial nunca pode ser desfeita, e esta impossibilidade é correlativa à impossibilidade de completar a redução. A “tese do mundo” tem qualquer coisa de irracional e opaco, nunca pode ser totalmente “recuperada”

9

Esta ideia desempenha um papel muito importante na análise da linguagem, da expressão e da verdade de Merleau-Ponty.

pelo acto reflexivo, ao contrário do que Husserl ainda pensava nas Ideen I. Por outro lado, não nos limitamos a arrastar atrás de nós a nossa história perceptiva. Através da percepção presente reconfiguramos continuamente os nossos horizontes perceptivos passados. Deste modo, a percepção não se limita a reproduzir os sentidos passados, mas está continuamente a criar sentidos novos a partir dos antigos.10 Este é aliás um dos pontos que está presente na ideia de que a atenção é “criativa”. Depois de analisar o fenómeno da atenção, Merleau-Ponty passa à análise do juízo. Este adquire relevância na medida em que a explicação empirista de como é possível a percepção a partir da sensação pura falha. É por isso que Merleau-Ponty diz que o “juízo é frequentemente introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar a percepção possível” (PhP 56). Isto significa também que o intelectualismo ainda mantém do empirismo a ideia de “sensação”, de “puro dado”, a partir do qual a percepção tem de ser construída. Deste modo, a “percepção torna-se uma ‘interpretação’ dos signos que a sensibilidade fornece de acordo com os estímulos corpóreos, uma ‘hipótese’ que o espírito constrói para ‘explicar a si próprio as suas impressões’” (PhP 58). Uma das objecções que Merleau-Ponty levanta contra o intelectualismo é precisamente a de que é contra-intuitivo. Como resultado da posição intelectualista, a percepção sensível perderia todo o sentido que tem para nós. Percepcionar seria, na verdade, ajuizar. O senso comum estaria totalmente iludido acerca de si mesmo quando pensa estar a percepcionar através dos sentidos. Do mesmo modo, toda a ilusão perceptiva seria um juízo falso. Mas se é assim, pergunta Merleau-Ponty (PhP 59), como poderíamos distinguir entre o que é real ou ilusório? Que critérios teríamos para distinguir entre a percepção falsa e verdadeira? Considerado em si mesmo, em abstracção do juízo, o percepto não teria qualquer tipo de sentido, não seria nem verdadeiro nem falso. Contrariamente ao intelectualismo, Merleau-Ponty defende que só é possível distinguir entre percepções verdadeiras e ilusórias e corrigir as últimas porque o percepto em si mesmo apresenta-se dotado de um sentido intrínseco (não é necessário o juízo para lhe dar sentido). O juízo é “apenas a expressão facultativa” (PhP 60) desse sentido. Mas o intelectualismo não se fica por aqui. Os problemas levantados pela concepção da percepção como juízo levam-no a abandonar a ideia de que o juízo se baseia num suposto dado anterior a ele. É neste ponto que o intelectualismo se torna verdadeiramente um idealismo. Com efeito, com o abandono da noção de sensação, já não há nada para o intelecto interpretar ou ajuizar. O objecto passa a ser concebido como uma criação do intelecto, e a percepção, como o “pensamento de percepção”, como uma “intelecção confusa” (PhP 62). A consciência é tomada como totalmente transparente para si própria e deixa de ser vista como ocupando um ponto de vista e portanto como correlativa ao corpo. Não obstante esta radicalização do intelectualismo, Merleau-Ponty chama a atenção para o facto de o mundo do intelectualista manter a mesma natureza do do empirista: é o mundo completamente determinado de partes exteriores umas às outras. Como diz Merleau-Ponty, “o intelectualismo aceita como absolutamente fundadadas as ideias de ser e verdade nas quais termina e se resume o trabalho constitutivo da consciência e a sua pretensa reflexão consiste em colocar como potência no sujeito tudo o que é necessário para chegar a essas ideias” (PhP 64). Tanto o 10

Mais uma vez, esta ideia está na raiz da concepção merleau-pontyana do carácter metafórico e expressivo de toda a linguagem.

empirismo como o intelectualismo pressupõem a ideia de ser e de verdade em lugar de investigarem a sua origem ou surgimento na consciência, em lugar de fazerem uma “genealogia do ser” (PhP 81). Esta ideia de ser tem a sua origem precisamente na própria percepção. É, por isso, que o tipo de redução fenomenológica que Merleau-Ponty propõe como alternativa à redução transcendental é uma redução à camada de sentido da percepção, que corresponde, como veremos, ao “mundo da vida” husserliano. Note-se que MerleauPonty diz mesmo que não censura o intelectualismo por se servir dessa doxa originária da percepção, “mas sim por se servir dela tacitamente” (PhP 66). A este respeito, veja-se ainda o seguinte passo:

“Assim, o intelectualismo deixa a consciência numa relação de familiaridade com o ser absoluto e a própria ideia de um mundo em si subsiste como horizonte ou fio condutor da análise reflexiva. É verdade que a dúvida interrompe as afirmações explícitas relativas ao mundo, mas não muda nada nessa presença muda do mundo que se sublima no ideal da verdade absoluta” (PhP 66)

Por outras palavras, tentativas radicais de começo filosófico, como as encetadas por Descartes, que põe tudo em dúvida, são ainda “dogmáticas” para Merleau-Ponty, precisamente porque deixam ainda silenciosamente a operar o “pressuposto do mundo” ou uma determinada concepção do ser do mundo, segundo a qual este está totalmente constituído e plenamente determinado.

VII Vimos na última secção que tanto o empirismo como o intelectualismo se apoiam no que Merleau-Ponty chama a “doxa originária da percepção” (PhP 66). Como referimos, Merleau-Ponty não pretende eliminar esta doxa, mas pelo contrário considerá-la pela primeira vez como tal, isto é, como uma doxa. Esta consiste no facto de a percepção consistir num movimento evanescente que tem como terminus ad quem depor-nos no seu objecto. É a própria natureza da percepção que faz que, portanto, ela se “esqueça” a si mesma e, quando tematizada, aplique a si própria a natureza do objecto, decalcando-a. Isto tem como consequência que não só o papel “constitutivo” da percepção no aparecimento de objectos tende a ser esquecido mas também correlativamente o carácter essencialmente perspéctico do próprio mundo. A redução fenomenológica de Merleau-Ponty consiste em pôr-se em causa as noções de ser e de verdade implicadas nas noções de sensação e na “hipótese de constância”: “a crítica da hipótese da constância, conduzida ao seu termo, tem o valor de uma verdadeira ‘redução fenomenológica’” (PhP 73)11. Ora, a este respeito, o ponto de partida de MerleauPonty pode-se encontrar nos seus antecessores imediatos, os psicólogos da forma (Gestalt). Só 11

Esta é uma ideia que Merleau-Ponty vai buscar directamente a Aron Gurwitsch.

que, ainda segundo o filósofo francês, estes “geralmente não se aperceberam do alcance filosófico do seu método” (PhP 73). Tal como o intelectualismo, apesar de desembocar num idealismo radical, pressupõe ainda um determinado sentido do ser tomado de empréstimo das coisas, nomeadamente a ideia de que o ser é totalmente determinado e totalmente oposto ao conceito de ‘nada’, assim também a psicologia da forma, apesar de fazer uma crítica radical à noção de sensação, usa ainda as categorias do pensamento objectivo, situando o acontecimento perceptivo num mundo concebido ao modo da ciência da natureza12. É precisamente no facto de pôr em causa estas categorias que Merleau-Ponty pensa residir o seu tipo de redução fenomenológica. A psicologia da forma mantém ainda em funcionamento o “preconceito do mundo”. Exemplo disto é o facto de os psicólogos da forma continuarem, segundo Merleau-Ponty, a fazer uso da noção de causalidade para explicar a percepção. Em lugar desta categoria, Merleau-Ponty propõe a categoria de motivação para explicar a forma como determinados fenómenos perceptivos como a grandeza aparente, a convergência dos olhos, etc., pode motivar outros, como por exemplo a distância (PhP 74ss.). Vamos agora finalmente começar a entrever o que pode significar pôr em causa o “preconceito do mundo”. Pôr em causa o “preconceito do mundo” significa para MerleauPonty uma redução ao domínio do que designa como “campo fenomenal” (ver o título da quarta secção da “Introdução” à Fenomenologia da percepção). O campo fenomenal é também por vezes designado como monde vécu (PhP 9, 83, 85, 87, 495), tradução francesa de Lebenswelt, ou ainda “mundo da percepção” (PhP 448). A redução fenomenológica de Merleau-Ponty consiste, portanto, num retorno do mundo objectivo (ou, como diria Husserl, positivo) das ciências e do senso comum – o mundo completamente determinado e cujas partes se encontram em relações causais – de volta ao mundo pré-objectivo da percepção. Quer a atitude natural quer a atitude científica tendem a “pôr” as coisas como existindo em si mesmas e como a causa ou razão última da percepção. Isto significa que elas tendem a derivar o fenómeno da percepção da própria coisa percepcionada em lugar de a tomar como essencialmente relativa à percepção. Por essa razão, como já fizemos referência, a redução fenomenológica de Merleau-Ponty opõe-se radicalmente à tendência natural, que se encontra na própria percepção, de “objectivar” os seus fenómenos:

“O primeiro acto filosófico seria, portanto, o de regressar ao mundo vivido aquém do mundo objectivo, visto que é neste que poderemos compreender tanto o direito como os limites do mundo objectivo, de devolver à coisa a sua fisionomia concreta, aos organismos a sua maneira própria de tratar o mundo, à subjectividade a sua inerência histórica, de reencontrar os fenómenos, a camada de experiência viva através da qual os outros e as coisas nos são dados de forma imediata, o sistema “eu-outros-as-coisas” em estado nascente, de despertar a percepção e de desmanchar o artifício através do

12

“A teoria da Gestalt não vê que o atomismo psicológico não é senão um caso particular de um preconceito mais geral: o preconceito do ser determinado ou do mundo e é, por isso, que ela esquece as suas descrições mais valiosas quando ela procura dar a si própria uma estrutura teórica.” (PhP 77-78n1) Ver, ainda, a crítica à psicologia da forma em La structure du comportment (Merleau-Ponty, 1942, pp. 143ss.)

qual ela se deixa esquecer como facto e como percepção em detrimento do objecto que ela nos entrega e da tradição racional que funda.” (PhP 83-84)

É bom notar, no entanto, que os fenómenos no sentido Merleau-Pontyano não são construções mentais e o retorno aos fenómenos não é equivalente a um movimento introspectivo. De facto, a redução de Merleau-Ponty não implica de modo algum pôr em causa a crença na existência do mundo – e é neste aspecto que ela mais se distingue da redução tal como é apresentada por Husserl nas Ideen I, nas Meditações cartesianas e mesmo ainda na Krisis. O mundo fenomenal é equivalente à definição que, por exemplo, Heidegger dá de fenómeno como “o que se mostra a si mesmo em si mesmo” (2001, p. 28). Os fenómenos são, em última análise, as formas (Gestalten) da psicologia da forma, isto é, o sentido com que as coisas nos aparecem espontaneamente – por exemplo, o facto do corpo de outrem me aparecer a revelar ou expressar directamente certas emoções ou o tapete de lã cuja cor já faz adivinhar a sua textura (PhP 26-27). É este mundo pré-objectivo que se trata de (re)descobrir fenomenologicamente:

“Uma vez afastado o preconceito das sensações, uma assinatura, um rosto e um comportamento deixam de ser simples ‘dados visuais’ dos quais teríamos de procurar na nossa experiência interna a significação imanente, e o psiquismo de outrem tornase um objecto imediato como conjunto impregnado de significação imanente. De modo mais geral, é a própria noção de imediato que se encontra transformada: doravante o que é imediato não é a impressão, o objecto, que não é senão o mesmo que sujeito, mas o sentido, a estrutura, o arranjo espontâneo das partes.” (PhP 84-85)

De acordo com Merleau-Ponty, a experiência dos fenómenos envolve, portanto, o retorno à vida pré-objectiva, pré-científica da consciência. Como temos vindo a insistir, é muito importante distinguir o retorno ao “campo fenomenal” da redução fenomenológica husserliana. Como acabámos de ver, o retorno ao “campo fenomenal” não implica de nenhum modo que os fenómenos sejam dependentes da mente. Para Merleau-Ponty, tal como para os idealistas, os fenómenos são dependentes de nós, só que de nós não na medida em que somos seres mentais, mas sim corpos vividos ou corpos-sujeito. Segundo a nossa interpretação, Merleau-Ponty não se opõe tanto ao idealismo como à versão intelectualista do idealismo. O retorno aos fenómenos implica, então, suspender não a crença na existência dos objectos, mas sim a crença atemática no “preconceito do mundo”. Este é, em última análise, a crença de que as coisas e o mundo são uma soma de partes; de que a relação entre as coisas e entre estas e nós pode ser reduzida a uma causalidade mecânica; e correlativamente de que nós próprios, o corpo de cada um de nós, é, ele próprio, uma coisa entre coisas, um objecto entre objectos. Como se vê, o “preconceito do mundo” acaba por ser também um preconceito relativo ao estatuto do nosso

corpo e à sua relação com o mundo. A suspensão da crença muda no “preconceito do mundo” consiste em aceitar a primazia daquilo que aparece por contraposição a todas as construções teóricas que esquecem que o seu explanandum último é precisamente o mundo fenoménico. (Por isso, o mérito principal da psicologia da forma aos olhos de Merleau-Ponty é, como vimos, ter tornado os fenómenos, as Gestalten, no ponto de partida de toda a investigação psicológica.) A rejeição do idealismo intelectualista por parte de Merleau-Ponty implica, para o filósofo francês, que o “campo fenomenal” não se possa transformar num “campo transcendental”. Os fenómenos perceptivos, as Gestalten, não são constituídos por um “eu transcendental”. Merleau-Ponty opõe, de princípio, à redução husserliana a ideia de que o “campo fenomenal” é opaco. Reconduzir o “campo fenomenal” ao poder constitutivo do “eu transcendental” implicaria que fosse possível explicitar totalmente as Gestalten; implicaria que possuíssemos o segredo da sua constituição, isto é, a sua lei inteligível. Mas o sentido que se mostra na percepção não é passível de ser totalmente elucidado e explicitado pelo entendimento – tal como não é possível explicitar conceptualmente a diferença entre os objectos simétricos13. Merleau-Ponty costuma contrastar a sua posição com a intelectualista e a empirista através da seguinte ideia: enquanto para o intelectualismo toda a realidade é, de direito, capaz de explicitação nos seus elementos últimos, isto é, é intrinsecamente racional, e para o empirismo a realidade é irracional, o que há de sentido nela é meramente ilusório, para Merleau-Ponty, “há sentido” (PhP 349, 457), este aparece, é real como fenómeno, mas ao contrário do que pensa o intelectualista, é meramente contingente. Noutros termos, o que Merleau-Ponty opõe a Husserl é a impossibilidade de uma reflexão que absorvesse totalmente a vida irreflectida da consciência-corpo. Segundo Merleau-Ponty, o procedimento de Husserl teria como implicação que fosse possível explicitar totalmente a constituição do mundo a partir do eu. Mas este último, para Merleau-Ponty, localiza-se precisamente no corpo vivido. Merleau-Ponty identifica a consciência do corpo com o que Sartre chamou a consciência “pré-reflexiva”.14 Como se sabe uma das grandes “descobertas” conceptuais de Descartes foi a ideia de que toda a consciência é ipso facto consciência de si mesmo. Na esteira de Descartes, Sartre defende que a consciência é intrinsecamente reflexiva. Por outras palavras, segundo Sartre, a consciência não tem necessidade de reflectir explicitamente sobre si própria para ser consciência de si. A consciência é consciência do objecto na medida em que é consciência de si e, inversamente, é consciência de si na medida em que é consciência de objecto (Sartre, 1943, pp. 18ss.). Como disse, Merleau-Ponty adopta, em parte, a ideia de consciência pré-reflexiva de Sartre mas identifica-a com o corpo próprio. Se o mundo é constituído por intermédio do corpo e se este corpo é uma consciência pré-reflexiva e pré-pessoal, é em princípio impossível a reflexão dar 13

Uma ideia que é apresentada por Kant nos Prolegómenos a toda a metafísica futura, A 57-58 para mostrar a irredutibilidade da intuição do espaço por parte da sensibilidade à sua compreensão conceptual por parte do entendimento. De facto, por mais que tentássemos explicar mediatamente, isto é, conceptualmente, por palavras, a diferença entre os objectos simétricos como a luva esquerda e a luva direita, nunca o conseguiríamos. 14 Para interpretações que identificam a noção de “consciência pré-reflexiva” ou “cogito tácito” com o corpo vivido cf., por exemplo, Dillon (1988: 102ss., 143), Priest (1998: 75ss.), Romdenh-Romluc (2011: 105, 165ss., 210ss.). Para uma interpretação que nega que o corpo possa ser assimilado a qualquer forma de subjectividade, ainda que pré-reflexiva, cf. Marratto (2012).

conta de tudo aquilo que está envolvido na forma como o corpo se abre ao mundo. Note-se que aqui o corpo ocupa aqui, em grande parte, o papel que na filosofia transcendental e na fenomenologia husserliana era desempenhada pelo sujeito transcendental – é o corpo que, na medida em que é um corpo vivido na primeira pessoa, nos abre ao mundo. Esta última tese é também implicada por aquilo que podemos designar o “perspectivismo” de Merleau-Ponty. O que designamos por tal conceito é a ideia de MerleauPonty de que ainda que sejamos “seres no mundo”, isto é, ainda que cada um de nós esteja aberto a um mundo único e intersubjectivo e não a uma ilusão ou a um mundo solipsista, esta abertura é sempre feita de um ponto de vista que pode e é, no decurso da nossa vida, necessariamente complementado e até suplementado por outros. Por esta razão, do ponto de vista de Merleau-Ponty, uma redução completa ao eu transcendental, portanto uma redução fenomenológica-transcendental do tipo daquela que Husserl apresenta nas suas Ideen I, implicaria que aquele seria uma espécie de consciência absoluta, para a qual tudo apareceria de um modo totalmente transparente. Para Merleau-Ponty, pelo contrário, quer o sujeito (corpo) quer o objecto (mundo) conservam um certo quantum de opacidade – isto é, não estamos em condições de explicitar inteiramente, de tornar inteligível, a nossa abertura ao mundo (em última análise, ao sentido). Se somos corpos-sujeito, então o mundo oferece-senos sempre de uma determinada perspectiva, e a reflexão não pode nunca eliminar o carácter perspéctico da consciência-corpo. Na verdade, é a consciência reflectida que vive, e se encontra na dependência, da consciência pré-reflexiva e não o contrário. Como Merleau-Ponty diz, a “a minha reflexão é reflexão sobre um irreflectido” (PhP 10).

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