A Reestruturação Técnica na Perspectiva de Dois Violoncelistas/Professores: Alceu Reis e Márcio Carneiro

October 11, 2017 | Autor: Frederico Nable | Categoria: Motor Learning, Cello, Violoncello, Cello Pedagogy, Cello History
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Joe Armstrong: Flautista americano e professor de técnica de Alexander, co-autor do livro "Just Play Naturally"

Pau Casals i Defilló (1876 – 1973), mais conhecido como Pablo Casals, foi um violoncelista catalão, considerado um dos mais importantes do século XX. "Poucos contestariam que Pablo Casals (...) teve o maior impacto na maneira de tocar violoncelo no século vinte." (CAMPBELL, 1999, p. 80)
(…) I started off, and I wasn´t giving a good account of myself at all, and then Casals stopped me and said, ´Just play naturally.´ I said, ´I am,´ but he shook his head and tried to find another word. But he couldn´t, so he said, ´I mean, naturally.´ I thought, ´My God, does he mean that at twenty-one I´ve lost the ability to play naturally?´ The thought was just too awful to contemplate, and I buried it fast. So after I finished playing, he thanked me nicely, and then he said, ´You do not know what you are doing.´
André Navarra (1911 – 1988) foi um violoncelista francês renomado, considerado por GAGNON (2005) como um grande expoente da escola francesa, professor do Conservatório de Paris e da Musikhochschüle em Detmold. Vários de seus alunos vieram a se tornar solistas de renome internacional.
Robert, a cellist, has a constricted, irregular left-hand vibrato. (…) Vibrato, a parcial pattern (…), is a function of the use of the self, a total pattern. (…) To eliminate a faulty partial pattern it is necessary to co-ordinate the total pattern that activates and regulates the partial one. (…) Another characteristic of Robert´s vibrato is that it is a habitual and automatic reaction to a certain stimulus. Every time Robert decides to vibrate, he triggers the misuse of the vibrato mechanism reflexly. (…) Since Robert´s very wish to vibrate sets an automatic misuse of the self, the only way he can change his vibrato is to stop wanting to vibrate as he understands it.
Inhibition consists not in doing something new, but in not doing something old.
Once the new experiences of vibrato become clearer, the teacher may ask the pupil to take over the responsibility for the activating of the vibrato. At first he does this intermittently: teacher and pupil take turn to activate the vibrato, attempting not to break the continuity of the gesture. Finally the teacher lets go entirely of the pupil´s left arm, and allows the pupil to vibrate on his own.
When Robert succeeds in inhibiting his habitual vibrato, he is likely to experience two striking sensations (…) First, his new vibrato is so different from his familiar one that Robert feels that it is not a ´real´ vibrato, but some other sensation, a different musical effect altogether. Second, he may well feel as if he is not vibrating at all – the vibrato seems to be doing itself.
(...) and I discovered I´d been changed, in my ear and my hand and my brain, so that I felt like a different animal as we went working in the same way.
Human beings could not grow and learn, or even survive, if they did not possess remarkable innate powers of imitation. Imitation is present in every sphere of human activity, including all aspects of music-making.
GAGNON (2005) cita Fournier como um dos principais expoentes da escola francesa, sendo influente tanto como instrumentista quanto como professor, um dos pedagogos franceses mais populares ao lado de André Navarra.
The great singer is in command of his own use, and can therefore produce all that he wishes with his voice, including dozens of imitations and caricatures of other singers. But could the lesser singer imitate the greater one? Not before he aquires the same mastery of his use.
The Primary Control is that ´mechanism of the total pattern´ in the use of the self. Ideally the total pattern (…) should take precedence over all the partial patterns (individually cultivated). In other words, every localized action – the activity of limbs, hands, and fingers, and of lips, tongue, and jaw – should be executed in harmony with the co-ordination of the head, neck and back. Mark pays undue attention to a partial pattern, the use of his head, neck, and back. The resulting misuse affects every part of his organism, from head to toes, and every aspect of his functioning, from vibrato, intonation, and shifting to sound-production, breathing, and general well-being.
"Flesch, Carl. Violinista húngaro e professor. (…) Flesch era famoso por sua pureza clássica, sua técnica impecável, e sua abordagem intelectual de estilos. (...) Ele não era um violinista ´nato´ mas desenvolvido através de constante análise e auto-crítica" (GROVE, 1980, vol. 6, pág 638, tradução do autor) - Flesch, Carl. Hungarian violinist and teacher. (…) Flesch was famous for his classical purity, his impeccable technique, and his intellectual grasp of styles. (…) He was not a ´born´ violinist but developed through constant analysis and self-criticism.




UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI
CURSO DE MÚSICA




FREDERICO ARANTES NABLE










A REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA NA PERSPECTIVA DE DOIS VIOLONCELISTAS/PROFESSORES: ALCEU REIS E MÁRCIO CARNEIRO



















SÃO JOÃO DEL-REI
2011


FREDERICO ARANTES NABLE















A REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA NA PERSPECTIVA DE DOIS VIOLONCELISTAS/PROFESSORES: ALCEU REIS E MÁRCIO CARNEIRO








Monografia de conclusão de curso apresentada para a obtenção do título de Licenciado em Música com habilitação em Violoncelo pela Universidade Federal de São João del-Rei.

Orientador: Prof. Antônio Carlos Guimarães.










SÃO JOÃO DEL-REI
2011
AGRADECIMENTOS

Ao Abel, que me mostrou o caminho; ao Alceu e ao Márcio, pela disponibilidade e paciência.























































RESUMO


O presente trabalho tem como objetivo discutir e definir o processo de reestruturação técnica no ensino e aprendizado do violoncelo. O objeto de estudo é abordado através de uma revisão bibliográfica e dos conceitos de dois violoncelistas/professores brasileiros, Alceu Reis e Márcio Carneiro. Para tanto foi elaborado um questionário que foi aplicado em ambos presencialmente, cujas respostas foram transcritas e embasadas com a bibliografia. Concluiu-se que, com base nas teorias de aprendizado motor, a aquisição da habilidade de reestruturação técnica é algo primordial no desenvolvimento instrumental em todos os níveis.

Palavras-chave: reestruturação técnica; aprendizado motor; pedagogia do instrumento.






















SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 4
1- O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA 8
2- ENTREVISTAS 13
2.1- ENTREVISTA COM ALCEU REIS 13
2.2- ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO 25
3- CONCLUSÕES 48
3.1- CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM ALCEU REIS E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 48
3.2- CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 52
3.3- CONCLUSÕES RETIRADAS A PARTIR DE RESPOSTAS SEMELHANTES DE AMBOS ENTREVISTADOS 56
3.4 - CONCLUSÕES FINAIS 58
REFERÊNCIAS 59
ANEXOS 60


















INTRODUÇÃO
Durante os primeiros dois períodos em que ingressei no curso de Licenciatura em Música da UFSJ passei por um processo de reestruturação técnica, consistiu em um estudo mínimo de repertório paralelamente a estudos de técnica pura (cordas soltas, exercícios de vibrato e etc.), que viabilizassem a eliminação dos meus problemas. Além disso, o processo consistiu em inibir antigos hábitos que se mostravam ineficientes, principalmente com relação ao vibrato e à eliminação de tensões corporais em geral, e estabelecer novos hábitos mais efetivos para a execução do violoncelo. Tal processo exigiu de mim uma força de vontade enorme e tive que confiar plenamente no meu professor para chegar aos resultados desejados. Enquanto passava pelo processo tive que me abster de master-classes, prática orquestral e quaisquer outras situações em que uma possível pressão pudesse trazer de volta antigos hábitos não desejados. Ao mesmo tempo busquei, em outros professores ou colegas, que eram referência para mim, um relato de alguma experiência parecida, talvez para tentar me convencer de que aquele esforço todo valeria a pena. E a minha surpresa foi grande quando descobri uma enorme quantidade de casos, alguns de violoncelistas famosos, que passaram por processos semelhantes. Mais tarde, quando havia reestruturado satisfatoriamente a minha técnica, pude compreender a importância de tal processo e entender, pelo menos parcialmente, que a aprendizagem de um instrumento musical, sobretudo da técnica necessária para a execução do mesmo, é algo constante. Assim, tornou-se também óbvio que o processo de reestruturação é uma habilidade que todo músico deve ter, ou seja, todo músico instrumentista deve aprender a aprender. Descobri que devemos buscar sempre uma maneira melhor de fazer as coisas, que traga resultados mais eficientes com o menor esforço possível, e nesta busca o processo de reestruturação é constantemente presente. MACKIE (2006) relata, em uma entrevista bastante informal com Joe Armstrong, sobre os anos que passou em Prades (França) estudando com o grande Pablo Casals. O relato é claramente de uma reestruturação, não somente da técnica, mas também da maneira como a autora tocava o violoncelo. O choque inicial já se deu na primeira aula com o mestre, onde ela conta que tentou executar o concerto de Schumann, com o qual já tinha até ganho um concurso nos Estados Unidos:
(...) Eu comecei, e não estava causando uma boa impressão, e então Casals me interrompeu e disse, ´Apenas toque naturalmente.´ Eu disse, ´Eu estou,´ mas ele balançou a cabeça e tentou achar outra palavra. Mas ele não conseguiu, então ele disse, ´Eu quero dizer, naturalmente.´ Eu pensei, ´Meu deus, ele quer dizer que com vinte e um anos de idade eu perdi a habilidade de tocar naturalmente?´ O pensamento era quase terrível demais para se contemplar, e eu o enterrei, rapidamente. Então depois que eu acabei de tocar, ele me agradeceu gentilmente, e aí disse ´Você não sabe o que está fazendo.´ (MACKIE, 2006, pág. 12, tradução do autor)

Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro busco discutir a questão da reestruturação técnica, definindo o termo e examinando suas implicações com base na bibliografia. Para construir o segundo capítulo foi elaborado um questionário, que se apresenta em anexo, em torno do aprendizado e do ensino da reestruturação técnica, o qual foi aplicado em dois violoncelistas profissionais, Alceu Reis e Marcio Carneiro, transcrito e revisado, constituindo assim a parte central do trabalho. Por fim, o terceiro capítulo analisa detalhadamente as ideias principais de cada entrevistado e faz uma comparação entre o que ambos disseram, e relaciona suas respostas ao conteúdo extraído da revisão bibliográfica.
Escolhi entrevistar dois professores que para mim sempre foram um referencial e que, ao mesmo tempo, possuem maneiras bastante diferentes de tocarem o instrumento, mas com um resultado igualmente eficaz. Alceu Reis foi meu professor em diversos festivais em Ouro Branco, Juiz de Fora e até na própria São João Del Rei, e possui uma extensa carreira como professor de diversos grandes violoncelistas no Brasil e fora, além de já ter ocupado lugares de destaque com as maiores orquestras do país. Mesmo conhecendo algo da sua maneira de ensinar e de pensar o violoncelo, me surpreendi ao receber um "não" como resposta à principal pergunta do meu questionário: "Você já passou por alguma reestruturação técnica? Se sim, como foi?". O que Alceu descreveu na verdade é um processo de constante reestruturação em que ele sempre se encontrou, questionando e buscando uma maneira melhor de tocar o instrumento. Ele é, nas suas palavras, um "pesquisador". Todavia, Márcio Carneiro revelou teve um momento muito claro, na sua carreira como violoncelista, em que passou por uma reestruturação técnica. Ao ganhar uma bolsa de estudos para a Europa, foi estudar com André Navarra, um dos grandes violoncelistas e professores da escola francesa, com quem passou "realmente um semestre inteiro fazendo corda solta e um concerto de Romberg". Márcio atribui importância capital a esse processo de reestruturação, sem o qual não teria sido possível continuar seus estudos. Márcio foi professor da Musikhochschüle em Detmold (onde Navarra também ensinou) e atualmente faz parte do corpo docente do conservatório superior Tibor Varga em Sion, na Suíça. Foi vencedor de diversos concursos, conquistando inclusive um prêmio no renomado Concurso Tchaikovsky em Moscou. Reconhecido tanto como solista quanto como professor, possui vários alunos que seguiram carreiras internacionais. Frequento suas master-classes regulares em Belo Horizonte desde que me iniciei ao violoncelo e obtive alívio durante a minha própria reestruturação ao ver o mestre descrever como tinha sido o seu processo e a importância que ele dava a isso. Talvez daí tenha nascido a idéia de realizar este trabalho.
Busco aqui documentar as opiniões dos dois professores a respeito deste assunto, assim como analisar sob outras óticas algumas coisas que foram ditas nas entrevistas. Creio que o material que foi gerado com as mesmas pode ser de extrema valia para outros instrumentistas em geral. É um registro das ideias de dois dos grandes violoncelistas e professores do nosso tempo e, em alguns momentos, chega a extrapolar o assunto principal do trabalho. São verdadeiras lições de vida, de como lidar com a tarefa árdua que é o aprendizado de um instrumento musical.

























1 - O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO TÉCNICA
Utilizaremos o termo "reestruturação técnica" neste trabalho para definir casos em que um determinado procedimento técnico necessário para a execução de um instrumento musical, já automatizado, se mostra ineficiente e deve ser substituído por outro mais eficiente. É prudente diferenciar esse conceito da estruturação que acontece regularmente durante as aulas, onde pequenos pontos da técnica do aluno são adquiridos, trabalhados e melhorados gradualmente.
Reestruturar um aspecto da técnica em um instrumento musical é algo extremamente complexo, e passa por um processo com várias fases. Segundo GALLWEY (1973) e ALCANTARA (1997) primeiramente é preciso inibir o movimento ineficiente, em seguida aprender o movimento novo e depois, provavelmente a etapa mais difícil, substituir gradualmente um pelo outro, dentro do contexto em que vai ser utilizado. ALCANTARA (1997) fala do processo de "inibição" e descreve um violoncelista chamado Robert, que tem grandes problemas com o vibrato:
Robert, um violoncelista, tem um vibrato de mão esquerda irregular e emperrado. (...) Vibrato, um padrão parcial (...), é uma função do uso do "self", um padrão total. (...) Para eliminar um padrão defeituoso, é necessário coordenar o padrão total que ativa e regula o parcial. (...) Outra característica do vibrato de Robert é que ele é uma reação habitual e automática a um certo estímulo. Toda vez que Robert decide vibrar, ele ativa o mal uso do mecanismo do vibrato por reflexo. (...) Já que o simples desejo de Robert de vibrar ativa um mal uso automático do "self", a única maneira que ele pode mudar seu vibrato é parando de quer vibrar da maneira como ele entende. (ALCANTARA, 1997, p. 46, traduçãodo autor)

SLOBODA (2008) elucida ainda mais como os movimentos já aprendidos estão enraizados em nós, e como os obtemos:
Primeiramente, há o conceito de que a aprendizagem de uma habilidade envolve a aquisição de hábitos. A principal característica de um hábito é ser automático e usar pouca ou nenhuma capacidade mental para ser executado. Os precursores dos hábitos são comportamentos conscientes, deliberados e marcados pelo esforço, que geralmente envolvem um controle verbal. Em segundo lugar, está a noção de que, para aprender habilidades, é preciso passar de um conhecimento factual (saber o quê) para um conhecimento procedimental (saber como). (SLOBODA, 2008, p. 285)


GALLWEY (1974) nos dá uma descrição bem simples de como o processo de aprendizado de um movimento ocorre no nosso sistema nervoso:
É como se o sistema nervoso fosse um disco de gravação. Cada vez que uma ação é executada, forma-se uma leve impressão nas células microscópicas do cérebro, como se uma folha tivesse passado sobre a fina areia de uma praia, deixando o seu leve traço. Quando a mesma ação é repetida, a marca torna-se um pouco mais profunda. Depois de muitas ações similares, forma-se uma trilha facilmente reconhecível, para a qual a agulha do comportamento parece se dirigir automaticamente. Então o comportamento pode ser classificado como tendo um padrão, uma trilha de hábito. Pelo fato de esses padrões servirem a uma função, o comportamento é reforçado ou recompensado e tende a se repetir. Quanto mais profunda a trilha aberta no sistema nervoso, mais difícil parece ser a mudança do hábito. (...) De fato, muitas vezes, quanto mais tentamos mudar um hábito, mais difícil isso se torna. (GALLWEY, 1974, p. 103)


Gallwey sugere que, para eliminarmos maus hábitos, não precisamos partir dos hábitos antigos, mas sim criarmos hábitos completamente novos, sem relação com os velhos. "A inibição não consiste em fazer algo novo, mas em não fazer algo antigo" (ALCANTARA, 1997, p. 51, tradução do autor). ALCANTARA (1997), em seguida, descreve um processo gradual para que o aluno Robert possa ter a experiência correta do vibrato, que inicialmente é intermediada quase que totalmente pelo professor, ajudando o aluno com o movimento ao manipular o braço esquerdo do mesmo:
Assim que as novas experiências do vibrato se tornem claras, o professor pode pedir ao aluno para assumir a responsabilidade de ativar o vibrato. Primeiramente ele o faz intermitentemente: professor e aluno se revezam para ativar o vibrato, tentando não quebrar a continuidade do gesto. Finalmente o professor deixa completamente o braço esquerdo do aluno, e deixa o aluno vibrar por contra própria.
Quando Robert conseguir inibir seu vibrato habitual, ele provavelmente vai ter duas sensações marcantes (...). Primeiramente, o seu novo vibrato é tão diferente do seu já conhecido que Robert sente que não é um vibrato ´real´, mas alguma outra sensação, um efeito musical completamente diferente. Segundo, ele pode até sentir que não está vibrando – o vibrato está acontecendo por si só. (ALCANTARA, 1997, págs. 48 e 49, tradução do autor)

MACKIE (2006) descreve uma sensação parecida de estranhamento positivo ao ver sua maneira de trabalhar o violoncelo ser mudada por Pablo Casals:
(...) e eu descobri que tinha mudado, no ouvido e na minha mão e no meu cérebro, de modo que eu me sentia como outro animal à medida que íamos trabalhando da mesma maneira. (MACKIE, 2006, p. 18, tradução do autor)

A sensação de algo completamente novo e sem relação com o movimento antigo é justamente a criação de um novo "caminho" neurológico, como descrito por GALLWEY (1974), que ainda completa:
Em outras palavras, não é preciso combater velhos costumes. Simplesmente comece hábitos novos. É a resistência de um velho hábito que torna você prisioneiro dele. Começar um novo padrão é fácil quando isso é feito com uma desconsideração infantil por dificuldades imaginárias. (GALLWEY, 1974, p. 104)

Coincidentemente, na minha própria experiência de reestruturação técnica, meu problema principal era também o vibrato, que consistia basicamente de um "tremido" rápido e curto, que gerava uma tensão enorme e produzia um resultado musical quase imperceptível. Meu professor notou tal problema e iniciamos um aprendizado lento do movimento novo, que tinha parâmetros quase opostos do antigo: era amplo e lento. O processo demorou, e muitas vezes eu não conseguia trazer de volta a sensação do vibrato correto. Durante o estudo muitas vezes o movimento antigo voltava, principalmente em trechos difíceis de peças ou em situações de performance. Várias vezes, após um período extenso de estudo do instrumento, eu descobria que não conseguia vibrar de forma alguma, o braço esquerdo tensionava e perdia completamente o movimento do vibrato.
Nessa época descobri que obtinha melhores resultados quando praticava o vibrato "novo" logo após acordar, ou quando tinha passado um período maior sem tocar o instrumento. De fato, passar muito tempo ao violoncelo apenas diminuía a minha capacidade de eliminar a sensação antiga. Quanto mais eu praticava, mais a minha vontade de querer vibrar corretamente era maior. Gallwey faz observações valiosas que podem explicar o que foi descrito acima:
Observe o processo sem controlá-lo. Se sentir que você está querendo ajudar, não o faça. Mas não observe com desinteresse – observe com fé. Confie ativamente no seu corpo para responder à sua programação. Quanto mais você confiar no processo natural que está em andamento, menos você tenderá a cair nos padrões comuns que interferem no aprendizado em consequência de esforço demasiado, julgamentos e pensamentos sobre o que deve ser feito. Em consequência, também diminuirá a frustração que inevitavelmente acompanha o processo de interferência. (GALLWEY, 1974, pág. 112)

Consequentemente, com um tempo menor de estudo e uma concentração maior, a nova técnica de vibrato gradualmente tomou o lugar da antiga. O procedimento foi bastante demorado, durando cerca de um ano.
Após a reestruturação do meu vibrato não tive que realizar nenhum processo semelhante com outro aspecto técnico, tanto da mão direta quando da esquerda. O que houve foi uma melhora gradual e geral, graças a uma auto-crítica mais refinada adquirida com o tempo e com a experiência do reaprendizado do movimento. FITTS (1964) apud SLOBODA (2008) mostra como funciona essa "evolução" do aprendizado motor: "os processos de aquisição de habilidades podem ser quebrados em três fases ou estágios: o estágio cognitivo, o estágio associativo e o estágio autônomo" (FITTS apud SLOBODA, 2008, pág 286). ANDERSON (1982) apud SLOBODA (2008) descreve detalhadamente tais estágios:
... o estágio cognitivo envolve uma codificação inicial da habilidade em uma forma suficiente para permitir que o aprendiz gere o comportamento desejado, pelo menos num nível de aproximação grosseira. Neste estágio, é comum observar mediações verbais, em que o aprendiz repete as informações necessárias à execução da habilidade. O estágio associativo é aquele em que a habilidade passa a ser executada de maneira suave. Os erros na compreensão inicial da habilidade são sucessivamente detectados e eliminados. Concomitantemente, desaparece a mediação verbal. No estágio autônomo há uma melhoria gradativa e continuada na performance de uma habilidade. Frequentemente, neste estágio, as melhorias continuam indefinidamente. (ANDERSON apud SLOBODA, 2008, pág. 286)
Podemos concluir, portanto, que quando um indivíduo passa por um processo de reestruturação técnica, ele não aprende a reestruturar apenas a habilidade que trabalhou, mas a fazê-lo de maneira geral. "Quando se aprende como mudar um hábito, torna-se bem mais fácil decidir quais hábitos modificar. Uma vez que você saiba como aprender, só precisa descobrir o que vale a pena ser aprendido." (GALLWEY, 1974, p. 101)



















2 – ENTREVISTAS

As entrevistas realizadas foram incluídas em sua íntegra. As primeiras perguntas não tratam diretamente da questão da reestruturação técnica, mas contextualizam o leitor com o processo de aprendizado do violoncelo de cada entrevistado. Em ambos os casos foi necessária adição de uma pergunta a mais em cada entrevista, o que não alterou o foco da mesma. Além disso, o fato de Alceu ter respondido "Não" à pergunta "Você já passou por alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s) técnico(s)? Se sim, como foi?" fez com que o questionário aplicado a ele fosse reduzido, pois as três perguntas seguintes, referentes ao processo de reestruturação técnica do entrevistado, dependiam de uma resposta positiva à mesma.

2.1 – ENTREVISTA COM ALCEU REIS

Entrevista realizada na residência de Alceu Reis no Rio de Janeiro, em 12/10/2011
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Na realidade eu comecei com cinco anos e meio, seis anos. E a história começou assim: eu ouvi o violoncelo no rádio, na rádio MEC, e perguntei à minha madrasta na época "Que instrumento é esse?", "Isso aí é um violoncelo". Aí eu cheguei pro meu pai e disse "Pai, eu quero aprender violoncelo", e ele disse "Tá maluco?" (risos). "Como assim aprender violoncelo, você conhece violoncelo?" e eu disse "Não, conheço não, mas eu quero". E ele disse "Então vamos fazer o seguinte: quando tiver um recital de violoncelo eu vou te levar pra você ouvir e ver se é realmente isso que você quer". Passou uns seis ou oito meses e teve um recital na UFRJ do professor de lá na época, que era de São João Del Rei, Eurico Costa. Ele era muito conhecido, e eu fui lá assistir o recital. E quando acabou meu pai me perguntou "É esse trambolho aí que você quer tocar?" (risos) e eu disse "É, é esse trambolho que eu quero tocar".
Naquela época meu irmão estudava piano com a Professora Lúcia Branco, que era muito amiga do Iberê Gomes Grosso, e meu pai falou pra ela que tinha um filho de cinco anos e meio que queria estudar violoncelo, e que não tinha nem ideia de como ia começar essa história. E ela disse pra ele "Deixa comigo que eu resolvo isso", passou o telefone do Iberê e disse "Telefona pra esse professor porque ele é o melhor professor do Brasil". E meu pai ligou e explicou a história toda, e o Iberê perguntou "Quantos anos ele tem mesmo?", "Cinco", "Faz o seguinte então, compra uma bola pra ele e quando ele tiver quatorze você me liga" (risos). Meu pai mandou uma porção de impropérios pra ele e desligou (risos), chegou em casa e disse pro meu irmão - que já estudava violino - pra ele me ensinar a tocar violoncelo. Mas antes ele me disse que eu tinha que estudar teoria e solfejo, "quando você trouxer o livro de solfejo pronto eu arrumo um instrumento pra você". E meu pai falou com os meus irmãos que eles tinham que me ensinar a solfejar. Até hoje eu me lembro o nome do livro de solfejo, Garaudé, um livro francês. E depois de uns quatro meses eu disse pra ele "Pode tomar", sentei na cabeceira da mesa e solfejei 387 lições, durou umas duas horas e pouco, nas três claves. Aí ele não teve saída, eu irritei ele tanto que ele resolveu procurar um violoncelo pra mim. Só que na época não existia violoncelo 1/2, ele procurou, procurou e não tinha em nenhuma loja, ninguém sabia, ninguém conhecia. Então ele comprou uma viola (risos). Pegou um freio de bicicleta, fez dois furos, botou uma borboleta, colocou o freio no meio do estandarte e fez um espigão com o freio de bicicleta, pegou um arco de violino, botou junto com a viola e disse pro meu irmão que tocava violino "Agora você ensina violoncelo pra ele" (risos). Aí eu comecei a estudar violoncelo numa viola com um professor de violino. Era aquela confusão, eu pegava o arco exatamente como arco de violino, e comecei a tocar essa bagunça toda.
Com o passar do tempo a professora Lúcia Branco perguntou pro papai "E aquele garoto do violoncelo, como está?" e ele contou a história pra ela, disse que tinha comprado uma viola e mandado o filho mais velho que tocava violino ensinar violoncelo pra ele. E ela disse "Que bagunça. Mas peraí, eu tenho outra pessoa, eu vou falar com ela". Era a professora que se chamava Carmem Braga. Por acaso aquele violoncelista que eu tinha ido ouvir no recital tinha falecido, e ela entrou como professora substituta na UFRJ, era amiga da Lúcia Branco. E a Lúcia falou com ela de mim, queria que ela me ouvisse, e ela disse "Ah, deve ser interessante um garoto tocando violoncelo numa viola com um professor de violino, traz ele aqui que eu quero ver essa coisa!". Aí lá fui eu tocar pra ela. E nessas alturas, eu era maluco e tinha composto uma valsa, que chamava "Minha primeira valsa". E eu cheguei lá e papai disse "Toca aí a primeira valsa!" (risos). E eu toquei a primeira valsa. E ela disse "Olha, ele é um talentasso, eu vou dar aula pra ele". Nessas alturas eu devia ter seis anos e meio, sete anos. E naquela época papai não tinha grana pra pagar aula, então ela me botou como aluno ouvinte da UFRJ, e essa foi a minha sorte, porque como aluno ouvinte naquela época eu tinha direito de fazer as aulas teóricas, e eu comecei a estudar com uma professora que se chamava Maria Luisa Priolli, que foi a melhor professora de teoria de todas as épocas. Fiz uns quatro anos com ela, então com onze anos eu estava fazendo ditado a quatro vozes brincando. Foi muito bom.
Passaram-se uns dois anos e então teve um concurso pra professor efetivo, e quem passou foi o Iberê. E, por sorte minha outra vez, eu fui cair na mão dele, com dez anos. Você vê que a história por linhas tortas dá certo, aí eu não precisei mais ter quatorze anos, eu já estava na escola e ele foi obrigado a me dar aula (risos). É igual o Zagallo falando "Vocês vão ser obrigados a me aturar". E acabamos fazendo uma boa amizade. Eu fui aluno dele pelo menos uns seis, sete anos, e depois disso eu não quis mais ter aula. E naquela época eu só tinha a parte prática. Eu dei muita sorte com o Iberê, porque ele foi aluno do Alexanian, durante quatro ou cinco anos no conservatório de Paris. E o Alexanian foi o grande professor da época de grandes violoncelistas como o Janigro, que foi o professor do Antonio Meneses.
E depois apareceu uma propaganda de um curso na Argentina pra estudar com o Fournier. Então houve uma prova interna no Rio, onde foram aprovados dois violoncelistas pra fazer esse curso: Eu e o Watson Clis. E era um curso bem interessante: começava com sessenta violoncelistas, e quando acabava o dia de aula vinha o tradutor e dizia "Amanhã continuam fulano e fulano". Quando terminou o curso tiveram quatro diplomados: Eu, o Watson, um venezuelano e um uruguaio. E nenhum argentino! (risos) E tinha muitos argentinos lá. E era muito interessante também, porque eu era um excelente imitador. E o Fournier tinha um tradutor. Então nas primeiras aulas ele começava a tocar e eu ia imitando o que ele fazia. Tudo que ele fazia eu imitava. Aí ele dispensou o tradutor, falou que eu não precisava de tradutor. E eu não entendia absolutamente nada do que ele falava. Só que eu imitava e depois eu ia pensar no que ele poderia ter falado. Então, esses foram os meus professores.
Eu aprendi muito também com esse dom da imitação. Porque naquela época não tinha Youtube, não tinha nada de mídia. Então naquela época passavam dois ou três violoncelistas por ano por aqui. E eu fazia questão de ir assistir, eu virava montanhas, mas ia assistir. E o que eu fazia? Eu "filmava", mentalmente. E depois ia pra casa imitar pra descobrir como era a mecânica. Porque o bom-gosto eu achava que já tinha, eu pensava "Isso aí eu me viro". Mas o como fazer é que é o problema maior. Então, por exemplo, se chegasse um violoncelista que tocasse com um espigão de um palmo, durante três ou quatro meses eu só usava o espigão com um palmo. E quando chegou o Tortelier, que usava o espigão de dois metros, foram três meses tocando com espigão de dois metros. E vinha um que tocava assim (sobe o braço esquerdo), outro que tocava assim (quebra o pulso direito), e eu ia imitando. Conclusão: eu acredito que tudo que existe no violoncelo eu experimentei, e aí cheguei às minhas conclusões. É por isso que eu digo, e eu estou convicto disso até hoje, que o melhor professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como, aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não está saindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema, tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.
Comente sobre sua trajetória estudantil e profissional.
Minha época de estudante foi essa com o Iberê. Aí depois, eu já tinha uns 28 ou 27 anos, eu tinha um amigo contrabaixista que se chamava Sandrino e que me perturbava dizendo que eu tinha que tirar um diploma pra ser professor universitário. E eu falava "Mas pra que cara? Eu já estou tão bem aqui!". Eu já era spalla da orquestra do teatro, da sinfônica nacional, fazia todas as programações. E ele me incomodou durante um ano. E eu acabei fazendo o vestibular pra UFRJ. E por acaso o professor da UFRJ era o meu colega de estante, o Eugen Ranevsky. E eu dividia a primeira estante com ele no Teatro Municipal. Eu fiz a prova e fui ter aula com ele. É claro que não tinha essa de professor e aluno, éramos colegas batendo um papo. Aí eu fiz o curso com ele, e quando eu terminei o curso abriu uma vaga para professor na UNIRIO. E me pressionaram pra fazer a prova, me obrigaram a fazer a prova. Quando eu vi eu era o único candidato (risos). Eu chamei um monte de gente pra fazer a prova comigo, mas ninguém quis (risos). Aí eu fui pra UNIRIO e dei aula lá durante quinze anos. E depois eu tive um problema, porque eu tinha três empregos públicos, e só podia ter dois. Aí eu saí da UNIRIO, porque eu já era aposentado como funcionário da UFRJ. E como aposentado eu ganhava quatro vezes o que eu ganhava na UNIRIO. Mas lá foi muito bom pra mim, porque como professor eu podia fazer todas as experiências que eu queria com as cobaias (risos). Os alunos. E graças a deus a minha turma foi realmente excelente. E é ótimo porque em qualquer lugar que eu vou sempre tem uma cervejinha de graça pra tomar. O professor da Universidade de Natal foi meu aluno. O da Universidade de Vitória foi meu aluno. Tenho três ex-alunos que estão na OSESP. E pra mim o melhor professor pra crianças que existe, ele é realmente formidável, foi meu primeiro aluno, o Eduardo Belo. Excelente professor para crianças. E eu tenho dez ou quinze profissionais de excelente qualidade que estudaram comigo. Então sempre tem uma cervejinha e um bom papo aonde quer que eu vá (risos).
Você já passou por alguma reestruturação técnica? Se sim, como foi?
Eu diria que não, porque, veja você, eu não tive muitos professores. Eu mudei muita coisa, mas por mim e para mim. Nunca aconteceu essa de chegar algum professor pra mim e dizer que eu precisava mudar alguma coisa. Eu fui procurando, porque eu sou, em relação ao violoncelo, um pesquisador, eu estou sempre pesquisando, sempre. Eu sempre digo que o meu maior problema com o violoncelo é o espigão, eu nunca sei a altura dele (risos). Porque eu estou sempre pesquisando. Eu tenho um lema. A coisa mais importante num violoncelista, e eu falo isso em todos os instrumentos, é justamente o relaxamento. Então eu estou sempre procurando o relaxamento. E se tiver que haver alguma tensão, que tenha um relaxamento automaticamente no mesmo segundo. Eu nunca penso em manter uma tensão, nunca. Então eu diria que eu nunca passei por nenhuma reestruturação técnica imposta por algum professor, eu passei por milhões de pequenas reestruturações auto-impostas.
Quando você julga necessário que algum aspecto técnico deva ser reestruturado?
O meu professor, o grande Iberê, muitas vezes falava assim: "Olha, você pode até tocar com o nariz, contanto que seja bonito". Então eu parto do seguinte princípio: a técnica em função da música. O bom gosto da música é que vai te dizer qual a técnica que você tem que usar naquele momento. Eu acho que em relação aos meus alunos, eu tento sempre explicar que o violoncelo é exatamente como o ser humano na sua vida: se você está com dor na perna, a primeira coisa que você tem que fazer é ver o jeito que você anda, ou a sua postura quando senta. Isso quer dizer que você tem que transportar essa relação do seu cotidiano, da sua vida, para o violoncelo. E é muito interessante que não é fácil de transmitir. Já aconteceu muitas vezes durante a minha trajetória de eu falar alguma coisa pro aluno durante dois meses, mas não surte resultado. Aí eu paro de falar, porque eu tenho que deixar um tempo pra ele pensar, são aquelas grandes questões: por que, como, onde... Aí passa mais uns quatro ou cinco meses sem comentar aquilo. Aí eu falo outra vez e, em geral, depois de cinco meses que o aluno não pensou naquilo, a ficha cai e o aluno diz "Por que você não falou mais cedo? É tão fácil!" (risos). E isso já aconteceu diversas vezes. Então isso é uma espécie de método. É uma relação do entendimento, no momento que você entendeu a coisa se torna fácil. Eu sempre digo aos alunos "Eu nunca vou ensinar uma coisa difícil pra vocês, o violoncelo é fácil". Agora, uma outra questão que eu sempre digo também é que estudar comigo não é estudar violoncelo, é mudar a mentalidade. Pra você mudar o foco do pensamento, a grande dificuldade do violoncelo é você mudar o seu foco para aquelas grandes questões. Porque noventa por cento dos alunos - e o Rostropovich dizia isso, ele dizia: "O problema todo é que a maioria dos alunos não estuda, eles curtem." - então aquele pedaço que tá saindo bonito ele toca noventa vezes, pra se ouvir, pra se curtir. E aquele que não tá saindo ele toca uma, duas vezes e depois volta a curtir. E eu sempre digo "Vai estudar o que você não sabe, não estuda o que você sabe. O que você já sabe não precisa estudar." Então esse é um fator bastante interessante com todos os alunos, a maioria dos alunos gosta de se curtir.
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser reestruturado?
Justamente quando a música não está saindo bonita. A técnica é sempre em função da música, e aí que entra o seu bom gosto. E é claro que aí entram várias coisas para você ter um bom gosto, digamos, inteligente. Você precisa de uma cultura, saber do estilo, conhecer a relação harmônica, figurativa, conhecer a época, a história do compositor e o momento que aquela música foi composta, e para quê. Então disso tudo, dessa panela cheia de ingredientes, vai sair a boa cozinha, o bom arroz ou a boa feijoada. Ou não. Se você não conhecer as medidas certas pra essa panela de feijão tropeiro, sai um feijão sem gosto. Por isso que o bom gosto requer uma gama de estudos separados, pra fazer uma cabeça.
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
São sempre os mesmos. Tem dois objetivos: entender o que estão fazendo e fazer alguma coisa de bom gosto, que não só ele goste mas que todos gostem. Esse é o objetivo em todas as profissões. Veja você, o ator estuda três ou quatro meses uma poesia e depois sobe ao palco pra recitar essa poesia pra que? Pra que o público goste. E com o aluno a relação é a mesma: ele tem que ficar satisfeito e os outros também, com aquilo que estão ouvindo.
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos seus alunos?
Essa é complicada. Em geral os alunos têm facilidades para alguma coisa e dificuldades para outras. O que não quer dizer que necessitem necessariamente de uma reestruturação. Tem muita gente que tem facilidade com a mão esquerda e dificuldade com a direita, principalmente os canhotos. Fazem vibratos bonitos com a mão esquerda, mas têm grandes dificuldades com a direita. E o contrário não é real. Os destros em geral não têm a dificuldade com a mão esquerda, até hoje eu não entendi porquê. No estudo da técnica, quando eu tenho alunos regulares, eu gosto muito de separar por partes. Primeiro eu tento fazer o aluno entender o funcionamento da mão esquerda, sempre começo pela mão esquerda. Porque eu acho que em geral o entendimento da mão esquerda em um ano você consegue "fabricar". A mão direita já é um pouco mais complicada, os meus alunos que tiveram mais facilidade levaram dois anos para entenderem globalmente a mão direita. Porque a mão direita é a voz do instrumento, pra você descobrir diferentes timbres, golpes de arco, sonoridades, volumes. E tudo isso leva um tempo pra você dissecar, porque você só consegue entender depois que você faz uma dissecação. É aquilo que a gente falou antes, do relaxamento, você tem que saber qual músculo que está ativo e qual está passivo, qual o impulso necessário naquele trecho para você alcançar o que você quer. É a resposta a uma daquelas perguntas básicas. Então isso leva um pouco mais de tempo, mas não é nada de difícil, só exige paciência na hora de estudar. Estudando aquilo que você deve estudar, não aquilo que você já está fazendo bem. (risos) Então você tem que ir devagar e fazendo pausadamente pra você ver o que está acontecendo, pra quê que está acontecendo, o que você quer como objetivo. Meu pai dizia muito "As mãos só fazem aquilo que estão acostumadas, nunca aquilo que a gente quer que elas façam". Então, veja você, pra você ter isso como um computador - que você abre uma janela e abre uma gaveta onde você tem todo o material que você precisa - você precisa saber exatamente o que vai funcionar naquela hora exata. Porque o teu cérebro não manda você fazer um stacatto, ele manda o músculo tal fazer tal movimento. E a consequência é um stacatto. Você tem, por exemplo, o primeiro dedo da mão esquerda que é o dedo guia, você tem o primeiro dedo da mão direita que é o dedo guia também, ele vai te guiar pra fazer tal serviço, tal trabalho. Isso que eu acho que é fácil, mas complexo, leva tempo.
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos técnicos?
Com certeza. Justamente por essa diretriz que os aspectos técnicos são em função da música. Você estuda o técnico pelo técnico justamente pra você conhecer o que vai acontecer. E a música é a aplicação. Então automaticamente estão interligados.
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos do aluno, você os faz ao mesmo tempo?
Não, nunca. Porque você precisa saber o funcionamento global de cada coisa, pra você não misturar uma coisa com a outra. Se você vai querer uma pimentinha no feijão tropeiro você não bota açúcar e pimenta, porque o açúcar você vai botar no café depois. Se você misturar as coisas vira uma confusão. Então é necessário que você saiba o que é o açúcar, a pimenta, o café e o feijão tropeiro. Você pode até misturar se você quiser fazer outra comida, mas aí é por sua conta. Você precisa saber bem o que aquele movimento vai te dar como resultado, pra você escolher na hora ou antecipadamente. Eu bato muito numa tecla. Eu acho que nenhum golpe de arco - ou movimento da mão esquerda - começa no exato momento em que sai o som. Sempre tem que ter uma antecipação, e essa antecipação - e aí eu volto ao início da nossa conversa, onde eu disse que você tem que trazer a vida para o violoncelo - na vida a gente sempre faz tudo antecipadamente. Você por exemplo veio de São João Del Rei. Se você veio de ônibus você primeiro olhou lá na placa do ônibus se estava escrito "São João - Rio", se você entrasse no ônibus sem olhar, sem antecipar, você podia ter pego o ônibus "São João - Salvador". Então, essa relação de antecipação é uma coisa da vida, e você traz a vida, ou o cotidiano, para o violoncelo.
Que critérios você usa para estabelecer uma ordem dos aspectos técnicos a serem reestruturados?
Eu acho que em primeiro lugar você tem que entender o que é a sonoridade, o que é um som. Então na mão direita você tem que fazer son filé até você descobrir o que é a profundidade do som. E na mão esquerda você tem que começar com um dedo, depois bota o outro, até o quarto dedo. E depois as articulações, pra você entender quais são as mudanças. E isso vai paulatinamente, você vai começar no arco, por exemplo, a fazer a divisão do arco, a relação matemática, dividir em dois, quatro, oito, dezesseis, etc. E isso com notas ligadas ou não, pra você descobrir o manejo. Isso tudo é pra que você, na música, saber quanto você gasta em uma colcheia, em uma semínima pontuada, e assim por diante.
O que você desenvolveu sozinho (sem a ajuda de algum professor) na sua técnica violoncelística?
É difícil eu dizer o que eu desenvolvi sozinho, porque eu acho que tudo a gente desenvolve sozinho. Como a música não é uma ciência exata você tem algumas sugestões, você não tem regras. Então quando você vê na matemática que dois vezes dois são quatro, na música dois vezes dois nem sempre são quatro. Porque o arco seria um arco inteiro, mas você pode fazer duas notas e não usar metade do arco. Mas são metades, ou metades de metades. Então essa relação nunca é matemática. Existem sugestões de resoluções de problemas, e que na realidade - e aí voltam aquelas perguntas - você se depara com problemas. Eu sempre digo que a gente tem que fazer um estudo inteligente. A primeira coisa é descobrir qual é o problema. Segundo, como vou resolver esse problema. Um estudante de matemática tem que ter a inteligência de saber ler o enunciado do problema. Porque na realidade as respostas estão todas no enunciado, na pergunta. Se você souber, tiver a inteligência pra entender a pergunta, você terá 90% da resposta. No violoncelo, na música é a mesma coisa. No momento que você entendeu onde é que está o problema e que tipo de problema - porque cada problema é diferente - você entende qual é a solução. E aí na pesquisa diária você vai encontrar a solução. Agora tem milhões de sugestões, a literatura de violoncelo hoje está realmente muito boa, na minha época não tinha, por isso que eu ia "filmar" os caras fazendo (risos). Então hoje a literatura tem milhões de sugestões, tem muitas coisas que têm o mesmo pensamento e muitas outras que têm o pensamento diverso daquelas, mas tem, isso que é importante. E você tem material pra garimpar.
Quais foram algumas conclusões que você chegou com suas experimentações ao violoncelo?
A primeira conclusão é justamente na relação do relaxamento. O relaxamento é a coisa principal no violoncelo. Porque? Porque eu vi muita gente que teve problema de tendinite, de quebras de tendões e o diabo, e vejo até hoje. Já tem até uma especialização na classe médica de doenças de músico. E todos aqueles que eu vi que tiveram problemas tinham na mesma proporção tensões. E outros eu avisei, falei "Olha, daqui a dez anos você vai ter problema aqui ou aqui". Porque eles estavam tensionando, não por tensionar, mas forçadamente. E um músculo forçado com certeza vai quebrar. O próprio Pablo Casals já dizia "Um músculo nunca pode usar todo o seu potencial. Tem que ser no máximo a metade". Isso quer dizer o que? Que tem que trabalhar com o relaxamento. Não pode fazer muito esforço, se você fizer esforço vai ter tensão. Se você traçar uma comparação com os próprios esportistas, você vai ver que aqueles que levantam peso o fazem em séries. Série de dez, descansa, série de dez, descansa. Isso aí é o princípio, não fazer cem de uma vez. E o que a gente vê é que o pessoal fica estudando horas e horas, forçando o corpo. Além disso você tem que ter conhecimento do teu equilíbrio, porque cada um tem um equilíbrio. É a mesma coisa pra andar de bicicleta, se você não desequilibrar na hora de fazer a curva e só virar o guidom, acabou. O que quer dizer isso em relação ao violoncelo? Que você tem que conhecer cada pedacinho do teu corpo, se está em equilíbrio com o resto do corpo. Eu já tive um aluno, por exemplo, que tinha tensão no polegar do dedo do pé. Quando eu descobri, a primeira coisa que eu falei foi "Tira o sapato que eu quero ver uma coisa no seu pé" (risos). E ele estava com a meia furada, não queria tirar de jeito nenhum. E eu disse "Se não tirar eu não dou aula!". E aí ele tirou e eu vi que ele estava com o dedo tensionado. E eu disse "Se você tensionar aí, aqui não vai sair" (mexe o braço esquerdo). Então você tem que conhecer o teu corpo. Tem que conhecer o teu equilíbrio sentado, sobre o violoncelo. Essa relação é muito importante pra você tocar.









2.2 – ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO

Entrevista realizada no Solar da Baronesa em São João Del Rei e na Sala Sérgio Magnani da Fundação de Educação Artística, nos dias 8 e 9/09/2011.
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Eu acho que o violoncelo a pessoa pode começar bastante cedo. Eu comecei com a idade de cinco anos e acho que nesta idade já é possível. Talvez corresponda ao momento que a pessoa entra na escola. Esse início para mim não foi problema nenhum. Posso dizer que tive a sorte de começar com professora Nydia Soledade Otero, que foi uma das melhores pedagogas para se iniciar no violoncelo que o Rio de Janeiro teve. Esta senhora não era uma virtuosa no violoncelo, e apesar disso sabia cativar e empolgar as crianças para a música e o instrumento. Ela tocava na Orquestra Sinfônica Nacional, e tinha acompanhado em Paris algumas master-classes de Paul Tortelier. Daí ela guardou algumas ideias para o arco e para a mão esquerda, as quais ela exigia dos alunos e que eram válidas e fundamentais, como, por exemplo, a posição arredondada do braço esquerdo, que é de grande importância para a liberdade do braço. Todo principiante quebra o pulso porque aperta demais o polegar. A dona Nydia usava a imagem, neste caso, que a criança tinha que deixar a mão bastante curva para que um rato pudesse passar por baixo. Imagens deste gênero eram especialidade da Nydia, e elas ficam para sempre na memória das crianças.
Outro ponto importante é como a pessoa está sentada no violoncelo. Quando vejo fotografias minhas tocando violoncelo no início, me dou conta que estava sentado como se deve, quer dizer, sem torcer a parte superior do corpo, o que eu chamo de "saca-rolha". Isto eu não devo ter descoberto sozinho, fazia certamente parte das coisas que a Nydia insistia. Também o ângulo do arco e o ângulo da mão sobre o arco, que o iniciante tende a exagerar para a esquerda e não fazendo uma linha reta do punho com o antebraço, faziam parte das exigências básicas da professora Nydia.
Me lembro também dos meus estudos de Dotzauer, principalmente primeiro e segundo livros, onde vejo escrito muitas vezes em vermelho "de novo", isso significava que era para trabalhar de novo, certamente duas semanas a mais. Quando havia um segundo "de novo" este estava escrito com mais raiva porque vê-se que o lápis entra nitidamente mais profundamente no papel. Alguns estudos chegam a ter três vezes "de novo". Ela era uma pessoa que insistia. O resto eu não me lembro muito bem, mas de qualquer maneira nada chegou a ser extremamente árduo. Eu tinha gosto em trabalhar tudo o que ela pedia.
Para muitas coisas ela não dava a solução, de maneira que o aluno tinha que procurar sozinho. Por exemplo, o prelúdio da primeira suíte de Bach, que eu devo ter trabalhado pela primeira vez com uns seis anos de idade. Tocava-se, naquela época, oito notas por arco. E as mudanças de corda, sobretudo das últimas quatro notas, eram, para um iniciante, extremamente difíceis. Eu devo ter procurado aquilo durante horas cada dia, e me lembro perfeitamente da minha felicidade quando comecei a compreender qual era a solução do problema. Isto para mim foi, sem dúvida, a primeira tomada de consciência de que o trabalho do instrumento é um pouco como a bicicleta: parece impossível no inicio, mas se você insiste acaba conseguindo. Este processo de aprendizado, a meu ver, é válido em todos os níveis.
Mas como você começou a estudar? Foi iniciativa de seus pais, sua?
Eu toco violoncelo graças à grande violinista Mariuccia Iacovino, que faleceu no ano passado (2010) com mais de 90 anos. Mariuccia era esposa do grande pianista Arnaldo Estrella, que deveria me indicar um professor de piano. Como eram praticamente nossos vizinhos, eu lá fui para me apresentar ao Estrella. Mas quem me recebeu na porta foi ela, que, pegando na minha mão, disse: "Você não vai tocar piano, mas sim violoncelo, porque há muitos pianistas e precisamos de violoncelistas para música de câmara". Eu disse "ok", aquilo para mim não fazia muita diferença. Chegando em casa perguntei aos meus pais o que era um violoncelo. Alguns dias depois tive a primeira aula coma professora Nydia, imagino que nos bastidores devem ter acontecido vários telefonemas. Devo dizer que eu gostei logo de cara, apesar que violoncelo naquela época era uma coisa meio fedorenta, por causa das cordas de tripa ao natural, que não eram lisas. Para que as mudanças de posição fossem mais suaves a Nydia passava um pouco de manteiga nas cordas. O calor do Rio de Janeiro, misturado com o suor e a manteiga davam aquele cheiro! Eu me lembro desse cheiro, até o dia que chegaram as cordas de metal e ele desapareceu.
Eu continuei com a Nydia até a idade de 13 anos. Ela não ensinava em nenhuma instituição, mas sim particularmente. Foi sem dúvida uma das mais geniais professoras para crianças e jovens, mesmo a sua técnica sendo limitada. Ela sabia insistir nas prioridades e não era um problema se um aluno talentoso inevitavelmente, a partir de um certo momento, tocasse melhor do que ela. No caso de Antonio Meneses, isso já aconteceu certamente na segunda aula. As aulas na casa da professora Nydia aconteciam sempre aos sábados, porque não havia escola. Ela juntava toda a criançada e passávamos a tarde escutando uns aos outros e comendo pastéis. Eu me pergunto se essa ideia ela não trouxe também das master-classes de Tortelier, que também eram conjuntas. Isto é uma coisa importantíssima, aprende-se muito escutando os outros. Quando fui trabalhar com Navarra as aulas também eram conjuntas e isto para mim nunca foi estranho nem cansativo. Claro, escutar as aulas dos outros tem momentos muito chatos onde não acontece nada, mas a longo prazo aprende-se muito.
Devido ao fato de meus pais quererem que eu tivesse um diploma, e também pelos cursos teóricos, eu entrei no Conservatório Nacional de Música. Era ainda o sistema antigo, com o conservatório preparatório, a partir dos doze anos de idade, e o superior a partir dos dezoito, para um curso de quatro anos. Entrei na classe de Iberê Gomes Grosso, que era uma instituição, um monumento. O Iberê era uma pessoa muito séria e ao mesmo tempo muito brincalhona, era realmente uma personalidade. Nesta época estudavam com o Iberê, entre outros: Atelisa Salles, Marcio Mallard, Guerrinha Vicente, Watson Clis... E esta foi a grande classe do Iberê. Eu ficava um pouco de lado, pois era uns quatro anos mais jovem e escutava com timidez as aulas dos grandes. Não enturmava muito com a classe porque depois da aula eu tinha que voltar para casa e os outros iam com o mestre "rezar" na Capela. O Iberê adorava uma cachacinha, todos iam para esse bar que se chamava "Capela".
Mas o Iberê era seríssimo no trabalho, ele não suportava um aluno desleixado, e isto nos marcou muito. Iberê tinha sido discípulo de Alexanian, isto significava muito son filé (arco lento no cavalete) e muita articulação (ginástica de dedo – o exercício de Casals na corda de dó do método do Alexanian). Com esses exercícios Iberê deixava muita margem livre para que cada um desenvolvesse a sua maneira de tocar e a sua sonoridade, analisava-se e explicava-se muito menos ao aluno naquela época do que hoje. Eu sou também muito grato ao Iberê pelo fato dele fazer os alunos trabalharem uma suíte de Bach por ano. Quando entrei na sua classe refiz a primeira suíte, depois no ano seguinte a segunda e por aí em diante, você ficava o ano inteiro com uma suíte na estante. Com dezenove anos cheguei na última suíte, a sexta. Eu vejo com uma certa apreensão que hoje em dia pretende-se aprender obras difíceis, como uma suíte de Bach, em pouco tempo. Para Iberê havia também os caprichos de Servais, mas sobretudo os doze de Piatti, que eram obrigatórios. Ficava-se quatro ou cinco meses trabalhando um capricho, e tenho certeza que toda a técnica que eu tinha na época foi feita com Piatti. Já falando um pouco da reestruturação, estou convencido que não se deve trabalhar obras rapidamente, pois não se assimila muito. O estudo é medicina, é homeopatia, tem que se dar tempo àquilo para fazer efeito. Outro dia um aluno me perguntou "É bom trabalhar uma escala cada dia numa tonalidade diferente?". Eu acho que não. Um estudante deve ficar algumas semanas numa tonalidade para compreender as peculiaridades e as características de cada uma delas. Quando a pessoa está começando a entrar nesse mundo da técnica, não pode querer rapidez. A técnica é homeopatia, é uma coisa que vai lentamente. É claro que com dezessete anos esta não era a minha situação. Neste momento, com stress de final de escola, vestibular, comecei a ter problemas sérios com a parte superior do arco, que cansava muito. Eu me lembro que mal conseguia chegar ao final de um prelúdio de Bach. A crispação do braço estava muito grande, mas eu fui levando a coisa, e tinha uma certa timidez de comentar meus problemas de arco com o Iberê.
Nesta altura (1969), para mudar de ideias, resolvi me inscrever no curso de música de câmara do festival de ouro preto. Tinha um professor francês, eu pensei "Deve ser divertido, vou fazer música de câmara durante um mês em Ouro Preto, deve ser mais fácil, e talvez o braço desemperre". Este festival em Ouro Preto mudou a direção da minha carreira, pois fui premiado com uma bolsa de estudos para a Alemanha. Estou seguro que aprendi muito com Iberê, ele exigia muita coisa de fraseado, perfeição, ele não suportava uma coisa desleixada, musicalmente ou tecnicamente. Ele era uma pessoa muito digna, sempre muito arrumado. E é gozado, ele tinha um lado extremamente carioca, de futebol, de cachaça. Adorava praia - morava no Leme - apesar dele ser de Campinas, mas foi para o Rio muito cedo. Sobrinho-neto de Carlos Gomes, pertencia à família de músicos talvez mais importante de todo Brasil. Então, continuando os meus estudos na Europa com Navarra, a reestruturação da técnica foi inevitável.
Comente sobre sua trajetória estudantil e profissional.
A minha trajetória aconteceu sem grandes interrupções. Fui para Europa e trabalhei cinco anos com Navarra, como estudante. Três anos do que seria hoje em dia um "Master" em instrumento, ou seja, um diploma final de conservatório superior. Naquela época o professor decidia quanto tempo o aluno ia trabalhar com ele, os critérios eram bastante diferentes do que hoje em dia. Fundamental era a relação entre idade e capacidade. Um virtuoso de vinte e cinco anos muitas vezes não era interessante para a escola, porque não tinha mais tempo suficiente para uma inevitável reestruturação da técnica. Mas um jovem de dezoito anos com problemas, mas com possibilidades de grande desenvolvimento, era viável como aluno, como, por exemplo, vários diplomados do conservatório de Paris que, apesar dos méritos, reestruturaram a técnica com Navarra na Alemanha, onde a idade média para o diploma era entre 24 e 25 anos, o que é muito mais realista. Fiz, portanto, três anos que correspondem ao "Master" e depois mais dois do que seria uma pós-graduação chamada "Exame de Solista", com um exame de admissão muito puxado. Esta foi a época dos concursos, e também quando comecei a trabalhar como assistente de Navarra. Depois disto vieram dois anos de orquestra e os prêmios nos concursos de Moscou e de Belgrado, que ajudaram de certa maneira. No início, quando você ganha um prêmio, tem gente que se interessa por você e há muitos concertos, mas isso não dura muito e logo acaba. Este foi o momento em que abandonei a orquestra, pois comecei a gostar muito de ensinar. Nessas horas a pessoa nunca sabe se está agindo bem ou não. A orquestra foi substituída por uma coisa muito importante, um quarteto de cordas do qual fiz parte durante um ano e meio. Por uma coincidência o quarteto funcionava na mesma região, em Hannover. De certa maneira "peguei o bonde andando", pois o violoncelista tinha abandonado o quarteto subitamente, e eu tive que passar semanas terríveis, as noites inteiras com um "capacete", fones, escutando discos de quartetos e tocando junto. Eu tinha que digerir todo este repertório, e meus colegas foram de extrema paciência comigo, ensaiaram mil vezes coisas que eles não teriam a necessidade de ensaiar, pois já conheciam. Mas eles refizeram aquele repertório todo comigo, e foi uma experiência extraordinária, apesar de eu ter sentido imediatamente, já no segundo ensaio, que eu não era um músico de quarteto. Apesar de o quarteto ter funcionado muito bem, eles me adoravam e eu os adorava, humanamente a coisa funcionava. Mas a maneira de tocar num quarteto é muito diferente, mesmo comparando com a orquestra. Ser violoncelista de quarteto é um pouco como uma vocação, é uma forma de tocar bastante especial. Do ponto de vista humano, é realmente um casamento a quatro. Casamento a dois já é complicado, a quatro... Mesmo se durante um ano e meio a coisa funcionou maravilhosamente, eu já via perfeitamente onde viriam os problemas se eu ficasse mais tempo. Mas foi uma experiência extraordinária.
Nesses cinco anos houve momentos de grande liberdade onde eu era "freelance", não tinha orquestra nem quarteto e pouco ensinamento, só concertos e viagens. Foram anos ótimos. Depois, contra toda a expectativa, uma professora de violoncelo na universidade de Detmold por razões completamente inesperadas, problemas de família, se demite, e a vaga ficou aberta. No início eu não me interessei. Navarra nunca influenciava os alunos nessas decisões. Alguns até não compreendiam isso. A filosofia dele era ajudar enquanto professor, e ajudava muitíssimo. Eu devo dizer que não somente me tornei muito amigo dele, mas ele foi para mim um professor não só de violoncelo, mas de tudo. Uma pessoa extraordinária. Mas com respeito à carreira era "Cada um por si". Com ele tinha sido assim. Navarra foi filho de gente da terra do interior da França e ele se fez absolutamente sozinho. Com dezesseis anos recebeu um "Premier Prix" e se viu em Paris completamente sem dinheiro e com aquele diploma na mão. Ganhava a vida tocando em cinema mudo. Depois tocou durante 22 anos em orquestra, até ser reconhecido como um virtuose. Claro, ele começou muito cedo, depois de 22 anos de orquestra tinha somente 40 anos. Voltando a Detmold, quem me influenciou foi um famoso violista da época chamado Bruno Giurana, que ainda vive, dirige de vez em quando e ensina como professor honorário na Academia de Fiesole na Itália. Apesar da diferença de idade - 20 anos a mais – nós éramos bons amigos e foi ele que me telefonou: "Eu soube que você não se candidatou para a cátedra", eu respondi que nâo estava interessado, "a Alemanha eu já conheço, eu quero ir para França...", eu disse umas besteiras assim. E ele passou uma hora no telefone me convencendo: "Você é um idiota se não se candidatar, lugar igual a esse não existe outro!". E então, para agradá-lo, eu me inscrevi e me tornei professor em Detmold, onde fiquei 30 anos. Nos primeiros anos eu me tornei então colega do Navarra e ele me deu muitos conselhos, além de "herdar" alguns alunos quando a sua classe estava cheia demais. Era outro nível de contato com meu antigo mestre, e isso foi muito bonito. Eu cheguei como um brasileiro todo temeroso e Navarra demorou para me registrar. Na classe ficava todo mundo sentado e ninguém sabia quando ia tocar. Ele me olhava e dizia "Agora é o argentino que vai tocar." Eu não me preocupava, pois sabia que um dia ele iria aprender o meu nome e entender que o argentino era brasileiro. Demorou um ano! O maior elogio de Navarra na aula - quando o aluno tocava maravilhosamente - era: "Não está mal". Quando ele dizia "Não está mal" você podia ficar contente. Um dia escuto o mestre dizer a um ex-aluno, enquanto eu afinava: "Você vai ver, esse aí toca muito bem". Essas coisas ficam na memória. Acho que nunca toquei um Katchaturian tão espetacular. A pedagogia dele era assim. A partir daí ele soube que eu era um aluno sério, que "mandava brasa", e começou a me respeitar. Alguns anos depois houve o momento em que ele me chamou para ser seu assistente e depois, na última fase, quando eu voltei a Detmold para ser professor, éramos colegas. Esses degraus de afinidade eram muito claros para ele: Você é estudante, você é amigo, você é colega. Ele me tratava sempre pelo tu, e eu óbviamente sempre o tratava pelo vós. Isso era o velho estilo...
Você já passou por alguma reestruturação técnica? Se sim, como foi?
Eu acho que meu caso não foi excepcional. Vários fatores como o final da escola, vestibular, stress psíquico de todos os jovens neste momento, aquela indecisão, mas sobretudo, a meu ver, o lado físico, o fato do corpo chegar ao seu desenvolvimento adulto, e a necessidade de tocar não mais como um jovem mas sim como um profissional, facilitam a entrada numa crise instrumental que pode tomar, a meu ver, uma proporção bastante dramática. Você pode observar que quanto maior for o talento ou se se tratar de um "prodígio" mais difícil será passar por esta fase. Claro que o professor pode ajudar e aconselhar muito numa hora assim. Quando fui para Europa eu estava num estado no qual mal conseguia chegar no final de um prelúdio de Bach. Tocava bem, a mão esquerda funcionava, mas o braço direito estava absolutamente emperrado. Me lembro que toquei para Navarra o concerto de Schumann, e o prelúdio da Sexta Suíte de Bach. Ele tinha, claro, uma certa experiência e me disse: "Olha, se você quiser trabalhar comigo você vai ter que fazer seis meses de corda solta, exercícios e mais nada". E eu me lembro que respondi: "Maestro, o senhor faça comigo o que quiser, porque de qualquer maneira eu não sei tocar". O absurdo no sistema atual nas Universidades de música, que consideram os estudos instrumentais quase como uma ciência, é que não colocam o tempo necessário à disposicâo do aluno para reestruturar sua técnica. Estudar entre a idade de 18 e 24 anos instrumentos como o piano e as cordas é ter de 5 a 6 horas por dia de trabalho consigo e o instrumento e não ser ocupado com projetos muito interessantes, mas que não são fundamentais. Naquela época um Navarra, por exemplo, exigia que ELE decidisse quem ia tocar na orquestra, quem ia fazer música de câmara, e durante os primeiros três semestres ninguém fazia mais nada além daquilo que ele quizesse. Eu passei realmente um semestre inteiro fazendo corda solta e um concerto de Romberg (para não desesperar musicalmente), além de um estudo aqui e outro ali. Navarra foi um dos professores que mais dava importância à reestruturação técnica. Tortelier também, mas era uma personalidade mais difícil, Gendron muito menos e com Rostropovich era cada um por si, ele não dizia quase nada de técnica. Navarra - e isso talvez um pouco como o Iberê, num outro nível - não suportava que alguém tocasse uma peça que não estivesse, do ponto de vista instrumental, perfeita, porque considerava que era blefe, que era amador. Ele estava muito consciente dos perigos físicos do violoncelo, sobretudo numa formação de músico de orquestra - depois de vinte anos de repente emperra aqui, emperra ali. Ele dava uma importância enorme da pessoa ter uma maneira de tocar que não fosse contra o físico.
Na mão esquerda aquilo que ele exigiu na reestruturação foram coisas que eu já conhecia, mas nunca tinha chegado às últimas consequências (como se voce soubesse onde fica o "fitness center" mas nunca ter entrado). Ele fez trabalhar muitos exercícios, muito Feuillard e coisas assim, e eu me lembrava constantemente da Nydia com a história do punho redondo e do Iberê com o método de Alexanian. Então, os exercícios de mão esquerda e também a maneira de fazer escalas não eram "chinês" para mim, aquilo tudo eu sabia, apesar de não conseguir fazer. Comecei o trabalho com Navarra em abril e em julho eu fui fazer um curso de verão, onde ele me botou trabalhando com um assistente italiano, já que eu não tocava nada além de corda solta e escalas - das quais eu não conseguia tocar as duas últimas oitavas porque a coisa não estava coordenada. Você vê mais ou menos a situacâo: eu tocava o concerto de Schumann quando saí do Brasil, mas era incapaz de tocar as duas últimas oitavas da escala de quatro oitavas como se deve. Todo o meu Schumann era, certamente, condicionado a este nível técnico! Eu passava horas e horas trabalhando aquilo, certamente com pouco resultado.
Eu não me lembro, mas minha mão direita - ou seja, a ponte que liga o braço ao arco -devia estar muito crispada, com pouca flexibilidade, como um automóvel sem amortecedores (faz movimentos com o braço inteiro, sem flexibilizar a mão). O polegar devia estar apertando enormemente, e aí comeca o bloqueio do braco. Navarra insistia muito na flexibilidade do punho e na consciência da atividade de cada dedo da mão direita, fator primordial da sua técnica de arco, que decorria dos princípios de Flesch, com o qual ele pode discutir e que o influenciou decisivamente. Aquilo para mim era complicado, pois não tinha o hábito de trabalhar o arco neste nível. Navarra dizia sempre quando chegava um aluno "Você precisa ter paciência durante dois meses". Na realidade é bem mais do que isso. Me lembro de ficar no primeiro semestre horas e horas, homeopaticamente (aquilo cansava a cabeça, aí eu fazia uma pausa) na frente do espelho procurando e exercitando. Apesar de não conseguir fazer aquilo que ele queria eu sabia muito bem onde eu iria chegar, sabia perfeitamente o que ele queria. Navarra tocava muito na aula. Nós estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra na memória, você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo. Naquela época era obrigação de cada aluno escutar as aulas de todos os outros, era um fator extremamente importante. As escolas superiores hoje em dia dificultam isso, porque os alunos estão exageradamente ocupados. Um aluno que diz não ter tempo para escutar a aula de outro que toca a mesma peça é inimaginável, incompreensível! Eu estou seguro que num período de quatro a cinco anos de trabalho com um mestre, aprende-se não menos escutando os outros do que na própria aula.
Com Navarra a reestruturação técnica acontecia com exercícios bastante definidos. Havia o exercício de dedos no talão, para provocar a forca e a flexibilidade dos dedos, sobretudo o relaxamento do polegar. O equivalente na ponta provocava a estabilização do primeiro dedo como ponte por onde passa o peso dos ombros para chegar ao arco, e a consciência do contrapeso. Não se deve esquecer que em toda performance física a flexibilidade ou impressão de facilidade e leveza só será possível se os alicerces necessários estão bem estáveis. "Flexibilidade não é moleza" dizia Navarra frequentemente. Para esses exercícios que também eram trabalhados no ponto de equilíbrio do arco (spicatto) usava-se o sétimo estudo de Duport em inúmeras variações. Outro exercício excelente fazia-se com o segundo estudo de Duport, com arcadas especiais e numa velocidade enorme. Aquilo obrigava você a relaxar o braço, o braço entendia a coisa, senão você não conseguia tocar. Eu me lembro que com esses exercícios de arcos rápidos o braço liberou. Na base, o trabalho do arco (son filé) faz-se lentamente. Quando a pessoa está trabalhando arco, imagina uma coisa lenta, e isso é válido. Mas os exercícios de rapidez de arco, e mesmo de muita rapidez, são importantíssimos, eles provocam de repente um clique. Eu me lembro desse dia exatamente. Estou convencido de que o progresso técnico não são linhas contínuas. De repente faz clique. Você investe, investe e aquilo fica como burro na ponte, não avança, e de repente funciona. E o processo inverso é a mesma coisa. Quando você começa a usar o tanque de reserva, ou a queimar as reservas, parece que ainda funciona e de repente voce nâo está mais em forma. Mas precisará de dois meses árduos para voltar ao nível de antes. É estranho isso. Da mesma forma o trabalho com um mestre exige muita confianca e paciência, pois no início pode-se mesmo ter a impressão que a coisa regride. Os momentos de progresso são repentinos e acontecem só depois de grandes fases de investimento. O professor deve explicar com palavras simples, a explicação não pode ser complicada, palavras simples, metáforas. Insisto na necessidade de observar o professor, porque aquilo fica na memória visual e depois você senta na frente do espelho e tenta fazer uma coisa parecida. Com um exemplo nítido na memória tudo fica mais fácil e a confiança é maior. O professor estará sempre à disposição, claro, para dizer se tudo está indo numa boa direção. Um outro elemento fundamental na reestruturação é a posição ou postura, quer dizer, a maneira como se está sentado com o violoncelo. Para mim isto foi relativamente fácil, certamente graças à Nydia e ao Iberê, que insistiam neste aspeto. O corpo não deve sofrer nenhuma transformação para se adaptar ao instrumento. A posição tipo "saca-rolha" da qual falamos antes é um defeito muito sério. Eu noto que há um grande número de alunos que têm esse problema, e que não estão conscientes disso. Com uma postura assim a coisa já emperra muito mais facilmente. Navarra me dizia às vezes "Teu espigão está alto demais ou baixo demais" mas, no mais, parecia sempre contente com minha posição. Resumindo, a crítica da posição é o primeiro ponto numa reestruturação técnica.
Dois elementos que são também importantes numa reestruturação são a respiração e o que chamo de fluidez do arco. Tortelier fala da respiração consciente já no início de seu método, aconselhando exercícios simples, como escalas de duas oitavas com um arco lento, para baixo inspirando e o arco para cima expirando. Isso é muito bom, pois desenvolve o hábito de não parar de respirar diante de um problema técnico, o que acontece mais frequentemente do que se pensa. Quanto à fluidez do arco, trata-se de mantê-lo sempre no bom eixo, de maneira que nada impessa seu caminho em qualquer velocidade (distância do cavalete) desejada. O que se chamava de arco "paralelo". Eu prefiro a expressão "arco sem tendência" de mudar de velocidade (distância do cavalete) independente da vontade do artista. Noto que muitos estudantes não estão conscientes da importância disso e das consequências musicais (ritmo, acentos, dinâmicas, colorido) que uma boa ou má fluidez do arco pode provocar. Na classe de Navarra esse ponto, como também a afinação, eram óbvios. Ele explicava uma vez e você tinha que demonstrar ter aquilo como prioridade fundamental. Como as aulas eram num bloco de quatro dias por mês e com uma noção de disciplina um pouco antiga, voce não podia desleixar, sabendo que a aula podia acabar depois de três minutos se o mestre notasse que o aluno não tinha feito o esforço que ele esperava. (Imagine isto hoje...). Ele tinha uma frase terrível: "Você pode enganar a você mesmo, mas não a mim, vai trabalhar". E a aula acabava. Esse lado da motivação psíquica, da pessoa realmente fazer um esforço, é extremamente importante, ou seja, o "medo" da reação do seu professor, dele ficar desapontado e, sobretudo, as aulas sendo conjuntas, não querer passar vergonha na frente dos colegas. O professor é como um médico, mas os colegas representam um lado psicológico importante para que a medicina funcione. Nessa reestruturação técnica, que necessita muita coragem, esses fatores também têm um papel importante. Você quer o progresso, você insiste para poder levantar a cabeça na frente do professor e dos colegas que estão assistindo a aula. Não se deve menosprezar esses fatores.
É interessante observar como uma reestruturação técnica pode acontecer em vários momentos da vida, mesmo anos depois da época de estudos. Me lembro, por exemplo, durante a minha época "freelance", sendo já um profissional que tem a sensação de poder realizar o que quer com a mão esquerda, de gravar para a televisão no Rio de Janeiro a Sonata Arpeggione, e ver o programa alguns dias depois. Gostei musicalmente de muita coisa, também o arco e a mão esquerda me impressionaram positivamente, mas eu fiquei chocadíssimo com o vibrato! Eu me disse "pensei que eu vibrava, mas o vibrato está uma catástrofe". O vibrato era o tempo todo rápido demais, e não mudava. Isso depois de toda a reestruração técnica, eu já era profissional, já tinha ganho concursos. Me dei conta que ali havia uma coisa enorme a descobrir. Resolvi então atacar o problema e trabalhei o movimento do vibrato durante uns seis meses, uma meia hora por dia, para que se tornasse mais condutível e para que eu tivesse maiores possibilidades de expressão. Descobri muita coisa não somente para o vibrato, mas também, por exemplo, para poder tocar rápido. Não quer dizer que eu não sabia tocar rápido antes, mas certamente gastava muito mais energia do que precisava. O grande responsável era evidentemente o polegar, e eu me lembrava de uns comentários de Navarra a este respeito durante meus estudos. Hoje estou seguro que ele não considerava na época o trabalho no vibrato uma prioridade para mim e que eu teria que desenvolver outras coisas antes, esperando que um dia me interessasse pelo vibrato, o que por sorte aconteceu. Estes são os grandes mestres que trabalham as prioridades na ordem certa. Uma vez, para um jornal francês, eu disse que um professor como Navarra era para toda a vida, pois muitos dos seus ensinamentos só revelam seu sentido com o passar do tempo. Essa história é interessante, ela revela que uma primeira reestruturação é imprescindível entre 18 e 23 anos, quando o físico se desenvolve como adulto, junto com a necessidade de uma técnica profissional, mas depois pode ocorrer a qualquer momento para complementar alguns aspectos, se a crítica e a vontade existirem no artista.
Qual a importância que você atribui ao seu processo de reestruturação?
Importância? Capital! Se eu não tivesse feito isso eu não poderia tocar violoncelo! Eu tive a sorte de ter caído nas mãos de um professor que queria e podia me ajudar. Também as instituições sabiam o que era necessário no emprego do tempo para fazer um violoncelista profissional. Alguns desses princípios, fundamentais para o sucesso de uma formação instrumental (cordas e piano), desapareceram completamente das universidades hoje em dia. Isto é preocupante. É uma diferença muito, muito grande você tocar um instrumento como adolescente e fazer isso profissionalmente, quando a perfeição começa a ser necessária em tudo o que se faz, desde a corda solta. Por isso a reestruturação da técnica é fundamental. O meu respeito pelo pedagogo que exige isso é enorme, não se contentando com os lados talentosos ou as facilidades de um aluno, mas investindo nas coisas básicas onde há lacunas. Evidentemente este tipo de trabalho requer mais confiança, paciência, esforço e tempo. Nos grandes talentos, ou mesmo prodígios do violino ou do piano que "quebram", ou não sabem mais de repente como a coisa funciona, falta o conselho de um professor e também a coragem para refabricar ou reestruturar a técnica. Nessa hora é necessária certa humildade para reconhecer a urgência deste trabalho.
Quais são as dificuldades que podem ser encontradas quando se reestrutura algum aspecto técnico?
Falta de paciência, o desespero, a pessoa se jogar num lago com uma pedra no pé (risos). É claro que a reestruturação técnica não é como ir no "fitness center", requer mais paciência e intuição. Fundamental também você ajudar a memória observando o professor e as aulas dos colegas, onde você está muito mais tranquilo e objetivo do que na própria aula, onde se está sempre um pouco "emocionado". Quando eu escutava Navarra e observava como ele trabalhava com outro aluno o mesmo problema da minha aula, eu compreendia muito melhor. É importante você escutar as aulas de outras pessoas, mesmo se há momentos vazios e chatos, mas a longo prazo aprende-se muito. A intuição, com a ajuda do professor, de se estar trabalhando na boa direção, e mesmo se nada funciona ainda como você imagina, sentir que "a direção é essa, eu vou chegar lá" necessita muita paciência, pois em certo momento voce chega a tocar pior do que antes. Você chega mesmo a não poder tocar! Como jovem, por exemplo, eu tocava oitavas quando apareciam e não me preocupava, mas, quando comecei a trabalhar oitavas como se deve, o músculo do polegar cansava fácilmente e eu tinha que parar. Isto é normal. A intuição deve dizer de insistir pouco a pouco até o músculo se firmar. Esses processos são sempre bastante lentos e um perigo na reestruturação é o aluno abandonar a "ginástica" antes do resultado. Resumindo, paciência, confiança na sua intuição e nos conselhos do professor e não abandonar o processo de fabricação antes de um verdadeiro resultado me parece ser a boa receita.
Quais são as estratégias que você utilizou para reestruturar um aspecto técnico?
O lado psicológico que é o da confiança: saber que você vai chegar lá. E depois é o investimento, eu me lembro de ter feito, por exemplo, cinco períodos de vinte minutos só de cordas soltas e exercícios. Antes de dormir, ir para o sótão ou porão e trabalhar mais uma hora extra, coisas assim. Estar num grupo positivo também ajuda muito. Você ter colegas, não ser um estrangeiro na classe, procurar o lado social, isso é extremamente importante e depende também da vontade do professor de criar uma atmosfera entre os alunos nas aulas conjuntas, conversas nos bares, passeios etc. Hoje em dia eu tenho grandes dificuldades para encontrar um horário em que durante três horas os meus dez alunos possam estar todos ao mesmo tempo no mesmo lugar, é impressionante. O erro está no sistema atual das escolas, sem dúvida alguma. A ocupação do aluno deveria permitir que um professor de instrumento principal violoncelo (não é matéria paralela) pudesse reunir sua classe com mais facilidade. Isso seria óbvio, mas hoje em dia é bastante impossível. Alguma coisa está errada. Então, essa força do grupo, de você ter amigos com quem discutir e que estão passando pela mesma coisa, é uma grande ajuda. Eu tive dois momentos durante a época difícil da reestruturação técnica onde quem me ajudou não foi o Navarra, mas justamente os colegas que escutavam a aula. Estou seguro que eu também ajudei vários colegas da mesma maneira. Depois da aula você está na cantina conversando e o teu amigo violoncelista diz "Mas Márcio, porque você não faz assim? Eu acho que o que o Navarra está querendo é isso!". Entende? E eu dizia "Mas é claro! Porque que eu não pensei nisso antes?". Coisas assim só podem acontecer se você tem colegas escutando a tua aula, e vice-versa. Outra estratégia tem a ver com os momentos de descanso. Voce já notou que se, por uma razão ou outra, a pessoa não pega no violoncelo durante quatro dias, no quinto tudo funciona muito melhor (risos). A conclusão errada seria: "Não vou trabalhar mais, porque quando a pessoa não trabalha tudo fica melhor". A razão tem a ver com o físico e a cabeça, que necessitam uma pausa de descanso. A cidade pequena dá ao estudante nesse sentido grandes vantagens. Não há nada para fazer, trabalha-se muito, economiza-se e quando, depois de algumas semanas, chega-se a uma saturação, deixa-se o violoncelo na cidade pequena, pega-se um ônibus com o dinheiro economizado e faz-se três dias no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, sem violoncelo, para ir ao concerto, ao museu, ao nightclub, ao show, etc. Você volta com a cabeça mais leve e deu três dias ou quatro ao físico e ao cérebro para se refazerem. Tudo vai funcionar melhor, se o investimento anterior foi suficientemente grande. Alunos que mantém um rítmo assim conseguem um desenvolvimento mais sadio. Eu acho que as estratégias são mais psicológicas do que qualquer outra coisa. Por exemplo, o tempo de repetição de um movimento ou de uma passagem não deve ser demasiado longo, mas sim em várias doses "homeopáticas", com atividades diferentes entre elas. A concentração nesse gênero de coisas não dura mais do que vinte minutos, isso é provado. Os exercícios de reestruturação técnica devem ser feitos assim, homeopáticamente. Mesmo para um movimento simples, como uma mudança de posição, eu acho que vinte minutos é quase demais. Fazer um exercício cinco vezes quinze minutos, dá uma hora e meia. Mas se você fizer uma hora e meia sem parar é muito menos produtivo.
Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser reestruturado?
Na verdade o professor e o aluno que é crítico e consciencioso estão sempre reestruturando algum detalhe instrumental. São os defeitos que se pode adquirir pouco a pouco ou simplesmente coisas que ainda não estão bem assimiladas e que o professor deve constantemente relembrar. Compreende-se tudo rapidamente na cabeça, mas até o físico assimilar e coordenar um movimento ou as mãos se "modelarem" para o instrumento é preciso um certo tempo e um trabalho de educação árduo. Acho que a reestruturação da qual você está falando é aquela essencial que tem a ver com estudos profissionais e que em regra como já vimos ocorre entre os 16 e 22 anos, quando o físico já se desenvolveu como adulto. O lado intelectual também tem grande importância. Para evitar problemas no futuro, a técnica numa reestruturação é consciente. Sabe-se, quando se trabalha, exatamente o que se está fazendo, muitas vezes ao milímetro, para depois com um grande esforço tentar não pensar em nada disso quando se toca. A intuição, o talento até chegar nos prodígios infelizmente não são uma garantia para a idade adulta. Quanto maior o talento mais difícil e sensível será a conscientização da técnica. Um trabalho assim não deve ser feito com crianças ou adolescentes, pois corre perigo de inibir a naturalidade e o amor pela música e pelo instrumento. A "ciência" deve se resumir a algumas poucas ideias simples e claras, deixando muito campo para a intuição, energia e musicalidade espontânea. Sempre recusei e lutei para convencer os pais de alunos com grande talento de não retirarem os filhos da escola com o pretexto de poderem estudar música o dia inteiro. Isto não é bom. Cada coisa no seu momento.
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
Primeiramente fazer soar o instrumento da melhor maneira possível. Isso é a técnica de arco básica, a corda solta de mesma velocidade. Depois exercitar o que chamo de condutibilidade do arco, ou seja, a capacidade de poder realizar qualquer ritmo e qualquer dinâmica que a música exija, controlando as diferentes velocidades do arco e as suas consequências. A reestruturação da técnica de arco é quase sempre um trabalho de flexibilização para acabar com tensões e crispações. Para o braço esquerdo é a mesma coisa, o objetivo é exercitar o seu relaxamento e a articulação dos dedos para que se consiga uma regularidade absoluta das notas, velocidade e vibrato. A técnica de todos os instrumentos, também dos cantores, é fisicamente e psicologicamente ligada a tensões físicas. Para um cantor, um trombonista ou um flautista fazer funcionar o instrumento ou a voz num nível profissional, é um grande esforço físico. Porém este esforço não deve se transformar numa tensão, numa luta. A técnica profissional é baseada na ginástica necessária, para que os músculos que têm que ser estáveis estejam estáveis e aquilo que tem que ser flexível seja flexível. O violoncelo é um instrumento que necessita de bastante peso sobre o arco (bem mais do que o violino). Os exemplos demonstram que é praticamente impossível uma criança ou um adolescente conseguir gerar esse peso, como faria um adulto. Para mim isto poderia ser uma razão porque os prodígios como no piano ou violino não existem no violoncelo. É muito interessante notar que um adolescente que "manda brasa" para ter uma grande sonoridade no violoncelo, mesmo se um pouco duro e crispado, terá como adulto uma expressão melhor do que aquele que sempre quis tocar "bonito" e inevitavelmente demasiado leve e superficial. Resumindo, voltamos à ideia de base como qual o momento de uma séria reestruturação da técnica não será antes do pleno desenvolvimento físico..
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos seus alunos?
O que eu vejo é, em geral, um grau de tensão maior ou menor. Aquilo que se refaz é mais ou menos a mesma coisa. O que muitos grandes artistas se lembram e dizem numa frase curta, significa na realidade um grande esforço: "fui trabalhar com David Oistrakh, recomecei do zero" ou "Fui trabalhar com Martha Argerich, recomecei do zero". Antonio Meneses foi trabalhar com Janigro e recomeçou do zero. Eu fui trabalhar com Navarra e realmente recomecei do zero. Evidentemente trata-se de um recomeçar do zero já conhecendo muita coisa, mas tudo deve de uma certa forma ser refeito num parâmetro profissional. Algumas coisas vão vir mais facilmente, outras mais dificilmente, mas isso só se saberá mais tarde. Eu acho que a reestruturação será sempre necessária independentemente do talento, da bagagem que a pessoa já traz. É interessantíssimo observar que um talento maior não será uma garantia de sucesso na reestruturação técnica, muito pelo contrário, pode ser até psicologicamente um empecilho. Muitas vezes quanto maior for o talento, menor parece ser a paciência para um trabalho do gênero. Quando fiz a minha reestruturação técnica não conseguia tocar, então eu não tinha alternativa. Mas se eu fosse um virtuoso, digamos um Menuhin, poderia me perguntar: "Mas porque que eu preciso disso?", e continuar impressionando com meu talento. Infelizmente a probabilidade é muito grande da técnica de repente vir a ter sérios problemas.


Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos técnicos do aluno?
Sim, mas do repertório adequado à reestruturação. Isso é, na pedagogia, um fator extremamente importante. Dito claramente, a qualidade de um professor pode ser avaliada em grande parte pelas obras que ele faz o aluno trabalhar.
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos em um aluno, você os faz ao mesmo tempo?
Boa pergunta. Não.
Porque?
É claro que num instrumento de cordas o arco vem primeiro. Se você faz uma reestruturação técnica tem que começar com a qualidade da "voz", ou seja, com a corda solta. Pode-se imaginar um pouco como o motor de um órgão que produz o ar necessário para as notas, ou a mecânica que Steinway produz para os pianistas. O arco é sempre a primeira preocupação, ele é o Artista! Navarra criticava sempre: "Você trabalha a mão esquerda e esquece o arco! Trabalhe a mão esquerda E trabalhe o arco!" Quando a mão esquerda não está segura você tenta fazer tudo ao mesmo tempo (esquerda e direita, notas e música) e há uma acumulação de dificuldades que vai chegar dificilmente a um bom resultado. Eu considero um excelente método de exercitar separadamente a mecânica das notas com um ritmo regular, como se fosse o afinador de um piano, de maneira que ao trabalhar a frase (ritmo, dinâmica), a concentração esteja realmente no arco, ou seja, na música que se está realizando, e não somente no fato de tocar as notas certas e afinadas. Nota-se que a concentração da maioria dos alunos que chegam ao nível superior e ao inevitável momento de uma reestruturação, está mais habituada a controlar as notas do que o arco. Usando um repertório adequado deve-se despertar e elevar pouco a pouco a crítica e os objetivos musicais que vão justificar o esforço para alcançar uma técnica condizente.
Da sua maneira de tocar o que você desenvolveu sozinho?
Na realidade tudo! Mesmo quando eu passava horas na frente do espelho tentando imitar o meu professor, aquilo era eu. De qualquer maneira você vai ser sempre você. Toma-se um modelo, mas depois tudo é você que desenvolve.
Houve alguma outra coisa que você mudou tecnicamente depois de trabalhar com o Navarra, por conta própria? Como por exemplo o caso do vibrato?
Assim, de maneira radical foi só o vibrato. Mas é claro, o "escutar e não gostar" é diário. Você está vendo, controlando e ouvindo diariamente. Com o passar do tempo tenho cada vez menos a impressão de estar procurando coisas que nunca soube fazer, como na época dos estudos ou como no exemplo do vibrato. Apesar de ter dedicado numa época muita atenção ao controle das mudanças de posição e sua coordenação, o que me elucidou muitas observações de Navarra, o trabalho técnico passa a ser mais uma manutenção do que uma viagem de descobertas! Creio que já comentei isso antes, mas todas as "descobertas" que realmente aconteceram mesmo vários anos após a época estudantil eram simplesmente a compreensão daquilo que o professor exigia. Um pouco diferente da mentalidade atual e considerando que são poucos os mestres que podem exigir isto, eu estou contente de ter levado muito a sério um dos conselhos famosos de Navarra: "Durante os quatro ou cinco anos de estudo comigo você faz o que EU quero, e depois tem toda a vida para fazer o que VOCÊ quer"....

É interessante contar a história de Navarra, ele fez a técnica de arco dele toda depois de uma conversa de trinta minutos com Carl Flesch. Se você vê fotografias de Navarra antes dessa conversa, existe uma famosa dele tocando com Cortot já bem velho, ele já era um jovem virtuoso, e você a mão do arco dele e diz "Mas o que é isso?". Ele teve a coragem de fazer a reestruturação técnica depois de já ser um virtuoso. Na verdade, ele SE reestruturou. Isso ele contava assim e não parecia nada, mas se você pensa bem é uma força de vontade incrível. Ele tocou durante 22 anos em orquestra, e durante os intervalos, enquanto os colegas iam na cantina beber ou comer alguma coisa, ele ia para trás das cortinas e ficava fazendo os exercícios que tinha aprendido com o Flesch. Mas o contato com Flesch durou no máximo meia hora, num camarim depois de um concerto. É claro, Flesch deu atenção a Navarra porque Navarra era conhecido na época, era um jovem virtuoso francês. Navarra deve ter perguntado a ele "Olha, o seu arco é uma maravilha, como é que você faz isso?". E Flesch deu, em meia hora, algumas dicas para ele. E com essa ideias Navarra foi para casa e reestruturou a técnica. E porque ele sentiu a necessidade de fazer isso? Eu nunca perguntei a ele, mas certamente ele deve ter pensado que se continuasse tocando daquela maneira antiga, não iria longe.






3 - CONCLUSÕES
Neste capítulo serão cruzadas as principais ideias apresentadas pelos entrevistados com o levantamento bibliográfico.
Este capítulo está organizado em três partes: a primeira trata-se do cruzamento dos conteúdos apresentados por Alceu Reis com a revisão, a segunda faz o mesmo com os conteúdos apresentados por Márcio Carneiro e, por fim, a terceira apresenta os pontos comuns abordados por ambos os entrevistados, também embasados pela bibliografia. Não houve opiniões divergentes entre os entrevistados.

3.1 - CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM ALCEU REIS E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Alceu faz referência ao seu processo de auto-aperfeiçoamento, dizendo que um constante auto questionamento torna-se central para que o mesmo aconteça:
É por isso que eu digo, e eu estou convicto disso até hoje, que o melhor professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como, aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não está saindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema, tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.

A ideia de que o auto questionamento se apresenta como um caminho para o aprendizado aparece diversas vezes durante a entrevista. Gallwey (1974) corrobora esta ideia com Alceu, ao descrever que o jogador de tênis deve primeiramente se indagar sobre vários pontos antes de tentar corrigir um procedimento técnico:
Observe a movimentação do seu pulso. Ele está relaxado ou tenso? Tem uma empunhadura completa ou quase completa? (...) Vivencie o seu movimento. A bola vai ao mesmo lugar todas as vezes? Onde é esse lugar? (GALLWEY, 1974, p. 105 e 106).

Ao adquirir essa capacidade de auto indagação, a pessoa torna-se consciente de seus próprios problemas e, mais importante, de como melhorá-los. É o estágio autônomo citado anteriormente no primeiro capítulo, nas citações de Anderson (1982) apud Sloboda (2008). Tal estágio parece já estar presente na formação de Alceu como instrumentista desde cedo. Ele afirma não ter passado reestruturações técnicas imposta por um professor, mas sim "por milhões de pequenas reestruturações auto-impostas.". Magill (1998) detalha ainda mais o estágio autônomo:
Depois de muita prática e experiência, que pode levar vários anos, algumas pessoas passam para o estágio autônomo, que é o estágio final da aprendizagem. Neste ponto a habilidade se tornou praticamente automática ou habitual. Nesse estágio, as pessoas não pensam conscientemente no que estão fazendo enquanto desempenham a habilidade, porque já não necessitam mais dessa instrução prévia. Frequentemente conseguem desempenhar outras tarefas ao mesmo tempo (...) A variabilidade do desempenho é muito pequena durante esse estágio; pessoas capacitadas desempenham a habilidade com boa consistência entre tentativas subsequentes. Além disso, esses praticantes experientes conseguem detectar seus próprios erros e fazer os ajustes necessários para corrigi-los. Fitts e Posner destacaram a possibilidade de que nem todas as pessoas que aprendem uma habilidade atingem esse estágio autônomo. A qualidade das instruções e a qualidade e a quantidade da prática são fatores importantes para se chegar a esse estágio final. (MAGILL, 1998, págs. 150 e 151)

De maneira semelhante, Gallwey (1974) explica, com base na sua teoria das trilhas de hábitos, como se faz para mudar um hábito e sugere que, para chegar à conclusão que se deve mudar algo, deve-se observar o movimento automático, sem interferência, e em seguida julgar onde estão as tensões e se o movimento é eficaz. Parte disso vem de observar o resultado de seus movimentos, se satisfatórios ou não. Dentro do esporte do tênis, o processo se divide em quatro estágios, chamados pelo autor de "O modo de aprendizado do jogo interior", que pode ser facilmente convertido para o aprendizado de um instrumento musical:
O jogador observa o comportamento existente sem julgar
O jogador pede a si mesmo para mudar, programando com imagens e sensações
O jogador deixa acontecer
O jogador observa os resultados com calma e sem julgamento, vivenciando um processo contínuo de constatação até que o comportamento adotado para realizar as mudanças torne-se automático. (Grifo do autor) (GALLWEY, 1974, págs. 108 e 109)

Outro conteúdo que pode ser discutido no processo de reestruturação e surge nas respostas de Alceu é a imitação como principal forma de seu aprendizado:
Eu aprendi muito também com esse dom da imitação. (...) se chegasse um violoncelista que tocasse com um espigão de um palmo, durante três ou quatro meses eu só usava o espigão com um palmo. E quando chegou o Tortelier, que usava o espigão de dois metros, foram três meses tocando com espigão de dois metros. E vinha um que tocava assim (sobe o braço esquerdo), outro que tocava assim (quebra o pulso direito), e eu ia imitando. Conclusão: eu acredito que tudo que existe no violoncelo eu experimentei, e aí cheguei às minhas conclusões.

Assim, a imitação se adequa no processo de reestruturação, na fase em que o violoncelista busca um novo padrão técnico a ser colocado no lugar daquele que se deseja substituir.
Alcantara (1997) corrobora com Alceu Reis ao afirmar que:
"Seres humanos não poderiam crescer e aprender, ou até mesmo sobreviver, se eles não possuíssem poderes inatos e marcantes de imitação. A imitação está presente em todas as esferas da atividade humana, incluindo todos os aspectos do fazer musical." (ALCANTARA, 1997, pág. 249, tradução do autor)
Entretanto, Alcantara (1997) indica que nem todo conteúdo da imitação deve ser necessariamente utilizado e recomenda que saiba-se reconhecer os pontos positivos e negativos do conteúdo ser imitado, selecionando aqueles que se adequam melhor ao seu corpo.
Alceu descreve suas aulas com Pierre Fournier na Argentina, e diz que o mestre dispensou o tradutor para ensiná-lo, exemplificando mais uma forma de aprendizado por imitação:
E depois apareceu uma propaganda de um curso na Argentina pra estudar com o Fournier. Então houve uma prova interna no Rio, onde foram aprovados dois violoncelistas pra fazer esse curso: Eu e o Watson Clis. (...) E era muito interessante também, porque eu era um excelente imitador. E o Fournier tinha um tradutor. Então nas primeiras aulas ele começava a tocar e eu ia imitando o que ele fazia. Tudo que ele fazia eu imitava. Aí ele dispensou o tradutor, falou que eu não precisava de tradutor. E eu não entendia absolutamente nada do que ele falava. Só que eu imitava e depois eu ia pensar no que ele poderia ter falado.

Alcantara (1997) nos mostra ainda que um grande domínio técnico e corporal é necessário para que se imite alguém:
O grande cantor está no comando seu próprio uso, e pode, portanto, produzir tudo o que quiser com a sua voz, inclusive dezenas de imitações e caricaturas de outros cantores. Mas pode o cantor inferior imitar o grande? Não antes de adquirir o mesmo domínio de seu uso. (ALCANTARA, 1997, pág. 253, tradução do autor)

Em seguida, Alceu sugere que dois pontos são primordiais no aprendizado do instrumento: a eliminação de tensões e a importância da técnica estar em função da música:
Eu tenho um lema. A coisa mais importante num violoncelista, e eu falo isso em todos os instrumentos, é justamente o relaxamento. Então eu estou sempre procurando o relaxamento. E se tiver que haver alguma tensão, que tenha um relaxamento automaticamente no mesmo segundo. Eu nunca penso em manter uma tensão, nunca.
(...)
O meu professor, o grande Iberê, muitas vezes falava assim: "Olha, você pode até tocar com o nariz, contanto que seja bonito". Então eu parto do seguinte princípio: a técnica em função da música. O bom gosto da música é que vai te dizer qual a técnica que você tem que usar naquele momento.

Também descreve que passou por várias situações onde trabalhou algum aspecto técnico com o aluno sem resultado e, após deixar tal trabalho de lado por um tempo e retomá-lo, os resultados são quase instantâneos. Utilizando-se de uma metáfora de ingredientes para um prato culinário, diz que o instrumentista deve dispor de um leque variado de possibilidades técnicas à sua disposição, para que possa escolher qual utilizar em determinadas situações.
Por fim, outro aspecto interessante da abordagem de Alceu está incluso no caso que ele descreve em que um aluno seu tocava com o dedão do pé tenso:
Eu já tive um aluno, por exemplo, que tinha tensão no polegar do dedo do pé. Quando eu descobri, a primeira coisa que eu falei foi "Tira o sapato que eu quero ver uma coisa no seu pé" (risos). E ele estava com a meia furada, não queria tirar de jeito nenhum. E eu disse "Se não tirar eu não dou aula!". E aí ele tirou e eu vi que ele estava com o dedo tensionado. E eu disse "Se você tensionar aí, aqui não vai sair" (mexe o braço esquerdo). Então você tem que conhecer o teu corpo. Tem que conhecer o teu equilíbrio sentado, sobre o violoncelo. Essa relação é muito importante pra você tocar.

Alcantara (1997) descreve um processo muito semelhante, em que um aluno seu, Mark, insiste em olhar para o espelho do violoncelo enquanto toca, descrevendo os problemas que isso pode causar e a importância da relação entre partes individuais do corpo e o todo:
O Controle Primário é aquele ´mecanismo do padrão total´ no uso do "self". Idealmente o padrão total (...) deve ter precedência sobre todos os padrões parciais (cultivados individualmente). Em outras palavras, qualquer ação localizada – a atividade dos membros, mãos, e dedos, e dos lábios, língua e maxilar - deve ser executada em harmonia com a coordenação da cabeça, pescoço e costas. Mark presta atenção indevida a um padrão parcial, o uso da sua cabeça, pescoço e costas. O mal uso resultante afeta cada parte do seu organismo, dos pés à cabeça, e cada aspecto do seu funcionamento, do vibrato, afinação, e mudanças de posição até a produção de som, respiração e bem-estar geral. (ALCANTARA, 1997, pág. 26, tradução do autor)

3.2 - CONCLUSÕES ESPECÍFICAS RETIRADAS DA ENTREVISTA COM MÁRCIO CARNEIRO E DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Para Márcio a reestruturação técnica deve acontecer em um momento muito específico, quando o indivíduo decide se profissionalizar e "a perfeição começa a ser necessária em tudo o que se faz, desde a corda solta". Também diz acreditar que os problemas técnicos geralmente aparecem logo após da puberdade, quando as mudanças físicas drásticas ocorrem, tornando-se também necessária a reestruturação. Esse foi o seu caso, que consistiu principalmente em adquirir uma consciência mais refinada do manejo do arco:
Eu não me lembro, mas minha mão direita - ou seja, a ponte que liga o braço ao arco -devia estar muito crispada, com pouca flexibilidade, como um automóvel sem amortecedores (faz movimentos com o braço inteiro, sem flexibilizar a mão). O polegar devia estar apertando enormemente, e aí comeca o bloqueio do braco. Navarra insistia muito na flexibilidade do punho e na consciência da atividade de cada dedo da mão direita, fator primordial da sua técnica de arco, que decorria dos princípios de Flesch, com o qual ele pode discutir e que o influenciou decisivamente. Aquilo para mim era complicado, pois não tinha o hábito de trabalhar o arco neste nível.
(...)
Me lembro de ficar no primeiro semestre horas e horas, homeopaticamente (aquilo cansava a cabeça, aí eu fazia uma pausa) na frente do espelho procurando e exercitando.

Magill (1998) corrobora com Márcio Carneiro ao afirmar a necessidade da presença de uma referência visual:
De todos os sistemas sensoriais, os seres humanos tendem a utilizar e confiar principalmente na visão. Por exemplo, quando você começou a aprender a digitar ou tocar piano, inevitavelmente pensou que, se não pudesse ver seus dedos pressionando as teclas, jamais poderia realizar a tarefa corretamente. (MAGILL, 1998, pág. 61)

Gallwey (1974) também relata que, ao ensinar um aluno a mudar um movimento com a raquete de tênis, ele teve que primeiramente mostrar como ele o realizava de fato, na frente de um espelho:
Fomos até um espelho, onde lhe pedi para repetir e observar o seu movimento. Ele assim fez, refazendo sua característica puxada para cima antes de voltar com a raquete, mas desta vez ficou surpreso com o que viu. "Eu realmente levanto muito a minha raquete! Ela passa dos meus ombros!" (...) Vendo no espelho seu golpe tal qual era, Bill passou a manter a sua raquete baixa, sem ter de se esforçar para isso. (GALLWEY, 1974, págs. 45 e 46)

Márcio faz ainda outras referências à importância da referência visual do professor, durante suas aulas em grupo com André Navarra:
Nós estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra na memória, você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo.

Márcio demonstra a importância da referência visual como modelo para o elemento técnico a ser reestruturado.
Ele ainda aconselha que, quando se reestrutura algum aspecto da técnica, deve-se fazê-lo em vários blocos pequenos, e nunca trabalhar muito tempo de uma só vez:
Por exemplo, o tempo de repetição de um movimento ou de uma passagem não deve ser demasiado longo, mas sim em várias doses "homeopáticas", com atividades diferentes entre elas. A concentração nesse gênero de coisas não dura mais do que vinte minutos, isso é provado. Os exercícios de reestruturação técnica devem ser feitos assim, homeopáticamente. Mesmo para um movimento simples, como uma mudança de posição, eu acho que vinte minutos é quase demais. Fazer um exercício cinco vezes quinze minutos, dá uma hora e meia. Mas se você fizer uma hora e meia sem parar é muito menos produtivo.

MAGILL (1998) corrobora o que foi dito por Márcio:
Embora não haja um grande número de pesquisas analisando o número e a duração ideal das sessões de prática, as evidências experimentais disponíveis indicam que a prática distribuída é benéfica. Em geral, os resultados de experimentos que comparam poucas sessões de prática longas com maior número de sessões de prática curtas mostram que a prática de habilidades com sessões mais curtas produz melhor aprendizagem. (MAGILL, 1998, p. 259)

Um dos pontos mais abordados por Márcio é a importância das aulas em conjunto e de se observar os colegas, em todos os estágios do aprendizado durante a reestruturação técnica:
Isto é uma coisa importantíssima, aprende-se muito escutando os outros. Quando fui trabalhar com Navarra as aulas também eram conjuntas e isto para mim nunca foi estranho nem cansativo. Claro, escutar as aulas dos outros tem momentos muito chatos onde não acontece nada, mas a longo prazo aprende-se muito.
(...)
Naquela época era obrigação de cada aluno escutar as aulas de todos os outros, era um fator extremamente importante.
(...)
Eu estou seguro que num período de quatro a cinco anos de trabalho com um mestre, aprende-se não menos escutando os outros do que na própria aula.

Moraes (1997) ressalta que "A motivação e a interação social são os elementos apontados como os grandes responsáveis pelo incremento do aprendizado musical", e descreve a proposta educacional do Aprendizado Colaborativo, que é definida como "uma forma de aprendizado que ocorre através da interação social entre elementos de um grupo, que se motivam, se instruem, se orientam e se avaliam mutuamente." (MORAES, 1997, pág. 71)
Márcio também relata como foi de grande importância a presença dos colegas em seu processo de reestruturação técnica:
Eu tive dois momentos durante a época difícil da reestruturação técnica onde quem me ajudou não foi o Navarra, mas justamente os colegas que escutavam a aula. Estou seguro que eu também ajudei vários colegas da mesma maneira. Depois da aula você está na cantina conversando e o teu amigo violoncelista diz "Mas Márcio, porque você não faz assim? Eu acho que o que o Navarra está querendo é isso!". Entende? E eu dizia "Mas é claro! Porque que eu não pensei nisso antes?"
(...)
O professor é como um médico, mas os colegas representam um lado psicológico importante para que a medicina funcione. Nessa reestruturação técnica, que necessita muita coragem, esses fatores também têm um papel importante. Você quer o progresso, você insiste para poder levantar a cabeça na frente do professor e dos colegas que estão assistindo a aula. Não se deve menosprezar esses fatores.

Quadro semelhante é descrito por Moraes (1997), que diz que no ensino em grupo "o professor tem o papel de consultor, facilitador e líder democrático" (MORAES, 1997, pág. 71), promovendo um ambiente adequado que possa fortalecer o aluno em um processo tão delicado como o da reestruturação técnica.
O entrevistado também constata uma opinião interessante sobre o aprendizado de novas habilidades:
Estou convencido de que o progresso técnico não são linhas contínuas. De repente faz clique. Você investe, investe e aquilo fica como burro na ponte, não avança, e de repente funciona.
(...)
Da mesma forma o trabalho com um mestre exige muita confianca e paciência, pois no início pode-se mesmo ter a impressão que a coisa regride. Os momentos de progresso são repentinos e acontecem só depois de grandes fases de investimento.

Márcio menciona um importante relato em que mudou drasticamente um aspecto da sua técnica, quando já era profissional e não era mais aluno de Navarra:
É interessante observar como uma reestruturação técnica pode acontecer em vários momentos da vida, mesmo anos depois da época de estudos. Me lembro, por exemplo, durante a minha época "freelance", sendo já um profissional que tem a sensação de poder realizar o que quer com a mão esquerda, de gravar para a televisão no Rio de Janeiro a Sonata Arpeggione, e ver o programa alguns dias depois. Gostei musicalmente de muita coisa, também o arco e a mão esquerda me impressionaram positivamente, mas eu fiquei chocadíssimo com o vibrato! Eu me disse "pensei que eu vibrava, mas o vibrato está uma catástrofe". O vibrato era o tempo todo rápido demais, e não mudava.
(...)
Resolvi então atacar o problema e trabalhei o movimento do vibrato durante uns seis meses, uma meia hora por dia, para que se tornasse mais condutível e para que eu tivesse maiores possibilidades de expressão. Descobri muita coisa não somente para o vibrato, mas também, por exemplo, para poder tocar rápido.

Com estes relatos, mais uma vez podemos ver claramente um exemplo do estágio autônomo do aprendizado motor descrito por FITTS apud SLOBODA (2008) e MAGILL (1998).
Márcio também descreveu que seu processo constante de auto-aperfeiçoamento tem diminuído, mostrando uma possível solidificação da técnica após muitas décadas e a importância das orientações de seu professor:
Com o passar do tempo tenho cada vez menos a impressão de estar procurando coisas que nunca soube fazer, como na época dos estudos ou como no exemplo do vibrato. Apesar de ter dedicado numa época muita atenção ao controle das mudanças de posição e sua coordenação, o que me elucidou muitas observações de Navarra, o trabalho técnico passa a ser mais uma manutenção do que uma viagem de descobertas! Creio que já comentei isso antes, mas todas as "descobertas" que realmente aconteceram mesmo vários anos após a época estudantil eram simplesmente a compreensão daquilo que o professor exigia. Um pouco diferente da mentalidade atual e considerando que são poucos os mestres que podem exigir isto, eu estou contente de ter levado muito a sério um dos conselhos famosos de Navarra: "Durante os quatro ou cinco anos de estudo comigo você faz o que EU quero, e depois tem toda a vida para fazer o que VOCÊ quer"

As últimas linhas de sua entrevista revelam o relato impressionante que descrevem a reestruturação técnica vivenciada por André Navarra, que mudou completamente sua técnica de arco após uma pequena conversa pequena Carl Flesch. Este relato demonstra que Navarra foi um caso extremo do já mencionado estágio autônomo da aprendizagem motora. A técnica de arco que ele desenvolveu praticamente sozinho, apenas com algumas dicas de Flesch, representa um dos pilares da escola francesa.

3. 3 – CONCLUSÕES RETIRADAS A PARTIR DE RESPOSTAS SEMELHANTES DE AMBOS ENTREVISTADOS

Tanto Márcio quanto Alceu iniciaram o aprendizado do instrumento por volta dos cinco anos de idade e tiveram o mesmo professor numa certa altura (Iberê Gomes Grosso), relatando mais tarde terem passado por processos de reestruturação técnica.
Para Alceu a imitação sempre foi um dos principais processos de seu aprendizado. Ele diz que imitava os violoncelistas que assistia, habilidade que também utilizou nas aulas com Fournier.
Márcio também considera a imitação de um bom referencial um ponto crucial na reestruturação técnica:
Insisto na necessidade de observar o professor, porque aquilo fica na memória visual e depois você senta na frente do espelho e tenta fazer uma coisa parecida. Com um exemplo nítido na memória tudo fica mais fácil e a confiança é maior.

Isso se trata da importância da referência visual de outros violoncelistas, que foi aspecto chave na formação de ambos os entrevistados. Márcio conta das aulas coletivas de Navarra:
Nós estávamos todos ali sentados e ficávamos escutando e observando como sua técnica funcionava. Isto ajuda muito, entra na memória, você "fotografa" e depois em casa tenta fazer o mesmo.

Já Alceu buscou seu referencial nos violoncelistas que viu tocar nos palcos:
(...) naquela época passavam dois ou três violoncelistas por ano por aqui. E eu fazia questão de ir assistir, eu virava montanhas, mas ia assistir. E o que eu fazia? Eu "filmava", mentalmente. E depois ia pra casa imitar pra descobrir como era a mecânica.

Tal referencial visual é crucial quando se reestrutura algum aspecto técnico, como frisado por ambos.
Ambos também falam da importância do estudo e do fazer musical consciente. Alceu diz que uma das primeiras etapas numa reestruturação é fazer com que o aluno entenda o que está realizando. E ainda completa:
O melhor professor são algumas perguntas: quando, por que, pra que, como, aonde. Quando você se pergunta por que uma passagem não está saindo, como é que eu posso resolver, aonde que está o problema, tudo isso se você pensar você acaba encontrando a solução.
Márcio fala da importância dessa consciência dos objetivos de uma reestruturação:
Para evitar problemas no futuro, a técnica numa reestruturação é consciente. Sabe-se, quando se trabalha, exatamente o que se está fazendo, muitas vezes ao milímetro, para depois com um grande esforço tentar não pensar em nada disso quando se toca.

Os dois entrevistados ressaltam a importância de uma boa sonoridade na reestruturação e em geral. Márcio diz:
É claro que num instrumento de cordas o arco vem primeiro. Se você faz uma reestruturação técnica tem que começar com a qualidade da "voz", ou seja, com a corda solta. Pode-se imaginar um pouco como o motor de um órgão que produz o ar necessário para as notas, ou a mecânica que Steinway produz para os pianistas. O arco é sempre a primeira preocupação, ele é o Artista! Navarra criticava sempre: "Você trabalha a mão esquerda e esquece o arco! Trabalhe a mão esquerda E trabalhe o arco!"

Alceu aborda o tema de maneira semelhante:
Eu acho que em primeiro lugar você tem que entender o que é a sonoridade, o que é um som. Então na mão direita você tem que fazer son filé até você descobrir o que é a profundidade do som.

Nenhum dos entrevistados reestrutura mais de um aspecto técnico por vez nos alunos. A luz disso, MAGILL (1998) revela:
A prática como um todo é aconselhável, quando a habilidade a ser aprendida é de baixa complexidade e de alta organização. A prática em partes é recomendada, quando a habilidade é mais complexa e envolve menos organização. (MAGILL, 1998, págs. 283 e 284)

O estágio autônomo do aprendizado motor se encontra em diversos pontos na carreira de ambos. Márcio diz, no fim da entrevista, que passou vários anos realizando "descobertas" após estudar com Navarra. Alceu diz que, em relação ao violoncelo, ele é um "pesquisador", sempre experimentando coisas novas.

3.4 - CONCLUSÕES FINAIS

Um dos principais conceitos abordados neste trabalho foi o dos vários estágios de aprendizado motor elaborado por FITTS (1964), particularmente o estágio autônomo. É um conceito chave para se entender como o processo de reestruturação técnica funciona. Com base nesse conceito e através das respostas de ambos os entrevistados é possível concluir que o processo de reestruturação técnica é de grande importância no desenvolvimento instrumental e que, uma vez que o indivíduo passou por tal processo, a habilidade adquirida pode ser utilizada para reestruturar outros aspectos diferentes daqueles trabalhados anteriormente, com ajuda mínima ou até mesmo sem a ajuda de um professor, como relatado por ambos os entrevistados.





REFERÊNCIAS:
ALCANTARA, Pedro de. Indirect Procedures: A Musician´s Guide to the Alexander Technique. Clarendon Press: Oxford, 1997.
GAGNON, Marie-Elaine. The influence of the French cello school in North America. Tese de doutorado. Universidade de Miami, 2005.
GALLWEY, Timothy W. O Jogo Interior de Tênis. São Paulo: Textonovo, 1974.
MAGILL, Richard A. Aprendizagem Motora: Conceitos e Aplicações. Editora Edgard Blücher Ltda., 1998.
MACKIE, Vivien. ´Just play naturally´: an account of her study with Pablo Casals in the 1950s and her discovery of the resonance between his teaching and the principles of the Alexander Technique. Duende Edition, 2006.
MORAES, Abel. Ensino Instrumental em Grupo: Uma introdução. Música Hoje: Revista de pesquisa música nº 4, 1997.
SLOBODA, John A. A mente musical: a psicologia cognitiva da música. Londrina: Eduel, 2008.
The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Edited by Stanley Sadie. Macmillan Publishers Limited, London, 1980.






ANEXOS:
QUESTIONÁRIO COMO FOI APLICADO EM ALCEU REIS:
Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Como se deu a sua formação no violoncelo? Quais foram seus professores de violoncelo e de que maneira eles influenciaram o seu aprendizado instrumental/musical?
Comente sobre a sua trajetória estudantil e profissional.

Você já passou por alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s) técnico(s)? Se sim, como foi?

Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser reestruturado?
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos seus alunos?
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos técnicos do aluno?
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos no alunos, você os faz ao mesmo tempo?
Sim - porque?
Que critérios usa para estabelecer uma ordem dos aspectos técnicos as serem reestruturados?
O que você desenvolveu sozinho (sem a ajuda de algum professor) na sua técnica violoncelística?
Quais foram algumas conclusões que você chegou com suas experimentações ao violoncelo?


QUESTIONÁRIO COMO FOI APLICADO EM MÁRCIO CARNEIRO:

Com qual idade e como você iniciou seu aprendizado no violoncelo?
Mas como você começou a estudar? Foi iniciativa de seus pais, sua?
Como se deu a sua formação no violoncelo? Quais foram seus professores de violoncelo e de que maneira eles influenciaram o seu aprendizado instrumental/musical?
Comente sobre a sua trajetória estudantil e profissional.

Você já passou por alguma reestruturação de algum(ns) aspecto(s) técnico(s)? Se sim, como foi?
Qual a importância que você atribui ao seu processo de reestruturação?
Quais são as dificuldades que podem ser encontradas quando se reestrutura um aspecto técnico?
Quais são as estratégias para se reestruturar um aspecto técnico?

Quando você julga necessário que um aspecto técnico deva ser reestruturado?
Quais são seus objetivos ao reestruturar tecnicamente um aluno?
Quais aspectos técnicos você reestrutura com mais frequência nos seus alunos?
Você mantém o ensino do repertório enquanto reestrutura aspectos técnicos do aluno?
Quando você pretende reestruturar diversos aspectos técnicos no alunos, você os faz ao mesmo tempo?
Sim - porque?
Não - porque?
Que critérios usa para estabelecer uma ordem dos aspectos técnicos as serem reestruturados?
Da sua maneira de tocar, o que você desenvolveu sozinho?

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