A reforma que fez a China abraçar o mundo

July 19, 2017 | Autor: Claudia Antunes | Categoria: China, Contemporary China
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A reforma que fez a China abraçar o mundo
O gradualismo e o pragmatismo foram os pilares das mudanças econômicas
implementadas a partir do fim dos anos 70

CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE CAMBRIDGE (EUA)
As reformas econômicas chinesas nasceram de uma crise de legitimidade do
regime, depois dos anos de radicalização ideológica e expurgos da Revolução
Cultural (1966-1976). Cansados da "revolução permanente" maoísta, os
chineses ansiavam por estabilidade e autonomia.
Os pilares das reformas foram o gradualismo e o pragmatismo, sintetizados
em dois slogans lançados no fim dos anos 70 pelos dirigentes que venceram a
disputa no Partido Comunista: "cruzar o rio pisando as pedras" e "a prática
é o único critério para testar a verdade".
Ser gradualista e pragmático significava evitar terapias de choque,
incorporar experiências bem-sucedidas em nível local e trabalhar com as
condições que estavam dadas, sem a pretensão de construir do zero novas
instituições de mercado.
Fora da China, o ciclo de liberalização e crescimento está associado às
Zonas Econômicas Especiais, criadas nos anos 80 nas regiões costeiras para
atrair investimentos estrangeiros. Mas o empurrão para o salto de
produtividade veio das pequenas indústrias rurais de propriedade coletiva,
uma herança do Grande Salto à Frente lançado por Mao Tse-tung em 1958.
Criadas com o objetivo de promover a auto-suficiência das comunas, elas
puderam diversificar a produção e absorver a mão-de-obra liberada pela
descoletivização agrícola, primeira etapa das reformas.
Entre 1978 e o começo dos 90, a produção das chamadas empresas municipais e
de aldeias cresceu 21% ao ano. Em 1997, elas eram responsáveis por 50% das
exportações. O número de empregados passou de 25 milhões para 138 milhões
em 2004, em mais de 22 milhões de pequenas empresas.
"Sempre se pensa na China como um país centralizado, mas inovações locais
foram um dos principais meios de levar mudanças adiante", afirmou o inglês
Anthony Saich, professor da Escola Kennedy de Governo da Universidade
Harvard e autor de "Governance and Politics of China" (Governança e
Política da China).
Testemunha da história recente da China -onde morou como estudante em 1977
e como representante da Fundação Ford entre 1994 e 1999-, Saich lembra que
os mesmos setores que comandaram as reformas no fim dos 70 já tinham
iniciado uma liberalização mais tímida em 1960, depois do fracasso do
Grande Salto à Frente. Na época, metas superestimadas de produção de grãos
levaram à suspensão de outros cultivos, provocando fome em massa.
Portanto não foi exatamente algo novo o que ocorreu a partir de 1976,
quando a descoletivização começou como um movimento espontâneo dos
agricultores em algumas províncias.
O movimento ganhou a aprovação tácita dos dirigentes em Pequim, que depois
implantaram em todo o país o "sistema de responsabilidade familiar" na
agricultura. Surgiram mercados livres para a venda de excedentes e 55 mil
comunas foram desmanteladas.
A abertura ao capital estrangeiro e a ênfase no comércio exterior vieram
numa segunda fase, inspiradas nas zonas de processamento de exportações de
outros países do leste asiático.
O capital doméstico não era suficiente para manter a China crescendo, mas a
suspeita em relação aos países capitalistas permanecia forte. A idéia das
Zonas Econômicas Especiais foi um meio de driblá-la: quatro regiões da
costa foram isoladas, inicialmente para atrair investimentos da diáspora
chinesa em Hong Kong e Taiwan. O número de regiões abertas foi ampliado até
atingir toda a costa.
O último setor afetado pela reforma foram as grandes estatais, até hoje um
dos nós da economia chinesa. Temeroso do desemprego em massa que resultaria
da privatização ou do fechamento de empresas, o governo optou por medidas
paulatinas, começando em 1983 com a taxação do lucro -que poderia ser
reinvestido- e a criação, em 1986, de um sistema de contrato para novos
trabalhadores (até então empregados para a vida toda) e de incentivos para
os gerentes.
O resultado foi modesto, já que boa parte das estatais operava no vermelho.
Para agravar a situação, o fim do controle de preços industriais, em 85,
provocou inflação. O impulso inicial das reformas no campo tinha se
esgotado e o resultado imediato do fim das cotas agrícolas foi a queda de
preços. Os agricultores reduziram a produção, alimentando reajustes que
passaram de 30% em 88.
A inflação foi, ao lado da corrupção, uma das principais causas dos
protestos estudantis em 89. "Foi um choque econômico seguido de uma crise
política que levou à tentativa mais organizada, na liderança comunista, de
voltar atrás nas reformas", disse Saich.
Depois de mandar o Exército reprimir os manifestantes, Deng Xiaoping
reinstituiu os controles de preços. Para conter a inflação, o governo
adotou uma política austera de gastos. O PIB cresceu 4% em 1989, a menor
taxa desde 1976.
No campo político, segundo Saich, as reformas foram salvas pela
desintegração da União Soviética: "A lição que Deng Xiaoping tirou disso
foi que, se não mantivesse a economia crescendo, a China iria cair também".
O dirigente fez então a famosa viagem pelas Zonas Econômicas Especiais para
mandar o recado de que não haveria retrocesso. Em 1993, o crescimento
chegou a 13,4%.
Um novo repique inflacionário, em 1994, levou o então primeiro-ministro Zhu
Rongji a desencadear a reforma do sistema financeiro. Os objetivos eram
criar um setor bancário menos suscetível a influências políticas, reforçar
o papel regulador do Banco Central e limpar a contabilidade bancária das
dívidas do setor estatal consideradas impagáveis, que equivaleriam a 25% do
PIB.
A partir de 1998, Comitês de Administração de Ativos começaram a comprar
pelo valor de face os créditos podres de 1.600 estatais consideradas bem
administradas. Os resultados do "Proer" chinês ficaram aquém do esperado.
No fim de 2004, os comitês só haviam recuperado 20% do dinheiro gasto na
compra das dívidas. Além disso, o total retirado da contabilidade bancária
corresponde só a 50% da carteira de créditos podres dos quatro maiores
bancos.
Entre 1993 e 2001, o total de estatais caiu de mais de 100 mil para 47 mil.
Sua participação na produção industrial é hoje de 28%, mas elas empregam
50% dos trabalhadores urbanos, recebem três quartos dos investimentos do
Estado e 67% dos empréstimos bancários.
É esse tipo de problema que alimenta o debate entre os que aplaudem a
estratégia gradualista, como Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia, e
Dani Rodrik, de Harvard, e os que acreditam que a China cresce apesar do
gradualismo, como Jeffrey Sachs, de Columbia.
Sachs, que desenhou a terapia de choque na transição russa, diz que as
reformas funcionaram quando houve mudanças mais radicais, como o fim das
comunas.
Stiglitz e Rodrik reconhecem as diferenças entre a Rússia industrializada e
a China agrária no ponto inicial das reformas. Mas apontam outros fatores,
como a descentralização da economia chinesa combinada a um Estado central
que, ao contrário do russo, estava longe da implosão. Essa análise enfatiza
o papel do Estado na calibragem da transição e afirma que um mercado
desgovernado produz resultados caóticos.
"No que eu concordo com Stiglitz é que você deve trabalhar com o que tem. É
preciso criar incentivos para fazer as instituições que existem funcionarem
de maneira diferente. Não se pode cortar tudo e esperar que algo eficaz
nasça no lugar", disse Saich. Mas para ele, o gradualismo "deu o que tinha
que dar" na China.
Em sua opinião, o modelo chinês se ressente da falta de flexibilidade
política para lidar com possíveis crises na economia. O crescimento tornou-
se a fonte de legitimidade do regime. Nesse aspecto, a Índia tem vantagens
sobre a China.
"A Índia pode lidar com uma queda dramática no crescimento. Troca o
governo, passa por uma crise, mas vai adiante. A China não tem um sistema
político que possa se manter perpetuamente. Se eles administrarem a
transição política como administraram a econômica, todos vão ser felizes.
Mas não há garantias. É uma transição perigosa e a maioria dos países tende
a fazê-la em momentos de crise."
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