A REFORMA DA PREVIDÊNCIA NAS PÁGINAS DE \"O GLOBO\" E \"BRASIL DE FATO\" (2003)

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A REFORMA DA PREVIDÊNCIA NAS PÁGINAS DE O GLOBO E BRASIL DE FATO (2003)
Matheus de Carvalho Leibão
Resumo:
Este trabalho busca discutir a cobertura de dois veículos de comunicação acerca de uma mesma proposta de política pública: a reforma da previdência, uma das primeiras medidas econômicas do primeiro mandato do ex-presidente Lula. Os veículos em questão são os jornais O Globo e Brasil de Fato. Trata-se aqui quais foram os posicionamentos adotados por cada veículo acerca da proposta e como ambos atuaram no sentido de disputar politicamente o sentido da mesma. Como referencial teórico para discutir essas questões, utilizei as contribuições de Antonio Gramsci, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de "Grande Política", "Pequena Política", "Estado Ampliado" e "Hegemonia". A utilização destes conceitos pode ajudar a construir uma história da imprensa que rompa com a ideia de uma imprensa neutra e objetiva, além de esclarecer melhor a tomada de posição de certos setores da sociedade na dinâmica da luta de classes.
Palavras-chave: O Globo; Imprensa; Brasil de Fato; Reforma da Previdência.

Uma das primeiras medidas aprovadas pelo governo Lula e pela legislatura de 2003 a 2006 foi a Reforma da Previdência. Sua aprovação teve apoio dos quadros majoritários do Partido dos Trabalhadores, mas foi rejeitada pela ala mais radical do partido, que votou contra ou se absteve da votação.
Segundo Melo e Anastasia, a aprovação da reforma da previdência resultou em uma derrota para os trabalhadores brasileiros, em especial aos funcionários públicos, aposentados e pensionistas. Dentre as perdas, destacam-se :1) a instituição de um valor máximo (2400 reais à época) a ser pago, que igualava as categorias do funcionalismo público aos trabalhadores da iniciativa privada, uma espécie de "nivelamento por baixo". 2) a taxação dos servidores inativos em 11% do valor dos salários dos servidores federais que ganhavam mais de 1440 reais e dos servidores estaduais e municipais que ganhavam mais de 1200; 3) a redução de 5% (a partir do ano de 2006) para aqueles que se aposentassem antes da idade mínima; 4) o desconto de 30% nas pensões que fossem concedidas após a aprovação da reforma, entre outras. O governo argumentava que tais "ajustes" eram necessários para que a economia do país pudesse crescer. Mas dentro do próprio partido, havia quem discordasse. Diversos parlamentares do PT se opuseram às pautas da reforma. Tal processo acabaria fazendo com que eles fossem desligados do partido.
O governo Lula, em comparação ao anterior, obteve muito mais êxito em aprovar a reforma, uma vez que ela acontecera ainda no primeiro ano de governo. Dentre as razões que justificam tal fato estão o fato de Lula ter enfrentado menos resistência por parte do legislativo e também a alteração do comportamento político de atores ligados aos movimentos sociais, o que influenciou no resultado das tramitações.
Analisar o processo histórico a partir de um jornal permite ao historiador analisar dois aspectos relevantes através deste método. O primeiro é identificar a forma de apresentação dos acontecimentos por parte do meio de comunicação em questão, o que permite refletir sobre o(s) posicionamento(s) político(s) do veículo. Atentar para este aspecto é fundamental, uma vez que se entende aqui que uma empresa de comunicação pode ser considerada um aparelho privado de hegemonia, dentro dos postulados teóricos de Antonio Gramsci. Isto quer dizer que ela tem a capacidade de orientar/convencer os cidadãos em torno de um projeto de sociedade, garantindo o consenso necessário para que uma estrutura política, econômica e social se estabeleça. O segundo está em identificar que o processo histórico é formado por diversas possibilidades de ação por parte dos seres humanos.
Durante o ano de 2003, O Globo publicou praticamente todos os dias alguma notícia em relação à esta medida. Como se trata de um periódico que está entre aqueles de maior circulação nacional e é pertencente ao maior conglomerado de comunicação do país, foi feita a opção por analisá-lo.
Ao longo de todo o ano, foi possível verificar uma tendência por parte de O Globo no que diz respeito ao debate público acerca da reforma da previdência. Para Melo e Anastasia tal temática esteve condicionada por 5 "arenas" do jogo político. A primeira delas é a parlamentar, isto é, os debates e negociações dentro do congresso nacional que levaram a aprovação da reforma. A segunda seria a do Poder Executivo, já que o assunto envolvia os ajustes nas contas públicas e isso fazia com que o presidente precisasse se mobilizar com seus ministros para influenciar o comportamento político da maioria dos parlamentares, em especial no próprio PT. O terceiro seria o do Poder Judiciário, que poderia "ser acionado como ator com poder de veto, dado o grau de desconstitucionalização exigido para a aprovação da proposta". O quarto seria o que os autores chamaram de "arena societal", ou seja, a parcela da população que se envolveu direta ou indiretamente com as discussões em torno da reforma e que buscava pressionar os poderes legais em busca de seus interesses. Por último, viria a "arena eleitoral", importante porque a votação do projeto poderia ter implicações no que diz respeito à reeleição (ou não) dos membros das casas legislativas, uma vez que os debates e posicionamentos se tornariam públicos.
Sendo assim, diante desta multiplicidade de "arenas" que os meios de comunicação poderiam dar atenção, foi possível verificar que as esferas parlamentar e do poder executivo foram privilegiadas pela cobertura do jornal em relação às demais. O veículo optou pela ênfase nos trâmites institucionais que conduziram a reforma em detrimento das ações conduzidas por aqueles que seriam afetadas por ela, os(as) trabalhadores(as), sobretudo os servidores públicos. Quando houve alguma notícia em relação àqueles que batalharam politicamente contra a reforma, ela foi noticiada como aspecto secundário. Além disso, dentro da pouca visibilidade dada aos contrários à reforma, houve uma tendência a destacar mais a resistência de alguns parlamentares petistas do que a mobilização social dos servidores. Tal tendência é comprovada empiricamente pela maioria das coberturas jornalísticas. A visibilidade dada aos atores históricos varia de acordo com a posição hierárquica que eles ocupam dentro de uma estrutura institucional.
No entanto, tal diferença de visibilidade oferecida pela maioria dos meios de comunicação não pode ser encarada como natural. Há de se pensar as razões pelas quais O Globo adotou essa postura. É preciso lembrar que dentro do quadro teórico aqui proposto, ganha destaque o pensamento de Gramsci. Para ele, pensar no Estado não significa apenas considerar as suas instâncias formais. Para ele, o Estado é a junção da sociedade civil, a partir de seus aparelhos privados de hegemonia com a sociedade política, isto é, as forças armadas, a polícia, os poderes legislativos, executivo e judiciário. A união entre parte da sociedade civil e os aparelhos coercitivos do Estado formam o que Gramsci chama de Estado Ampliado, que é capaz de garantir a dominação de uma classe ou fração de classe sobre outras classes e/ou frações de classes, através de um misto entre coerção e consenso, que estabeleceria então a hegemonia de determinados grupos em relação a outros. Então, como O Globo, assim como vários outros veículos de comunicação da mídia brasileira, depende do Estado para se manter como um dos principais formadores de opinião do país, e o Estado, por sua vez, depende das Organizações Globo, uma vez que o que é retratado nos meios de comunicação de massa influi diretamente na opinião pública, muito dificilmente os assuntos da "grande política" seriam retratados em O Globo. Por "Grande Política", refiro-me a uma definição do próprio Gramsci, ao diferenciá-la da "pequena política". Segundo o filósofo, "A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, a luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais". Por outro lado, a "pequena política" compreenderia "... as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política". Então é possível afirmar que, sobre a reforma da previdência, O Globo priorizou o debate pela "pequena política".
A comparação entre Brasil de Fato e O Globo pode ajudar a verificar quais são as estratégias adotas por cada veículo para gerar um convencimento por parte de seus públicos. As consultas a Brasil de Fato foram realizadas on-line a partir do portal Issuu. Nele, encontram-se diversas edições inteiras do veículo, que permitem ao pesquisador ter acesso gratuito a elas. O jornal denunciava que havia uma série de intentos, por parte do governo da época, assim como dos anteriores em afirmar que se a previdência continuasse com os seus "altos gastos", o Brasil quebraria economicamente. O ponto de vista do jornal foi expressado a partir de um descontentamento com a política previdenciária, já que, os motivos pelos quais se intentava diminuir os custos do governo com a previdência, de acordo com o veículo, atendiam mais aos interesses dos bancos do que os interesses das contas públicas do Estado e dos trabalhadores. Diferentemente de O Globo, Brasil de Fato ofereceu a seus leitores a ideia de que a política previdenciária poderia ser guiada por outro viés. Sendo assim, o jornal se aproximou de um tipo de discussão que Gramsci provavelmente chamaria de "Grande Política".
A visão do jornal é reiterada por Boschetti. A autora coloca em xeque os argumentos governamentais que tentavam justificar o corte de custos nessa área. Ainda segundo ela, o déficit entre a receita e a despesa não era um argumento que se justificava na prática, mas sim que era utilizado para legitimar um processo de descaracterização da previdência enquanto um sistema de proteção social.
Sendo assim, foi possível verificar, durante o processo de disputas que levou à aprovação e positivação da reforma da previdência, que os jornais colocaram em prática dois tipos de cobertura que eram pautadas por diferentes interesses de classe, e consequente, produziram jornalismos diferenciados um do outro. Nessas disputas, os jornais mostraram pontos de vistas divergentes, sendo que em Brasil de Fato, o posicionamento político é mais claro do que em O Globo. Tal constatação permite ao leitor verificar que a cobertura jornalística, independentemente do veículo, não é neutra e objetiva, como alguns veículos e jornalistas insistem em afirmar. Além disso, permitem ao leitor fazer uma análise sobre as disputas pela hegemonia e as diferentes estratégias adotadas pelos meios de comunicação para alcança-la.















Bibliografia:
BOSCHETTI, Ivanete. Implicações da reforma da previdência na securidade social brasileira. Psicologia & Sociedade; 15 (1): 57-96; jan. /jun.2003

FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880 – 1920). Petrópolis, Vozes, 1978

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 3 v.

MACHADO, J. A. Pinheiro. Opinião x Censura: momentos de luta de um jornal pela liberdade. São Paulo, L&PM, 1978

MELO, Carlos Ranulfo; ANASTASIA, Fátima. A reforma da previdência em dois tempos. DADOS: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 301-332. 2005

MIANI, Rozinaldo Antonio. Imprensa das classes subalternas: atualização e atualidade de um conceito. Em Questão, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 193-208, jan. /jun. 2010.

MIOLA, Edna. Representações do jornalismo sobre a radiodifusão pública: o debate em torno da criação da Empresa Brasil de Comunicação na imprensa. Revista Compolítica, n. 2, vol. 1, ed. set-out, ano 2011




Este trabalho foi publicado no caderno de resumos da III Jornada de Estudos Marxistas da UFRJ, organizada pelo Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia, em novembro de 2016. Link disponível em: http://media.wix.com/ugd/7fdd75_caad157ac9504dfab49a1c9845777ae0.pdf
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Estudante do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Nível Mestrado. Bolsista Capes.
MELO, Carlos Ranulfo; ANASTASIA, Fátima. A reforma da previdência em dois tempos. DADOS: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 301-332. 2005
Idem, p. 309.
Entre eles, Chico Alencar, Luciana Genro, Heloísa Helena e Babá.
MELO & ANASTASIA, op. cit. 2005, p. 308
MELO & ANASTASIA, op. cit. 2005.
Idem. p.302
É necessário ressaltar que uma parcela dos servidores se viam representados por estes parlamentares. A intenção não é apontar uma contradição entre os parlamentares da esquerda do PT e a luta dos servidores, mas sim destacar a quem O Globo deu mais visibilidade.
MIOLA, Edna. Representações do jornalismo sobre a radiodifusão pública: o debate em torno da criação da Empresa Brasil de Comunicação na imprensa. Revista Compolítica, n. 2, vol. 1, ed. set-out, ano 2011, pp. 41-42
GRAMSCI, op. cit. 2000.
O Estado é responsável, entre outras coisas, pela manutenção da propriedade cruzada dos meios de comunicação e por garantir grande parte de verbas publicitárias para estes meios.
GRAMSCI, op. cit. 2000, p. 21
Idem.
Brasil de Fato foi lançado em janeiro de 2003, a partir das discussões do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e teve seu primeiro exemplar publicado no dia 8 de março do mesmo ano, vendido pelo preço de 2 reais. Segundo Miani, este jornal foi formado a partir da vontade de diferentes setores da esquerda brasileira de disputar a hegemonia na sociedade, em diálogo não só a nível nacional, mas também com outros setores da esquerda latino-americana. Ou seja, desde a sua fundação, Brasil de Fato se propunha a ser um veículo contra hegemônico. Ainda segundo Miani, tal tentativa não era inédita na sociedade brasileira, mas outras que atuaram no sentido de emplacar um veículo de comunicação não foram bem-sucedidas e/ou duradouras para as lutas sociais no Brasil. Os exemplos de A lanterna, durante a primeira república e Opinião, durante a ditadura empresarial-militar são apenas alguns de variados exemplos que podem ser pesquisados. Ver: FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880 – 1920). Petrópolis, Vozes, 1978. Ver também: MACHADO, J. A. Pinheiro. Opinião x Censura: momentos de luta de um jornal pela liberdade. São Paulo, L&PM, 1978 e MIANI, Rozinaldo Antonio. Imprensa das classes subalternas: atualização e atualidade de um conceito. Em Questão, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 193-208, jan. /jun. 2010.
http://issuu.com/brasildefato
BOSCHETTI, Ivanete. Implicações da reforma da previdência na securidade social brasileira. Psicologia & Sociedade; 15 (1): 57-96; jan. /jun.2003

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