A Reforma Psiquiátrica e políticas de saúde mental no interior de São Paulo

Share Embed


Descrição do Produto

A Reforma Psiquiátrica e políticas de saúde mental no interior de São Paulo. Michelle Alcântara Camargo Doutoranda Ciências SociaisIFCH/Unicamp

Neste trabalho, pretendo discutir uma questão negligenciada nos estudos antropológicos sobre a doença mental: como a reforma psiquiátrica no Brasil, principalmente nas cidades do interior do estado de São Paulo, além de ter questionado e reformulado as politicas públicas de saúde mental, levou consigo efeitos perversos em contextos de pobreza, como o caso da manutenção de hospitais psiquiátricos e a negligencia governamental nos que se refere a gestão de recurso financeiros, ou seja, mesmo com a reforma psiquiátrica ainda há hospitais que reproduzem a lógica asilar resultante da escassez e da gestão de recursos financeiros que estrangulam as politicas públicas de saúde mental no interior do Estado. Para tal utilizo neste paper dado iniciais obtidos através do trabalho de campo, em um hospital psiquiátrico do interior de São Paulo e que faz parte da pesquisa de doutorado, em andamento e em estagio inicial, visto que dependia da aprovação do comitê de ética, obtida em 2014. E como falar de reforma psiquiátrica é falar de desintitucionalização inicio esse paper com a questão da institucionalização dos saberes psiquiátricos e a lógica de reclusão e confinamento nas instituições da loucura. A bibliografia clássica das ciências sociais sobre saúde mental parte da perspectiva de que as instituições psiquiátricas desenrolam-se como práticas seculares de disciplinarização, moralização e contenção de indivíduos socialmente desviantes (Carrara, 1

1998). A reclusão dos diagnosticados como “loucos”, tem um caráter institucional, iniciado no século XVII, e ao ter como medida questões econômicas e de precaução social, a internação ganha o valor de intervenção. A loucura neste contexto é percebida na sua relação com a pobreza, a incapacidade para o trabalho e a impossibilidade de integração social (Foucault, 2010). É evidente que o internamento, em suas formas primitivas funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude (Foucault, 2010, p. 79).

De acordo com a perspectiva foucaultiana, o gesto de internação pode ser resumidamente descrito como um gesto de alienação, de banimento social, no qual a internação criava e isolava os estranhos desconhecidos, evitados pelo convívio, fazendo destes sujeitos figuras bizarras que ninguém mais reconhecia. Libertinos, alquimistas, blasfemadores, homossexuais, doentes venéreos, foram na metade do século XVII rejeitados e reclusos em asilos que se tornaram, dois séculos depois, os campos fechados da loucura (Foucault, 2010). No Brasil, desde o século XIX com a criação das colônias que internavam homens e mulheres indigentes até a reforma psiquiátrica no fim da década de 70, a psiquiatria brasileira é marcada por sua característica asilar (Amarante, 1994). A partir da década de 1970, a saúde mental passa por um processo de mudança no modelo manicomial, que de exclusivamente psiquiátrico se desloca para um modelo ambulatorial em que a psiquiatria passa a ser exercida nos espaços de atendimento público (Maluf, 2010). Segundo Cardoso (2002) o modelo comunitário de assistência médica no Brasil foi implementado em 1975, criando o Sistema Nacional de Saúde (SUS), com o objetivo de

2

enfatizar o aspecto preventivo através da extensão dos cuidados primários, para as periferias urbanas e zonas rurais, por meio de postos e unidades municipais e distritais de saúde, onde as pessoas passam a ser atendidas de acordo com a gravidade da avaliação clínica realizada. Em 1987 inicia-se um processo, ainda em curso, de municipalização das ações da saúde mental bem como a participação da sociedade na formulação e gestão da saúde mental no Brasil, denominado de descentralização ou desinstitucionalização, iniciado pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental que possuía como agenda a discussão sobre a loucura, a psiquiatria e os manicômios (Amarante, 1994). Com a homologação da lei 3657/89 iniciou-se o processo de extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos pelas práticas assistenciais, a criação de associações de psiquiatrializados e familiares bem como a aprovação de leis de reforma psiquiátrica (Amarante, 1994). A desinstitucionalização ou reforma psiquiátrica que foi proposta no Brasil teve como referência o modelo italiano, que possui como proposta entre outras coisas, as comunidades terapêuticas e a psiquiatria comunitária (Basaglia, 1985). Porém, no Brasil esta reforma, apesar de sua característica aparentemente progressista, foi submetida a uma lógica mais administrativa do que terapêutica, o que dificulta a compreensão sobre as práticas e representações sociais no que se refere á doença mental no Brasil (Cardoso, 2002). Em outras palavras, a psiquiatria pública no Brasil passa a promover programas integrados de cuidados médicos comunitários com o intuito de reduzir gastos com a assistência médica e previdenciária devido ao aumento da demanda populacional por esses serviços, sem alterar suas estruturas funcionais (Cardoso, 2002). No estado de São Paulo a reforma psiquiátrica se deu de forma diversa na capital e outras regiões metropolitanas mais próximas a São Paulo como Campinas e Santos se comparado com as cidades do noroeste do estado (onde a pesquisa etnográfica que 3

fundamenta essa pesquisa está sendo desenvolvida). As experiências nas cidades acima citadas, juntamente com o movimento da reforma psiquiátrica, contribuíram para o enfrentamento da implementação de um projeto neoliberal no país (referente ao sistema privado de saúde e os conflitos dele decorrentes) bem como a uma nova legislação de saúde mental. A partir da década de 1980, a reforma viabilizou a construção e implementação dos serviços de saúde mental rompendo a lógica manicomial na construção

e

implementação de diversos CAPs (Centro de Assistência Psico-social) e de novos serviços como Naps (Núcleo de Apoio psicossocial), Centros de Convivência, Hospital Dia e Abrigos (Luzio: 2006). No noroeste do estado de São Paulo o mesmo não aconteceu. A cidade de Araçatuba e região metropolitana possuem renda per capita que não ultrapassa o valor de R$ 1063,00. Valor bem abaixo da capital, de Campinas e Santos de (R$ 1.789,00, R$ 1628,00 e R$ 2.013,83 respectivamente)1

Por se constituírem em municípios com menor renda per

capita, em regiões mais pobres do estado de SP, os serviços de saúde mental oferecidos para a população são escassos. Na cidade de Araçatuba por exemplo, (cidade onde se localiza o hospital psiquiátrico que constitui o campo desta pesquisa) há apenas um CAPs, o CAPSad (álcool e drogas) inaugurado em 20092, ou seja quase 20 anos depois da inauguração de diversos Caps nas cidades de São Paulo, Santos e Campinas e que é mantido pela prefeitura local e administrado pela instituição filantrópica “Associação das Senhoras Cristãs”3.

1

Dados obtidos segundo o censo 2010 do IBGE. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/resultados_preliminares/preliminar_tab_adic_z ip.shtm Acessado em 24-01-2015 2 http://gestao.saude.riopreto.sp.gov.br/transparencia/ Acessado em14-01-2015. 3 “Associação das Senhoras Cristãs”, , foi fundada em 1932 ” (Carvalho, 1987) é a instituição responsável por gerir e administras o Hospital Benedita Fernandes e o Hospital da Mulher através do repasse financeiro da gestão municipal.

4

Porém para se compreender melhor como foi o processo da reforma psiquiátrica no noroeste do estado de SP faz-se necessário compreender a história dos hospitais psiquiátricos da região. A maioria dos hospitais psiquiátricos no noroeste de São Paulo,foram inaugurados na década de 404 e desde sua fundação estão ligados a grupos espíritas, o que levou ate mesmo a perseguição de seus fundadores por eclesiásticos, como no caso da fundadora do hospital psiquiátrico de Araçatuba conhecida com Dona Benedita Fernandes (Carvalho, 1987). Benedita era uma mulher considerada por muitos como uma espécie de “curandeira” e que por este motivo, a mesma foi perseguida pelos eclesiásticos da cidade que se utilizaram do tráfico de influencia para a solicitar a Getúlio Vargas, presidente da época no Brasil, o fechamento das atividades gerenciadas por Dona Bendita , pelo “perigo da difusão de idéias espíritas” visto que a Associação das senhoras Cristãs estava e ainda está, intimamente ligada a centros espíritas kardecistas locais (Carvalho, 1987). De acordo como as atas do Hospital Benedita Fernandes, pesquisadas por Carvalho (1987) a “Associação das Senhoras Cristãs”, foi fundada em 1932 e atendia inicialmente crianças órfãs numa instituição chamada de “A casa da criança” e os considerados doentes mentais no “Asilo Dr. Jaime de Oliveira” (Carvalho, 1987). Atualmente é esta instituição que gerencia o Hospital Psiquiátrico Benedita Fernandes. [inserir foto] (Primeira construção Associação das Senhoras Cristãs- 1932)

4

Hospital Espirita de Marilia, na cidade de Marília, fundado em 18-07-1948 (http://www.hem.org.br/ainstituicao) Hospital Dr. Bezerra de Menezes, na cidade de São Jose do Rio Preto, fundado em 1946, (http://www.bezerra.org.br/interna.asp?Ir=area.asp&area=75) Hospital Psiquiátrico Felicio Luchine, na cidade de Birigui, fundado em 1947 (http://www.folhadaregiao.com.br/Materia.php?id=334850).

5

Em 1947, com o falecimento de Benedita Fernandes o Asilo Dr. Jaime de Oliveira é renomeado em “Sanatório Benedita Fernandes” e Casa da Criança é desativada. (Carvalho, 1987). [inserir fotos] (Construção do Sanatório Benedita Fernandes- 1947)

[inserir fotos] (Fachada Sanatório Benedita Fernandez- 1949

[inserir fotos] Pátio interno- Ala Masculina-2005

De acordo com as falas de informantes obtivas através de entrevistas, até a década de 70 o Hospital Benedita Fernandes mantém sua estrutura manicomial e asilar que perdura até inicio dos anos 80 com o movimento da reforma psiquiátrica. Através de decretos e portarias se inicia o fechamento dos sanatórios ou manicômios, como eram chamados antes da reforma, através da diminuição de leitos e fechamentos dos hospitais da capital, o que levou a transferência dos considerados “pacientes crônicos” destes hospitais como o Juquery, para os hospitais do interior paulista, como o Benedita Fernandes, com um tempo de internação de 3 meses e sem exigências de uma equipa técnica5, isto sem mencionar o caso de pacientes que se tornam moradores desses hospitais. No caso do Hospital Psiquiátrico Benedita Fernandes há o prédio designado “Abrigo” onde moram 4 pacientes, mulheres e acima de 40 anos, que estão institucionalizadas há mais de 15 anos. Nesse sentido, as exigências do movimento da reforma psiquiátrica (como melhorias na área de saúde mental e fechamento dos manicômios) levou muitas vezes a

5

Dados obtidos através de entrevistas com informantes do Hospital Benedita.

6

conflitos entres estes e o dirigentes dos hospitais psiquiátricos. No caso do Hospital Psiquiátrico de Araçatuba os conflitos se iniciaram a partir da década de 80 ate 90 com os decretos e portarias que reorganizavam as políticas públicas de saúde mental, principalmente a portaria 224, renomeada de 2048, que reconstruiu as diretrizes do que viriam a ser os atendimentos nos hospitais psiquiátricos e serviços ambulatoriais, que iam desde questões estruturais a direitos humanos6. Além disso, o prazo de internações de pacientes considerados como transtornos mentais nesses hospitais, passaram de 3 meses para 15 dias, o que consequentemente levou resistência das famílias dos considerados doentes mentais com a reforma psiquiátrica. Como medida estas famílias utilizaram desde os anos 90 ate os dias atuais de instrumentos legais como as internações judiciais para manterem seus entes internados por tempo indeterminado, o que levou a conflitos com o hospital psiquiátrico que por sua vez tentava se adaptar as medidas da reforma psiquiátrica, e era visto por maus olhos pelo movimente da reforma. 7 Com o trabalho de campo foi possível levantar o aumento das internações judiciais8: no ano de 2002, por exemplo, houve uma expansão de 40 pacientes que foram internados judicialmente por suas famílias por tempo indeterminado.9

Conclusão. Deste modo, o que busquei neste paper é mostrar que, embora a reforma psiquiátrica da década de 70 tenha proposto o fim dos hospitais psiquiátricos, existem no interior do

6

Idem. Ibdem. 8 Dados coletados através de entrevistas com informantes do Hospiatl Bendita Fernandes. 9 Dados levantados através de entrevistas com funcionários do hospital psiquiátrico Benedita Fernandes. 7

7

Estado de São Paulo alguns hospitais psiquiátricos municipais que são responsáveis juntamente com os Centro de Atendimento Psico-social (CAPS), pelas políticas de saúde mental e drogadição nestas localidades e regiões metropolitanas. A permanência destas instituições nos mostra que a reforma psiquiátrica realizada no noroeste de São Paulo foi de fundamental importância

para a reformulação das políticas públicas de saúde mental.

Porém não foi suficiente para eliminar com a lógica asilar e hospitalar dos manicômios, motivada muitas vezes pela escassez de má gestão dos investimentos governamentais na rede pública de saúde mental, o que promove apenas uma mudança muito mais administrativa do que estrutural.

Referencias Bibliográficas. AMARANTE. Paulo. Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994 CARRARA, Sergio. Crime e Loucura: O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Eduerj/São Paulo: Edusp, 1998 CARDOSO, M. Psiquiatria e antropologia: notas sobre um debate inconcluso. In: Ilha, v. 4, n.1, pp. 85-114, Florianópolis, 2002. FOUCAULT, Michel. Historia da loucura: Idade clássica: Tradução José Teixeira Coelho Neto, São Paulo, São Paulo: Perspectiva, 2010. LUZIO, C.A; L´ABBATE.S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico assitencias das experiências de São Paulo, Santos e Campinas. Interface. Comunicação e Saúde, Educ, v.10, p.281-98, jul/dez, 2006 MALUF, S. W. Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais. In: Gênero, saúde e aflição [abordagens antropológicas], Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.

Referencias Fotográficas. Acervo fotográfico do Hospital Benedita Fernandes. 8

9

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.