A reinvenção da dádiva: desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental no Banco do Nordeste do Brasil - Emanuel Oliveira Braga

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CENTRO DE CIÊNCIAS APLICADAS E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

A

REINVENÇÃO

DA

DÁDIVA:

DESENVOLVIMENTO

REGIONAL,

ECONOMIA SOLIDÁRIA E RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL NO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL

Emanuel Oliveira Braga Orientadora: Profa. Dra. Alicia Ferreira Gonçalves

João Pessoa/PB, maio de 2013.

ii

EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

A

REINVENÇÃO

DA

DÁDIVA:

DESENVOLVIMENTO

REGIONAL,

ECONOMIA SOLIDÁRIA E RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL NO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL Dissertação apresentada à Coordenação do Programa

de

Pós-Graduação

em

Antropologia da Universidade Federal da Paraíba, como requisito final para obtenção do título de Mestre em Antropologia.

Orientadora: Profa. Dra. Alicia Ferreira Gonçalves

João Pessoa/PB, maio de 2013.

iii

Capa Emanuel Oliveira Braga Revisão Ortográfica Mirella de Almeida Braga

Sugestão para catalogação da publicação na fonte. Universidade Federal da Paraíba. Biblioteca Setorial do Programa de Pós-Graduação em Antropologia localizada no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Braga, Emanuel Oliveira. A reinvenção da dádiva: desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental no Banco do Nordeste do Brasil. João Pessoa, PB, 2013. 243 folhas. Orientadora: Prof. Dra. Alicia Ferreira Gonçalves Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Centro de Ciências Aplicadas e Educação. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Área de Concentração: Antropologia Social. Linha de Pesquisa: Políticas sociais e do cotidiano. Índices para catálogo sistemático: 1.aBanco do Nordeste do Brasil. 2. Desenvolvimento regional. 3. Economia solidária. 4. Responsabilidade socioambiental. 5. Antropologia econômica. 6. Antropologia política.

iv

Esta Dissertação foi submetida à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia, concedido pela Universidade Federal da Paraíba, encontrando-se à disposição do público interessado na Biblioteca Setorial do PPGA localizada no CCHLA da referida Universidade. A citação de qualquer trecho desta Dissertação é permitida, desde que seja feita em conformidade com as normas da ética científica. João Pessoa/PB, 13 de maio de 2013.

EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

Dissertação aprovada em 13 de maio de 2013, pela seguinte Banca Examinadora:

PROFA. DRA. ALICIA FERREIRA GONÇALVES (ORIENTADORA)

PROF. DR. ALCIDES FERNANDO GUSSI

PROFA. DRA. MARISTELA OLIVEIRA DE ANDRADE

 

v

O melhor modo de viver em paz é nutrir o amor-próprio dos outros com pedaços do nosso. (Joaquim Maria Machado de Assis)

Se verá a que novos problemas somos levados: uns dizem respeito a uma forma permanente da moral contratual, a saber: a maneira pela qual o direito real permanece ainda em nossos dias ligado ao direito pessoal. (Marcel Mauss)

vi

A Mirella e Maria Luiza, meus amores.

vii

Agradecimentos À minhas amadas Mirella e Maria Luiza que me deram a maior dádiva que uma pessoa pode receber nesta vida, o encantamento da formação de uma família com seus amores incondicionais. À Mirella, pela convivência e companheirismo do cotidiano, por me fazer mais feliz. Um agradecimento especial pelo acompanhamento de todo o processo de pesquisa, reflexões e feitura da escrita dissertativa. Ufa! Ainda bem que acabou, amor! À Maria Luiza pelo carinho de todos os dias, minha filha linda, obrigado! A Deus e a todos os santos pela força positiva em me fazer acreditar que “no fim, tudo daria certo”, pela paciência nos momentos mais difíceis dos estudos e da vida e pela inspiração na pesquisa e na elaboração do texto. Especialmente, agradeço a saúde da minha família e pessoas queridas. À minha família cearense, minha mãe, Maria das Graças, meu irmão Tiago, minhas irmãs Euricleia, Eurisene e Euzene, a todos, o meu muito obrigado pela fortaleza afetiva e pelo amor incondicional que sempre recebo nas minhas visitas e nas energias boas que vocês sempre me oferecem de Fortaleza à João Pessoa. À minha orientadora professora Alicia pelo carinho, compreensão e atenção em todos os momentos da pesquisa e da produção textual, pela paciência em ouvir e debater com esse cabra teimoso, pelos bons conselhos, pela prontidão nas respostas, no agendamento de reuniões, na articulação com os colaboradores da pesquisa, muito obrigado! Aos meus colaboradores da pesquisa, funcionários do Banco do Nordeste do Brasil, da Associação de Funcionários do BNB e do Instituto Nordeste Cidadania, que em meio às correrias dessa vida, me atenderam, me receberam, falaram de assuntos, por vezes, tão íntimos, tão seus, que dádiva impagável vocês me deram! Mostraram um BNB que eu não conhecia, de dentro, me trouxeram de volta para os “assuntos do Nordeste”, “assuntos do sertão”, depois de alguns anos morando no Mato Grosso. Obrigado! Aos meus amigos Bruno, Eduardo, Luciano, Saulo e Zeca (em ordem alfabética...) que me apoiam, sem saber nem o que estão apoiando.

viii

Às amigas e aos amigos, aos “afetados”, do curso de Mestrado em Antropologia pelo companheirismo e por fazerem as aulas mais divertidas, inteligentes e interessantes, obrigado Adelson, Adriano, Andreia, Antonio, Eduardo, Elisa, Elisabete, Elizangela, Juliana, Raimundo e Raniery (em ordem alfabética...). Um dia a gente escutará os “tambores dos mortos” kkkkkk! Aos amigos Adriano, Átila e Carla, pela revisão atenciosa e paciente do texto da Qualificação. Ao meu sobrinho Léo, ao meu irmão Tiago e à Rita, diretora-presidente da AFBNB, pelo empenho em me conseguir uma entrevista com o Sr. Roberto Smith, ex-presidente do Banco, uma das gestões mais marcantes da história recente da instituição. Ao amigo Claudio pela contribuição detalhista a respeito da obra Dîner brésilien. À Luana, pelo empenho em me conseguir uma das entrevistas mais proveitosas desse trabalho dissertativo, junto ao Superintendente do BNB em Pernambuco, Sr. Chicão. Principalmente, pela amizade, sou muito grato a vocês! Ao professor Alcides, pela maravilhosa contribuição para rearranjos estruturais da pesquisa de campo e da reflexão teórica que me ofereceste no momento da Qualificação. Se meu trabalho é fronteiriço, você é uma das mais gratas fronteiras da elaboração do texto que ora apresento. Muito obrigado, rapaz! À professora Maristela, pelas ótimas observações e ensinamentos oferecidos no momento da Qualificação, especialmente por me fazer conhecer e refletir sobre a vida e obra (obra de ações) de Padre Ibiapina e suas lutas diárias e compromissos com o “social”. Sou imensamente grato por tudo! À Superintendência Estadual da Paraíba do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Umbelino e Kleber, por apoiarem meus estudos, em conciliação com as atividades de gestão do patrimônio cultural do nosso país. Obrigado queridos! Por fim, à memória de meu pai, Manoel Braga, que sonhava que eu fosse engenheiro. Vejam só! Será que ao trabalhar com arquitetos e escrever sobre desenvolvimento regional, cheguei mais próximo dos seus sonhos, pai?

ix

SUMÁRIO Lista de Siglas e Abreviaturas

xi

Resumo

xiv

Introdução

15

Un dîner brésilien

15

Caminhos e descaminhos da pesquisa em instituições bancárias

17

O assunto é Marcel Mauss

25

Capítulo I Um banco em reinvenção 1.1.Vidas, projetos e fronteiras

36 36

1.1.1. Os anos 1970

38

1.1.2. Os anos 1980

42

1.1.3. Os anos 1990

51

1.1.4. Os anos 2000

57

1.2. BNB: uma breve contextualização histórica

73

1.2.1. Preâmbulo: crédito, banco e desenvolvimento

73

1.2.2. BNB: um conterrâneo inserido na economia global

78

1.3. Desenvolvimento regional: entre o “banco de varejo” e o “banco de fomento”

96

1.3.1. Desenvolver é preciso

97

1.3.2. O regional e o “outro”

106

1.3.3. Agentes de desenvolvimento na “Era Byron” e na “Era Smith” 113 1.3.4. O dom do desenvolvimento

121

Capítulo II Economia solidária: uma vereda contemporânea para entrar e sair do (no) capitalismo

127

2.1. Evento e especialistas

127

2.2. Definições, consensos e conflitos

139

2.3. Movimento social global

147

2.3.1. Um olhar sobre o II Encontro Nordestino de Incubadoras de Economia Solidária e a atuação da SENAES

149

2.3.2. BNB e os Fundos Rotativos Solidários

154

x 2.3.3. O “agente mobilizador”: a Cáritas

161

2.3.4. Economia solidária, entre o movimento social e as políticas institucionais

164

Capítulo III Responsabilidade socioambiental: regulamentando a espontaneidade ou tornando espontâneo o regulamento?

170

3.1. O ambiente de responsabilidade socioambiental no BNB

170

3.2. Definições, consensos e conflitos

176

3.2.1. O caso do INEC

182

3.2.2. Responsabilidade socioambiental e “bem estar” do trabalhador

187

3.2.3. Responsabilidade socioambiental: obrigatoriamente voluntária e voluntariamente obrigatória

3.3. Convenções internacionais e reinvenções locais

190 196

3.3.1. O Instituto ETHOS como “agente mediador” da responsabilidade social e de seus derivados

196

3.3.2. Acordos e recomendações da Organização das Nações Unidas: PNUD e ODM

199

A reinvenção da dádiva, do Estado e do mercado

203

Capítulo IV 4.1. O vocabulário da dádiva: jogos de palavras e poderes do “fazer o bem”

203

4.2. O vocabulário da dádiva: estratégias discursivas “para um mundo melhor”

209

4.3. BNB: entre o mercado o Estado e a dádiva

222

Considerações finais

228

Referências bibliográficas

235

xi

Lista de Siglas e Abreviaturas ADCE: Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas do Brasil ADS: Agência de Desenvolvimento Solidário AFBNB: Associação dos Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil ANTEAG: Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária ASA: Articulação do Semiárido BEC: Banco do Estado do Ceará BF: Bolsa Família BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento BM: Banco Mundial BNB: Banco do Nordeste do Brasil BNDES: Banco Nacional do Desenvolvimento CADIN: Cadastro Informativo de Créditos não Quitados no setor público federal CAEN: Centro de Aperfeiçoamento de Economia do Nordeste CEPAL: Comissão Econômica para América Latina CEPFS: Centro de Educação Popular e Formação Social CFO: Curso de Formação de Oficiais Bombeiros CHESF: Companhia Hidroelétrica do São Francisco CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil COAB: Companhia de Habitação Popular CODENO: Conselho de Desenvolvimento do Nordeste CUT: Central Única dos Trabalhadores DETRAN: Departamento Estadual de Trânsito DIEESE: Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural ES: Economia Solidária

xii

ETENE: Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste FBES: Fórum Brasileiro de Economia Solidária FBSAN: Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional FCO: Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste FDNE: Fundo de Desenvolvimento do Nordeste FGV: Fundação Getúlio Vargas FIA: Fundo para Infância e Adolescência FIPE: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas FMI: Fundo Monetário Internacional FNE: Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste FNO: Fundo Constitucional de Financiamento do Norte IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBMEC: Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais IBRAM: Instituto Brasileiro de Museus IDH: Índice de Desenvolvimento Humano IFPB: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba INEC: Instituto Nordeste Cidadania INSS: Instituto Nacional de Seguridade Social IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ITCPS: Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares MAPP: Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas MBA: Master in Business Administration MNSMF: Mutirão Nacional para Superação da Miséria e da Fome MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONG: Organização Não Governamental ONU: Organização das Nações Unidas OSCIP: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

xiii

PAC: Programa de Aceleração do Crescimento PAC: Projeto Alternativo Comunitário PAPPS: Programa de Apoio a Projetos Produtivos Solidários PDT: Partido Democrático Trabalhista PIB: Produto Interno Bruto PNUD: Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento PRODETUR: Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira PT: Partido dos Trabalhadores RS: Responsabilidade Social RSA: Responsabilidade Socioambiental RSE: Responsabilidade Social Empresarial SEBRAE: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SENAES: Secretaria Nacional de Economia Solidária SINE: Sistema Nacional de Empregos SPC: Serviço de Proteção do Crédito SUDENE: Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste UECE: Universidade Estadual do Ceará UFBA: Universidade Federal da Bahia UFC: Universidade Federal do Ceará UFF: Universidade Federal Fluminense UFMT: Universidade Federal do Mato Grosso UFPB: Universidade Federal da Paraíba UFRN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte UNIAPAC: Internacional Christian Union of Business Executives UNISOL: União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo

xiv

Resumo Por meio da reconstrução de histórias de vida e trajetórias profissionais de funcionários e gestores do Banco do Nordeste do Brasil e do exercício de olhar etnográfico sobre redes de sociabilidades que perpassam ideias-força globais tais como desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental, o estudo descreve os jogos e estratégias de reinvenção da dádiva em uma instituição bancária do Governo Federal. Nas situações apresentadas pela pesquisa, os jogos e estratégias de reinvenção da dádiva passam a ressignificar as próprias noções de Estado e de mercado. Palavras-chave: Banco do Nordeste do Brasil. Dádiva. Desenvolvimento regional. Economia solidária. Responsabilidade socioambiental.

Abstract By reconstructing life histories and professional trajectories of employees and managers, from Banco do Nordeste do Brasil and by the ethnographic exercise view on social networks, which permeate global force ideas such as regional development, solidarity economy, and environmental responsibility, the study describes the games and strategies of gift’s reinvention in a bank institution of Brazilian Government. In the situations presented by the research, it begins to re-signify the own notions of the State and the market. Key-words: Banco do Nordeste do Brasil. Gift. Regional development. Solidarity economy. Environmental responsibility.

15

INTRODUÇÃO

Un dîner brésilien O recinto é livre de objetos decorativos, abriga apenas uma mesa para refeições e um aparador que serve de apoio à prataria da casa. A mesa retangular singela apresenta, sobre uma bonita toalha de renda, alimentos variados. Provavelmente, uma travessa de louça de porcelana chinesa ou inglesa com farinha de mandioca, um prato da mesma coleção com frutas, quem sabe laranjas, uma espécie de jarra de vidro, uma garrafa escura, uma taça contendo um líquido avermelhado, talvez vinho, e, por fim, outra grande travessa portando um frango assado. Nas duas cadeiras de madeira maciça, sentados estão um homem e uma mulher, quem sabe marido e mulher, de peles claras, bem vestidos, situados nas duas extremidades da mesa. Encostado na lateral de uma das entradas do ambiente encontra-se um homem moreno, vestido com roupas de algodão cru. Mais próximo da mesa de refeições, um homem negro de braços cruzados observa em pé a ceia de seus senhores com um leve sorriso no rosto. Observa a sua senhora oferecer com o próprio garfo algum alimento retirado do seu prato a uma criança negra, sem traje qualquer. A criança recebe o alimento com as próprias mãos. Do lado da criança que recebe a caridade, outra da mesma idade e de pele também escura está sentada nas tábuas de madeira que formam o chão, comendo algo com as mãos. O senhor branco mostra indiferença à ação de sua companheira e continua o seu manjar. Completa a cena, uma escrava negra que, ao fundo, limpa uma das paredes do recinto usando um esfregão. Jean-Baptiste Debret, que pintou na primeira metade do século XIX o quadro ora descrito, por algum motivo, chamou tal cenário de ―um jantar brasileiro‖. Debret, assim como Gilberto Freyre, viu em nossas terras uma pitoresca relação dadivosa entre senhores e escravos, entre ricos e pobres, entre brancos e negros.

16

Un dîner brésilien (1827) – Debret

17

Caminhos e descaminhos da pesquisa em instituições bancárias

Chamou a atenção para o início de uma pesquisa de cunho acadêmico antropológico acerca da ―dádiva em instituições bancárias‖ o constante recebimento na minha caixa de emails de mensagens solicitando ajuda financeira ou doações de serviços e produtos a vários movimentos de caridade. Notava que apesar do endereço eletrônico de onde partiam os emails ser um endereço institucional do Banco do Nordeste do Brasil, os títulos das mensagens remetiam a assuntos mais próximos ao mundo religioso propriamente dito. Campanha Irmãs Missionárias Capuchinhas, Grupo Fraterno Amor, Casa da Madre Paulina, SOS Criança, Sopão, Ajuda ao Seu Amém, Campanha Fraldas Geriátricas e Absorventes Pós-Parto, A tod@s que querem viver uma experiência gratificante no Natal - Natal de Amor e Campanha Dia das Crianças são alguns exemplos de títulos de mensagens eletrônicas conclamando contatos virtuais para uma ―boa ação‖. Muitas das doações podem ser feitas por meio de depósitos bancários em contas correntes do Banco do Nordeste e do Banco do Brasil, bem como em uma Conta Campanha Notas Fiscais, todas controladas por funcionários de bancos. Depois desse primeiro estranhamento, mantive contatos com amigos que trabalham em agências bancárias (Banco do Nordeste, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal) e eles me confirmaram que existe, de fato, ―grupos de solidariedade‖ organizados por bancários. Trata-se de um fenômeno comum. Isso me instigou muito. Ora, não há de se negar que os bancos não são bem vistos pela opinião geral pública. ―Eu ando tão endividado que se eu chamar a minha mulher de ‗meu bem’ o banco toma ela de mim‖, popularizou Millôr Fernandes. Os bancos cobram juros, taxas disso e daquilo outro, imposto sobre imposto, a poupança não rende quase nada, em compensação se formos pedir um empréstimo... Por mais que existam campanhas de marketing voltadas para o ideal de um relacionamento ―mais humano‖ entre clientes e funcionários de agências bancárias, estamos ligados a essa relação por um frio cálculo capitalista, por números, comprovantes, extratos, contratos, porcentagem de juros, multas, etc. Tudo é condenável por vários pontos de vista, especialmente os pontos de vista humanitários. E justo dentro desse universo (tão cultural!) do cálculo, surgem movimentos de generosidade ao ―desconhecido‖. Como ―dar conta‖ dessa realidade? Se é que ela existe, qual a relação desses movimentos do voluntariado com as ações propriamente institucionais desses bancos? Onde começa a instituição e termina o

18

indivíduo, onde começa o indivíduo e termina a instituição (Douglas, 1998) quando o assunto é organização de movimentos de generosidade dentro e por meio de um banco? São essas algumas das questões que me cativam e me obrigam ao início deste trabalho. No decorrer do contato com o campo, os caminhos e descaminhos da pesquisa dentro de um universo institucional bancário me levaram a selecionar dois conceitos/práticas que estavam ecoando há algum tempo nas minhas percepções das novas e velhas terminologias que vão e vem no noticiário jornalístico e nas propagandas políticas. Tive interesse em vasculhar e concentrar atenção em duas experiências que sempre apareciam ―prontas‖ e com tons de obviedade e necessidade contemporânea, como ―boas novas para o novo milênio‖ e ―propostas para um mundo melhor‖. Refiro-me à chamada responsabilidade social, e os seus diversos derivativos (especialmente o socioambiental), e à chamada economia solidária. Essas ideias, trabalhadas em entrevistas com especialistas, notícias e reclames, surgiam ao meu olhar de leigo como lugares-comuns. Denomino aqui ―lugar-comum‖ ideias e ações que tendem a estabelecer critérios de interpretação objetiva da realidade, delineando uma plausibilidade discursiva de determinados fenômenos sociais, ganhando grande público de consumidores que logo passam a usá-las sem uma maior reflexão do uso. Procuro, outrossim, confrontar e potencializar tais conceitos/práticas junto ao acúmulo de conhecimentos reverberados pela matriz conceitual da dádiva 1 maussiana. Responsabilidade socioambiental 2 e economia solidária podem ser interpretadas e inventadas como dons, em conformidade com as definições de Marcel Mauss? Quais são os limites e os avanços desse exercício comparativo? Que aproximações e diferenciações podem ser construídas a partir dessas duas experiências, responsabilidade socioambiental e economia solidária, já que uma mesma instituição, o Banco do Nordeste do Brasil, resolve abrigá-las no mesmo manancial de projetos sociais possíveis? Ao longo da pesquisa, pude constatar que o conceito-chave para se compreender institucionalmente e culturalmente o BNB é, na verdade, outra ideia-força: Aqui me refiro, especialmente, ao clássico Ensaio sobre a dádiva e toda a repercussão que a obra obteve junto às ciências sociais, especialmente as de tradição francesa, com ―discípulos‖ fiéis e heterodoxos dentre os quais, arriscadamente, destaco Claude Lévi-Strauss, Roger Callois, George Bataille, Louis Dumont, Maurice Godelier, e, mais recentemente, os pesquisadores que participaram da Revue du MAUSS (Em português, ―Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais‖), da qual citamos os seguintes autores com a ajuda de um dos integrantes do grupo (Alain Caillé): Jacques Godbout, Serge Latouche, Paul Jorion, Guy Nicolas, etc. Sobre a atuação intelectual e política da Revue du MAUSS, ver a publicação ―Antropologia do dom: o terceiro paradigma‖ de Alain Caillé (2002). 2 O Banco do Nordeste usa oficialmente o derivativo ―responsabilidade socioambiental‖, tendo constituído recentemente um Ambiente específico dentro da instituição para trabalhar com essa temática. 1

19

desenvolvimento regional. Podemos entender esse conjunto de reflexões e experiências de trabalho relacionadas ao desenvolvimento regional como uma ―categoria nativa‖ do Banco. As redes de contatos, movimentos, parcerias e marcos legais que compõem a responsabilidade socioambiental e a economia solidária, que são redes globais, foram e são, de algum modo, tragadas e ressignificadas pela cultura desenvolvimentista do Banco do Nordeste. A fim de estabelecer como poderia ter acesso mais direcionado a essas informações acerca de temas diversificados, que se avolumam espalhadas em arquivos virtuais da internet, que não revelam a vivacidade das pessoas que cotidianamente ―trabalham com isso‖, reinventando tais conceitos/práticas, optei, dentre outras técnicas de observação, pela realização de entrevistas abertas, focalizando a história de vida pessoal e a trajetória profissional, com os funcionários do Banco do Nordeste que atuam no Ambiente de Responsabilidade Socioambiental, no Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste – ETENE e na Associação de Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil – AFBNB, ambos situados na sede do BNB em Fortaleza/CE; e na Superintendência Estadual do BNB na Paraíba, em uma agência bancária situada na avenida Epitácio Pessoa, e no Instituto Nordeste Cidadania – INEC, todos localizados em João Pessoa/PB. Foram entrevistados os seguintes cargos atuantes do Banco 3: um Gerente de Ambiente, uma Gerente Executiva, um Coordenador de Estudos e Pesquisas, um Superintendente da Área de Políticas de Desenvolvimento, um Assistente de Superintendência, um Gerente Geral de Agência e um Superintendente Estadual. Além disso, participaram de entrevistas presenciais: a atual Diretora-Presidente da AFBNB, o ex-presidente do Banco do Nordeste da gestão 2003 - 2011 e um Assessor de Crédito do INEC. São 10 colaboradores ao todo. As autorizações para explicitação do conteúdo das entrevistas foram feitas em acordos pessoais com cada entrevistado, durante as várias comunicações via email, telefone e ―face a face‖. Alguns me solicitaram a transcrição das conversas na íntegra por email, o que foi devidamente prontificado. No intuito de salvaguardar a privacidade das informações dos meus colaboradores, resolvi substituir os nomes reais por nomes fictícios. As entrevistas, modelo de pesquisa não tão usual nos métodos tradicionais de investigação antropológica (que positivam a chamada observação participante e o texto Utilizarei ―Banco‖ com inicial maiúscula quando estiver me referindo ao Banco do Nordeste e ―banco‖ com inicial minúscula quando estiver me referindo aos demais bancos ou à ideia genérica de banco. Percebam que os funcionários do BNB usam comumente ―Banco‖ nas suas falas. 3

20

etnográfico), se fizeram necessárias tendo em vista as impossibilidades que se apresentaram ao longo da pesquisa de adentrar ao universo ―mais íntimo‖ da organização social de uma instituição bancária repleta de normas de acesso e sigilo de informações oficiais. Isso não desmotiva o sempre bem vindo exercício da descrição densa 4 e os cuidados de estilo e criatividade antropológica do olhar apurado do etnógrafo. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma ―descrição densa‖. (Geertz, 1989: 15)

O que se pretende neste trabalho dissertativo é arriscar um esforço intelectual para descrever densamente certas experiências de vida, ideias, atitudes profissionais e instituições5 sociais. Teremos aqui, pois, uma abordagem etnográfica de redes e lógicas de pensamento, de posturas e de ações que fazem parte do métier do Banco do Nordeste, mas não se restringem a ele. Compõem, metaforicamente, uma nebulosa que atravessa espacialidades e temporalidades, ganhando e perdendo sentidos variados nas mentes, nas bocas e nas atitudes das pessoas. As diversas falas expressas nas entrevistas por mim realizadas, os posicionamentos públicos e as performances produzidas pelos agentes sociais durante os momentos de palestras e debates em eventos, seminários e encontros, as monografias, dissertações e teses acadêmicas sobre as temáticas aqui selecionadas como foco do estudo, desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental, estabelecem redes interconectadas, no dizer de Bruno Latour (1994), ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como discurso e coletivas como a sociedade. É um desafio etnográfico, idealizado, descrever tais redes. Para conseguir acesso aos ambientes físicos do Banco e ter mais legitimidade institucional junto aos entrevistados, em algumas oportunidades, tive que entregar uma Carta de Apresentação da pesquisa, com indicação do que se tratava, grosso modo, o tema de interesse e a assinatura da orientadora do trabalho. Outras dificuldades, que são plenamente compreensíveis e assaz óbvias, se apresentaram no decorrer do processo de contato com o dia a dia do BNB. Alguns 4 5

Sobre o referido fazer etnográfico, ver Clifford Geertz (1989). ―Instituições‖ na acepção mais ampla oferecida por Mary Douglas (1998), por exemplo.

21

cargos dirigentes ficaram inacessíveis. Os dirigentes de dois dos setores selecionados para esta pesquisa procuraram evitar entrevistas e delegavam pessoal do quadro técnico para contato direto comigo. Alguns bancários, especialmente do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental, diziam que eu não precisava falar com o gerente do setor, pois as informações que eles estavam me passando seriam as mesmas que ele me passaria. Não faria diferença, então, eu conversar com um cargo técnico ou com um cargo dirigente. Buscavam caracterizar a existência de uma uniformidade no discurso. Enquanto alguns funcionários se mostraram mais abertos e repassavam com tranquilidade informações que eu costumava solicitar, outros se fechavam, desconfiados, evitando tirar, por exemplo, cópia de documentos, ou tergiversando questões de ―ordem política‖, mantendo o que poderíamos apelidar de ―segredos da empresa‖. A estratégia que se fez presente, sempre, foi, em bom cearês, ―aperrear‖. E aproveitar o máximo possível o pouco tempo que conseguia, as informações que obtinha, os detalhes da narrativa de história de vida e trajetória profissional de cada colaborador. Para entrar na sede do BNB em Fortaleza, sempre levava alguns minutos para obter a liberação da minha entrada. As moças da Portaria, sempre muito educadas, pediam minha carteira de identidade, anotavam dados, tiravam uma foto minha em uma minicâmera de computador. Perguntavam de onde eu era, qual instituição eu estava representando, com quem eu deseja falar, em qual setor específico e qual era exatamente o assunto. Eu sempre dizia, de um modo genérico, que era da Universidade Federal da Paraíba. Mencionar um outro Estado na conversa dava um tom de importância para o que estava dizendo. Certo dia, já no final da pesquisa, me barraram na Portaria, pois eu não ia entrevistar nenhum funcionário, apenas estava lá para tirar algumas fotos para mostrar a ambiência física do Banco no trabalho dissertativo. A sede do Banco é toda entrecortada por estradas de calçamento de paralelepípedo, onde transitam pedestres e veículos, que levam aos diversos ambientes institucionais. A partir da entrada principal, caminhando pela via mestra, podemos ver construções de pequeno porte, algumas que lembram casas modernistas como a Casa Gilmário Ferreira. Há uma horizontalidade proposital na volumetria das edificações. O projeto arquitetônico do complexo da sede do BNB foi assinado pelos arquitetos e urbanistas Marcos Thé e Wesson Nóbrega. O famoso arquiteto e paisagista Roberto Burle Marx é o responsável pela concepção dos jardins e paisagens dos diversos ambientes que compõem o espaço. No lado leste da ―pequena cidade‖ do Banco,

22

avistamos grandes blocos de estruturas metálicas interligados por passarelas onde funciona a maioria dos departamentos administrativos e técnicos da instituição. O centro político-administrativo, localizado no bairro do Passaré, foi implantado entre os anos de 1983 e 1984. Muitos funcionários do BNB almoçam na própria sede do Banco. O espaço tem restaurante e área para descanso no intervalo do turno da manhã e da tarde. Existe uma forte fiscalização para liberação da entrada de visitantes e veículos ―de fora‖. Além das funcionárias que ficam na Portaria coletando dados e interesses dos visitantes, guardas ficam na espreita de um lado para outro da entrada principal do complexo, usando equipamentos de comunicação para monitoramento de toda a área. Em todos os encontros com bancários para realização de entrevistas e esclarecimentos de dúvidas sobre as questões levantadas pela pesquisa, fui vestido com blusa de manga longa, calça comprida e sapato social. Tomei essa precaução, pois sabia da ―formalidade‖ habitual desses tipos de ambiente. A arte da pesquisa antropológica implica, como se diz em muitas localidades do Nordeste, em ―dar uma de doido‖, implica em compreender que o métier etnográfico e o dever ético de pesquisador ao longo da investida em campo, por mais que procure elucidar os objetivos do trabalho, correm o risco real de não serem elucidados. Quando era apresentado pelos meus informantes a outros servidores do BNB, essa apresentação, comumente, se referia ao meu trabalho como outro trabalho diferente, segundo a interpretação que eles faziam das minhas observações e questionamentos. Quando fui tirar uma simples foto do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental, um informante me abordou e disse que não precisaria me esforçar para isso, pois já existem várias imagens daquele prédio na internet. Mesmo sendo funcionários de um banco, pessoas inseridas positivamente em diversas e valorizadas formações educacionais e profissionais, eles, na verdade, estranham muito o tipo de trabalho que estou fazendo ali. Um antropólogo interessado em modalidades de microcrédito, em balanços sociais e em fundos monetários soa inusitado. Para entender de Fundos Rotativos Solidários 6 para quê eu precisaria de relatos de história de vida? Isso não prejudica o andamento da pesquisa e, em alguma medida, contribuiu para que eu pudesse construir, comigo mesmo, o ―linguajar bancário‖ necessário para conseguir evidenciar certas dúvidas que eu tinha sobre o campo de estudo.

No decorrer da dissertação, especialmente no segundo capítulo, veremos do que se trata essa modalidade de financiamento bancário chamada ―Fundos Rotativos Solidários‖.

6

23

Foto 1. Aspecto da entrada da sede do BNB no bairro Passaré, em Fortaleza/CE (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

Note-se que ―meus informantes‖ são, no geral, ―especialistas no assunto‖, são os responsáveis direta ou indiretamente pela repercussão desses conceitos/práticas abordados pela presente pesquisa dentro das instituições, departamentos e setores que fazem parte e, de um modo mais amplo, da rede de sociabilidades que envolvem comumente essas realidades e projetos. Alguns desses especialistas tive oportunidade de conhecer de perto, por meio das entrevistas, ou participação em eventos, outros estarão presentes aqui por meio de suas dissertações acadêmicas e posicionamentos públicos sobre o assunto, bem como por meio de referências indiretas de outrem. Dessa forma, fica evidenciado que a análise proposta neste trabalho focaliza atenção no que eles, os informantes, querem passar (oficialmente) para mim, um pesquisador ―da academia‖, cheio de ingenuidades e impressões teóricas de ―como funcionam as coisas‖. Não tenho e nem pretendo fugir disso, do crivo do institucional. Afinal, ―eu não sou um deles‖ e mesmo que fosse, não haveria garantia nenhuma de que não receberia de outras instâncias e setores do Banco ―informações institucionais‖. Esse fato não desmerece a graça do processo de investigação antropológica já que obviar o institucional também é reinventá-lo. Quando interajo nos diálogos com esses bancários e eles narram experiências de desenvolvimento regional, economia solidária,

24

responsabilidade socioambiental e outras atividades presentes no Banco, veremos que tais narrativas ganham inevitavelmente timbres subjetivos plurais, identitários e, por vezes, conflituosos, dentro do próprio prisma institucional. É preciso dizer que os servidores do Banco que colaboraram com esta dissertação são também acadêmicos e produzem, em muitos casos, reflexões acadêmicas e técnicas sobre as temáticas das quais desejo me aproximar. São sociólogos, economistas, administradores, psicólogos, assistentes sociais, juristas, são especialistas, trabalham com as ideias de desenvolvimento regional, responsabilidade socioambiental e economia solidária, testando (e inventando, no sentido wagneriano do termo) cotidianamente sua eficácia na prática das políticas públicas e de crédito acompanhadas pelo Banco do Nordeste e seus parceiros. Também sou, no meu dia a dia, gestor de políticas públicas. Sou funcionário público de uma autarquia federal do Ministério da Cultura. Apesar de ―não ser um deles‖, muitas das realidades situadas para mim durante as entrevistas e na observação do campo de pesquisa ecoaram e foram reinterpretadas como ―minhas realidades‖. Dessa forma, o tradicional jogo do olhar etnográfico eu versus o outro se encontra aqui bastante diluído. De certo modo, êmico e ético, eu sei com quem eu estou falando. Não conseguirei, é óbvio, escapar dos modelos de abordagem da realidade estudada que priorizam hegemonicamente a ótica da representação, da interpretação e da invenção que costumam reificar a análise das ciências humanas. É preciso observar que tanto a economia solidária como a responsabilidade socioambiental 7 ―acontecem‖ por meio de grandes redes de sociabilidade, redes de pessoas e redes de instituições organizacionais e instituições sociais 8, como se verá nas páginas que se seguem. As ideias-força9 contempladas na pesquisa possuem capilaridades sociais dentro e fora do BNB. Internamente, elas são interagidas entre sede, superintendências e agências, entre dirigentes, técnicos e terceirizados; externamente, atravessam conselhos, fóruns e parcerias interinstitucionais. Toda essa trama revela constante interação entre pessoas, que se encontram em reuniões,

7 Em vários momentos da dissertação, optei por expressões mais genéricas como ―responsabilidade social‖ ou ―responsabilidade social empresarial‖, mas, como já foi dito, o Banco do Nordeste do Brasil nomeia essas recomendações e ações de ―responsabilidade socioambiental‖ por agregar questões de ordem ambiental ao seu planejamento. 8 ―Instituições organizacionais‖ são as corporações propriamente ditas, a exemplo do BNB, de uma ONG, uma empresa, etc. ―Instituições sociais‖, segundo Mary Douglas, são estruturas sociais produzidas historicamente que dão suporte cognitivo ao pensamento e ao comportamento dos seres humanos. 9 Na presente dissertação, denomino ideia-força a proposição ideológica (no sentido mais amplo de ―posicionamento político‖) que tende a agregar redes de sociabilidades e valores morais em volta dela.

25

seminários, congressos, discutem, tomam café, falam de suas vidas, sonhos, angústias, problemas e realizações. Entretanto, a presente dissertação concentra atenção e acumula reflexão fundamentalmente no ―ponto de vista‖ dos funcionários do BNB e de outros ―especialistas no assunto‖, elencando, é claro, as teias de relações sociais que são estabelecidas nas narrativas situadas por eles. Objetivamente falando, o problema de pesquisa pelo qual me proponho a dissertar é: dada a existência das ideias-força contemporâneas desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental, que se propõem politicamente ―pelo mundo afora‖, ―estão por aí‖, de que modo, especificamente e localmente, as pessoas, os funcionários de uma instituição bancária tal como o Banco do Nordeste do Brasil, lidam, aplicam, traduzem, significam, fazem, pensam, concordam, discordam, repetem, mudam, inventam tais conceitos/práticas? Diria, talvez, Clifford Geertz: o que eles fazem, o que eles pensam que estão fazendo e o que eles pensam que estão pensando?

O assunto é Marcel Mauss O leitor já deve ter observado que utilizei algumas vezes a palavra ―dádiva‖, ―dom‖, e seus derivados, um tanto indiscriminadamente, para nomear determinados tipos de predisposições e práticas sociais exemplificadas por mim desde o início do presente texto. Precisamos, pois, iniciar uma tarefa já trilhada por muitos outros, que transcorrerá boa parte da narrativa deste trabalho, que é definir e, assim, reinventar a dádiva. Com tal definição aqui expressa, podemos situar contemporaneamente, com um pouco mais de segurança, os fenômenos que dizem respeito ao recorte temático dissertativo ora proposto 10. O conceito de dádiva, antropologicamente falando, deve toda sua fama e potencial, ao pensador francês, realizado profissionalmente no início do século XX, conhecido como Marcel Mauss 11. Em seu Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, escrito provavelmente entre 1923 e 1924, publicado pela primeira vez no periódico Année sociologique em 1925, não podemos encontrar nada que dicionarize com precisão o que seja dádiva, não há nada parecido com ―a dádiva é...‖ ou Este tópico se fez necessário para que o presente trabalho se coloque também como um interlocutor dos debates contemporâneos acerca do uso do conceito de dádiva em diferentes campos empíricos e textos acadêmicos. É uma conversa com Mauss. É também um desejo de dizer ―o senhor tem razão, vamos continuar esse inventário‖. 11 Para uma biografia de Marcel Mauss, consultar Marcel Fournier (1994). 10

26

―definimos dádiva como...‖. Contudo, essa preciosa narrativa consegue navegar por uma grande gama de referências culturais e diferentes modalidades de ações sociais pertinentes à dinâmica do dom. Trata-se de um conceito bastante abrangente, mas é preciso dizer, em tom de obviedade jocosa, que ―dádiva não é tudo‖. Existe uma especificidade classificatória e é dessa especificidade que devemos tratar. Para convidar o interlocutor a adentrar no universo do ―tema‖, o enciclopedista Mauss abre o Ensaio com algumas estrofes do Havamál, um dos velhos poemas do Eda escandinavo. ―Elas podem servir de epígrafe a este trabalho, na medida em que colocam diretamente o leitor na atmosfera de ideias e de fatos em que irá transcorrer nossa demonstração‖ (1974: 185), afirma ele. Dentre os vislumbres de ideias recorrentes fragmentadas nas estrofes do poema escandinavo, podemos ver ―os que dão mutuamente presentes são amigos por mais tempo‖, ―deve-se ser um amigo para seu amigo e retribuir presente por presente‖, ―os homens generosos e valorosos têm a melhor vida‖ e ―um presente dado espera sempre um presente de volta‖. De cara, podemos notar um apelo ao vocábulo ―presente‖, no sentido de ―regalo‖. Nessa acepção, dádiva não difere muito da dádiva expressa no dicionário: ―aquilo que se dá gratuitamente‖, ―aquilo que se recebe gratuitamente‖, ―recompensa recebida por atitudes ou trabalhos voluntários‖, ―dom, presente, oferta, donativo‖ e ―graça divina‖ 12. Entretanto, Mauss oferece a esse sentido comum de dádiva, ao seu caráter gratuito, voluntário 13, ―que não espera nada em troca‖, um simplório paradoxo: as dádivas são, ao mesmo tempo, voluntárias e obrigatórias, são incondicionalmente condicionadas. Não se exige nada em troca desde que aja troca! Após citar o Havamál, ele constata um fato de ordem geral, iniciando as reflexões do seu Ensaio: ―na civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos‖ 14 (1974: 187). Como podemos ver, esse paradoxo não é nenhuma novidade para os velhos ditados populares como ―quando a esmola é

Pesquisa realizada no site www.priberam.pt em 5 de maio de 2011. Interessante observar que em outras obras anteriores de Mauss esse caráter voluntário da dádiva é completamente ignorado da sua análise de determinados fenômenos sociais. Em 1921, o autor publica A expressão obrigatória dos sentimentos, onde podemos ler: ―não são somente os choros, mas todos os tipos de expressões orais dos sentimentos que são essencialmente não fenômenos exclusivamente psicológicos, ou fisiológicos, mas fenômenos sociais, marcados eminentemente pelo signo da não-espontaneidade e da obrigação mais perfeita‖ (1999: 325). 14 Interessante observar, também, o maior peso que Mauss oferece ao caráter condicionante, de sabor durkheimiano, da dádiva: ―na verdade, obrigatoriamente dados e retribuídos‖. 12 13

27

grande, o santo desconfia‖ ou ―cavalo dado não se olha os dentes‖ 15. Entretanto, para a academia, Mauss abre um promissor caminho filosófico-antropológico de se pensar o bicho-homem. Um dos objetivos do Ensaio é ilustrar, com riqueza de detalhes e de exemplos de costumes presentes em diversos povos do planeta (ditos ―primitivos‖, ―arcaicos‖, ―tradicionais‖, ―antigos‖, etc.), a complexidade simbólica da troca entre pessoas e grupos, a troca humana, um fenômeno universal e absolutamente diversificado. Uma das conclusões que se poderia extrair do texto é a de que independentemente de nossas referências culturais, independentemente do contexto temporal e espacial no qual estamos inseridos, nós estabelecemos trocas, relações sociais de ―toma lá dá cá‖. Não existimos sem a troca. Em um mesmo lugarejo fictício, duas famílias de camponeses vivem em casas distintas e ambas possuem os mesmos conhecimentos para viverem de forma sustentável. Ambas sabem plantar, colher, caçar, criar animais, construir utensílios domésticos e fazer reparos em suas instalações. Mas, por algum motivo, mesmo que consigam sobreviver e viver de modo autônomo uma da outra, essas duas famílias camponesas fictícias vão dar um jeito de estabelecer trocas de serviços, de pessoas (casamento) e de objetos. É esse por algum motivo que interessa a Mauss. Qual é a forma e a razão das sociedades arcaicas? Ele se pergunta. E chega a conclusões gerais, usando a simples comparação de diferentes costumes entre diferentes sociedades. As conclusões defendem que sempre trocamos, é uma espécie de imperativo categórico kantiano, mas essa troca nunca é uma simples troca, um ―escambo‖, eu te dou isso e você me dá aquilo e estamos satisfeitos. Há uma vasta série de obrigações e intenções que se misturam no momento em que trocamos. Rituais, festas, formas de expressão, lugares especiais, saberes específicos, entidades divinas, princípios legais, símbolos, artefatos, razões, emoções, tradições, rivalidades, guerras, vinganças, agressões 16, amor, sexo, paz, mulheres, herança, sangue, honra, perdão, gratidão, ódio, sonho, uma infinidade de coisas e seres, materiais e imateriais, estão em jogo enquanto eu decido devolver um presente recebido no dia do meu aniversário.

Nesse ponto, entendo a posição de Paulo Henrique Martins ao defender que ―a dádiva de que fala Mauss não se confunde com a tradução que o senso-comum faz do termo‖ (2005: 52), mas isso não quer dizer que o ―povo‖ não saiba, a seu próprio modo, desvendar os mistérios do interesse e desinteresse implícitos em uma doação de alimentos ou de um presente de natal. 16 O dom não necessariamente produz vínculos de generosidade e cooperação. Mauss cataloga uma série de exemplos de dons agonísticos, onde conflitos, atos violentos e rivalidades agressivas constituem a ―mola propulsora‖ do sistema dar-receber-retribuir. Escreve sobre o fenômeno do Potlatch no noroeste americano (especialmente os grupos Tlingit e Haida): ―não é outra coisa senão o sistema das dádivas trocadas. Diferencia-se apenas pela violência, o exagero, os antagonismos que suscita‖ (1974: 235). 15

28

Com vistas a situar conceitualmente o que ele compreende por dádiva, Mauss elege o fenômeno social do mercado para estabelecer uma diferenciação: ―o mercado é um fenômeno humano que, a nosso ver, não é alheio a nenhuma sociedade conhecida –, mas cujo regime de troca é diferente do nosso‖ (1974: 188). O mercado estaria livre do paradoxo, não seria incondicionalmente condicional, apenas condicional 17, o contrato social (no sentido mais geral) explícito de troca de objetos ou serviços (compra e venda), eu te entrego isso, desde que ―em troca‖ você me entregue aquilo, tendo em vista que isso, para mim, equivale àquilo e que você também tem interesse em trocar comigo. O mercado 18 seria, para Mauss, uma outra cultura econômica, tão cheia de significados e complexidades como a dádiva: ―as diversas atividades econômicas, por exemplo o mercado, ainda estão impregnadas de ritos e de mitos; conservam um caráter cerimonial, obrigatório, eficaz‖ 19 (1974: 302). É importante guardarmos esta informação da obra de Mauss, pois ela aparece de forma um tanto contida pelos autores que trataram de reverberar o legado maussiano e nos será muito útil para a argumentação ora desenvolvida. Muitos comentaristas maussianos passaram a abordar o mercado, o capitalismo, de um modo muito simplista, restringindo a ele os interesses instrumentais de acúmulo de capitais os mais diversos. E deixaram com a categoria dom a responsabilidade pela riqueza simbólica produzida pelas sociedades. O guarda-chuva conceitual da dádiva abrigaria, segundo Mauss, uma série de referências de natureza imaterial e material espalhadas pelo mundo: alimentos, mulheres, homens, filhos, títulos honoríficos, prêmios, talentos, conhecimentos, palavras, sorrisos, visitas, festas, sexo, abstinência, bens móveis e imóveis, talismãs, solo, trabalho, serviços, ofícios sacerdotais, funções, favores, sangue, tributos 20, destruição de riquezas, lutas, tempo, espaço, etc. Todos esses objetos, sujeitos, atividades e imaterialidades podem ser capturadas pelo ―espírito da dádiva‖ em determinadas temporalidades e espacialidades desde que sejam subjetivados pelo desejo das pessoas e grupos sociais em tomar parte de um sistema dar-receber-retribuir. É um Essa convivência (aproximação e afastamento) da dádiva com o mercado e com o Estado será mais debatida ao longo da dissertação, especialmente no quarto capítulo. 18 Segundo Marcos Lanna, ―se Mauss generaliza a noção de mercado, por outro lado ele tem consciência da importância de se pensar a especificidade do mercado ocidental. Nisso há uma recuperação de alguns objetivos de Karl Marx [e eu acrescentaria Max Weber], que, apesar de evidente, tem sido pouco notada (2000: 179). 19 Interessante notar o uso do ―ainda‖ na frase. Estaria aí, sem maiores pretensões e com certo ranço evolucionista, o famoso processo de ―desencantamento do mundo‖ weberiano? 20 Lanna comenta: ―creio ser fundamental notar como Mauss entendia até mesmo os tributos como uma forma de dádiva‖ (2000: 175). 17

29

sistema de prestações ―sem querer-querendo‖. Não deve haver troca explicitamente. Dar sem querer-querendo receber nada em troca, receber sem querer-querendo retribuir nada em troca e retribuir sem querer-querendo dar nada em troca novamente, e assim por diante. É importante observar que o fenômeno da dádiva esquadrinhado por Mauss no seu Ensaio não está fechado sobre si mesmo como um ―objeto sociológico‖ à deriva em um mar de realidade esperando o olhar e análise um observador absoluto. É sempre o indivíduo e sua riqueza simbólica individual que interessa. Ao definir o conceito de fato social maussiano, Maurice Merleau-Ponty afirma: Esse fato social, que já não é uma regularidade compacta, mas um sistema eficaz de símbolos, ou uma rede de valores simbólicos, vai inserir-se no individual mais profundo. Contudo, a regulação que circunscreve o indivíduo não o suprime. Não há mais que escolher entre o individual e o coletivo. ―O verdadeiro‖, escreve Mauss, ―não é a prece nem o direito, mas o melanésio de tal ou tal ilha, Roma, Atenas‖ (Merleau-Ponty, 1989: 142).

Antes de Merleau-Ponty, Claude Lévi-Strauss já tinha asseverado a atenção dada ao indivíduo na obra do seu grande mestre. Ao caracterizar fato social total, LéviStrauss escreve no prefácio à coleção de vários ensaios de Mauss: Ele [o fato social total] deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica ou diacrônica; e, enfim, a dimensão fisio-psicológica. Ora, é somente nos indivíduos que essa tríplice aproximação pode ocorrer (Lévi-Strauss, 2003: 24).

Cabe chamar a atenção para o cuidado ao transpor o conceito maussiano da dádiva para meios religiosos, especialmente àqueles de matriz cristã, nos quais estamos tão acostumados a lidar com o vocabulário usual no dia a dia. Como Paulo Henrique Martins afirma: No Brasil, por exemplo, ela é, sobretudo, identificada com as ideias católicas de caridade e de benção. Embora caridade e benção correspondam a certo tipo de dádiva, é importante desde logo assinalar que para Mauss o termo tem uma significação mais ampla (Martins, 2005: 52).

Temos, em geral, um certo pudor, e mesmo um certo purismo, ao falar em ―generosidade‖, por exemplo. É como se a palavra ―generosidade‖, por si mesma, implicasse emoção ou atitude desinteressada. E esse desinteresse pode ser visto como uma ―coisa boa‖, uma positividade. Contudo, para Mauss, dádiva, entre outras coisas, é

30

uma relação de poder e, de certo modo, uma relação ―para além do bem e do mal‖, uma relação, ao mesmo tempo, interessada e desinteressada. Como afirmou, certa feita, a antropóloga Mary Douglas: ―escrever sobre cooperação e solidariedade significa escrever, ao mesmo tempo, sobre rejeição e desconfiança‖ (1998: 15). O interesse e o desinteresse (imbricados entre si) do dom maussiano não necessariamente estão relacionados à utilidade prática e ao imperativo economicista. São, utilizando uma palavra bem genérica, ―simbólicos‖ (mas a utilidade prática também não é simbólica?). Mesmo que essas facetas do dom sejam indivisíveis, alguns intérpretes da obra de Mauss optam por evidenciar o desinteresse do dom 21, a exemplo de Alain Caillé. Outros preferem evidenciar a velha novidade do interesse, a exemplo de Louis Dumont. Marcos Lanna, ao comentar a interpretação dada por Dumont ao ―dar e receber‖ maussiano, escreve: Para usar a terminologia da teoria da hierarquia de L. Dumont (1992), é como se o dar englobasse o receber (o oposto talvez defina o capitalismo e a troca mercantil, tal como definida por Marx, visando ao lucro em dinheiro). Em todo o caso, trocando, domestico meu parceiro, e se for bem sucedido, se der mais do que recebo, posso fazer dele, segundo uma metáfora melanésia, ―um cachorro que vem lamber a mão do dono‖ (Lanna, 2000: 181).

Podemos ver que esse Mauss dumontiano enxerga a dádiva como relação de poder. Mas não um poder qualquer, e sim um poder que devemos compreender como ―instrumental‖, totalizador das relações sociais, a la Pierre Bourdieu. Se para o analista, o pesquisador, o antropólogo, afetado por Mauss, o dom é ao mesmo tempo interessado e desinteressado, condicionalmente incondicional, para quem vive o dom, o dom só é dom se ele for ―sem esperar troca‖, ou pelo menos (é o que acontece no geral) que não tenhamos a certeza de seu embuste, tanto para quem dá, como para quem recebe e retribui. Se os agentes sociais podem, ao mesmo tempo, aparecer como enganadores e enganados, se parecem enganar aos outros e enganar a si mesmos22 quanto às suas ―intenções‖ (generosas), é porque seu embuste (que, em certo sentido, não engana ninguém) tem a certeza de contar com a cumplicidade tanto dos destinatários diretos quanto dos que, como terceiros, observam [...]. Quem dá sabe que seu ato generoso tem todas as chances de ser reconhecido como tal Para esses autores, o ―interesse‖ é visto como o ―interesse utilitário‖ e Mauss seria o marco fundador de um movimento intelectual que se nega a explicar a realidade social por meio do prisma da razão prática e do imperativo econômico. 22 Aqui Bourdieu remete ao conceito de má-fé no sentido sartreano de ―mentira para si mesmo‖. 21

31

(em vez de parecer uma ingenuidade ou um absurdo) e de obter o reconhecimento (sob forma de contradom ou de gratidão) de quem foi beneficiado, sobretudo porque todos os outros agentes que participam desse mundo e que são moldados por essa necessidade também esperam que assim seja (Bourdieu, 1996: 8; 9).

Na esteira de Dumont, Maurice Godelier também sublinha as facetas das relações desiguais de poder despertadas pelo dom. Mesmo desinteressadamente (ou com outro tipo de interesses), pois ―aquilo que marcava e continua a marcar o dom entre próximos não é a ausência de obrigações, é a ausência de ‗cálculo‘‖ (2001: 13), a dádiva contemporânea é reinventada midiaticamente e burocraticamente beneficiandose de ―todos os males‖ da sociedade. A caridade de hoje serve-se dos meios de hoje. Ela utiliza a mídia, burocratizase e, no Ocidente, nutre-se, através das imagens da televisão, de todas as desgraças, de todos os males, conjunturais ou duráveis, que surgem nos quatro cantos do planeta. O dom no Ocidente recomeça, assim, a ultrapassar a esfera da vida privada e das relações pessoais em que estava encurralado na medida em que estendia a ascendência do mercado sobre a produção e as trocas e aumentava o papel do Estado na gestão das desigualdades. [...] Não será o dom recíproco de coisas equivalentes. Não será também o dom potlatch, pois aqueles a quem os dons serão destinados terão muita dificuldade em ―retribuir‖, que dirá em retribuir mais (Godelier, 2001: 316, 317).

Para Mauss, o circuito dar-receber-retribuir configura sempre relações de poder em que o maior beneficiado é o doador, o agente que domina a relação com o destinatário do dom, pois o destinatário obriga-se a retribuir e nem sempre há como retribuir a contento. Por isso, as relações dadivosas são também, em alguns contextos, relações de dívida e de dependência. Enquanto quem recebe obriga-se a retribuir, o doador é possuído de mana, uma categoria utilizada por algumas sociedades inventariadas pelo Ensaio de Mauss. Mana é aumento cumulativo de status social. O generoso agrega à sua persona mais prestígio e honra. O auxílio em situação de desigualdade beneficia fundamentalmente o doador, o ―homem de bem‖, expande o poder do generoso. Se a doação, de modo eficiente, serve para matar a fome do faminto, oferecer um teto ao desabrigado, aliviar as dores do doente, imprimir o sorriso no rosto de uma criança, ajudar o motorista a empurrar o carro enguiçado, o ato de doar e de se doar eleva a honra do doador, o satisfaz, melhora o seu nome, o faz se sentir bem, impõe respeito, o coloca como um futuro ―ajudado‖ com a expectativa da retribuição, abre caminhos promissores, produz confiança, em suma, o torna poderoso. E isso ocorre naturalmente, não é preciso esforço do homem de

32

bem, basta tomar a decisão e ―fazer o bem‖. O poder da dádiva assimétrica (e não há a simétrica) resplandece, brilha, ofuscando os desejos egoístas, institui novos efeitos à relação estabelecida. É comum doar roupas usadas em desuso, móveis velhos, sobras de comida, objetos excessivamente acumulados dentro de casa, para ―ajudar o próximo‖. Esses bens são potencializados pelo dom. Eles não tinham mais serventia para o seu dono, eles eram classificados como supérfluos. Por vezes, certo bem nos produz incômodos devido a seu excesso de desnecessidade, a sua estranheza em relação ao ambiente em que se encontra, sua dificuldade de conserto, a facilidade de sua troca, o seu enjôo de existência, e precisamos nos livrar dele, precisamos oferecer a ―quem precisa‖ e nos livrar de uma vez por todas daquela tralha relativamente útil para outrem. Em vez de destruí-lo (e destruir, em muitos contextos, é ―desperdiçar‖), em vez de abandoná-lo completamente de nossa posse e controle simbólico, acumulando mais um objeto nos lixões de troços do mundo, optamos por oferecer aquele baú empoeirado a alguém que se mostre interessado. Une-se, como um dom qualquer, o útil ao agradável. O presente bem dado, recebido e retribuído nos traz paz. Godelier, assim como Caillé e outros autores que seguiram as reflexões maussianas, guardam um ranço que tende a encontrar no dom um lastro de relações sociais ―à moda antiga‖. É como se o dom nos revelasse como a sociedade tradicional, as nossas raízes ancestrais, funcionavam de um modo lógico e eficaz. Eles tendem a enxergar, ora com otimismo, ora com pessimismo, esse dom, no fundo arcaico e promissor, como um lampejo excepcional em meio aos fenômenos sociais contemporâneos. O lampejo é algo entre, ou além, do mercado e do Estado, do comércio e da obrigação da lei explícita, algo fundador que sobrevive e sobreviverá, cada vez mais, nos tempos futuros. É aquilo que se mantém além do mercado em uma sociedade de

mercado. Mas,

e se

a dádiva não pudesse ser

traduzida

contemporaneamente em lampejos excepcionais e promissores e, na verdade, convivesse incessantemente nas relações de mercado e nas obrigações coletivas? É isso que ensaiamos propor na presente análise. Quando opto pelo termo da moda ―reinvenção‖ no título da dissertação não desejo remeter, com esse uso, a defesa de uma ―nova dádiva‖ existente agora no mundo contemporâneo, que produz uma ruptura com as características do ―dom arcaico‖ das ditas sociedades tradicionais. Apenas desejo seguir os passos das trilhas maussianas, afirmando mais uma vez, com outros olhares e ―novos objetos‖, a mesma vitalidade do dom descrito pelo autor francês. A reinvenção universalista (a superinventividade) do

33

fenômeno da dádiva não é nenhuma novidade, é sobre isso que Mauss está falando o tempo todo em seu Ensaio. Cabe-nos observar que os Estados-Nacionais contemporâneos estão inseridos em uma conjuntura econômica de mercado que se pretende cada vez mais global (transnacional). Dádiva, mercado e Estado fazem parte de um mesmo contexto histórico-cultural. O que não permite, ou pelo menos complica, a tentativa de isolar analiticamente apenas uma dessas realidades. Sendo assim, ao mesmo tempo em que falamos de ―reinvenção da dádiva‖, poderíamos estar falando e, na verdade, falamos em ―reinvenção do mercado‖ e ―reinvenção do Estado‖, tendo em vista que sempre foram, são e serão intensos e freqüentes a troca de fluxos culturais (interdependentes) entre essas três realidades tão distantes em suas pretensões conceituais/funcionais e tão próximas ―na vida como ela é‖ de pessoas comuns em suas atividades comuns, que cotidianamente transitam nesses três ―meios sociais‖. A dádiva está presente em relações tipicamente mercadológicas e estatais. Nesses casos, ela é um insight, uma intenção momentânea e real de desinteresse (ou outro tipo de interesse que não o cálculo de mercado) em trocar explicitamente uma mercadoria ou uma intenção momentânea e real de desinteresse (ou outro tipo de interesse que não o de cumprir uma lei) em tornar impessoal uma obrigação legal. Ao se ―sentir bem‖, ao se ―sentir realizado‖, ―gratificado‖, visitando a trabalho casas de pequenos agricultores no interior da Paraíba para, conforme a política direcionada pelo Governo Federal brasileiro, aplicar operações de microcrédito a juros de mercado de 0,5% ao ano em atividades que estão supostamente melhorando as condições de vida dessas pessoas, um Assessor de Crédito, terceirizado pelo Banco do Nordeste, adentra momentaneamente em um circuito dar-receber-retribuir. Mas, no seu dar, receber e retribuir, individualmente, ele realizou, de fato, uma operação financeira, conforme estratégias bancárias, baseado em cálculos de juros de mercado. Ele também cumpriu, de fato, uma política institucional de um banco público, calcada em diretrizes orçamentárias do Estado brasileiro. Os juros do mercado e a obrigação legal não são elementos concorrentes ou impeditivos de sua realização individual do dom. Muito pelo contrário, como veremos ao longo desta dissertação. Em alguns contextos abordados na pesquisa junto ao Banco do Nordeste, as lógicas de mercado e de Estado reforçam a vivência do dom individualmente na cultura bancária presente no BNB.

34

E diante desse exercício classificatório e analítico, de inventário exaustivo, de constante invenção e reinvenção do fenômeno da dádiva, do mercado e do Estado, é o próprio Mauss que continua a nos desafiar: No entanto, é possível ir ainda mais longe do que fomos até aqui. É possível dissolver, misturar, colorir e definir de outro modo as noções principais de que nos servimos. Os próprios termos que empregamos – presente, regalo, dádiva – não são inteiramente exatos. Não encontramos outros, só isso (Mauss, 1974: 303).

Este trabalho dissertativo procura contribuir com o inventário iniciado por Mauss, dissolvendo, misturando e colorindo de outros modos o dom, o mercado e o Estado, estabilizando e desestabilizando o vocabulário e as relações sociais dadivosas presentes no Brasil contemporâneo. No Capítulo I faremos um panorama histórico-cultural do Banco do Nordeste do Brasil por meio de histórias de vida e trajetórias profissionais de servidores de diferentes setores do Banco, de um ex-presidente da instituição e de um assessor de crédito do Instituto Nordeste Cidadania – INEC, uma organização da sociedade civil vinculada ao Banco. Em seguida, teceremos interpretações acerca das configurações organizacionais identitárias próprias do Banco, descrevendo como se conectam com contextos político-econômicos nacionais e mundiais. Por fim, lançaremos um olhar reflexivo sobre a ―categoria nativa‖ desenvolvimento regional e seus fluxos e fronteiras culturais e políticas produzidas internamente pelos posicionamentos de diferentes funcionários do BNB. No Capítulo II, abordaremos como se configuram os conceitos/práticas nas redes de movimentos locais e globais que constituem a economia solidária entre os especialistas que atuam nessa faceta do Banco do Nordeste do Brasil e os especialistas de campos de conhecimento como as ciências sociais e as ciências econômicas, atentandose para as tensões e os consensos produzidos no universo de sociabilidades e saberes presentes internamente no Banco em suas relações com os demais agentes sociais envolvidos. No Capítulo III, faremos o mesmo exercício descritivo e reflexivo proposto no Capítulo II, focalizando, desta feita, a ideia-força responsabilidade socioambiental no BNB e redes de sociabilidade locais e globais. No Capítulo IV, propomos a construção de interfaces de conceitos e práticas que perpassam os três grandes conjuntos de descrições e reflexões que compõem esta

35

dissertação: desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental no Banco do Nordeste do Brasil. Tais interfaces contribuem para interpretação da existência de fluxos culturais e de instituições sociais que possibilitam uma criativa reinvenção de dádivas e, consequentemente, uma reinvenção de Estados e mercados.

36

CAPÍTULO I UM BANCO EM REINVENÇÃO

1.1.

Vidas, projetos e fronteiras O aplaudido esforço de Bourdieu (1996) chamando a atenção para os riscos

(inevitáveis) de utilizar metodologicamente histórias de vida para reconstituição de realidades sociais que ajudariam a compreender como o presente se tornou o que é, parte do pressuposto de que é possível, por meio de outros caminhos científicos, se aproximar, com mais eficácia, dessas mesmas realidades. É uma ilusão retórica. Essa ilusão se baseia na convicção de que o mundo é desencantado por natureza e na ideia de que as histórias e estórias de vida, se é que elas existem, não são novelas medievais; são, para além do que é dito pelo interlocutor entrevistado, descontinuidades, justaposições sem razão de ser e repletas de imprevistos. Acreditar nisso é ver o entrevistador como um mero manipulador de situações mais coerentes com o que ele, no fundo, deseja escrever em um futuro próximo. Ao supervalorizar o fato de que o entrevistador manipula manipulações dos entrevistados, desconsidera-se que o mundo narrado pode ser verdadeiramente encantado para o sujeito que passou por isso ou por aquilo em sua vida, especialmente quando ele tem a ―oportunidade‖ de reconstruir a narrativa de sua vida, no encontro com alguém que se mostra interessado em saber dos pormenores de um dado episódio de sua memória. Nesse encontro oportuno, o narrador pode perceber que aquela situação de sua vida pode ser narrada de um modo textual e, quem sabe, coesa para ele mesmo. Se isso representasse ―criação artificial de sentido‖, então o que explicaria o medo, o desejo, e o medo-desejo, do biografado de expor ou não a suposta coerência da sua vida? Que artificialidade manipulada é essa que movimenta vontades de potência? Entretanto, Bourdieu nos oferece boas observações, que podem se transformar em ―cuidados estratégicos‖ para a escrita de relatos autobiográficos. Uma dessas observações diz respeito ao tentador agenciamento de individualidades por meio de seus campos profissionais ou posições sociais momentâneas, além de tomar fulano pelo nome próprio (dando mais vivacidade ao narrado), tomar também fulano por ―empresário‖, ―jornalista‖, ou ―agricultor‖, estabelecendo uma fixidez de sua ―identidade perante o mundo‖.

37

Tudo leva a crer que o relato de vida tende a aproximar-se do modelo oficial da apresentação oficial de si, carteira de identidade, ficha de estado civil, curriculum vitae, biografia oficial, bem como da filosofia da identidade que o sustenta, quanto mais nos aproximamos dos interrogatórios oficiais das investigações oficiais – cujo limite é a investigação judiciária ou policial –, afastando-se ao mesmo tempo das trocas íntimas entre familiares e da lógica da confidência que prevalece nesses mercados protegidos (Bourdieu, 1996: 188).

Tratando-se de servidores de um grande banco público, embebidos na pressa dos afazeres ―importantes‖, essa desconfiança quanto ao ―modelo oficial da apresentação oficial de si‖ deve ser redobrada. Mesmo assim, algumas conversas que começaram travadas tiveram seus momentos de soltura subjetiva por conta de uma constante busca do entrevistador em, se é que é possível fazer isso, naturalizar o batepapo. Colocava-me como um conversador e não como um perguntador. Não é um encontro entre um narrador e um ouvinte conforme a descrição de Walter Benjamin em um clássico ensaio de crítica literária intitulado O narrador. Na maioria dos casos, as entrevistas foram encontros com ansiedades, com vidas em ritmos acelerados, interrompidas por ligações de celulares e conversas paralelas sobre assuntos emergenciais de trabalho. As interrupções não eram de minha parte. Eu ficava apenas com a ansiedade, respeitando o fluxo do cotidiano de quem estava ali comigo compartilhando informações e, quando tive sorte, informações diluídas em narrativas mais serenas sobre trajetórias pessoais e profissionais. Aproveitando as ―deixas‖ reflexivas de Bourdieu, aqui, neste tópico da dissertação, faço questão de contrabandear o tal ―senso comum‖, em meio a esse emaranhado de invenções científicas, a fim de oferecer ao leitor um pouco do que pude presenciar, conversando e experimentando a seleção de memórias e posicionamentos dos colaboradores que participaram desta pesquisa. Esse risco literário, tão cativante de textos etnográficos, se justifica pela rica experiência pessoal que foi vivenciar nostalgicamente os anos 1970, ou puxar em lampejos da memória coisas minhas que tinham a ver com aqueles anos 1980 da seleção de memória individual feita por outras pessoas em espacialidades e situações de vida tão distantes e, ao mesmo tempo, próximas das minhas vivências infantis, juvenis, familiares, fortalezenses, cearenses, nordestinas. Optei por fazer um preâmbulo separadamente da organização textual das histórias de vida dos servidores do Banco do Nordeste para que a narrativa corra mais solta e, ironicamente, ―socialmente irrepreensível‖, como não deseja Bourdieu. Evitei,

38

nesse momento, o uso de termos que preparam a fala dos narradores como ―de acordo com‖, ―conforme relato de‖, ―segundo a opinião de‖, a fim de aproximar minimamente o leitor da oralidade vivenciada. A miríade de entrelaçamentos de histórias de vida pode ilustrar a diversidade de vontades, de modos de operar e de certezas ou dúvidas em intervalos curtos de tempo, sem, contudo, ilustrar a diversidade daquela única vida ali exposta em meio a tantas outras. *** O Banco do Nordeste do Brasil representa um grande acontecimento na vida pessoal e profissional (dois planos indissociáveis) de um indivíduo que presta concurso público e adentra a instituição, fazendo parte do seu quadro de funcionários. É um marco, uma fronteira, que passa a dividir a vida em antes e depois do BNB. É a recompensa pela disciplina e pelos esforços despendidos nos anos de estudos. Representa a tão sonhada independência financeira e simbólica em relação aos pais. Mesmo que as condições salariais e de trabalho tenham se tornado cada vez mais precárias ao longo de sua história institucional, fazer parte do Banco ainda estrutura uma situação de estabilidade socioeconômica e possibilita a formação e o sustento de uma nova família que poderá nascer. 1.1.1. Os anos 1970 O Banco do Nordeste foi fundado em 1952 com a missão macropolítica de desenvolver a região Nordeste do país, mas somente vinte e dois anos depois abriria o seu primeiro concurso público, realizado em Fortaleza, Ceará, onde está sediada a Diretoria Geral da instituição. Foi em 1974. Os tempos eram outros. O presidente do Banco na época era o economista cearense Nilson Holanda. Percebendo a necessidade de abertura de concursos públicos para ampliação do número de funcionários do Banco, Holanda tinha como política administrativa recrutar pessoas novas para dentro das agências. Desejava, sobretudo, formá-las dentro do próprio Banco. Os primeiros concursos de então poderiam ser discricionários. O BNB estabeleceu uma faixa etária específica como critério de acesso ao certame. Os candidatos não poderiam ter mais de 16 anos e deveriam estar cursando o primeiro ano do antigo ―científico‖, que equivale

39

hoje ao primeiro ano do ensino médio. Outro critério exigido eram as boas notas na escola. Os recém-ingressos deveriam continuar estudando e sempre mantendo bom desempenho em todas as disciplinas ofertadas pelo colégio. Ao adentrar o Banco, os adolescentes faziam um curso de habilitação bancária pela manhã, onde aprendiam noções de economia, administração e política. No turno da tarde, os recém-ingressos trabalhavam no estágio prático do Banco, desenvolvendo atividades diversas de um escriturário. A noite era o tempo que dispunham para os estudos convencionais do colégio. Não havia estabilidade ainda no Banco, era uma fase probatória. A permanência futura na instituição dependia de uma boa participação em todas as atividades que os adolescentes exerciam nos três turnos de suas duras rotinas. Nos anos de 1975 e 1976, houve mais concursos para entrada no Banco do Nordeste. Nesse período, conseguiram acesso à fase probatória Charles (1975) e Nelson (1976). Os dois têm origem humilde e pele escura. Charles entrou logo, Nelson só foi autorizado a entrar no Banco dois anos depois da aprovação no concurso, após emissão de ―atestado ideológico‖, um documento que fazia parte da burocracia da Ditadura Militar do período. Charles nasceu no Recife, Pernambuco, no dia 20 de outubro de 1960, ―filho de pais pobres que não tinham um curso superior‖. Passou a infância e a adolescência em uma vila de Companhia de Habitação Popular – COHAB, que depois se tornou um grande bairro da capital. O pai vendia livros até sofrer um acidente que lhe reduziria drasticamente o salário, ficando aposentado por invalidez. A mãe costureira tomou as rédeas financeiras da família de três filhos, Charles e mais duas meninas, sendo uma ―de criação‖. Apesar do sacrifício dos três turnos intensos exigidos na fase probatória para acesso ao cargo de escriturário do Banco do Nordeste, o esforço valia a pena, pois toda sua situação difícil de vida estava em processo de ―transformação‖, no melhor sentido da palavra. Charles entrou no Banco antes de completar 14 anos de idade. Para ele, tudo era uma maravilhosa novidade. Ele e seus colegas de habilitação bancária, a maioria de origem pobre, não demoravam a ―vestir a camisa‖ da casa e logo ―absorviam a cultura organizacional‖ do Banco do Nordeste. Nelson nasceu no Rio de Janeiro capital, no dia 23 de março de 1956. É o caçula de uma família de cinco filhos do casamento de um mestre de obras com uma lavadeira. Todos os irmãos começaram a trabalhar ―desde a mais tenra infância‖ e ele foi o único a conseguir conciliar os estudos com a vida laboral. Ainda adolescente, no início da década de 1970, começou a participar de grupos religiosos católicos e de movimentos

40

de alfabetização e de educação popular organizados pela Igreja. Com o decorrer do tempo, esses grupos católicos passaram a se mobilizar em torno das chamadas ―Comunidades Eclesiais de Base‖ que se aliam ao crescente movimento estudantil em postura crítica à Ditadura instalada no Brasil desde 1964. Graduou-se em Economia em 1979 pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Quando prestou concurso para o Banco em 1976 e obteve aprovação, não pôde iniciar a fase probatória de acesso ao cargo de escriturário. Quando eu entro no Banco, eu já era militante. Tanto é que quando foi para eu assumir o Banco eu fui obrigado, até hoje eu não sei o porquê, eu não entendi até hoje, por que eu fui obrigado a tirar um atestado ideológico né? Foi para entrar no Banco, não sei se foi só pra mim ou tinha para todas as pessoas. Eu sei que me exigiram um atestado ideológico e eu fiquei numa situação danada porque eu tinha que ter este documento para tomar posse. Era uma declaração que era dada pelo DOPS, o órgão de repressão. E então, obviamente, quando eu fui tirar este documento, na verdade a resposta que eu tive foi um processo, um calhamaço de papel que me deram, que era colocado na mesa e eu tive que passar seis meses respondendo este processo né, para conseguir este atestado ideológico, que na verdade era uma idiotice, era você assinar um termo dizendo que você não ia mais fazer subversão, né (Nelson dos Santos Filho, em entrevista realizada no Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste – ETENE, na sede do BNB em Fortaleza, no dia 5 de agosto de 2011).

A promessa burocrática de não fazer mais ―subversão‖ após a entrada no Banco do Nordeste não foi cumprida. ―Eu era um militante padrão‖, mas ―ao mesmo tempo, que a gente combatia, o Governo era a possibilidade de emprego estável‖. No fundo, Nelson queria sair do Rio, era jovem, e naquele contexto político de Ditadura Militar, a extrema direita no poder, o Nordeste, com sua situação de conflitos agrários, sua riqueza cultural, aparecia como algo atraente aos olhos de um militante fluminense. O Banco do Nordeste era o caminho para essa mudança, essa oportunidade de novas experiências. Além disso, ainda quando cursava Economia na UFF, estagiou durante um tempo no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC, trabalhando com questões relacionadas à Bolsa de Valores. Lá havia um Administrador Sênior, que prestava serviços para o Banco Mundial. Ele viu o potencial de Nelson para as questões sociais ligadas à produção econômica e disse ―vá para o Banco do Nordeste, lá tem o ETENE, onde você trabalhará desenvolvendo pesquisas sobre a área que gosta‖. Isso ficou na cabeça do jovem Nelson. ETENE é o Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste. É um departamento dentro do BNB voltado para pesquisas

41

aplicadas em prol do desenvolvimento regional do Nordeste. Foi instituído pela mesma lei que fundou o Banco. Enquanto Nelson fazia concurso no próprio Rio de Janeiro, onde havia uma representação do BNB, e logo seria transferido para uma agência no sul do Maranhão, Charles e outros jovens pernambucanos recém-ingressos no Banco estavam deslumbrados com as novas condições materiais de vida que, em um curto intervalo de tempo, passaram a ter. Com os primeiros salários, eles poderiam dar entrada em uma casa, um apartamento e adquirir um automóvel. Esses jovens de origem humilde, geralmente, optaram por dar uma segurança a esse capital repentino que acumulavam ao longo dos meses e anos. A maioria casou cedo, constituiu família, solidificou patrimônio. ―É um novo contingente de uma classe média que não existia e passou a existir com esses meninos que foram formados no Banco‖, reflete Charles. O casamento precoce, segundo Charles, fez com que muitos de sua geração de primeiros concursados do Banco ―amargassem a ruptura‖ e o divórcio. Charles casou pela primeira vez aos 20 anos de idade e está no seu segundo casamento. Tem três filhos, dois do primeiro e um do segundo casamento. Em 1977, Charles completava dois anos de Banco e Nelson aguardava ansiosamente a liberação de sua entrada no Banco enquanto um enorme processo era constituído para provar se ele era ou não era ―subversivo‖. No ano de 1977, também iniciava sua vida no BNB a jovem Laureana. Laureana nasceu em Iguatu, interior do Ceará, e prefere, como a maioria das mulheres, esconder a idade. Mora há 16 anos em Fortaleza. Assim como os demais, começou no Banco como escriturária, tendo passado por um estágio probatório. Não gosta de contar detalhes de sua história de vida, apenas informa sua área de formação. É graduada em pedagogia e pós-graduada em psicopedagogia da educação pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Em 1979, Nelson tinha 23 anos, era casado, trabalhava em uma agência no sul do Maranhão, próximo ao que hoje é o Estado do Tocantins. Durante o dia atuava como escriturário do BNB e à noite se reunia com as pastorais e com grupos de camponeses locais. ―Isso chamou atenção da região, uma região onde tinham bastantes vestígios da guerrilha do Araguaia‖. Basicamente as questões giravam em torno de conflitos pela posse de terras. Havia uma forte pressão local de latifundiários, grileiros e pistoleiros, além da violência institucionalizada provocada pelo Estado, pelo fim daquelas organizações políticas que contavam apenas com o apoio de determinados

42

setores da Igreja. Nelson e seus companheiros sentiam medo. ―Naquela época, o Banco tinha a Assessoria de Segurança e Informação que era ligada diretamente aos órgãos repressores, para delatar‖. Nelson corria risco de vida. Com a ajuda de um colega do Banco, foi transferido para uma agência no Recife, Pernambuco. No mesmo ano da transferência de Nelson do Maranhão para Pernambuco, 1979, José Renato, aos 18 anos, ingressou no Banco do Nordeste para trabalhar no Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste – ETENE, localizado na sede do Banco em Fortaleza. José Renato nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1961. Mas até os 10 anos de idade, viveu em um distrito do município de Itapajé que hoje se chama Tejuçuoca. Depois morou um tempo em Itapajé e, quando completou seus 16 anos, foi morar na capital cearense, a fim de concluir os estudos do ―científico‖. No mesmo ano que foi aprovado no concurso do Banco, recebeu também aprovação no vestibular que prestou para o curso de Direito na Universidade Federal do Ceará – UFC. Teve, então, que conciliar os estudos com a vida laboral no BNB. No início do Banco ―era auxiliar de serviços bancários, depois escriturário‖. Sempre atuou pelo ETENE, onde o trabalho tende a áreas mais técnicas e de planejamento de políticas de desenvolvimento para o Nordeste. 1.1.2. Os anos 1980 Começava a década de 1980. Muitos regimes ditatoriais, de direita, estavam caindo em nações da América Latina. Depois de um período de repressão explícita por parte dos governos dos Estados-Nacionais, a ―democracia‖, muito sonhada e pouco aplicada, passou a ser vista com bons olhos pela conjuntura econômica neoliberal que renascia com muita força e precisava ditar novas regras às elites dirigentes dos países ditos subdesenvolvidos. No Recife, Nelson prosseguia sua militância esquerdista paralela ao trabalho no Banco. ―Além do movimento com os plantadores de cana, eu também já agrego uma participação intensa com os movimentos urbanos recifenses‖. Nelson, juntamente com sua esposa, participava do grupo que fundaria o Partido dos Trabalhadores – PT, em Pernambuco. Enquanto Charles transitava em vários cargos em agências pelo Nordeste e Nelson ajudava a fundar o PT pernambucano, Laureana e Renato começavam a se

43

estabelecer financeiramente em Fortaleza. No Recife, prestava concurso para o Banco, sem saber exatamente o que estava fazendo, o jovem Abner. Era 1983. Abner nasceu no Recife em 1967, no Engenho do Meio. Na época a localidade era afastada da cidade, hoje faz parte da capital, está perto da Universidade e tem ônibus para todo canto do Recife. Aos 9 anos de idade, viu seu pai abandonar a família e teve que ajudar a mãe, juntamente com seu irmão mais novo, a sustentar a casa. ―Minha mãe era faxineira de uma escola particular‖. Ele e seu irmão caçula sempre estudaram em escola pública, conciliavam estudo e trabalho, desde ―que se entendiam por gente‖. Mas nunca deixaram de se divertir por conta disso. O trabalho na infância, a gente, naquela época, eu costumo dizer aos meus meninos, hoje com 13, 14 anos, que eles não se divertem tanto quanto eu me divertia. Naquela época, a gente tinha a parte de brincar, a gente conseguia dividir bem, a gente era mais solto e também a necessidade de trazer as coisas pra dentro de casa. A gente aprendia a se virar, a ganhar dinheiro. Pra você ter uma ideia, a gente chegava e as construções, que é mais um exemplo, ce colhia restos de fio de construção, levava pra casa, pegava uma gilete, tirava todo o plástico, e fazia um bolo de cobre pra vender, pra trazer pra dentro de casa também. Saia apanhando resto de alumínio, uma série de coisas também, pra vender... A casa da gente muito pobre, eu costumo dizer, as pessoas não acreditam, nem banheiro tinha, naquela época. [...] Não tinha dinheiro pra fazer banheiro, era uma campina muito grande que tinha atrás e depois, com o tempo, a gente vai crescendo, a necessidade né, vai fazendo um banheiro e tudo mais. O sofrimento era grande. Eu costumo contar que mamãe andava 6 km pra ir e 6 km pra voltar pra economizar o dinheiro da passagem, pra poder sobrar dinheiro, pra botar comida dentro de casa. E a gente ajudando. [...] Quer dizer, tudo o que a gente fazia, era eu e meu irmão pra fazer as tarefas, um cuidava de arrumar a casa, outro cuidava de cozinhar e a mãe saia cedo pra trabalhar e voltava no final do dia. Dois rapazes estudando muito, vendia ovo na feira. É, eu e meu irmão, a gente saia dia de sábado à tarde, que a gente já sabia que a tarde era o horário que os pais estavam em casa, então a gente saia se preocupando em lavar o carro da pessoa na garagem dele, limpar o mato da casa dele, então a vida da gente foi sempre trabalhando e se divertindo muito (Abner Rodrigues dos Santos, em entrevista concedida na Agência do BNB da Av. Epitácio Pessoa, João Pessoa/PB, no dia 14 de agosto de 2012).

Aqui a infância de Abner se aproxima da infância de Charles e Nelson, todos de família pobre e de pele escura. Quando crianças, eles contam: ―a gente brincava de trabalhar‖. O Banco representa para eles e é, de fato, uma mudança abrupta para melhor, uma transformação estrutural. O Banco é, ele próprio, um dos dons da vida deles. Os seus estudos, conciliados com o trabalho e a diversão, seus esforços extremos em situação de limites e riscos sociais, revelam o início de uma epopeia que os levariam a uma redenção comum: o Banco do Nordeste e a estabilidade financeira.

44

Eu lembro bem que a gente comprava, a diversão da época, à noite, que a gente tinha como moleque, era ―Assustados‖, que sempre tinha alguém que fazia umas caixas de som e também umas caixas onde colocava farol do fusca numa caixinha, botava uma lâmpada vermelha e amarela e fazia como tivesse numa discoteca da época, então, a gente aprendia a se virar com tudo. [...] Sabe como é que a gente brincava de cinema na época, que parece brincadeira, pegava caixa de sapato, uma lâmpada dentro, um vidro na frente e ficava fazendo figuras e passando na tela. A brincadeira de cinema da gente era essa. [...] A gente não tinha televisão. Ninguém tinha. Com o tempo, começou a aparecer uma ou outra. A gente comprou uma televisão, a primeira era preto e branco, tudo era de segunda mão, o nome da televisão eu nunca esqueço, era uma quadrada que você mexia, o nome era ―empire‖ ou ―impire‖, eu num lembro bem. Eu nunca esqueço o nome dessa televisão, fica guardado na cabeça da gente. Procê ter uma ideia, a primeira televisão colorida eu comprei foi uma de 14 polegadas, eu já tinha cinco anos de Banco. Aquela época, e foi um presente de dia das mães que eu dei a minha mãe ainda. [...] Eu lembro que eu tomava conta de uma bodega, que a gente chamava de ―venda‖ lá em Recife, e eu costumava pegar o jornal de todos os dias e ficar fazendo palavras cruzadas e caça-palavras. Enquanto tava lá era muito jornal pra embalar, então tinha palavras cruzadas e caça-palavras o tempo todo... Talvez isso também tenha ajudado na minha melhor percepção da vida (Abner).

Para Charles e Abner, o Banco do Nordeste também cumpria outro papel em suas vidas, além de transformar suas famílias e estruturar uma ascensão a uma pequena nova classe média que surgia naquele Recife dos anos 1970 e 1980: o Banco apresentava para esses meninos, pela primeira vez, a ―sociedade‖. Segundo Charles ―sua vida era a vida de vila, de bairro‖. E nas palavras de Abner: ―a gente não tinha noção de ‗sociedade‘ na época, quer dizer, a ‗sociedade‘ era o dia a dia que a gente tava convivendo ali‖. A sociedade era a comunidade. O Banco é a fronteira de expansão da comunidade para a sociedade. Por isso, os dois gravam na memória a data exata em que adentraram ao universo do trabalho no BNB. Quando criança, Abner formava suas referências morais por meio das relações comunitárias, especialmente as relações com amigos de infância. Assim como não havia ainda a ―sociedade‖, não havia também a ―religião‖. O mundo infantil era cercado de diversão e medo. Naquela época, você tinha liberdade de ter os seus amigos. Saía de casa de manhã e voltava à noite. Claro que tinha a ―sociedade do medo‖, como se fala, naquela época dizia: ―não saia da sala de aula porque se sair da sala de aula, a mulher do algodão está lá no banheiro esperando você‖. Por que? Porque, naquela época, a gente tinha o costume de dizer ―vou pro banheiro‖, pra sair da sala de aula. Então, eu costumo dizer que era a ―sociedade do medo‖. Em Recife tinha a história da ―perna cabeluda‖, não sei se você conheceu? (Abner).

45

A vida estudantil de Abner foi bastante dedicada aos estudos. Mas não sabia exatamente para quê estava estudando tanto. Cumpria as tarefas da melhor maneira possível. Isso lhe garantia, inclusive, posição e capital simbólico para que pudesse questionar algumas posturas dos professores daquela época. Um professor de história, professor Lima, tinha o hábito de usar ―cartão amarelo‖ e ―cartão vermelho‖, como os do futebol, para controlar a classe. Amarelo significava ―atenção, não faça mais isso‖ e vermelho era expulsão de sala de aula. Abner não concordava com esse tom autoritário e, por vezes, acompanhava o aluno que levava cartão vermelho até a Diretoria do colégio. Certa feita, a diretora chegou pra Abner e disse: ―você tá fora da escola, tá expulso, tá certo? Tem que procurar outra escola, você passou, tem boas notas, mas a gente não quer alunos que façam levantes e sejam rebeldes na escola‖. Quando foi expulso do colégio, Abner tinha acabado de cursar a oitava série do ginasial da época. Iria, portanto, para o primeiro ano do que hoje é o ensino médio. Naquele tempo, início dos anos 1980, ele tinha duas opções de curso secundarista: o científico, que o levaria para um futuro vestibular e uma faculdade, e o técnico, que o levaria para uma vida de carreira técnica. Ele optou pelo técnico. Já imaginando os motivos que o levaram a essa escolha, eu questionei durante a nossa entrevista por que, mesmo com o desempenho estudantil tão bom, conforme ele tinha narrado, ele resolveu optar pelo técnico e não pelo científico. Essa foi a resposta: Não era uma questão de opção. É o que eu to dizendo, a vida às vezes vai levando. Tinha duas escolas no bairro, ou você estudava no científico ou estudava no auxiliar de escritório. Nesse período, eu também fui trabalhar, eu trabalhava numa oficina eletrônica, consertando flash de máquina fotográfica. Isso eu tinha o que? 14 anos de idade, 14, 15 anos de idade, e ia pro centro da cidade. Era. Saia de casa de manhazinha e ia pro centro da cidade. Pra você ter uma ideia, eu não tinha dinheiro pra almoçar, eu comprava um sacão de pipoca na hora do almoço, comia aquele sacão de pipoca, voltava pra trabalhar. À noite, pegava, voltava pra casa, é que eu comia alguma coisa pra estudar e passava, estudava até onze horas da noite, dez, onze horas da noite, e no outro dia começava tudo de novo. E na época o Banco fazia concurso, um concurso simples, pra escolher os bolsistas, que eram os estagiários. Foi aí que o Banco do Nordeste entrou na minha vida (Abner).

46

Por algum motivo que não consegui compreender durante a realização das entrevistas, o Banco do Nordeste, naquele período, início dos anos 1980, selecionava escolas de ensino técnico e não científico. Se Abner tivesse optado pelo curso científico, nunca teria recebido o Banco na vida dele. ―Ia um funcionário do Banco do Nordeste, levava um ofício à diretoria da escola pedindo o nome do aluno com melhor nota, que tivesse no primeiro ano científico [no caso, ―técnico‖] e que não podia ter mais de 15 anos de idade‖. Era Abner. Tinha sido transferido naquele mesmo ano para aquela escola selecionada pelo Banco. Mas Abner tinha sido convocado, na verdade, para ter direito ao certame do concurso para acesso ao Banco. Eram trinta vagas. Ele ficou em trigésimo segundo. Dois concorrentes desistiram e Abner recebeu o telegrama. Não se emocionou, porém. ―Eu não tinha noção do que era‖. Depois de trabalhar consertando máquina fotográfica, Abner foi para o Bom Preço, uma rede de supermercados, e lá era ―menor embalador‖. Recebia por dia alguns trocados dados pelos clientes do supermercado. ―Ganhava uma gorjeta muito boa, que eu já me considerava rico, já conseguia até trazer dinheiro pra casa, recebia os envelopes com dinheiro no final do dia‖. O salário para estagiário do Banco naquela época era de um salário mínimo. Abner achou mais negócio permanecer no Bom Preço do que estagiar no BNB. ―As gorjetas que eu recebia levando compras pros carros era maior do que o que eu ia ganhar como estagiário‖. Mas o funcionário do Banco que levava o ofício para as diretorias das escolas técnicas não permitiu. Sabia que o Banco seria fundamental para a vida daquele menino pobre, que valorizava trocados. Se o menino ainda teimasse em não ir, o funcionário ameaçou ter uma conversa séria com a mãe dele. Não teve jeito, Abner teve que trabalhar no Banco. Em 1986, três anos depois que Abner passava a conhecer a ―sociedade‖ por meio do prisma do Banco do Nordeste, José Renato, então técnico do ETENE, forma-se em Direito e solicita licença por interesse particular. Logo em seguida, inicia uma carreira política como vereador pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT em sua cidade natal, Tejuçuoca. Neste mesmo ano, Silveira, na época funcionário da antiga Teleceará, faz o concurso do Banco, é aprovado, e também passa a compor o quadro de funcionários da sede do BNB em Fortaleza. Silveira nasceu em Santa Luzia, sertão paraibano, aonde seu avô ―ainda tem umas terras‖. Logo aos 3 anos de idade, muda-se com a família para a cidade de Patos. É em Patos que passa toda a sua infância e adolescência. Aos 18 anos obtém sucesso no vestibular e vai morar em Campina Grande, onde cursa Processamento de Dados. No

47

final do curso superior, a convite de um cearense, presta concurso e entra na Teleceará. Passa a morar em Fortaleza e após cinco anos, presta concurso para o BNB e recebe a boa notícia da aprovação para o cargo de escriturário no Banco do Nordeste. Passa a atuar na sede na área informática. Serão 17 anos trabalhando no mesmo setor. Nesse período, 1986, Charles e Laureana transitam por diferentes agências do Banco, ocupando diferentes cargos, ganhando experiência. Nelson trabalha em uma agência do Recife e recebe em sua casa companheiros militantes que acabam de fundar o PT pernambucano. Já Abner foi convocado para atuar na sua primeira cidade, após término do estágio probatório. Foi para o Rio Grande do Norte, para atuar como escriturário em uma agência localizada em Santo Antônio do Salto da Onça. Como bom contador de suas próprias histórias, é ele mesmo quem nos narra o sabor desses tempos: Tinha uma agência do Banco lá e eu fui me incorporar a esta agência como funcionário já né. Aí daí eu comecei a fazer curso junto do Banco e o gerente que trabalhou comigo, naquela época as pessoas adotavam você, você chegava muito novo na cidade. Chegava com 18 anos de idade pra trabalhar numa cidade sem ninguém conhecido. Morava num quarto que só cabia a cama, uma televisão pequenininha na frente. Tinha o banheiro do lado. Era a vida da gente nessas cidades. Então, tinha sempre alguém que adotava. E a vida foi passando, com 6 anos que eu tava lá, nisso com muitas idas e vindas, assumindo muitos cargos no Banco, dentro da agência eu passei por todas as funções que tinha dentro da agência. [...] Telefone. Sabe como era telefone? Discava o número 8 de manhã, atendia uma telefonista em Natal, você dizia o número que queria falar, quando era à tarde chegava ―olha Seo Abner, a ligação que senhor pediu‖, pra Fortaleza, por exemplo. Era desse jeito, não existia telefone como as agências menores do Banco hoje em dia. [...] Na época, o Banco era ―conterrâneo‖, todo mundo queria ser ―conterrâneo‖, ―conterrâneo‖ era ―ser especial‖, era ser cliente do Banco. Lembro tudo azulzinho claro com o nome ―conterrâneo‖ embaixo, já era essa força que o Banco mostrava que era nordestino, que tava aqui pra ajudar e que era forte. Hoje a gente tem consciência que a gente é um braço do governo, faz e segue as diretrizes governamentais no âmbito do desenvolvimento sustentável aqui da região Nordeste (Abner).

Em 1989, ano importante para a conjuntura política internacional e nacional, depois de um longo e angustiante tempo de espera, Abner dá de presente à sua mãe a primeira televisão colorida que ela teve em sua casa. Neste ano, Cecília Maria é convocada para fazer os exames médicos, psicotécnicos e para dar entrada com a documentação pessoal. Era a mais nova integrante do quadro de servidores do Banco do Nordeste do Brasil. Assim como Abner, Cecília, conhecida por todos do BNB como Ceci, é uma maravilhosa contadora de histórias, uma conversadeira.

48

Ceci nasceu em Fortaleza no dia 17 de fevereiro de 1965. Foi o terceiro rebento de uma família de seis filhos. Três homens e três mulheres. Seus pais são do interior do Ceará. Sua mãe é de Mombaça e seu pai de Arneiroz, ambos localizados no sertão dos Inhamuns. Os dois vieram morar na capital cearense ainda muito jovens. O pai de Ceci trabalhou, como era de costume na época, desde pequeno. Ajudava o pai (avô de Ceci) no comércio quando ainda moravam no interior. Na capital, foi operário, guardamunicipal, até se estabelecer com funcionário do Departamento Estadual de Trânsito – DETRAN estadual. A mãe de Ceci era uma dona de casa, cuidava dos seis filhos. Em Fortaleza, sempre moraram no bairro do Montese, na rua Professor Costa Mendes, próximo à Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Eu sei onde fica. Ceci sempre estudou em escola particular. Mais precisamente no Colégio Juvenal de Carvalho, da ordem dos salesianos. ―Estudava e quando era nas férias, eu ficava lá ajudando as irmãs a tratar material, a preparar o próximo ano letivo‖. Era um colégio de freiras. Na época que eu estudei, era só mulher... A vida toda era só mulher. Então, estudei a vida toda lá e a gente era... A minha casa, no Montese, era como se fosse um ponto de encontro, talvez porque tinha a maior quantidade, a família era numerosa né, então, vários jovens iam pra lá, a vizinhança todinha, então era sempre, assim, muita amizade das pessoas que iam pra lá e a gente fazia grupo de estudo, estudava pra colégio, estudava pra concurso, até que a gente formou um grupo de jovens né. [...] Jovens do bairro, da minha rua mesmo... E, assim, foi uma amizade bem interessante porque a gente tanto participava desses movimentos de juventude. [...] Era um movimento da Igreja, de jovens. A Pastoral da Juventude, nossa igreja tinha uma e eu inclusive participava. A gente tinha várias reuniões na igreja e também junto com outras igrejas, com vários jovens né. Então, assim, a gente terminou conhecendo muita gente de vários bairros, de vários locais, que não ficou a vida toda porque, de qualquer forma, a vida vai distanciando. Mas, hoje no Facebook é muito fácil de encontrar todo mundo né. De vez em quando, aparece lá uma carinha conhecida ―ah, aquele tempo que a gente se conheceu‖. Então, eu digo que minha juventude e a minha infância foi, assim, muito dinâmica, porque tinha pessoas, tinha movimento... Além de que, como eu te falei, eu acho que meus pais, pelo fato de serem pessoas, assim, muito caridosas, eles tinham união né, muito bonita, entre eles. Então, eu acho que as coisas convergiam, a coisa da Igreja, os jovens do bairro, os familiares que moravam no interior sempre vinham pra cá. Na minha casa, sempre tinha gente que vinha estudar, fazer um curso, uns passavam férias, uns passavam, vinham morar mesmo (Cecília Maria Feitosa da Silva, em entrevista concedida na sede da Associação de Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil – AFBNB, em Fortaleza/CE, no dia 19 de novembro de 2012).

Os pais de Ceci eram um casal bastante respeitado no seio da própria família e na vizinhança. Tinham uma formação católica muito forte e procuravam sempre criar

49

os filhos baseados em uma moral cristã disciplinar. Quando a maioria dos filhos do casal chegou à adolescência, Ceci era convocada pelos irmãos mais novos e mais velhos para ―negociar‖ um passeio, uma ida à praia, por exemplo. Desde moça foi revelando um certo dom diplomático. O grupo de jovens católicos no qual estava filiada era um grupo que se reunia para diversão, oração e práticas caritativas. Segundo suas palavras, esse grupo de jovens do bairro: Era, assim, sem muita, sem muita noção do político né, era muito da caridade, fazer a caridade. Então, a gente arrecadava a cesta de alimentos e ia entregar numa creche. Quando era daqui há um mês, arrecadava e ia entregar num asilo. Daqui a pouco ia levar pra uma instituição de caridade, né, era mais no sentido de movimento, de apoio, alimentação, roupa e o que tinha. Fazia gincana, fazia rifa, a gente tava, sempre tinha um ou outro que puxava essas iniciativas né (Cecília Maria).

Quando terminou o científico, atual ensino médio, prestou vestibular para Psicologia na Universidade Federal do Ceará – UFC e Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará – UECE. Obteve êxito nos dois exames e resolveu cursá-los simultaneamente. Um curso era diurno e o outro era noturno. Foram anos de muitos estudos, muitas leituras e outros olhares iam sendo formados em sua vida, agregando à formação moral religiosa mais interpretações sobre o funcionamento da sociedade humana. Enquanto cursava as duas graduações, arrumava um tempinho para estudar para os ―concursos que iam aparecendo‖. Tentou concurso para o antigo Banco Estadual do Ceará – BEC e para o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Não conseguiu aprovação. ―Confesso que não fui me preparando. Fazia por que? No embalo. Os primos chegavam do interior ‗vamos todo mundo fazer concurso!‘. Me inscrevia no meio também e ia né‖. O cearense é um povo ―concurseiro‖. Trata-se de período em que o acesso ao serviço público passava por um lento processo de ―racionalização meritocrática‖ com a presença cada vez maior de certames abertos instituídos por lei para acesso às várias carreiras disponibilizadas pelos órgãos públicos. Ceci resolveu, então, se matricular em um cursinho preparatório para concursos. Afinal, o conteúdo que aprendia na faculdade, tanto de Psicologia como de Serviço Social, não serviria para aprovação em certames públicos. As provas de concursos tinham um conteúdo bem diferente. O cursinho surtiu efeito. Dentro de pouco, se viu aprovada para o Banco do Nordeste. Vários familiares, primos, primas, tios e tias, eram bancários. Trabalhavam no Banco do Brasil, na Caixa Econômica e no BEC. E ela seria mais uma bancária na família.

50

Enquanto o Banco demorava para fazer as chamadas para preenchimento das vagas oferecidas, Ceci concluiu os dois cursos superiores. Na época da graduação em Psicologia, entrou no estágio em uma escola. Depois que terminou o estágio, foi contratada como coordenadora pedagógica. ―Mas aí surgiu uma oportunidade de eu ir trabalhar numa empresa de transporte como psicóloga porque uma colega minha que tava trabalhando lá saiu pra ter neném e eu fui pra tirar a licença dela na estação‖. E nessas coincidências da vida, dessas que fizeram Abner escolher a escola técnica em vez do curso científico e o levaram para o BNB, Ceci conheceu seu futuro marido na dita empresa de transporte que trabalhou durante apenas seis meses enquanto aguardava ansiosa a convocação definitiva para o Banco. No final da década de 1980, em meio a uma família tradicional, Ceci se sentia pressionada para estabelecer uma relação conjugal estável. Familiares e conhecidos faziam pressão. Mesmo tendo completado 24 anos de idade, [...] naquele tempo era coroa, coroa, coroa! Pensava que nem ia casar, pensava que ‗vou ficar a minha vida toda só trabalhando, sendo uma executiva, coroona né‘. Enfim... Mas aí, conheci o meu marido, trabalhei nessa empresa e a gente ficou pouquíssimo tempo porque logo o Banco me chamou... E aí fui trabalhando no interior da Bahia (Cecília Maria).

Como todos os outros, Charles, Nelson, Laureana, José Renato, Abner e Silveira, Ceci não teve ―destino certo‖ ao ser aprovada para ingresso no Banco. Ao adentrarem a ambiência interna da instituição é que ficavam sabendo para onde seriam ―levados‖para cumprirem suas obrigações de trabalhadores (geralmente escriturários) do Banco. Alguns ficaram em suas cidades natais, que era onde a maioria desejava se estabelecer, outros foram deslocados para lugares desconhecidos, longe dos familiares e amigos. Nelson ficou contente com a notícia de que deveria exercer função em uma agência no sul do Maranhão, terra de guerrilhas campesinas, Abner leva para o interior do Rio Grande do Norte o sentimento de ―novidade transformadora‖ e Ceci segue para o interior da Bahia ―com a cabeça na família‖ que morava em Fortaleza. Fazer parte do Banco do Nordeste do Brasil é, para muitos, optar por uma vida itinerante, pois, mais cedo ou mais tarde, você será ―convocado‖ para cumprir uma tarefa em determinado setor ou ocupar o lugar que outro funcionário acabou de desocupar. O Banco é uma fronteira nas histórias de vida de seus funcionários e provoca novas fronteiras, possibilidades profissionais, ―desafios‖, para o bem e para o mal.

51

Ceci passou apenas dois meses na Bahia e recebeu a visita de seu noivo Aécio que viajou para lá. Era difícil ir constantemente para Fortaleza, morando longe assim, mas daria um jeito. E foi com alegria que recebeu a notícia que logo seria transferida para Assu, no Rio Grande do Norte, município que encurtaria a distância física em relação aos seus próximos. ―Lá nessa agência, tinham cinco colegas que eram aqui de Fortaleza, então quando terminava o expediente da sexta-feira, eles davam um jeito de vir todo mundo né, ônibus, carro, o que viesse‖. 1.1.3. Os anos 1990 Chegamos, então, em 1990. Podemos encontrar Ceci trabalhando em uma agência em Assu, no Rio Grande do Norte, passando os fins de semana em sua terra natal, Fortaleza. José Renato, ainda em licença pelo Banco, elege-se prefeito de Tejuçuoca pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, no interior do Ceará. Nelson é transferido do Recife para trabalhar na sede do Banco em Fortaleza, onde ficou trabalhando em diversos setores e, como não poderia deixar de ser, militando no Sindicato dos Bancários. Não temos muitas informações desse período de Laureana e Silveira. Na década de 1990 não identificamos na pesquisa menção a concursos realizados pelo BNB nessa época. Há, ao que parece, um vácuo de nova força de trabalho na instituição. É um período de minimização da atuação do Estado brasileiro, era preciso evitar o ―inchaço dos órgãos públicos‖. A conivência explícita com o modelo neoliberal de gerir o Estado continua a ser, nesses anos, uma característica das gestões dos governos brasileiros, em âmbito municipal, estadual e federal. Essa cumplicidade governamental com as orientações políticas elaboradas por grandes organizações financeiras, bancos mundiais e multinacionais, atravessa o seu ápice a partir da gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Em 1992, Abner estava na Bahia, trabalhando em uma agência em Barreiras. Seu sonho era um dia ser gerente de alguma agência do Banco. Para ser gerente ou ocupar outros cargos do Banco, e isso ocorre também nos dias de hoje, abria-se oportunidade por meio de seleção interna. ―Passei seis meses fazendo o curso de gerente e cumprido esse curso, fui transferido pra Barreiras, na Bahia, pra ficar, na época, conhecendo como é que funcionavam as agências, trabalhando com negociação de dívidas, aprendendo com os gerentes mais experientes‖. Depois, havia uma prova de

52

português, matemática e testes psicotécnicos. Certo dia, um diretor do Banco liga para ele e diz: ―Abner, você agora vai assumir uma gerência. Você tem Paus dos Ferros e Apodi, no Rio Grande Norte, ou Itaporanga do Piancó, na Paraíba. Qual agência você quer?‖. Como já tinha trabalhado no Rio Grande do Norte, a tendência é que escolhesse umas das duas cidades ofertadas de lá, mas, por algum motivo, disse ―Itaporanga, na Paraíba‖. Era mais uma coincidência presente em sua vida. Ele depois ficou sabendo que Itaporanga do Piancó era a terra natal de seu pai, aquele mesmo que o abandonou quando tinha apenas 9 anos de idade, deixando sua mãe tomando conta sozinha de duas crianças. Além disso, foi em Itaporanga que conheceu a sua esposa, com quem constituiu família. Santo Antônio do Salto da Onça, Barreiras e Itaporanga do Piancó são três das dezenove cidades que Abner morou e trabalhou no Banco do Nordeste até se estabelecer como gerente de uma agência localizada na Av. Epitácio Pessoa, em João Pessoa, Paraíba. Foi nesse período de Itaporanga que Abner decide fazer graduação em Economia na Faculdades Integradas de Patos – FIP. Era um deslocamento de 170 quilômetros de Cajazeiras até Patos, mas seria fundamental para a formação e ascensão de Abner dentro do Banco do Nordeste. 1992 também foi o ano em que Ceci participou de concurso interno do Banco para função de Assistente Social. A vaga era para a sede geral do BNB em Fortaleza. Seria a realização de um sonho. Trabalharia na sua terra natal, voltaria para os seus, casaria e ainda exerceria a profissão para o qual estudou tanto na faculdade. Foi exatamente o que aconteceu. Mas infelizmente, para ela, essa realidade do trabalho de assistente social no Banco durou pouco. Passei nesse concurso interno e fiquei trabalhando na área Médico-Social do Banco como assistente social. Eu e mais quatro colegas. Então, assim, a gente fez vários projetos, sempre com esse enfoque de estudar as condições de trabalho e o que é que a empresa poderia fazer para proporcionar melhores condições de trabalho pra esses funcionários. Só que quando tava no meio desse projeto, a gente teve uma mudança na direção do Banco. Chegou um presidente que mudou totalmente tudo o que tava acontecendo no Banco e reestruturação pra cá, reestruturação pra lá, tirou nós, acaba serviço social, não pode ter serviço social numa empresa porque não tem lógica (Cecília Maria).

Além do Banco não ter promovido nenhum concurso nesse período, a estrutura interna da instituição, os regimentos, as metas, as estratégias, os organogramas, tudo estava passando por um processo de remodelagem com a entrada do novo presidente, o empresário Byron Costa de Queiroz, indicado a ocupar o cargo pelo então Governador do Estado do Ceará, Tasso Jereissati, do PSDB.

53

Em 1993, em meio a alarmantes índices estatísticos que expressavam os problemas sociais presentes no Brasil, o sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, com o carisma que lhe era peculiar, mobiliza meios de comunicação de massa e vários segmentos da sociedade nacional em busca de soluções públicas e privadas de combate à fome e à miséria. Era a chamada ―Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida‖. A ideia era criar células de organizações da sociedade civil em cada Estado brasileiro. No Ceará, alguns funcionários do Banco do Nordeste tiveram um papel protagonista na organização de um grupo local para articulação da Ação da Cidadania. Silveira participou efetivamente desse momento político cearense. Aqui [no BNB] a gente criou, e, graças a Deus, eu tive a felicidade de participar do Comitê. A gente foi pra rua arrecadar alimentos e roupas, a gente foi, eu não me lembro bem, prum show do Geraldo Azevedo né, lá na Unifor, a gente arrecadou alimentos e o Banco emprestou um caminhão e a gente botava esses alimentos pra distribuir nas favelas. E depois a gente foi distribuir nos interiores porque lá o sofrimento era maior, e dali se formou um Comitê, a gente tinha reuniões, o Banco facilitou isso. Então, o banco tem essa cultura. Então, a gente se reunia mensalmente aqui dentro no final do expediente, aqui numa sala reservada, como a gente ia traçar as estratégias, e as pessoas no fim de semana iam ver como é que ajudavam em algumas comunidades. Aí essas reuniões se transformaram num Comitê formalizado, alguns anos depois se transformou numa ONG né, chamada Instituto Nordeste Cidadania – INEC (Francisco de Assis Morais Silveira, em entrevista concedida no Ambiente de Responsabilidade Socioambiental, na sede do BNB em Fortaleza/CE, no dia 15 de julho de 2011).

No início dos anos 1990, Nelson participava das reuniões do Sindicato dos Bancários em Fortaleza, em um movimento interno pela melhoria das condições de trabalho dentro do Banco, pela abertura de novos concursos e pela aplicação efetiva do conceito de desenvolvimento regional do Banco. E em 1995, pela primeira vez em sua vida, conseguiu articular dentro do próprio BNB um trabalho de parceria com a Pastoral da Terra voltado para políticas públicas junto ao Movimento dos Sem Terra MST. Nelson conseguiu unir sua militância com ações institucionais bancárias. ―Então, era eu e minha interlocução o tempo todo com o pessoal do Movimento dos Sem Terra, que era muito mal visto na época‖. Como Nelson sempre discordou de várias posturas do Banco, por várias oportunidades sofrera pressões internas, inclusive pressões para sua saída da instituição. Com a ―mistura‖ de militância de esquerda e ações institucionais do Banco junto ao MST, ―conseguiram um argumento muito forte para me afastar‖. Argumentavam que ―o pessoal do Banco me pagava para trabalhar militando‖. Como esse fato ainda não era suficiente para me tirar do BNB, ―inventaram

54

uma história que eu estava com um interesse, estaria desviando dinheiro do Banco para os Sem Terra‖. Não fui exonerado porque mais uma vez tinha o pessoal da Igreja que tinha o cargo muito importante, aí eles me conseguiram um afastamento, tipo assim, uma licença sem vencimento e sem nenhum vínculo com o Banco, a não ser um contrato que ficou suspenso, onde eu poderia voltar a qualquer tempo. Dependendo da minha situação, eu voltaria. Aí depois de seis anos, eu voltei. Eu tinha começado a fazer projetos. Mas aí, eu só voltei porque pesou né. Perder um emprego num Banco, eu achei um tanto complicado sair do Banco né. De qualquer forma, o Banco é um emprego, não dá pra dispensar numa situação e naquele momento eu me vi numa situação de desemprego. Não dá pra ficar desempregado com dois filhos para dar conta né? Aí resolvi voltar pro Banco (Nelson).

Enquanto Nelson é afastado do Banco em 1996, José Renato retorna neste mesmo ano depois de dez anos de carreira política na terra natal. Retorna e passa a exercer uma função considerada nova no Banco: agente de desenvolvimento. É um cargo técnico elevado equiparado ao gerente de negócios. Na época, era uma função itinerante por natureza. Tem o objetivo de descentralizar a atuação do BNB nos municípios onde ainda não havia e não há o estabelecimento de uma agência bancária. Além disso, o agente de desenvolvimento tem o papel de diagnosticar toda a conjuntura social, econômica, ambiental e política da região onde atua. Renato, por exemplo, teve como sua primeira lotação de agente de desenvolvimento a agência de Itapipoca, no interior do Ceará. Mas a partir de Itapipoca, era responsável pelo ―desenvolvimento‖ dos municípios cearenses de Marco, Cruz, Bela Cruz, Itarema e Acaraú. Era um trabalho muito diferente e os profissionais que foram selecionados tinham muito essa característica de ser articulador, de gostar, porque era a presença do Banco, então, nós chegávamos, fazíamos reuniões, articulação com políticos, com sindicatos, escolas, colônias de pesca, quer dizer, todo o pessoal pra colocar a discussão... Aí nos trabalhamos com PRONAF, com alguma outra linha de crédito, sempre sensibilizando e procurando trabalhar com associações, com cooperativas, numa função específica de banco de desenvolvimento. Aí então era um trabalho meio que eu podia dizer assim ―era fascinante‖ (José Renato Mota, em entrevista concedida na sede do ETENE, em Fortaleza/CE, no dia 23 de fevereiro de 2012).

Apesar de ―fascinante‖, Renato é de opinião, por experiência própria como agente de desenvolvimento, que essa função institucional de potencial grandioso, ―na prática‖, foi deturpada no final da gestão do então presidente Byron. As metas que a

55

Diretoria do Banco do período exigia para demonstração do sucesso do trabalho eram restritas a números e estatísticas. Quantas reuniões foram realizadas, quantas metas, quantos participantes, quantos pronunciamentos, quantas atas de reunião, revelavam um diagnóstico fictício das demandas de desenvolvimento dos municípios e isso contribuiu para que poucos recursos existentes fossem efetivamente aplicados naquele momento. Depois que Renato saiu de Itapipoca, foi transferido para Sobral, também interior do Ceará, e depois para Piripiri, interior do Piauí, sempre com esse trabalho de agente de desenvolvimento. Mais ou menos nessa época, Abner cursa pós-graduação em Lavras, Minas Gerais, enquanto atuava em uma agência do BNB local. A área de influência do Banco do Nordeste perpassa todo Nordeste e segue para o norte de Minas e norte do Espírito Santo. No período de gestão do presidente Byron, um dos Superintendentes da área central do Banco, em Fortaleza, é justamente o Charles, aquele mesmo Charles que tivemos que deixar ―de molho‖, para tratar de outras histórias, quando ele ainda estava iniciando a sua vida de bancário, deslumbrado com o novo mundo de oportunidades que surgia e com a repentina estabilidade financeira. Charles exercia então o cargo de Superintendente do Processo Operacional e participou diretamente da formatação das diretrizes do Programa Farol do Desenvolvimento, que era o guarda-chuva institucional que abrigava as políticas de desenvolvimento e de crédito desencadeadas pelos agentes de desenvolvimento. ―Hoje eu ainda sou um grande entusiasta desse Programa porque eu acho que o fomento ao desenvolvimento é uma única maneira de diferenciar o Banco de um ‗banco normal‘‖. Charles, até por fazer parte da área de planejamento do Banco naquele momento de ―reestruturação‖ institucional, procura isentar as possíveis falhas da equipe de Byron com a seguinte justificativa: o mundo nos anos 1990 vivia uma época de hegemonia do pensamento neoliberal. Os acordos internacionais entre as organizações financeiras, grandes bancos e multinacionais conclamavam os líderes políticos nacionais e regionais a minimizarem o papel do Estado em relação às intervenções econômicas, ao controle de taxas de juros e aos incentivos de crédito via tesouro nacional. Ou seja, era o velho liberalismo de trezentos anos atrás. Não cabe, pois, a existência de um banco público em um cenário como esse. Byron, segundo Charles, chegou ao Banco do Nordeste em 1995 e o encontrou ―travado‖ em suas operações financeiras e sem cumprir o seu principal papel como banco de fomento ao

56

desenvolvimento regional. O Banco estava desacreditado. Se não fosse radical em algumas medidas de reorganização interna, a instituição estaria fadada ao paulatino desmantelamento e extinção. Se não era o momento de abrir concursos públicos, Byron e sua equipe, pelo menos, deveriam mostrar para o Brasil e para o mundo que o BNB tinha sim sua importância e utilidade no cenário econômico nacional e internacional, demonstrando sua capilaridade de atuação e aplicação de créditos para pequenos e médios produtores em toda a área de influência do Banco. O Programa Farol do Desenvolvimento, com seus agentes de desenvolvimento, foi, portanto, de acordo com Charles, uma iniciativa antagônica ao pensamento neoliberal vigente no final do século XX. Antagônica, inclusive, às posições políticas do Governo do PSDB cearense e nacional. Ainda neste capítulo, nos próximos tópicos, abordaremos mais essas questões e embates ideológicos presentes dentro do Banco do Nordeste do Brasil a partir da década de 1990. Por enquanto, parece importante entender que há, de fato, mobilidade de pessoas e cargos, bem como existem reais possibilidades de ascensão dentro do Banco do Nordeste para aqueles funcionários mais antigos, ingressos nas décadas de 1970 e 1980, a exemplo de Charles, Renato e Abner. O ―pessoal mais antigo‖ que ―vestiu a camisa‖ do Banco hoje em dia ocupa cumes de importantes pirâmides organizacionais da instituição. Atualmente, Charles é Superintendente Estadual do BNB de Pernambuco, Renato é Superintendente do ETENE e Abner é Gerente Geral de uma importante agência localizada na capital da Paraíba. Os relatos dos três são falas que procuram o consenso, são falas institucionais 23. Dominam politicamente muito bem um certo conceito de desenvolvimento que se amolda contemporaneamente ao recente boom das políticas de microcrédito e à cultura do empreendedorismo, como veremos ao longo da dissertação. Nesse conceito de desenvolvimento não cabe, por exemplo, a figura do profissional em Assistência Social, ―não tem lógica‖. Qual seria o papel de uma assistente social em um processo de aceleração da aplicação de recursos junto aos pequenos e médios produtores? Ceci, nessa perspectiva, não era assistente social, era servidora do Banco e ponto final. Ceci foi remanejada para um projeto de capacitação de clientes que iriam receber financiamentos por meio de microcréditos. A ideia era transformá-los em ―empreendedores sustentáveis‖. ―Fiquei trabalhando com eles, com

Depoimentos individuais que se confundem com o discurso institucional oficial expresso no site do Banco e nas entrevistas do presidente concedidas para a imprensa. 23

57

essas pessoas até que surgiu o Crediamigo, que era um programa de microcrédito para clientes de baixa renda‖. Nesse conceito de desenvolvimento também não cabe Nelson. Nelson sempre foi e é uma voz dissonante. E na Era Byron, isso não é apenas incômodo, é ―obstáculo para o desenvolvimento‖. ―Misturar‖ militância de movimentos populares dentro de ações institucionais representa, naquele momento e quem sabe hoje também, ―ir contra o desenvolvimento‖, prejudicando o Banco que precisava de um upgrade político que justificasse a continuidade de sua existência. Nelson foi afastado, então, do Banco. Precisou de apoio político de agentes externos ao Banco, como a influência de nomes da Igreja, para que não fosse exonerado. Nelson ―fez o nome‖ fora do Banco. 1.1.4. Os anos 2000 A partir dos anos 2000, entra no Governo Federal brasileiro uma gestão do PT, liderada pelo presidente Lula, que traria novas posturas e atenções ao Estado, à máquina pública. Pela primeira vez na história política brasileira, um governo assumidamente de esquerda, dirigido por um ex-sindicatalista que ajudou a fundar um partido voltado para os trabalhadores, a ―classe operária‖, chega ao poder. São tempos de ascensão do Produto Interno Bruto – PIB, tempos de aumento vertiginoso das receitas dos bancos públicos, de alargamento do tesouro nacional e de Programas de Aceleração do Crescimento – PAC. São tempos, também, de um esforço estratégico maior, por parte do Governo, de buscar planos e ações que possibilitem uma maior distribuição das riquezas produzidas pelo país. No ano 2000, antes da Era Lula, foi aberto o primeiro concurso do BNB após muitos anos sem entrada de novos servidores. Era um concurso específico para trainne. Trainne é uma função inspirada em modelos empresariais de treinamento de futuros executivos. É um cargo voltado para recém-graduados que, por um intervalo curto de tempo, receberão capacitações em diferentes áreas de gestão empresarial. Em 2001, Nelson, em situação de desemprego, decide imprimir esforços para seu retorno para o Banco do Nordeste. Consegue voltar, mas não para sede da instituição em Fortaleza, onde ocorreram os episódios que culminaram no seu afastamento. Volta para uma agência bancária localizada na cidade do Rio de Janeiro, sua terra natal.

58

Enquanto Nelson voltava para o Banco, Ceci recebia orientações para uma nova mudança metodológica no trabalho de microcrédito que estava acompanhando, o Crediamigo. Baseada em uma consultoria internacional, a Diretoria do Banco resolve que a análise para liberação e acompanhamento do microcrédito não deveria estar mais pautada em uma primeira análise da situação social, cultural, econômica e política que envolve um determinado grupo, associação, comunidade, ou localidade, para, a partir daí, focalizar em questões e responsabilidades individuais, por meio de um quadrilátero de diagnóstico que aponta ―forças‖, ―fraquezas‖, ―oportunidades‖ e ―ameaças‖ ao grupo contemplado pelo microcrédito. No novo sistema, esse mesmo modelo de diagnóstico deve partir, primeiramente, de um foco individual do potencial micro-empreendedor analisado, ou seja, daquele empresário ou empresa que se mostrar interessado em receber o crédito, para depois, em um segundo plano, conhecer o cenário socioeconômico mais amplo no qual o futuro microempreendedor está inserido. Se agregarmos a essa busca de mudança metodológica no âmbito do Crediamigo, o primeiro concurso para trainne e a crítica negativa que Renato faz ao excesso de formalidade e de relatórios numéricos do Programa Farol de Desenvolvimento, teremos uma melhor ideia do tipo de ―reestruturação‖ que a Diretoria liderada por Byron Queiroz procurava programar no Banco do Nordeste do Brasil já no final de sua gestão como presidente (2000 a 2002). A eficácia do Banco dependia de uma paulatina assimilação da ―cultura empresarial moderna‖ por parte do quadro de servidores da instituição. Em 2002, ainda teremos o segundo (e último) concurso específico para trainne do BNB. Thiago, que tinha perdido o prazo para seleção do primeiro, aproveitou a nova oportunidade, passou nos exames e foi aprovado. ―Nesse concurso de Trainee houve vaga pra técnico, vaga pra nível superior, pra mestrado e doutorado, foi um concurso muito específico‖. Thiago nasceu em Brasília, Distrito Federal, filho de um casal de paraibanos. ―Lá em casa somos três, eu e meu irmão nascemos em Brasília e minha irmã nasceu em João Pessoa‖. Ficou pouco tempo na capital federal, na verdade, se considera mais paraibano do que brasiliense. Como seu pai trabalhava em grande ―empeleitas‖, em obras de construção, onde a empresa abria frente de trabalho, ele ia com a família. ―Se a construção demorasse dois anos, ele passava dois anos naquele local‖. Depois do trabalho realizado em Brasília, o pai de Thiago decidiu se estabelecer definitivamente em João Pessoa e estruturar a família que estava começando. Thiago cursou

59

Engenharia Civil na Universidade Federal da Paraíba – UFPB e ficou ―de olho‖ nos concursos que apareciam. Sua primeira lotação no Banco foi em uma agência em Guarabira, na Paraíba, em estágio probatório, depois foi transferido para Goiana, interior de Pernambuco, onde trabalhou como gerente executivo, transitando em vários setores: recursos humanos, recursos logísticos, numerário, cofre e segurança. ―Passei um ano e sete meses lá nessas funções, que me deram suporte pra trabalhar com recursos humanos e logísticos aqui também na Superintendência Estadual da Paraíba‖. Em fevereiro de 2003, início da Era Lula, toma posse para o cargo de presidente do Banco do Nordeste do Brasil, o economista e então professor da Universidade Federal do Ceará - UFC, Roberto Smith. Apesar de ter realizado alguns consultorias profissionais para o Banco e ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores em São Paulo e no Ceará, foi pego de surpresa com o convite. Mas não pestanejou, aceitou ―de primeira‖ a indicação política: Nunca me passou pela cabeça ser alguma coisa no Banco do Nordeste. Eu era, quando consultor, pela Universidade, fui chamado no Banco do Nordeste pra prestar alguma consultoria. Quando comecei a dizer as coisas que eu pensava, me cortaram e me proibiram de entrar no Banco. E o Lula ganhou a eleição né, assumiu no dia primeiro de janeiro, eu tava na praia e tudo mais. Quando eu voltei, no dia 2 de janeiro, houve um telefonema do Deputado Guimarães perguntando se eu toparia colocar meu nome à disposição do Banco do Nordeste. Eu disse ―olha, eu não me sinto muito capaz para isso, mas eu entendo que a gente no Nordeste precisa ter nomes pra serem escolhidos, então coloque aí meu nome‖ (Roberto Smith, em entrevista concedida na sede da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará – ADECE, no dia 13 de março de 2013).

Roberto nasceu em São Paulo capital em 1942, filho de uma família judaica. Tem uma formação política de esquerda, uma consciência influenciada pela própria mãe, ―companheira das razões da vida militante‖. Durante as leituras da juventude e da graduação em economia pela Universidade de São Paulo – USP, três nomes sempre vêm à cabeça: Celso Furtado, Raul Prebish e José Carlos Mariátegui. Depois de ―uma certa idade‖, tendo no curriculum oito anos à frente do BNB, costuma orgulhosamente contar o seguinte episódio quando recebe homenagens pelo Nordeste e é solicitado um discurso: Quando eu era estudante, Celso Furtado foi a São Paulo e se hospedou no Hotel Jaraguá. Consegui vencer minha timidez, furar bloqueios e bater à porta de seu quarto. Ele me atendeu. Disse-lhe então que era estudante de economia

60

e desejava fazer algo pelo Nordeste, trabalhando com ele e sua equipe. Com firmeza contundente e peculiar, ele respondeu: ―no Nordeste, temos profissionais muito capazes, mas há muito que fazer pela Região aqui no Sudeste, em São Paulo‖. Suas palavras foram como uma ducha de água fria nos meus sonhos. Passado muito tempo, em 1996, contei-lhe essa história, quando tive a felicidade de ser seu vizinho em Paris, e ele me fez uma dedicatória em seu livro seminal Formação econômica do Brasil, assim escrita: ―Ao Roberto Smith, nordestino por teimosia‖ (Discurso proferido pelo Presidente do BNB, Roberto Smith, na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, em 19 de outubro de 2009, por ocasião da outorga do título de Cidadão Cearense).

Durante o início dos anos 1970, enquanto amadurecia a ideia de mudança de vida e transferência para alguma localidade do Nordeste, Roberto coordenava uma área de planejamento econômico e urbano na Planasa S. A., uma empresa de consultoria de São Paulo e dava aulas de economia em duas faculdades. Com interesses pessoais e intelectuais voltados para o Nordeste e com uma formação inicial acadêmica devotada ao conceito de desenvolvimento regional, Roberto escolhe, em um processo seletivo nacional, fazer pós-graduação em nível de mestrado, no Centro de Aperfeiçoamento em Economia do Nordeste – CAEN, da UFC. Em 1976, recebeu um telegrama assinado pelo Professor Agamenon de Almeida 24, que viria a ser seu orientador, comunicando que ele havia sido aprovado e aceito pelo curso. ―Em Fortaleza, morei, provisoriamente, numa república de estudantes, na avenida da Universidade, no Benfica‖. Nessa época, estava casado e com dois filhos. ―Minha esposa, naquela ocasião, ela começou a dar aula e se tornou até professora da Federal do Ceará, professora de Psicologia Social. E meus filhos estudando aqui e tudo mais‖. Em 1980, Roberto foi fazer o doutorado, também na área de economia, na USP, onde ficou trabalhando como pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE. Houve, nessa fase, o divórcio com a esposa. Pouco depois, em 1982, abriu concurso público para professor na UFC, com vaga para o CAEN. ―Era o Ceará mais uma vez me chamando‖. Voltou para Fortaleza, começou a dar aulas, sem deixar de cumprir os requisitos para finalização do curso de doutorado da USP. Enquanto ministrava aulas e desenvolvia pesquisas pelo CAEN, nunca deixou de prestar serviços de consultoria econômica. ―Toda minha vida, pra me sustentar e tudo mais, sempre era muito chamado pra trabalhos de consultoria e, de forma que, nunca deixei essa área... Fiz muito planejamento metropolitano daquela época‖. Além dos trabalhos de consultoria e da vida acadêmica, Roberto nunca deixou de participar Fiquei surpreso com esta informação porque o Sr. Agamenon também foi meu professor de Introdução à Economia, no curso de Ciências Sociais na UFC, em 2001. 24

61

efetivamente da construção política do PT. ―Eu tenho uma longa trajetória de militância no PT e uma militância também enquanto economista, que eu já trabalhava em Planos de Governo das eleições que o Lula perdeu. E cheguei a trabalhar também na que ele efetivamente ganhou né‖. Em 1995, Roberto foi fazer um curso de pós-doutorado na França, em Paris, na área de Economia Política, sob orientação do Professor Pierre Salama. Nesse período, ele se filiou ao Centro de Pesquisa da América Latina. Em 1997, Roberto retorna à Fortaleza e passa a ministrar aulas na PósGraduação em Educação da UFC. Durante essa fase, fazia parte de uma empresa de consultoria juntamente com profissionais da área de arquitetura. Voltou a trabalhar com planejamento urbano, participando da elaboração de Planos Diretores. Alguns desses Planos Diretores foram encomendados pelo Banco Mundial em suas parcerias com setores públicos dos governos federal, estaduais e municipais brasileiros 25. ―Alguns trabalhos de avaliação de projetos pro Banco Mundial na Bahia e tantos cantos‖. Em 2002, pouco depois da vitória do Lula nas eleições para presidente da República, como é de praxe, uma Comissão de Transição do PT foi constituída para ocupar os cargos deixados pela gestão anterior. Roberto teve participação efetiva nesse momento político de ajustes iniciais do novo governo que se formava. Quando Lula ganhou, foi criada uma Comissão de Transição, antes dele tomar posse. Eu me lembro que essa Comissão de Transição veio aqui no Ceará. Então, me chamaram pra reunião pra analisar a questão do Banco do Nordeste, porque eu também já tinha uma atuação, contratos, assim, com a Associação dos Funcionários do Banco do Nordeste, pra dar consultoria, assim, enquanto oposição né. [...] E, naquele momento, um pouco antes, pela Universidade, eu coordenei um Seminário, que ―deu muito o que falar‖, um Seminário chamado ―Fundos Públicos e Democracia‖. Nesse Seminário, houve, assim, uma violenta forma de tentativa de boicote do Seminário por parte da Direção do Banco do Nordeste. Mas eles não conseguiram demover da ideia de fazer e o Seminário foi feito pela UFC, eles vieram com a ideia de torpedear. Vieram uns funcionários instruídos pra destruir o Seminário. Só que o Seminário foi coordenado por mim, pelo Professor Chico de Oliveira, pelo Professor Pedro Geraldo B. Ribeiro Filho (2006) relata em sua tese de doutorado sobre a relação do Banco Mundial com o planejamento urbano de algumas cidades brasileiras de médio e grande porte que ―a partir dos anos 1980, o Desenvolvimento Institucional (componente estratégico dos Planos Diretores orientados pelo Banco Mundial) foi direcionado também para realizar ajustes urbanos em sintonia com os ajustes estruturais e setoriais neoliberais e para implementar o modelo gerencial de gestão com vistas a colocar as políticas públicas a serviço do mercado. [...] A análise do PRODUR baiano confirmou que as instituições que o BM tem construído nas cidades da periferia por intermédio do DI visam reduzir os espaços da política, da participação democrática, do exercício da cidadania, submetendo-os aos desígnios da economia de mercado‖. 25

62

Eugênio também, que depois viria se tornar Diretor do Banco, muito amigo meu né. Teve a presença do atual Senador Pimentel e uma série de pessoas muito gradas né. Porque nessa ocasião eu trabalhava e eu organizei esse Seminário também juntamente com o pessoal da unidade de aposentados, da Associação de Aposentados do Banco do Nordeste, em função de uma série de problemas né que se encontrava o Banco do Nordeste (Roberto).

Apesar de ―nunca ter passado pela cabeça‖ de Roberto ―ser alguma coisa no Banco‖, ele estava ciente de ―uma série de problemas‖ que estavam acontecendo no Banco durante a gestão de Byron. Liderou um grupo de intelectuais e políticos que faziam críticas negativas contundentes à postura tomada pelo Banco naquela gestão. Não deveria ter sido surpreendente, pois, a indicação do seu nome para o cargo máximo do BNB por parte do então Deputado Estadual pelo PT, José Nobre Guimarães, seu amigo pessoal. Roberto, porém, era o segundo nome que chega aos ouvidos da Comissão de Transição do PT nacional. O primeiro nome era o do economista baiano Sérgio Gabrielli. ―Ocorre que o Gabrilli, que tava indicado pra assumir a presidência do Banco do Nordeste, de repente ele achou que queria dar um vôo maior se candidatando pra presidência do BNDES‖. No entanto, em meio ao turbilhão de pressões políticas pela nomeação de ―x‖, ―y‖ e ―z‖, em todos os setores do Governo Federal, em um momento de transição governamental, Gabrielli ficou ―apenas‖ com uma Diretoria Financeira da Petrobrás e Roberto Smith ocupou a presidência do BNB. Mas sabemos que, pouco tempo depois, Sérgio Gabrielli chegou à presidência da Petrobrás. Eu rezava pra que não acontecesse isso [a desistência de Gabrielli da sua nomeação para a presidência do BNB], eu não me sentia muito à vontade. Mas quando eu comecei a perceber que as coisas podiam se tornar realidade, eu comecei a tomar umas aulas com algumas pessoas amigas que conheciam bem o Banco e tudo mais. [...] Pessoas que eu procurei na minha relação que, pessoas aposentadas, eu tinha muita relação com os aposentados do Banco e tudo mais né, pra entender bem o que poderia ―ser aquilo‖ e tudo mais. Aí um belo dia o Pimentel e o Guimarães me telefonaram e disseram ―Olha, vamos à Brasília que você vai ser entrevistado pelo Ministro Palocci‖. Já não dava mais pra... [...] E eu fui pra Brasília. O Ministro Palocci disse que conhecia muito meu curriculum, queria me conhecer pessoalmente, partidariamente, mas que eu era muito, meu curriculum era muito importante na área de desenvolvimento, mas que eu não entendia nada de banco. Aí eu disse uma frase que ficou famosa pra ele: ―eu não entendo nada de banco, nem de medicina‖. Ele riu e falou assim ―mas nós vamos fazer uma tentativa com você e vamos e, eu vou colocar alguém do Banco do Brasil pra trabalhar na Diretoria pra te auxiliar‖. Me indicou uma pessoa que acabou não podendo vir, veio um outro funcionário do Banco do Brasil, que acabou consentindo a Diretoria. E taí, de repente eu virei presidente do Banco do Nordeste. É claro, o conhecimento que eu tenho de economia, de contabilidade, essa coisa toda, me foi muito útil, mas, sobretudo,

63

dos cuidados que têm que ser tomados porque realmente banco é uma coisa muito complicada (Roberto).

Roberto Smith foi, então, nomeado presidente do Banco do Nordeste do Brasil pelo então Ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Se, naquele momento, um médico iria dirigir a casa fazendária do tesouro nacional, um economista, com ampla formação em desenvolvimento regional, poderia muito bem estar à frente de um banco público de fomento. Smith tinha uma tarefa muito evidente para cumprir: ele precisava fazer como que o Banco aplicasse todo o montante de recursos do fundo constitucional 26 e de outras receitas para o qual estava destinada a sua missão institucional. ―Quando eu assumi o Banco, havia uma enorme pressão do Ministro Ciro Gomes27 no sentido de retirar os recursos do Banco porque o Banco não aplicava, era uma queixa geral‖. Ao longo da presente dissertação veremos que procedimentos Smith tomou para que o Banco começasse a operar e aplicar em ritmo exponencial. O que de fato ocorreu. E o Banco deslanchou né, tava, quando eu assumi, ele aplicava fundo constitucional de 157 milhões no ano de 2002 né, em 2003 eu já consigo fechar com a aplicação de 1 bilhão, já sobe no ano seguinte pra 3 bilhões, e após eu sair do Banco chegou a 21 bilhões de reais de aplicação. Foi um crescimento muito intenso e que isso também acompanhou muito toda a forma de governo do presidente Lula (Roberto).

Logo em 2003, no primeiro ano de gestão de Smith, o Instituto Nordeste Cidadania – INEC é transformado juridicamente e administrativamente em uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, a fim de operacionalizar com menores custos e menor estrutura burocrática o Crediamigo e o Agroamigo 28, os Refiro-me ao FNE – Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste, definido legalmente pela Constituição brasileira de 1988. 27 Ciro Gomes era então Ministro da Integração Nacional do primeiro mandato presidencial de Lula. 28 ―Crediamigo é o programa de microcrédito produtivo orientado do Banco do Nordeste que contempla microempreendedores urbanos informais concedendo empréstimos no valor médio de R$ 800,00. É denominado ‗produtivo‘ porque é voltado para atender a pessoas físicas e jurídicas responsáveis por atividades de pequeno porte, destinadas à produção e comercialização de bens ou à prestação de serviços. É também ‗orientado‘, pois o cliente recebe juntamente com o crédito, a assistência e o acompanhamento de um assessor de crédito do programa, que lhe presta orientações sobre a definição da necessidade de crédito, bem como seu melhor aproveitamento e aplicação. O programa existe desde 1998 e adota a metodologia do aval solidário, que dispensa a apresentação de garantias formais, rompendo a principal barreira de acesso ao mercado de crédito tradicional‖ (Banco do Nordeste do Brasil, 2006: 77 apud Mota, 2009: 33). Segundo o site institucional do BNB, acessado em 30 de novembro de 2012, o Agroamigo foi criado em 2005. ―É o Programa de Microfinança Rural do Banco do Nordeste, operacionalizado em parceria com o Instituto Nordeste Cidadania (INEC) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Em sete anos de atuação, tornou-se o maior programa de microfinança rural do Brasil. O Programa se propõe a melhorar o perfil social e econômico do agricultor(a) familiar do Nordeste e norte de Minas Gerais, atendendo, de forma pioneira no Brasil, a milhares de agricultores(as) familiares, enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Com 26

64

dois grandes programas de microcrédito do Banco. Antes, o INEC era uma organização não governamental oriunda do movimento nacional Ação da Cidadania, nos moldes ―tradicionais‖, dirigida por funcionários do BNB, a exemplo de Silveira, que voluntariamente realizavam projetos sociais voltados para a melhoria das condições de vida de grupos, segmentos e comunidades pobres presentes na área de atuação do Banco, especialmente em Fortaleza. Hoje em dia o INEC se configura como uma empresa que, na prática, é uma ―terceirização‖ de uma função do Banco. A rapidez com que essa nova configuração jurídica e administrativa do INEC aconteceu, logo no primeiro ano de gestão de Smith, oferece indícios para pensarmos que essa ideia seminal já estava germinada dentro do BNB ainda na ―Era Byron‖ e a nova gestão apenas tomou as devidas providências para o aceleramento desse processo. A partir de 2003, as capacitações de pessoas e grupos para melhor recebimento e administração de microcréditos, trabalho que alguns funcionários do BNB como Ceci executavam e participavam diretamente, ficaram sob responsabilidade do INEC 29. Em 2004, o Banco requisita uma consultoria ao Instituto ETHOS de Empresas e Responsabilidade Social, uma OSCIP sediada em São Paulo, para orientações empresariais para implantação no BNB de uma gestão de negócios e de um programa estratégico pautado nos conceitos de responsabilidade social e seus derivados. Também no ano de 2004 ocorre um evento no Banco do Nordeste com a presença da Cáritas Brasileira, uma organização internacional humanitária da Igreja Católica, com sede no Vaticano, que atua em diversos países, representada naquela ocasião pela pessoa de Ademar Bertucci, e da recém-criada Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, representada por seu Secretário, o economista Paul Singer, que iniciaria um diálogo em prol da implantação no BNB de um programa de financiamento de empreendimentos nordestinos baseados nos princípios de organização da economia solidária. Nascia ali, no contato entre essas instituições, o Programa de Apoio a Projetos Produtivos Solidários – PAPPS. Num evento aqui [na sede do BNB], o Paul Singer teve aqui, fez uma apresentação e no Banco do Nordeste, tínhamos aqui o Eduardo Girão Santiago, que hoje é professor da UFC... Então, o Eduardo estava como consultor do ETENE e eu no ETENE, tinha acabado de voltar, e quando o metodologia própria, adaptada às condições do meio rural, cuja principal característica é o atendimento integral, a partir da forte presença do Assessor de Microcrédito nas comunidades, o Programa incentiva o desenvolvimento de atividades produtivas agropecuárias e não agropecuárias‖. 29 No terceiro capítulo, abordaremos com mais tempo e profundidade como se deu esse processo de transição.

65

Eduardo chegou pra mim e disse ―Renato, olha aqui‖ e aí começou a mostrar, ―vamos ver, já que você tem experiência...‖. E nós começamos a formatar a atuação do Banco na economia solidária. A princípio, [...] nós até começamos a trabalhar no sentido de atender associações, cooperativas, com recursos nãoreembolsáveis. Foi aí que conversando com Ademar Bertucci, com o pessoal da Cáritas, é, já vinha, tinha evoluído, é que os projetos, quando tinham retorno, a comunidade se apropriava mais e, ao invés de você simplesmente entregar o recurso, você... Começamos a falar de ―Fundos Rotativos Solidários‖30, aí foi quando o Banco, eu, por mim, foi a primeira vez, em 2004, 2005, que nós ouvimos falar em Fundos Rotativos Solidários (Renato).

Entre 2004 e 2006, Silveira coordenou a tradicional campanha já existente no Banco, vinculada ao movimento nacional de Ação da Cidadania, de arrecadação de alimentos de todas as agências e departamentos para distribuição em ―comunidades carentes‖ escolhidas no período natalino. É a Campanha Natal Sem Fome, que é apoiada ainda hoje pelo INEC e organiza-se por meio de revezamento de funcionários que ficam responsáveis durante um determinado período do ano pela centralização de algumas ações do voluntariado bancário. Em 2005, com três anos de gestão de Smith, o Banco tinha aumentado o número de servidores por meio da abertura de concursos e sentia a necessidade estratégica de capilarizar mais suas ações dentro de cada Estado da sua área de atuação. Algumas Superintendências, até esse momento, abarcavam duas ou três unidades federativas. A partir de 2005, cada Estado teria sua Superintendência de modo a atender melhor as demandas específicas de cada fronteira político-administrativa. Thiago, que trabalhava em uma agência em Goiana, Pernambuco, mas tinha toda a família morando em João Pessoa, Paraíba, viu nessa reestruturação interna do BNB, a necessidade de conseguir urgentemente uma transferência para junto dos seus amigos e familiares, já que em breve, se não saísse de Goiana a tempo, faria parte da Superintendência de Pernambuco e não mais da antiga Superintendência que abrigava, além de Pernambuco, os Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. E foi isso que aconteceu. Thiago foi transferido nesse mesmo ano para trabalhar na área de recursos humanos e logística da sede da Superintendência do BNB na Paraíba localizada em João Pessoa. Em 2006, é a vez de Nelson ser transferido do Rio de Janeiro para Fortaleza, para atuar como técnico do ETENE. Como sabemos, Nelson alimentava O segundo capítulo será dedicado à descrição da experiência técnica e política da economia solidária no âmbito do BNB. 30

66

silenciosamente um sonho de um dia trabalhar no ETENE, desde a época da juventude, desde antes da sua aprovação no concurso do Banco. A esposa de Nelson era a coordenadora de jornalismo de imprensa da campanha presidencial do PT nas eleições de 1989. ―Quando Lula chegava no Aeroporto Guararapes, no Recife, ela era a primeira pessoa que recebia o Lula. Para onde o Lula ia, íamos nós. Ela era quem organizava as entrevistas, a parte de imprensa, era ela quem organizava‖. O casal militante, portanto, tinha um trânsito muito favorável de influências dentro do PT nacional. Para Nelson a sua vida profissional melhorou muito desde a entrada do presidente Lula ao Governo Federal. Depois de passar cinco anos na agência bancária do Rio, em 2006, ele é transferido para o ETENE, para onde, na época que fazia Economia na UFF e estagiava no IBMEC, tinham indicado que ―era a cara dele‖. As coisas melhoraram muito, ―ainda mais depois que eu passei a atuar nessa ação de Economia Solidária né, e eu praticamente já estou, praticamente, eu sou o único, a pessoa que está tocando esta ação aqui no Banco‖. A ação de Economia Solidária a que Nelson se refere é a implantação dentro do Banco dos financiamentos de projetos de cooperativas por meio do PAPPS, com uso da metodologia dos chamados Fundos Rotativos Solidários, a que já nos referimos anteriormente. Desta feita, não havia ―mistura‖ indesejada entre sua característica pessoal militante e a ação institucional. Nelson tinha conseguido se ―achar no Banco‖. Passei muito tempo trabalhando em, como é que se chama, trabalhei na área de crédito, cadastro, teve uma época que eu trabalhei na área de computação, na área de digitação, trabalhei muito tempo na área de compensação de cheques, trabalhei numa área de engenharia que não tem nada a ver comigo e eu tava fazendo isso só como uma forma de quando ainda estava construindo uma agência lá em Recife. Aí, quando eu voltei pro Rio, eu vim trabalhar, trabalhei com promoção de investimentos e, por ironia do destino, apoiando os projetos, aí quando voltei para o Rio, fui trabalhar com grandes projetos que também não tem nada a ver comigo. Ou seja, só agora eu consegui me achar no Banco (Nelson).

Desta feita, ao que parece, o Banco ―ousava‖. Resta saber quais são os melindres dessa ousadia. Como disse anteriormente, no segundo capítulo, teremos um espaço dedicado à reflexão acerca do desenvolvimento da Economia Solidária dentro do escopo institucional do BNB. Em 2008, a ação organizada pelo BNB e INEC do Natal Sem Fome é modificada para Natal Sem Fome dos Sonhos. As doações de fim de ano para ―comunidades carentes‖ não seriam apenas de alimentos, mas também de brinquedos,

67

roupas e livros, no intuito de situar como principais problemas desses grupos socioeconomicamente desfavorecidos não mais a fome, já combatida veementemente pelo Programa Bolsa Família do Governo Federal, mas a educação, o esporte e o lazer, ou a ―falta‖ desses elemento na vida das comunidades carentes. Nesse mesmo ano, a consultoria dada pelo ETHOS quatro anos atrás se transforma em um projeto estratégico do Banco. Funcionários com históricos de ações sociais e ambientais são reunidos para formação de um Ambiente de Responsabilidade Socioambiental vinculado diretamente ao Gabinete da Presidência do Banco. Silveira e Laureana, que trabalhavam em outros setores do Banco são convocados pela Direção para participar desse novo ―departamento‖ do Banco. Eu não fiz isso sozinho [...] Tinham pessoas que tinham sensibilidade; elas foram escolhidas para estar nessa área onde elas já conheciam e tudo mais e eu tenho um tráfego bom nessa área [socioambiental]. [...] Tinham pessoas no Banco, como tem até hoje, muita sensibilidade pra certos assuntos né. [...] O Danilo, o Danilo que a gente chama de ―Danilo Verde‖ né (Roberto). Então, aí teve essas iniciativas e por isso que eu acabei vindo aqui trabalhar nessa área social. Eu era da área de informática e um dia eu sonhava de poder assim desenvolver como voluntário e tal, essa chance... Foi uma vontade minha que aí eu recebi o convite pra, vamos ajudar a formatar o projeto e tal e tava se formando comissão de ética, eu fui integrar a comissão de ética do Banco né, então quando a gente deseja é coisa divina né, a coisa vem antes. Quer dizer, oito anos antes de eu me aposentar apareceu essa oportunidade de tá fazendo uma coisa que eu gosto muito, que eu tenho assim aquele desejo no coração né, e eu continuei assim né, tendo a minha sobrevivência, o meu sustento de vida, fazendo aquilo que eu gosto né, me sinto uma pessoa agraciada, como se fosse um presente de Deus isso, ter acontecido antes da hora (Silveira).

A partir de 2009, o Banco do Nordeste, por meio do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental e do INEC, tem buscado estruturar práticas de responsabilidade socioambiental orientadas por recomendações internacionais que, segundo os funcionários atuantes nessa área, se afastem do ―viés meramente filantrópico‖. Entre as ações, podemos destacar: o incentivo à doação de uma pequena porcentagem do imposto de renda dos funcionários do Banco para projetos sociais indicados por conselhos municipais de proteção da infância e da adolescência e a disponibilização de um espaço utilizado por funcionários do Banco do Nordeste para lazer e práticas esportivas de jovens carentes. No terceiro capítulo, teremos um espaço dedicado à reflexão acerca do desenvolvimento da Responsabilidade Socioambiental dentro do escopo institucional do BNB.

68

Depois que o acompanhamento direto das políticas de microcrédito foram transferidas para a responsabilidade do INEC, Ceci ficou lotada em uma Área de Políticas de Desenvolvimento, no Ambiente de Políticas Territoriais, em um núcleo de estruturação de garantias e possibilidades para clientes ―de pequeno porte‖. Era uma ocupação técnico-burocrática, onde o papel do funcionário do Banco é fiscalizar se os procedimentos bancários estão corretos. O ―pacote‖ de políticas públicas do Governo Federal já vem fechado ―de cima pra baixo‖. O Banco apenas repassa os recursos a quem de direito. ―É mais assim gerenciar né, só montante, quando vai passar a informação, não elabora política, no máximo, acompanha pra saber assim ‗gerou quantos empregos?‘, nessa ótica aí‖. Ceci ficou nessa função até 2010. Enquanto ajudava o Banco a bater recordes de aplicação dos recursos disponíveis para cumprimento de sua missão institucional, Ceci conciliava em casa os papéis de mãe, esposa e filha. Tem três filhos com Aécio. Um de 18, uma de 13 e outro de 4 anos de idade. Três gerações diferentes, três trabalhos diferentes. ―Ele é o pai do mais novo e a menina é a mãe do mais novo, porque o pequeno quando nasceu eu pensava até que eu nem ia mais engravidar, porque demorou né, nove anos pra puder outro aparecer‖. Aécio é motorista de ônibus de uma grande empresa de viagens nacionais. Passa muito tempo fora, trabalhando, mas quando chega dá toda atenção que a família merece. Mas acaba sobrando muita coisa para ela e para as ―secretárias do lar‖ que a ajudam muito com os afazeres domésticos. Além dos filhos e do marido, cuida dos seus pais, que já estão bastante idosos. Como é a única dos irmãos que tem um emprego relativamente estável e trabalha ―apenas‖ seis horas por dia, acaba sendo ela a responsável pelos cuidados relativos ao acompanhamento da saúde dos seus pais. ―E também porque eu me interessei mais sabe, acho que se eu tivesse também na condição dos outros, eu ia dar um jeito de também ir fazer, acompanhar‖. Mesmo com essa ruma de coisa para fazer, Ceci não sossegou quieta. Em 2009 se candidatou e foi aprovada para um curso de Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas – MAPP, vinculado à Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFC. Renato, por exemplo, também foi aluno desse curso de Mestrado. É um curso com a presença massiva de funcionários do BNB. 2009 foi o mesmo ano da terceira e última gestação de Ceci. No início de 2011, já finalizando a sua pós-graduação, Ceci, sempre muito atuante na Associação de Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil – AFBNB, encabeça uma chapa para eleição de uma nova Diretoria e é eleita presidente da

69

Associação. Dentre tantas e tantas reivindicações em que participa como representante da Associação, que fazem parte do histórico de lutas das diretorias anteriores ou foram articuladas na presente gestão, um fio condutor baliza toda a militância de Ceci: o Banco do Nordeste deve cumprir sua missão de apoiador do desenvolvimento regional do Nordeste. O desenvolvimento não deve ser apenas aplicação de recursos públicos em créditos urbanos e rurais; deve partir de um planejamento democrático de políticas públicas que descentralize as decisões e os critérios para todos os envolvidos no processo. Os funcionários do BNB também devem ser atores desse processo desde a concepção, o acompanhamento e a avaliação dessas políticas. Além disso, as políticas devem respeitar as referências ambientais, culturais e socioeconômicas dos locais onde são aplicadas. Um mesmo modelo não funcionará em diferentes contextos. Em 2012, Edcarlos Júnior, insatisfeito com sua situação de trabalho em uma empresa que presta serviços auxiliares a órgãos públicos, resolve deixar seu curriculum profissional no Sistema Nacional de Empregos – SINE de João Pessoa. Em pouco tempo, recebeu uma convocação para uma seleção. ―Diziam que era pra o Banco do Nordeste. Quando eu compareci lá na entrevista, foi que me apresentaram o INEC. Aí apresentaram o serviço, como ia ser o trabalho‖. Júnior nasceu em Areia, Paraíba, em 1984, filho de uma profissional da área de saúde e de um comerciante de móveis e eletrodomésticos. Estudou, juntamente com seus irmãos, em escola pública, por opção da família. Era um colégio de educação bastante rigorosa, baseada em valores católicos de ensino. O bom de estudar no colégio Santa Rita é que não havia lá tanta discriminação entre pobres e ricos, coisa que ocorria em escolas particulares de Areia. A família sempre morou na zona urbana, próximo ao centro histórico da cidade, mas a diversão das crianças era brincar nos sítios e fazendas da região, tomando banho de rio e de cachoeira. Quando adolescente, se mudou com a família para a capital João Pessoa, onde moram até hoje no bairro Jaguaribe. Terminou o ensino médio também em escola pública e depois prestou vestibulares para Administração de Empresas e para o Curso de Formação de Oficiais Bombeiros – CFO. Como não obteve sucesso nos referidos certames e sentia uma forte vontade de independência financeira em relação aos pais, decidiu adentrar o mundo do trabalho. ―A minha linha de pensamento era me sustentar, trabalhar e futuramente estudar. É o que se cogita hoje, ainda hoje, até porque eu estou esperando ser chamado no curso superior em Contabilidade, e vamos ver no que vai dar né‖. Então, começou trabalhando em pequenos comércios, confecções, microempresas de empréstimos

70

consignados, as ―financeiras‖. Depois foi contratado como funcionário de uma empresa que é terceirizada por diversos órgãos públicos. Nessa empresa, atuou como porteiro e motorista de veículos oficiais. Com o tempo, ficou insatisfeito com os postos para o qual era transferido. ―Graças a Deus, nunca tive besteira com trabalho não‖. Apesar de não escolher muito o tipo de serviço e o nível salarial para trabalhar, foi no Instituto Nordeste Cidadania que ―se sentiu mais realizado‖. Nunca tinha ouvido falar em INEC, apenas no Banco do Nordeste, sabia que era um banco que financiava empresas. Logo na apresentação para os candidatos da seleção, foi feito um resumo sobre a atuação e a missão do INEC. O Instituto faz toda a operacionalização do microcrédito urbano, o Crediamigo, e do microcrédito rural, o Agroamigo. Júnior é um Assessor de Crédito do Agroamigo. ―A aplicação do Banco do Nordeste junto à comunidade é apenas do recurso, mas quem faz o trabalho de captação, de acompanhamento de tudo são todos os funcionários do Instituto‖. Todos os dias, de segunda a sexta, Júnior faz visitas às ―comunidades‖ que recebem os financiamentos. Seu serviço cotidiano se divide em palestras, acompanhamento da situação socioeconômica do pequeno agricultor, fechamento de propostas e contratos, recebimento de pagamentos e cobranças. Eu sou um assessor. Eu chego na área de um agricultor, na casa dele, e vejo a situação de carência, um nível alto de carência, e quando a gente aplica um crédito que você vê ele mudando de vida, ele passa a adquirir bens, ele passa a melhor educar seus filhos, que até isso influencia, e você vê o crescimento daquela pessoa, é gratificante. E nós, assessores do Agroamigo, nós sentimos isso no nosso dia a dia. [...] O assessor de credito hoje ele, em visão simplificada, ele não deixa de ser um gerente de negócio [do Banco do Nordeste] até porque existe uma carteira onde o cliente vai ser gerenciado, seja na forma de aplicação de recursos, seja no acompanhamento, seja na cobrança desse recurso (Edcarlos Júnior, em entrevista concedida em uma padaria localizada no bairro Jaguaribe, João Pessoa/PB, no dia 8 de março de 2013).

Para melhor compreensão de como atua um assessor de crédito do Agroamigo, pedi para que Júnior narrasse como foi o dia de trabalho realizado no município de Baía da Traição, na Paraíba, onde nos encontramos antes de agendarmos uma entrevista ―formal‖. E ele narrou. Naquele dia eu tive que visitar vários clientes, o assessor ele vai pra o campo com a agenda, na nossa agenda consta os clientes que serão visitados de cobrança, são pessoas que atrasaram seus financiamentos, clientes a serem avaliados por meio de laudos, de acompanhamentos, clientes pra serem

71

prospectados, digamos que são aqueles que pleiteiam um financiamento no Agroamigo. Aí eu vou lá e apresento o que é o Agroamigo, vou definir o que pode ser investido e o que não pode, eu dou uma palestra informativa, resumindo, certo. Em qualquer canto é local pra se dar uma palestra informativa. Aí, a gente também faz a visita dos clientes de reembolso final, que é levar o cliente e evitar que ele venha ao Banco pra pagar a última parcela e renove seu crédito. A gente leva o boleto, já coleta a proposta dele, evitando que ele se desloque do seu município para capital apenas para renovar seu crédito. [...] O trabalho de cobrança tem que ser individual, de porta em porta, infelizmente, é aquele velho simples mesmo, cobrar o cliente, informar que ele está em atraso, sempre de maneira educada, que ele perdeu o bônus (Edcarlos Júnior).

Júnior avalia que o programa de microcrédito do BNB é um ―sucesso‖ por conta do acompanhamento da operacionalização do financiamento em todos os níveis pelo INEC, desde o planejamento até a avaliação da atividade produtiva. Além disso, o desenvolvimento ―ocorre de fato‖ quando o pequeno agricultor ou o pequeno comerciante recebe o recurso do Banco, mesmo uma quantia menor, para uma finalidade empreendedora específica. É um financiamento de um projeto de vida e não um empréstimo de dinheiro. Todavia, nem tudo ocorre como se imagina. Apesar de Edcarlos Júnior narrar o trabalho de um assessor de crédito do INEC em tom de tranquilidade, recentemente redes sociais virtuais como o Facebook, em apelo de denúncia, mostraram imagens apelativas em um cruzamento do centro de Campina Grande, na Paraíba. Em frente a uma agência do BNB, foram expostas carcaças de gado morto pela estiagem dos últimos anos. Na calçada, manifestantes estendem faixa onde se lê ―Dilma a culpa é sua por não fiscalizar o Banco do Nordeste‖ e ―O Banco do Nordeste toma dos pobres e dá aos ricos‖. Em meio ao uso de símbolos do ―eterno mal da seca‖ e ao agenciamento de políticos locais, líderes sindicais e representantes de associações de trabalhadores rurais movidos por interesses de ascensão política, uma mensagem é notória: pequenos agricultores

estão

endividados.

Apesar

dos

esforços

da

fiscalização

(―acompanhamento‖) do INEC, muitos não conseguem pagar os boletos do financiamento ou não tiveram êxito em seus empreendimentos. Se um cliente do Agroamigo, o microcrédito rural, a título de exemplo, atrasar o pagamento do seu boleto, perde o direito à bonificação de 25%, os juros cobrados passam de 0,5% para 12% ao ano e seu CPF é cadastrado na Serasa, no Serviço de Proteção ao Crédito – SPC e no Cadastro Informativo de Créditos não quitados no setor público federal – CADIN. É uma mudança de taxa de juro muito alta como punição para eventuais atrasos de pagamento, considerando que a taxa de juro comum para empreendimentos

72

de médio e grande porte é de 10%, podendo cair para 8,5% caso o investimento seja na área do semiárido propriamente dito. Próximo ao final do mandato do presidente Lula, houve o que popularmente ficou conhecido como ―perdão das dívidas‖ de pequenos devedores (até o valor de R$ 10.000,00) para com a União, em que muitos clientes endividados do Programa Nacional de Agricultura Familiar – PRONAF foram perdoados. Segundo Júnior, a mudança de nome do antigo PRONAF B, que aplicava quantias menores de crédito para agricultores de baixa renda, para ―Agroamigo‖ foi uma estratégia do Banco do Nordeste para que o antigo cliente ―pronafiano‖ não fizesse a associação do Agroamigo com um possível novo ―perdão das dívidas‖. Júnior confessa que isso não funcionou muito. Alguns clientes estão na expectativa de que a presidente Dilma proceda como Lula e considere a anulação de pequenas dívidas para com a União. De acordo com Charles, não existe possibilidade do mesmo fato se repetir no governo atual, pois Lula e sua equipe de governo só tomaram tal decisão após se convencerem economicamente que as taxas de juro cobradas na época eram ―irreais‖, os devedores não iam conseguir pagar nunca. Mas as taxas de juro atuais são bem menores e factíveis com a expectativa de pagamento dos clientes que receberam créditos via recursos da União nos últimos anos. O governo petista da presidente Dilma, ex-ministra da Casa Civil do governo Lula, tem intensificado as políticas econômicas e sociais consolidadas pelo seu antecessor. Entretanto, enquanto Lula procurou equilibrar dialogicamente os vetores de interesses dos diversos segmentos e aspectos das questões de sua pauta governamental, Dilma e sua equipe ministerial têm dado especial (quem sabe exclusiva) atenção e destinado recursos mais volumosos ao crescimento econômico disciplinado pelo combate à miséria (pobreza extrema). Não é à toa a recente criação no início de maio de 2013 da Secretaria Nacional da Micro e Pequena Empresa, que será chefiada pelo vice-governador de São Paulo, Afif Domingos, Estado que tem como governador um representante do maior partido de oposição ao atual Governo Federal, o PSDB. O noticiário31 de grandes jornais do país mostra pronunciamentos de Dilma afirmando que o apoio à criação e fortalecimento da figura do micro e pequeno empresário no seio de nossa população é ―fundamental para a geração de empregos e o desenvolvimento da economia brasileira‖. Desta feita, o empreendedorismo é elevado à condição de solução-

Pesquisa realizada no dia 6 de maio de 2012 nos sites dos jornais Estadão, O Globo e Folha de São Paulo. 31

73

mestra dos problemas sociais do Brasil. O Banco do Nordeste tem e terá papel institucional fundamental nas políticas de financiamento de projetos de transformação empreendedora do povo nordestino.

1.2.

BNB: uma breve contextualização histórica Antes de iniciar propriamente a breve contextualização acerca do devir

institucional do Banco do Nordeste do Brasil ora proposta, cabe, nesse momento, a tessitura do panorama histórico geral que permitiu a existência técnica e política de algo como o BNB no Brasil e no mundo e de sua missão (e opção) desenvolvimentista via política de crédito. 1.2.1. Preâmbulo: crédito, banco e desenvolvimento. O crédito, a cessão de um determinado recurso, seja serviço, objeto, terra, ou importância em dinheiro, a outrem na expectativa de devolução ou pagamento futuro, com ou sem cobrança de juros, é um dos contratos sociais mais antigos da humanidade. O crédito, palavra genérica, compartilha a mesma raiz etimológica do verbo ―acreditar‖ e do substantivo ―crença‖. Refere-se à expectativa da restituição de um empréstimo efetuado. Trata-se de uma aliança típica de mercado, porém diferente das ações tradicionais de compra e venda. É uma aliança alongada e, em alguns casos, potencializada por um intervalo razoável de tempo. Diferencia-se conceitualmente da dádiva por conta do seu caráter mercadológico de troca efetivamente explícita. O agente e o receptor do crédito explicitamente compactuam os termos específicos do contrato. Um determinado recurso ―x‖ é emprestado por um determinado intervalo de tempo com a promessa que ―x‖ retorne à sua origem ―intacto‖, com as mesmas características ou potencialidades presentes no momento em que foi emprestado, ou que ―x‖ volte ao seu ―verdadeiro dono‖ com superior quantidade ou qualidade (nos casos da previsão de juros contratuais). Quando não há previsão contratual (simbólica ou documental) de juros, o crédito pode se confundir com a solidariedade entre parceiros, entretanto a solidariedade exige, involuntariamente e obrigatoriamente, uma retribuição dadivosa, o que não ocorre com o crédito sem juros. O crédito com juros caracteriza, da mesma forma que a formação do lucro através de cálculos que

74

disciplinam estrategicamente meios técnicos de produção, trocas comerciais e exploração do trabalho alheio, a transformação de recursos (serviços, objetos, terras e/ou dinheiro) em capital. De todas as possibilidades socioeconômicas de acumulação do capital, o crédito, com previsão de juros, se tornou a modalidade financeira mestra do desenvolvimento do maior sistema de mercados, instituições, valores e ideias que o mundo já conheceu: o capitalismo. O desenvolvimento do capitalismo reuniu e potencializou economicamente, por meio da proibição policial, e do cooptação empregatício institucional as tradicionais práticas de usurários, classificados pejorativamente como ―agiotas‖, dispersos pelo mundo afora, sob o guarda-chuva legal do banco. O banco é, desde muito tempo, o lugar por excelência do crédito e dos juros. Se o nascimento dos bancos é marcado por sua função de guardar fisicamente moedas que se acumulavam no mundo antigo, garantindo segurança contra roubos e furtos, seu desenvolvimento histórico viu surgir banqueiros europeus medievais emitindo notas (que se tornariam nossas atuais cédulas de dinheiro) com valores monetários, geralmente sem lastro real no caixa bancário, para empréstimo junto àqueles que necessitavam ou acreditavam necessitar de moeda circulante. O banco não só guardava dinheiro, mas produzia mais dinheiro com o dinheiro guardado, mesmo que esse dinheiro, de fato, não existisse. O recurso emprestado pelo banco deveria ser devolvido, em quantia maior, durante um prazo determinado. Eram as primeiras operações de crédito, a juros, organizadas por bancos. Como o crédito, no fundo, baseia-se em uma crença no pagamento de uma dívida contraída e uma crença pode ser desacreditada por má fé do devedor ou por mera falta de condições para cumprir a devolução dos recursos emprestados, essa modalidade de contrato sempre necessitou de garantias. A primeira e principal garantia, usada ainda hoje, é a velha ameaça e uso de vingança violenta contra a possível quebra contratual por parte do devedor. Outras garantias foram surgindo ao longo do tempo para assegurar a vitalidade do crédito: a hipoteca e a fiscalização (os famosos cadastros de inadimplentes que tão bem conhecemos hoje). A fiscalização está atrelada à perda de credibilidade do devedor perante o mercado. O devedor, sufocado pela necessidade de liberdade de futuras aquisições no mercado (alimentação, vestuário, transporte, etc.), é impelido a pagar suas dívidas. A hipoteca, a sujeição de bens imóveis e de grande valor como última garantia para pagamento de dívidas contraídas, é assegurada pelo uso de violência legítima do Estado, a força policial. O banco cobrador de juro, proibido pela

75

Igreja medieval, renasce modernamente respaldado por legislações nacionais e internacionais. Os bancos governamentais, embriões dos bancos centrais e dos bancos de desenvolvimento, surgem para financiar o dispêndio ocasionado pelas guerras globais e civis32. Aproveitando a ideia dos bancos comuns (privados) de emitir notas de dinheiro sem lastro correspondente real (em ouro) no caixa bancário, os bancos governamentais, como o Banco da Inglaterra, no século XVII, passam a controlar a emissão de notas de todos os demais bancos por meio de leis e a formar um cofre de ―dinheiro público‖ que deveria ser utilizado para os interesses governamentais. As notas foram padronizadas e a falsificação delas era punida, em muitos casos, com pena de morte. Todavia, os bancos privados e o mercado, cada vez mais autorregulável, foram os maiores beneficiários dessa organização e disciplinamento geral da circulação do dinheiro, do capital e do crédito por parte dos governos nacionais (Polanyi, 1980). Com o tempo, a legalidade de um sistema global de finanças, pontilhado por ilhas de poder nacional, ofereceu mais liberdade política e fluidez econômica ao que autores como Karl Polanyi denominam haute finance, pequenos grupos de banqueiros que passaram a manter, por meio de serviços de crédito, pessoas e empresas endividadas em vários lugares do mundo. Ainda não foi levada a efeito qualquer pesquisa mais ampla sobre a natureza do Banco internacional no século XIX; essa instituição misteriosa emergiu pouco no chiaroscuro da mitologia político-econômica. Alguns alegaram que ela era apenas a ferramenta dos governos; outros, que os governos eram os instrumentos da sua inesgotável sede de lucros; outros, ainda, que se tratava da semente da discórdia internacional; outros, que era o veículo de um cosmopolitismo efeminado que minava a força das nações viris. Nenhum desses argumentos é totalmente errado. A haute finance, uma instituição sui generis, peculiar ao último terço do século XIX e ao primeiro terço do século XX, funcionou nesse período como o elo principal entre a organização política e a econômica do mundo. Ela forneceu os instrumentos para um sistema internacional de paz, que foi elaborado com a ajuda das Potências, mas que essas mesmas potências não poderiam ter estabelecido ou mantido. Enquanto o Concerto da Europa atuava apenas durante intervalos, a haute finance funcionava como agência permanente, do tipo elástico. Independente de governos particulares mesmo os mais poderosos, estava em contato com todos; independente dos bancos centrais, mesmo do Banco da Inglaterra, estava estreitamente ligada a eles. Havia um contato íntimo entre a finança e a diplomacia; nenhuma delas levava em consideração planos a longo prazo, tanto de paz como de guerra, sem ter a certeza da boa vontade do outro. Todavia, o Escreve Karl Polanyi: ―a haute finance não foi instituída como instrumento de paz; essa função lhe foi atribuída por acidente, como diriam os historiadores. [...] O objetivo da haute finance era o lucro; para atingi-lo era necessário um bom relacionamento com os governos cujo objetivo era o poder e a conquista‖ (1980: 26). 32

76

segredo do sucesso na manutenção de uma paz geral repousava, sem dúvida, na posição, organização e técnicas de finança internacional (Polanyi, 1980: 24; 25).

Mas a ideia da haute finance não era simplesmente manter pessoas endividadas, era preciso que mesmo endividadas, elas pagassem os empréstimos adquiridos. Além das tradicionais fiscalização e punição sobre os possíveis inadimplentes, era preciso, cada vez mais, planejar modelos mais sutis e eficazes de dar mais vitalidade ao dinheiro emprestado, com a garantia do seu retorno líquido e certo. É nesse contexto de interesses em aumentar a lucratividade dos banqueiros que se estruturam os conceitos relacionados ao então chamado ―desenvolvimento econômico‖ na abertura do século XX. O crédito não deveria estar associado ao simples repasse de recursos de uma instituição bancária a uma pessoa ou grupo comprometido na devolução posterior desses recursos somados a um determinado cálculo de juros. O crédito deveria obrigatoriamente estar atrelado a um financiamento de um empreendimento com potencial de prosperidade (Schumpeter, 1982). O crédito, na verdade, é o que o bom empreendedor precisa para desenvolver sua produção industrial e obter seu próprio lucro. Contudo, esse lucro só estaria garantido na medida em que o banco e o empresário pactuassem um projeto de desenvolvimento econômico, produzido por meio das inovações tecnológicas, da qualidade do produto oferecido no mercado e da intensificação do trabalho operário. O operário, nesse cenário inicial de vinculação do crédito ao desenvolvimento, não se configura como um potencial credor; trata-se de uma mera peça de uma máquina maior e mais complexa que desenvolverá o sistema de mercados, suscetível ao desemprego e à exploração do trabalho. A ideia (o ideal) de desenvolvimento econômico atrai tanto a atenção dos banqueiros privados como dos governos nacionais. Há, então, uma ferrenha disputa política em torno das melhores estratégias bancárias para maior aproveitamento lucrativo das concessões de créditos, onde o mercado internacional, a haute finance, com suas ―recomendações científicas‖, e os Estados, com suas políticas econômicas e diretrizes governamentais, barganham por mais poder econômico. O debate gira em volta cálculos e mais cálculos sobre a plausibilidade de tais e tais taxas de juros. A existência de bancos de desenvolvimento atuando em áreas específicas das sociedades nacionais (região, meio ambiente, indústria, etc.) como braços governamentais que instituem a legitimidade de concessão de créditos com recursos públicos, com o tempo, passa a incomodar seriamente os anseios lucrativos neoliberais das organizações financeiras internacionais.

77

Para direcionar o crédito, o governo pode lançar mão de diferentes mecanismos. Caso queira induzir o mercado a ampliar seu atendimento a determinados setores, pode oferecer aos bancos privados estímulos, como fundos com condições especiais, subsídio aos juros ou ainda garantias. Essas medidas têm o intuito de alterar o risco, o custo ou o prazo dessas operações. Outra classe importante de instrumentos de direcionamento de recursos financeiros são os bancos públicos. Neste caso, o governo, diferentemente dos mecanismos anteriores, torna-se diretamente responsável pela concessão do crédito. Em vez de apenas induzir, o Estado atua diretamente sobre a concorrência bancária. Ao longo dos últimos anos, a atuação dos bancos públicos passou a ser cada vez mais questionada. O Banco Mundial, por exemplo, tem uma posição contrária a este tipo de intervenção. Em seu livro de 2001, Finance for Growth, afirma que ―a propriedade dos bancos pelo Estado tende a impedir o desenvolvimento do setor financeiro, contribuindo, consequentemente, para um menor crescimento‖. Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) adota uma postura mais neutra sobre o tema. Em seu Relatório sobre o Progresso Econômico e Social da América Latina de 2005, intitulado Unlocking Credit, o BID sustenta que embora exista ―alguma evidência em apoio à ideia de que os bancos públicos não são alocadores ótimos de crédito, (...) os resultados, demonstrando que a propriedade estatal inibe o crescimento e desenvolvimento financeiro, são menos robustos do que se pensava‖ (Torres Filho, 2009: 13; 14).

Os pobres, sejam eles operários, trabalhadores informais, subempregados ou desempregados, não constituíram classicamente o público de direcionamento do crédito bancário. Trata-se de uma porção bastante significativa das populações nacionais que não apresenta aos olhos do banqueiro tradicional nenhuma das duas condições primeiras para a liberação do crédito: não conseguem atestar garantia de devolução futura dos recursos emprestados, nem possuem espírito empreendedor. Era necessário, pois, conceber uma metodologia específica e eficaz que produzisse no seio da população pobre os dois elementos necessários para efetivação do crédito e de sua rede de endividamentos seguros. O pobre deveria se tornar, além de pobre, um simulacro, uma cópia diminuta, fraca e potencial, do empresário comum, cheio de cálculos, organizações e interesses em lucrar. Já que não poderia nunca ser um empreendedor, seria um ―micro‖ empreendedor. O prefixo micro serviria e serve para enfatizar todo um cenário de especificidades de uma nova categoria presente nas relações de trabalho do mundo. A consolidada pequena burguesia, catalogada por sociólogos e economistas há tempos, ansiosa pelo status de real burguesia, de haute finance, seria obrigada a assistir (e conviver com) o nascimento de indivíduos, famílias e grupos de microburgueses, microempresários, microempreendedores cadastrados em programas direcionados pelos governos nacionais, financiados legalmente por bancos

78

de desenvolvimento, de fomento a uma modalidade de crédito específico, com taxas de juros mais baixas e acompanhamento educacional do processo de empresariamento popular: o microcrédito. Sem patrões e sem informalidade, o microempreendedor deve prestar contas a ele mesmo, ao seu microsucesso empresarial, e, periodicamente, ao banco que lhe ―confiou‖ uma pequena quantia de recursos para uma finalidade especial, o investimento que deve transformar dinheiro em capital, a velha máxima capitalista. Nos países considerados ―subdesenvolvidos‖, o microcrédito, mais do que uma modalidade de financiamento bancário, torna-se paulatinamente uma estratégia governamental com grandes chances de sucesso político e eleitoral e uma política de Estado, um programa de diretrizes para o combate à miséria ou ao desemprego, por exemplo. O microcrédito traz no seu bojo uma forte tentativa de disciplinamento das experiências temporais e espaciais dos pobres agora transformados em empresários operariados e operários empresariados, aliando harmonicamente interesses estatais e financeiros em torno de ideais de formação de uma classe de trabalhadores honestos e pacíficos. Em longo prazo, o processo de microempresariamento também configura, junto às camadas populares selecionadas por essas políticas, uma situação de individualização autocrítica que passa a responsabilizar o sujeito microempreendedor pelos sucessos e insucessos de sua vida de trabalho. O Estado, apoiado ou não pelo mercado nacional e internacional, esforça-se pela concessão de uma cidadania (microempresarial) ―sonhada‖ pelo sujeito. Cabe a ele, portanto, como empreendedor em potencial, ser, de uma vez por todas, ―um cidadão de vergonha‖. 1.2.2. BNB: um conterrâneo inserido na economia global O Banco do Nordeste do Brasil é um banco voltado para o desenvolvimento regional da área de influência do semiárido brasileiro, tanto em meio rural quanto em meio urbano. É uma instituição financeira multifacetada, criada pela lei federal nº. 1649, de 19 de julho de 1952, e organizada sob a forma de sociedade de economia mista, de capital aberto, tendo mais de 90% por cento de seu capital sob o controle do Governo Federal 33. Como já sabemos, tem a sua sede principal na cidade de Fortaleza, Ceará, com atuação capilarizada em cerca de dois mil municípios, abrangendo os nove Estados da Região Nordeste (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia), o norte de Minas Gerais (incluindo os Vales do Mucuri e do Jequitinhonha) e o norte do Espírito Santo. 33

Informações obtidas por meio do site oficial do BNB www.bnb.gov.br em 11 de fevereiro de 2012.

79

Área de Atuação do BNB, Semiárido e a Massa D’água 34 Fonte: Elaboração de BNB/ETENE/Central de Informações Econômicas, Sociais e Tecnológicas a partir dos Dados do IBGE.

Imagem extraída da publicação O Nordeste em mapas 2012, página 19, por meio do link ―Central de Informações Econômicas, Sociais e Tecnológica‖ do ETENE: http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/etene/etene/gerados/mapa.asp. em 2 de março de 2012. 34

80

Foto 2. Aspecto da fachada leste do Centro Político-Administrativo do BNB, no bairro do Passaré, em Fortaleza/CE (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

Foto 3. Aspecto interno do Centro Político-Administrativo do BNB (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

81

Foto 4. Aspecto da recepção da Superintendência Estadual do BNB na Paraíba, no Bairro dos Estados, João Pessoa/PB (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

Foto 5. Aspecto da recepção do Gabinete do Superintendente Estadual do BNB na Paraíba (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

82

Foto 6. Aspecto da fachada da mais nova agência do BNB instalada em João Pessoa/PB, no bairro Jardim Cidade Universitária (2013). Autor: Emanuel Oliveira Braga

Para entender minimamente o que o BNB representa, do ponto de vista oficial e institucional, para a sociedade e economia brasileira, devemos verificar o que o próprio banco informa em seu site: Maior instituição da América Latina voltada para o desenvolvimento regional35, o BNB opera como órgão executor de políticas públicas, cabendolhe a operacionalização de programas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e a administração do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), principal fonte de recursos operacionalizada pela Empresa. Além dos recursos federais, o Banco tem acesso a outras fontes de financiamento nos mercados interno e externo, por meio de parcerias e alianças com instituições nacionais e internacionais, incluindo instituições multilaterais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O BNB é responsável pelo maior programa de microcrédito da América do Sul e o segundo da América Latina, o CrediAmigo, por meio do qual o Banco já emprestou mais de R$ 3,5 bilhões a microempreendedores. O BNB também opera o Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (Prodetur/NE), criado para estruturar o turismo da Região com recursos da ordem de US$ 800 milhões36.

Mas nem sempre foi assim. Nem sempre o Banco do Nordeste deteve as perspectivas da missão institucional que detém hoje. O BNB é um banco relativamente antigo na história das finanças nacionais e passou por uma série de importantes

35 36

Grifos nossos. Extraído do site www.bnb.gov.br em 2 de março de 2012.

83

mudanças ao longo das décadas de sua existência, adaptando-se às diversas conjunturas políticas brasileiras presentes na segunda metade do século passado e, principalmente, buscou sempre aprimorar sua cultura institucional, angariando, em alguns casos, uma postura de vanguarda, pressagiando ―novos tempos‖. Nesses novos tempos, pressupõe-se que política governamental deve se desenvolver com os diversos agentes e movimentos sociais que, por sua vez, também desejam tomar parte dessa ordem de distribuição de poderes legítimos, almejando a tão pregada política verdadeiramente pública. Escolas, universidades, associações, sindicatos, igrejas, empresas, todos têm algo a pensar, dizer e agir no turbilhão formado pela sociedade civil cheia de interesses, direitos e deveres. Um banco de desenvolvimento instalado na região Nordeste do Brasil, considerada, por ―especialistas‖ e pelo ―senso comum‖, desde muito, como aquela que historicamente concentra os maiores índices estatísticos de concentração de pobreza e desigualdade social, estigmatizada por nós mesmos e pelo restante do país como ―seca‖, ―subdesenvolvida‖ e ―coronelista‖, recebe de vários lados muitas pressões para que seja eficiente em seus propósitos institucionais. Para Andrade (1993), grande parte do atraso do Nordeste em relação às outras regiões brasileiras pode ser explicada por uma espécie de pacto ―regional‖ que domina a economia e a política da região. Esse grande acordo político coloca, de um lado, os grandes proprietários rurais que dominam o acesso às melhores terras; e de outro, o capital mercantil, isto é, os grandes comerciantes que controlam os circuitos comerciais da região e procuram valorizar suas atividades, valendo-se dos mais diversos recursos para garantir a manutenção do seu monopólio na região (Cardoso, 2006: 95).

É sabido que, desde o século XIX, há registros na região de ações e mobilizações sociais que procuraram amenizar as consequências negativas das estiagens periódicas, em socorro das famílias pobres do sertão nordestino (semiárido). Podemos lembrar, por exemplo, dos mutirões de sertanejos organizados pelo Padre Ibiapina (1806 - 1883) para construção de casas de caridade, hospitais, açudes e cemitérios. Com especial carisma e argumentos morais e espirituais que conclamavam famílias pobres a se unirem contra a situação de miséria na qual se encontravam, Ibiapina contribuiu para a edificação de várias obras materiais em cinco províncias alcançadas por suas missões: Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. Segundo pesquisa realizada por Eduardo D. Bezerra de Menezes:

84

No início dos anos 60, quando [Ibiapina] dá corpo aos rumos de sua ação, funda Casas de Caridade em Santa Luzia do Sabugi (PB), em Angicos e Açu (RN), e em Barbalha (CE). Tais construções eram feitas em curto espaço de tempo, em virtude da multidão de pessoas e dos recursos que sua palavra mobilizava: a Casa de Caridade de Barbalha levou um mês; e na povoação de Caldas (CE), iniciou e concluiu um açude numa semana; em 18 dias, com um mutirão de 12.000 pessoas ergueu uma capela em Goianinha. Em fins de Agosto de 1862, chegou à Fortaleza, apresentou-se ao Bispo Dom Luís Antônio dos Santos e proferiu sua primeira pregação no Ceará. Continuou sua missão pelos povoados de Imperatriz (hoje Itapipoca) e, passando antes pelo povoado de São José, segue rumo a Sobral, sua terra natal, onde, a 27 de Setembro iniciou uma Casa de Caridade, inaugurada no final de Novembro e mais tarde (1864) ampliada com sala de aulas e um pavimento para hospital. Em Fevereiro de 1863, instalou, em Sant‘Ana do Acaraú, uma Casa de Caridade, vasta edificação de 15 janelas de frente (Menezes, 1996: 6).

Tais mobilizações sociais e religiosas não eram feitas à margem do governo imperial do Brasil. Não havia no período um grande apelo para a separação entre religião (católica) e política de governo. Entretanto, paulatinamente, essas tarefas de ―salvação‖ das camadas mais pobres de nossa população foram sendo incorporadas ao discurso e à prática da máquina pública. Afinal, a miséria e a fome, presentes em grandes extratos populacionais do país, passaram a se constituir historicamente como uma demanda política legítima de responsabilidade do Estado (Polanyi, 1980), sendo bem aproveitadas nos cabrestos eleitoreiros durante nosso período republicano que se seguiria após o final do Império. A preocupação governamental com a área do semiárido nacional, que ainda não estava consolidada geograficamente como ―Nordeste‖, nasceu com o diagnóstico científico de que todas as mazelas da região advinham dos efeitos climatológicos produzidos pela intermitente seca que historicamente a assolava. A primeira iniciativa governamental com o propósito de combater os efeitos negativos da seca foi a criação de uma Comissão Imperial em 1877, ano de um terrível período continuado de estiagem, cujo principal objetivo era definir estratégias técnicas para solução do problema. A Comissão então formada sugeriu a abertura e melhoria das estradas existentes, a construção de açudes e (vejam só! Um tema que ainda continua no rol de nossas demandas políticas do século XXI), a ―transposição do rio São Francisco‖. Para combate e convivência com um transtorno da natureza, nada melhor do que grandes obras de engenharia. Essas ações, todavia, foram bastante limitadas e lentas, enquanto se agravava sérios problemas como a fome na região (Diniz, 1999). Depois da organização da Comissão Imperial em 1877, apenas em meados do século XX foram criadas instituições e planos governamentais específicos para dar cabo

85

às mazelas sociais reverberadas pela cada vez mais problemática seca nordestina. Para estruturar uma nova situação social, política e econômica no Nordeste, algumas gestões do Governo Federal republicano buscaram diagnósticos, metodologias e mecanismos de intervenção local. Instituições foram criadas, grandes obras de infraestrutura foram instaladas e aportes de recursos foram e são aplicados para a melhoria das condições de desenvolvimento da região. [...] nota-se que a intervenção estatal no Nordeste ao longo da história esteve focada na resolução desses problemas específicos, que os historiadores definem como concepção hidráulica e econômica de intervenção. A criação de algumas instituições como o IFOCS/DNOCS e CHESF é considerada um marco da primeira concepção [1877 - 1950], assim como o Banco do Nordeste e a SUDENE o são da segunda [a partir da década de 1950] (Cardoso, 2006: 97).

A dita ―fase hidráulica‖, segundo o sociólogo Gil Célio Cardoso, é marcada pela caracterização (por meio de ―especialistas no assunto‖) de um grande problema que atravanca a produção e distribuição de riquezas do Nordeste: o fenômeno da seca. Um fenômeno da natureza. As instituições que foram criadas nesse período estavam imbuídas de aproveitar o potencial dos recursos hídricos já existentes na região, os grandes rios presentes e os lençóis freáticos. A Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), fundada em 190937, representa o marco oficial do Governo no sentido de planejar estratégias para solução do problema apresentado. Outro marco é a inserção na Constituição de 1934 da obrigação de destinar 4% da receita tributária nacional para o combate dos efeitos da seca. As ciências ligadas às engenharias é que ―falavam mais alto‖ nessa fase de intervenções públicas. As ações estavam mais direcionadas à construção de barragens e perfuração de poços para abastecimento d‘água de populações mais afetadas pelas mazelas desencadeadas pelas secas periódicas. Não é de se estranhar que tal empreendimento sofresse ao longo dos anos uma série de críticas negativas por parte de alguns segmentos sociais e setores do Governo. Grande parte do território nordestino é privatizado por latifúndios, cujos proprietários dominam importantes jogos de poder entre seus interesses e os interesses das populações presentes no perímetro ou entorno de suas terras. Ora, os açudes e poços artesianos, financiados com recursos públicos, eram, na imensa maioria dos casos, instalados em propriedades particulares de fazendeiros que pertenciam às oligarquias agrárias que ocupavam Transformada em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS, em 1919, e, após um processo de reorganização, em Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, em 1945. 37

86

cargos políticos no recente sistema republicano brasileiro. Conforme afirma Sílvio Maranhão: ―os recursos federais transferidos para o Nordeste serviram, efetivamente, na medida em que eram apropriados e controlados pelos grupos dominantes locais, para manter economicamente suas atividades e para consolidar o seu poder político na região‖ (1982: 89; 90). De principal fator responsável pelo subdesenvolvimento do Nordeste, a afamada seca se transformou, com a ajuda do Governo Federal, na ―galinha dos ovos de ouro‖ das elites locais que concentravam cada vez mais o poder político-econômico regional, aproveitando-se do capital legitimado institucionalmente por diagnósticos técnicocientíficos e por estratégias de intervenção hidráulica de combate a um ―mal natural‖. Nas palavras de Cardoso: ―o senhor rural passou a chamar-se ‗coronel‘ e continuava a deter o poder econômico e político, tendo porém, estabelecido novas formas de dependência, de escravidão e de desigualdades‖ (2006: 103). Para estabelecimento de diagnósticos e estratégias para superação de crises sociais, há algum tempo outros modelos de conhecimento haviam sedimentado no mundo seu lugar especial no pronunciamento legítimo de possíveis soluções técnicas, matemáticas, econômicas e sociológicas para os problemas da sociedade. Não demoraria muito para que o Nordeste brasileiro fosse alvo de conceitos e recomendações reverberadas pelas ciências humanas, especialmente as ciências econômicas. Na primeira metade do século XX, quando, através da própria experiência histórica, tornou-se manifesta a fantasia da tese do economista e filósofo escocês Adam Smith sobre a ―mão invisível‖ do mercado (agente responsável pelo constante equilíbrio das crises sociais), as preocupações com o crescimento exorbitante da miséria, principalmente na periferia das grandes cidades dos países ditos subdesenvolvidos, ganharam foco no debate econômico e social. O papel do Estado reviveu com toda a força, sendo o complexo da administração pública o grande responsável pelo estado de bem estar social das populações, principalmente servindo de suporte de sobrevivência das classes mais pobres. Além disso, desde o início do século XX, observa-se a instrumentalização da máquina político-administrativa do Estado para planejamento do desenvolvimento econômico de diversas nações, em constante preocupação em estabelecer uma elevada produção interna de riquezas e uma balança internacional comercial favorável.

87

É nessa conjuntura global que são criados organismos de desenvolvimento regional no Brasil, a exemplo do Banco do Nordeste e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, que tinham e ainda mantêm o objetivo de promover melhorias nas condições de produção econômica na área do ―polígono das secas‖, concentrando atenção estratégica na geração de emprego e renda para vários segmentos sociais (Robock, 1964 & Cardoso, 2006). Para essa transição entre uma fase de intervenções hidráulicas e uma fase de intervenções socioeconômicas, foi importante o interesse demonstrado pelo então Ministro do Governo de Getúlio Vargas, Horácio Láfer, que ao visitar em 1951 áreas flageladas pela seca, percebeu que era fundamental a adoção de novas medidas além do então aplicado ―Fundo das Secas‖. Para o representante do Governo Federal da época, era preciso fortalecer iniciativas para a promoção da economia regional, por meio de incentivos financeiros às atividades econômicas de empreendimentos locais (Hirschman, 1965). Além disso, Maranhão (1982) defende que existia no final da década de 1950 e por toda a década de 1960 um contexto sociopolítico favorável para uma nova postura dos governos, em nível nacional e local, tendo em vista que em Pernambuco e na Bahia a ―oposição‖ saíra vitoriosa e os movimentos sociais denominados Ligas Camponesas estavam surgindo muito fortes no interior, inclusive, com apoio da Igreja Católica. O então presidente Juscelino Kubitschek solicita ao economista Celso Furtado, na época diretor do Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES e com experiência acumulada na Comissão Econômica para América Latina – CEPAL, a organização de um grupo de trabalho para produção de diretrizes voltadas para alternativas de desenvolvimento da região Nordeste. O Relatório do GT apontava para problemas econômico-estruturais, que deveriam ser situados no contexto do desenvolvimento econômico do processo histórico brasileiro e não só nordestino. As principais proposições do GT giravam em torno da necessidade do Estado oferecer estímulos para a industrialização do Nordeste. Apesar de hoje em dia a ideia de que o subdesenvolvimento está atrelado a processos históricos locais, nacionais e internacionais ser bastante simples e óbvia, para aquele período de trabalhos desenvolvidos por Furtado, a aplicação prática de um diagnóstico histórico-econômico para o subdesenvolvimento nordestino e brasileiro representou um importante avanço de estratégia de governo. Sobre atuação de Furtado naquele período político brasileiro, Cardoso escreve: ―o relatório proposto por Celso Furtado conseguiu amplo apoio político de intelectuais, de grupos específicos da igreja católica, dos governos da

88

reforma, de vários políticos locais e regionais e de amplos setores da população‖ (2006: 107). Toda essa mobilização política foi fundamental para a instalação da SUDENE, sucessora do interino Conselho de Desenvolvimento do Nordeste – CODENO. A atuação desenvolvimentista do Banco do Nordeste só foi reforçada a partir da criação da SUDENE no final da década de 1950. A SUDENE assumiu, nesse período, a missão de planejar e coordenar a operacionalização das atividades realizadas pelos diversos órgãos governamentais presentes no Nordeste, inclusive o BNB, em prol do desenvolvimento da região Nordeste. Apesar das históricas conexões entre a SUDENE e o BNB, desde suas fundações, os bancários do Banco do Nordeste entrevistados na presente pesquisa afirmam desconhecer, ou mesmo procuram omitir, a existência dessas relações interinstitucionais. Apesar de operacionalizarem missões distintas, o BNB e a SUDENE lidavam com demandas políticas e técnicas muito semelhantes. Os próprios fundadores das duas instituições, BNB e SUDENE, dois economistas, o baiano Rômulo de Almeida e o paraibano Celso Furtado respectivamente, rivalizavam cientificamente e politicamente pelos méritos do diagnóstico mais acertado acerca dos problemas existentes e do melhor projeto econômico voltado para melhoria das condições que levariam, enfim, ao desenvolvimento regional do Nordeste (Valias Neto & Cosentino, 2012). Apesar das desavenças, provavelmente mais pessoais do que teóricas, os dois estavam de acordo que o modelo de desenvolvimento ideal a ser aplicado na região deveria se basear em incentivos à instalação de indústrias, financiando a inovação voltada para o crescimento industrial em conformidade com as teses econômicas de Joseph Alois Schumpeter 38. Na época de sua fundação, a SUDENE detinha uma grande força política nacional, possuindo status de Ministério do Governo Federal. Essa condição privilegiada foi sendo modificada ao longo do tempo, atingindo nos governos da Ditadura Militar uma posição marginal no cenário político brasileiro, situação que se manteve praticamente a mesma até maio de 2001, quando foi extinta na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, 2006). Segundo alguns autores que se debruçaram sobre a atuação institucional da SUDENE, o foco no incentivo à industrialização como alavanca à economia regional do Nordeste continuava a não oferecer alternativas relevantes para os problemas sociais de fome, pobreza e desemprego presentes na região. O tiro continuava a sair pela

No próximo tópico deste capítulo veremos quais são essas teses econômicas desenvolvimentistas e como elas foram e são incorporadas pela cultura bancária do BNB. 38

89

culatra. O resultado dessa política foi o beneficiamento à instalação de grandes empreendimentos, geralmente filiais de empresas sudestinas, com baixa capacidade de geração de mão-de-obra local (Brandão, 1985). Eram empreendimentos com matrizes no Sudeste, especialmente em São Paulo, que eram implantados nas grandes metrópoles do litoral nordestino. Isso acarretava, na melhor das hipóteses, no olhar do Governo Federal, uma maior distribuição de fluxos migratórios dos ―retirantes‖ do eixo Rio-São Paulo para outras capitais como Fortaleza, Recife e Salvador. Cardoso observa: ―mesmo não sendo a sua intenção, essa agência [a SUDENE] atuou como uma ‗ponte‘ da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste‖ (2006: 125). A análise, o diagnóstico e a proposição dos economistas, que procuravam funcionar como ―intervenção científica eficaz‖, precisavam ser aprimorados. Segundo Cardoso, o BNB representa uma mudança na ―mentalidade governamental‖ em relação à história de intervenções para desenvolvimento do Nordeste. Fundado em 1952, após dois anos de existência formal, o Banco inicia, de fato, suas operações ao inaugurar sua primeira agência em Fortaleza em 1954. Todas as bancadas nordestinas e todos os seus governadores reinvidicavam o privilégio de sediar o BNB, apresentando emendas nesse sentido. Por 14 votos contra 4, a Comissão de Finanças da Câmara Federal decidiu pela localização em Fortaleza, considerada a capital das secas (Ribeiro, 1996), já evidenciando a influência que políticos cearenses teriam sob essa instituição (Cardoso, 2006: 111).

O BNB é considerado como a primeira agência federal focada exclusivamente na promoção de políticas de intervenção desenvolvimentista. Segundo Agerson T. Pinto, a criação do Banco do Nordeste revela uma preocupação do governo em utilizar o planejamento estatal como instrumento de política econômica que procura se diferenciar de uma política assistencial (assistencialista). Superando a crise assistencialista, buscava-se criar as condições para que a região não apenas neutralizasse os efeitos das secas sobre sua economia, mas abrisse uma nova frente de desenvolvimento, através da industrialização e de maiores inversões na agricultura (Pinto, 1977: 58).

Somente um banco poderia combater os vícios assistencialistas do Estado brasileiro, com inovação, empréstimos, organização, controle, juros e fiscalização. Só o Estado não daria mais conta dos problemas sociais locais generalizados. Seria preciso a inserção do próprio mercado em ações que estimulassem novas atividades econômicas

90

no Nordeste, por meio de apoio financeiro a diversos tipos de empreendimentos privados e produtivos. Mas não era só apoio financeiro. O banco de desenvolvimento poderia fazer acompanhamento de todo o processo do pequeno, médio e grande produtor rural ou do pequeno, médio e grande empresário urbano, oferecendo assistência técnica e orientação de investimento. O BNB era criado como um Banco especial, original na estrutura bancária brasileira, atuando tanto como banco comercial (voltado para o lucro), quanto como banco de fomento [...], financiando a execução de projetos e programas de desenvolvimento geradores de mais renda e emprego, vindo a elevar a produtividade dos recursos regionais (Cardoso, 2006: 112).

Todavia, é interessante observar que, no seu nascedouro, a SUDENE, por meio da visão considerada por muitos da época como ―vanguardista‖ de seu primeiro Superintendente Celso Furtado, detinha uma abordagem operacional ―mais moderna‖ para aquele tempo. Já o BNB, durante os primeiros anos de sua existência, foi presidido por Raul Barbosa, de visão entendida como ―conservadora‖. O professor Josênio Parente (2001) faz registro de desentendimentos acerca da política desenvolvimentista idealizada para região por parte dos dirigentes das duas instituições nas décadas de 1950 e 1960: Furtado desejava modernizar a política na região Nordeste e também a qualidade de suas elites. Para tanto, se posicionava pelo favorecimento do ―surgimento de uma elite industrial na Região, sob o patrocínio da SUDENE e do suporte institucional do BNB‖ (2001: 73), propondo que o Banco assumisse uma postura mais arrojada em relação aos investimentos produtivos junto aos grandes empreendedores possivelmente interessados em instalar plantas industriais no Nordeste. Do outro lado, Barbosa reivindicava um papel mais preventivo para o Banco que dirigia. O BNB deveria ser uma instituição segura, funcionando como uma reserva financeira para apoio aos momentos de crise da região, atuando com eficiência bancária, sem grandes operações de risco mercadológico. Dessa forma, há uma irônica inversão histórica das posturas discursivas institucionais do BNB e da SUDENE, especialmente a partir da década de 1990, como veremos mais a frente no texto. Segundo Eleazar Ribeiro (1996), que faz um panorama histórico da atuação do BNB, os primeiros anos de atividades do Banco do Nordeste se concentraram em trabalhos de organização administrativa da estrutura bancária, em produção de normas internas e procedimentos de ação, seleção e formação de funcionários. De acordo com observação feita pelo referido autor, desde o seu nascedouro, a seleção de servidores é

91

feita por meio de concurso público, procurando evitar o cooptação direto dos recursos e serviços do Banco para fins e interesses particulares, fato típico dos órgãos públicos brasileiros do período. No entanto, temos depoimentos de Charles e Nelson atestando que os primeiros certames públicos para acesso aos quadros do Banco só foram realizados a partir da década de 1970. A ênfase na formação profissional dos recémingressados era grande, pois era preciso capacitar os bancários para essa nova forma de trabalhar em um banco de desenvolvimento ―antenado às novidades da época‖ para as políticas de fomento socioeconômico. Ao longo de sua história, o Banco do Nordeste contou com a administração, para fins diversos, de vários fundos monetários, alguns fixados por Constituição Federal, outros oriundos de incentivos fiscais, outros ainda resultantes de programas específicos de gestões governamentais. A presença ou não de uma fixidez orçamentária desses fundos, e de leis que sustentam legalmente esses fundos, revelam crises, estabilidades e instabilidades da instituição e mobilizações políticas de representantes do poder legislativo e executivo que, em alguns contextos, usaram essa grande fonte de riqueza financeira e humana, que é o BNB, como instrumento de escalada de poder e jogo político. O mais consolidado e moderno fundo monetário administrado pelo Banco é o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste – FNE. O FNE é fruto de um pacote orçamentário estabelecido pela Constituição de 1988 que atribui aos bancos regionais de desenvolvimento a administração de recursos do Governo Federal. Além do FNE, outros fundos criados pela Carta Magna são o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte – FNO, de responsabilidade do Banco da Amazônia, e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste – FCO, de responsabilidade do Banco do Brasil. Esses apoios advindos do orçamento da União visam à produção de um maior equilíbrio socioeconômico entre as cinco regiões do país. Sobre o FNE, Cardoso afirma: A inclusão desse dispositivo foi resultado de uma aliança até então nunca vista, de membros das entidades ligadas ao desenvolvimento da região, parlamentares nordestinos, membros do BNB e da Associação de Funcionários do BNB, observando-se nessa ação um dos elementos mais característicos da democracia: a constituição de parcerias. O FNE [aqui o autor deve estar se referindo, na verdade, ao montante geral dos fundos constitucionais e não apenas ao FNE] mobilizaria recursos correspondentes a 3% das receitas da União oriundas da arrecadação do imposto de renda e do imposto sobre produtos industrializados, para financiamento dos setores produtivos, distribuindo os recursos de forma diretamente proporcional à população e inversamente proporcional à renda das 3 regiões, de que resultou uma

92

distribuição de 1,8% ao Nordeste. Ao longo do tempo, o FNE se tornaria tão importante para o Banco que se tornou sua principal fonte de recursos (Cardoso, 2006: 116).

No início da década de 1990, em meio a uma conjuntura política de aceleração do processo de abertura para o mercado internacional, o BNB passa também a captar recursos e oferecer créditos transnacionais. Cardoso, por meio do estudo de Ribeiro (1996), faz uma lista de ações desencadeadas pelo BNB nesse período: a) Captação de US$ 175 milhões para aplicação na economia regional, como resultado do lançamento de eurobônus no mercado internacional; b) Abertura de linhas de crédito na Espanha e Taiwan para importação de máquinas e equipamentos daqueles mercados; c) Negociação de empréstimo de US$ 100 milhões do Exibank do Japão destinados a financiar importações em geral daquele país; d) Negociação junto ao mercado japonês do lançamento de uma operação no montante de US$ 50 milhões; e) Negociação da internalização de recursos da corporação japonesa JICA, no montante de US$ 65 milhões, para o programa de desenvolvimento dos cerrados nordestinos; f) Intensificação dos entendimentos com o BID para a realização do PRODETUR, um programa de desenvolvimento do turismo no Nordeste (Cardoso, 2006: 118).

Vê-se em que medida o chamado neoliberalismo atingia e atinge um banco de desenvolvimento regional brasileiro, influenciando os critérios de seleção dos objetos passíveis de aplicação de recursos, as estratégias de ação e o próprio funcionamento institucional do BNB. Essas mudanças de postura e de pensamento institucional transformam, inclusive, as funções e classificações de cada setor, departamento e ambiente de trabalho do Banco. Byron Queiroz, ex-presidente do Banco (gestão 1995 - 2003), nomeado pelo então governador do Ceará, Tasso Jereissati 39, é apontado por autores como Washington Luís de S. Bonfim (2002) e Gil Célio Cardoso (2006) como o principal agente político e técnico dessa ―revolução‖ organizacional do BNB. Byron e Tasso pertenciam a um grupo de empresários e profissionais liberais formados no Ceará, com ―espírito moderno‖, que discordavam da atuação política dos tradicionais representantes do Governo do Estado que geriam a política de uma forma considerada por eles como arcaica, morosa e corrupta, direcionando serviços, recursos e

Quando Tasso Jereissati chegou ao poder do Governo do Estado do Ceará na década de 1980 era só o início de uma gestão do PSDB que duraria vários anos, revezando nomes diferentes para candidaturas em diversos pleitos eleitorais. 39

93

verbas públicas para exclusivo benefício de suas oligarquias. Por volta do final dos anos 1970, esse grupo de jovens empresários cearenses diagnostica prejuízos futuros aos seus empreendimentos devido à situação econômica desfavorável presente no Estado e decidem inaugurar, nas palavras de Cardoso, ―um movimento com vistas à discussão e análise sobre as questões política e econômica do Nordeste, do qual resulta a eleição do empresário Tasso Jereissati ao Governo do Estado do Ceará, em 1986‖ (2006: 148). Bonfim, em boa síntese, caracteriza os vetores políticos cearenses atuantes nesse período: [...] em vez de agirem por intermédios dos chamados anéis burocráticos, ou por mecanismos de pressão e ligação com a classe política local, aqueles empresários promovem o rompimento com a classe política mais tradicional do Estado, aliam-se aos comunistas e disputam o Governo com os coronéis (Bonfim, 2002:35).

A partir da administração de Byron, considerada autoritária e personalista na fala de muitos funcionários entrevistados por mim na atual pesquisa realizada, os diversos setores do Banco tiveram que buscar, cada vez mais, a adequação da estrutura institucional ao ―novo paradigma‖ de empresa pública, baseado na eficiência gerencial, no estabelecimento de metas e no controle dos serviços e produtos. Nas últimas décadas do século XX, esse modelo de intervenção desenvolvimentista baseado em um Estado ―centralizador‖ em busca de um desenvolvimento ―economicista‖ entra em crise, percebendo-se um completo abandono estatal das políticas de desenvolvimento regional no Brasil. Assim, face à ausência de uma Instituição de planejamento regional atuante (dado o enfraquecimento da SUDENE no período posterior ao golpe militar de 1964), e também para garantir condições para sua sobrevivência como uma instituição de desenvolvimento estatal, o Banco do Nordeste iniciou em 1995, um processo de mudança em sua estrutura organizacional, procurando se adequar tanto às novas concepções de desenvolvimento quanto de Estado surgidas no início da década de 1990 (Cardoso, 2006: 125).

De todas as ações planejadas por Byron, as que apresentaram maior vigor institucional para colocar o BNB como protagonista no cenário das políticas de desenvolvimento do Nordeste (e por que não) do Brasil foram: O aumento da presença institucional do BNB na Região, com a criação de vários instrumentos de gestão inovadores para efetivar essa ação, como os Agentes de Desenvolvimento, os Pólos de Desenvolvimento Integrado e o Farol do Desenvolvimento; a aproximação da Instituição com os micros e pequenos empreendedores, que tiveram inclusive, a criação de linhas de crédito específicas para o segmento, como o Microcrédito; e, como ação mais evidente,

94

a criação de uma nova marca para a instituição, encarregada de apresentar para toda a sociedade, segundo seu presidente, ―a marca de uma nova Instituição, comprometida com o desenvolvimento regional em bases sustentáveis‖ (Cardoso, 2006: 138).

Entretanto, as informações elencadas por Cardoso, interpretadas a partir do ponto de vista da fala de um ex-presidente do Banco como Byron Queiroz, entrevistado por ele na época da construção da tese, devem ser analisadas com parcimônia. Essa busca pessoal de Byron e de seu grupo por uma modernização empresarial do Banco, aclamada como ―urgente‖, deve ser problematizada com as perspectivas dos servidores que vivenciaram esse período. Na visão de funcionários como Renato, toda essa visão organizacional de Byron ficava apenas no que ele chama ―forma‖. A ―forma‖ de fazer o Banco funcionar mudou, mas o ―conteúdo‖, ou seja, os investimentos, a produtividade, as políticas públicas de responsabilidade do BNB, não havia mudado, não acontecia conforme o planejado. Nos tempos de Byron, Tasso e FHC, existiam muitas metas traçadas, muitos relatórios técnicos e administrativos, muitas atas de reunião, mas o objetivo precípuo de um banco de desenvolvimento regional não era executado, os financiamentos permaneciam estacionados. Vale a pena dizer, que ao longo dos anos 2000, no final do governo Fernando Henrique essa função também foi um pouco deturpada. O presidente na época era o Byron Queiroz e ele começou a fazer, ele exigia que tivesse tantas reuniões, que as reuniões tivessem metas, tantos participantes, que os participantes tivessem tantos pronunciamentos, e ficou muito na ―forma‖. Você passava o dia inteiro corrigindo, pra não ter um erro de português, tinham pessoas aqui corrigindo as atas... Quer dizer, você perdia muito tempo na ―forma‖ e perdia o final que era o negócio. Então, o banco, na época, 2002, ele praticamente não aplicava dinheiro, nem o próprio FNE, que é o fundo constitucional. Então, ficou muito no ―nhem nhem nhem‖ de fazer reunião e da reunião ser muito bonita, ter muitos pronunciamentos, não ter erros de português na ata e não ter uma atividade realmente fim que era ter o financiamento, ser uma coisa realmente que fizesse a diferença e não o ―financiar por financiar‖ (Renato).

O principal argumento de Byron para a defesa da necessidade de uma transnacionalização dos recursos do Banco do Nordeste era afirmar que o Banco precisava de independência financeira de repasses do Governo Federal para não ser tragado pelo sucateamento do Estado no modelo do mercado neoliberal. Segundo o expresidente do BNB, era preciso criar uma conjuntura interna favorável à proteção do Banco em relação a acordos internacionais como o Consenso de Washington, segundo

95

o qual as representações do capitalismo financeiro mundial como o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial e o Banco do Sistema Financeiro, acordaram uma proposta de extinção dos bancos públicos ainda presentes em países ―não desenvolvidos‖. No caso do Brasil, segundo Queiroz, só deveriam permanecer como bancos públicos o Banco do Brasil e o BNDES, nada além desses. [...] o governo não tinha condições objetivas [para enfrentar essa situação], e também não podia fazer grandes movimentos dentro dela, programando, antecipadamente, o vislumbre de dar vida a esses bancos como tinha feito com os bancos privados, porque ele estava lá sobre a mira desses organismos multilaterais que não queriam esses bancos. Inclusive, teve isso expresso formalmente, e foi objeto de muito questionamento em 1996, a tal de uma nota técnica 20 do Pedro Parente, que era secretário-executivo do Ministério da Fazenda. Ele foi obrigado a fazer essa nota técnica 20, praticamente deixando claro que todos esses bancos públicos iam se extinguir; iam se transformar em agências de fomento, sem poder captar recursos, sem poder contratar financiamento, vivendo apenas de verbas destinadas pelo governo. E ali era um pouco de, eu não digo enganação, mas de atenuação do efeito político [decorrente dessa extinção]. Porque se o governo não tinha orçamento para cobrir saúde e educação, como é que ia ter orçamento destinado para essas agências de fomento financiar atividades? (fala de Byron Queiroz em 14 de janeiro de 2003). (Cardoso, 2006: 172).

Com a gestão de Lula na presidência da República esse cenário de suscetibilidade aos acordos multilaterais do mercado financeiro internacional mudou e o FNE foi sendo, exponencialmente, mais acionado, revitalizando a independência institucional do BNB por outros meios. Além disso, por meio da Lei Complementar n. 125 de 2007, o então presidente Lula assinou a recriação da SUDENE, com sede em Recife/PE, vinculada ao Ministério da Integração Nacional. Essa mesma lei institui um novo fundo monetário para apoio ao desenvolvimento regional do Nordeste, o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste – FDNE, nomeando o BNB como um dos agentes operadores dos recursos. De acordo com José Jonas D. da Costa (2003), historicamente o BNB esteve mais atrelado ao desempenho do seu papel de agente financeiro regional, cabendo à SUDENE o planejamento, a coordenação e, em alguns casos, a execução propriamente dita de ações voltadas para o desenvolvimento do Nordeste. Após as sucessivas instabilidades da SUDENE e a conseqüente extinção do referido órgão, o Banco do Nordeste se permitiu lançar ―vôos mais altos‖, por meio de uma conjuntura política

96

favorável no Estado do Ceará 40 (onde o Banco tem a sede central na capital), se reorganizar internamente, redefinir sua missão, para, enfim, se transformar, de uma vez por todas, em um banco focado no ―desenvolvimento sustentável‖, integrando competitivamente mercados nacional e mundial, buscando, em seus incentivos financeiros e atividades fins, a redução das desigualdades regionais e sociais, sendo responsável,

inclusive,

pela

promoção

de

capacitação

e

viabilização

de

empreendimentos socioeconômicos na região (Brito, 1997). Além de navegar pelo mercado transnacional, no início dos anos 1990, ainda antes da ―Era Byron‖, o BNB estabeleceu na gestão do ex-presidente João Alves de Melo (gestão 1992 - 1995) dois Convênios internacionais (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura – IICA) a fim de sintonizar as ações realizadas pelo Banco com os consensos da agenda política mundial. Entretanto, como veremos no terceiro tópico deste capítulo, o papel do BNB como agente executor, e não apenas de financiador, de políticas de desenvolvimento regional foi e é bastante tímido. A ânsia política pela aplicação do montante de recursos públicos destinados para operações financeiras do BNB, a histórica inadimplência dos credores e o descrédito da figura do ―funcionário público‖ do Banco como um agente eficaz na promoção de planejamento, acompanhamento e avaliação de políticas públicas, foram os fatores apontados pelo ex-presidente Roberto Smith (2003 - 2011) para que o Banco passasse a se concentrar cada vez mais na sua função financiadora ―precípua‖.

1.3.

Desenvolvimento regional: entre o “banco de varejo” e o “banco de fomento” Em qualquer folheto informativo, folder, banner, slogan, placa de publicidade

ou ―frase de efeito‖ produzida pelo e para o Banco do Nordeste do Brasil um termo As relações entre o Governo do Estado do Ceará e o BNB são cada vez mais profícuas a partir da década de 1970. Mesmo antes da gestão ―modernizante‖ de Tasso Jereissati, outros governadores cearenses requisitam nomes técnicos do Banco do Nordeste para composição do quadro administrativo do Estado. Conforme relato de Josênio Parente (2001), a partir de 1976, o governo do Ceará passa a requisitar, com maior freqüência, técnicos do BNB para ocupar cargos estratégicos no aparelho do Estado. Na gestão de Adauto Bezerra foi um técnico para a Secretaria de Planejamento; com Virgílio Távora foram dois: um para a Secretaria de Fazenda, indo depois para a Secretaria da Indústria e Comércio e outro para a Secretaria de Planejamento, o economista Gonzaga Mota. Esse Secretário, apoiado por Virgílio Távora, foi eleito Governador do Estado do Ceará para o período de 1983 – 1986, fazendo também um técnico como seu Secretário de Planejamento. 40

97

aparece e aparecerá como uma espécie de sobrenome da instituição: desenvolvimento. Com menor intensidade, mas não menor importância, aparecerá também a expressão, substantivo mais adjetivo, desenvolvimento regional. No dicionário, ―desenvolvimento‖, prefixo negativo des adicionado ao verbo em latim volvere (rolar, fazer girar), significa ―ato ou efeito de desenvolver‖, ―aumento‖, ―progresso‖,

―propagação‖.

Para

o

vocábulo

―desenvolver‖,

encontraremos

―desembrulhar‖, ―desenrolar‖, ―fazer crescer‖, ―aumentar as faculdades mentais e físicas‖, ―tornar claro‖, ―ampliar‖, ―examinar todos os aspectos‖, ―crescer‖, ―progredir‖, ―estender-se‖, ―perder o acanhamento‖, etc. Estamos, portanto, diante de uma denotação vaga, com larga margem para produção de diversos efeitos conotativos. Se há tendência à positivação das nomenclaturas que beiram ao ―melhorar‖ e ―evoluir‖, não podemos negar que ―desenvolvimento‖, em si, denota relatividade. Assim como ―a criança apresenta desenvolvimento saudável‖, por outro lado pode ser que ―a criança apresenta desenvolvimento de sintomas característicos da hemofilia‖, por exemplo. Já ―regional‖, do verbo em latim regere (comandar, dirigir), caso abramos um dicionário deveremos encontrar a simples dedução ―relativo à região‖. Em ―região‖ encontraremos ―grande extensão de país‖, ―território que se distingue por alguma apelidação‖, ―divisão territorial administrativa‖, ―espaço‖, ―zona‖ e ―espaço determinado do corpo‖. Temos aqui, então, uma definição técnica, pouco eloquente, que não oferece abertura a muita criatividade dos seus possíveis usuários. Essas noções que em si são vagas, ou técnicas e pouco eloquentes, são revolucionadas pelas práticas discursivas dos homens e mulheres que fazem parte da história do Banco do Nordeste do Brasil. Por força das gerações que atravessam os tempos e os espaços do Banco ou por força da marca publicitária que ―cola‖ repetidamente e imediatamente o imaginário do Banco ao imaginário do desenvolvimento regional, o fato é que todos os dirigentes, servidores, colaboradores, parceiros, são, de um modo ou de outro, impelidos ou convidados a lidar, aplicar, traduzir, significar, fazer, pensar, concordar, discordar, repetir, mudar e inventar desenvolvimento regional. ―É uma categoria nativa‖, diria um observador de olhar etnográfico. 1.3.1. Desenvolver é preciso

98

Quando Cecília Maria trabalhava no ano de 2010 na Área de Políticas de Desenvolvimento do BNB, no Ambiente de Políticas Territoriais, em um núcleo de estruturação de garantias e possibilidades para clientes ―de pequeno porte‖, ela se sentiu muito angustiada. ―Puxa vida, estou aqui, terminei meu Mestrado, estou no Banco, estou no projeto assim, eu não consigo ver o desenvolvimento, eu não consigo ver brilho nos olhos, eu preciso fazer alguma coisa‖. O que seria esse ―brilho nos olhos‖ desejado por Ceci que a atual ―cultura bancária‖ 41 do Banco do Nordeste não estaria apresentando no ponto de vista dela? Para ajudá-la a encontrar esse brilho, Ceci, como sabemos, entrou em processo eleitoral da AFBNB e atualmente é a diretora-presidente da Associação. ―A Associação hoje é quem está fazendo a luta, a defesa, que está brigando pelo desenvolvimento‖. O brilho é o desenvolvimento regional do Nordeste, aquele mesmo expresso no slogan do Banco. Ao contrário do slogan, esse desenvolvimento defendido pela AFBNB precisa ser cotidianamente reconstruído, reconquistado e reinventado. O Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas da UFC ofereceu à Ceci conhecimentos para elaboração ideológica de novas estratégias para provocação de mudanças nas atuais políticas institucionais do Banco. Ela já trazia um ―sentimento‖, uma ―sensação‖ de que poderia fazer alguma coisa. A AFBNB ofereceu à Ceci mais informações sobre os bastidores do Banco e a oportunidade de dialogar de perto com diretores e com o próprio presidente do BNB. O desenvolvimento que ela defende, assim como uma minoria dentro da instituição, é um desenvolvimento regional pautado em uma visão holística da realidade local apresentada nas comunidades e grupos agenciados por determinadas políticas públicas que contam com o apoio financeiro do Banco. Os ―alvos‖ dessas políticas, a população presente em determinadas localidades, também devem participar do processo de elaboração, acompanhamento e avaliação dessas políticas. Esse conjunto de conhecimentos acerca do processo de construção das políticas de crédito apoiadas financeiramente pelo Banco deve ser também trabalhado democraticamente com todos os servidores da instituição. Eles devem fazer parte da rede de gestores e colaboradores tecida pelo processo de construção das políticas de crédito, conhecendo a especificidade ambiental e cultural das demandas de cada realidade local. Não é isso que ocorre atualmente. O debate em torno de temas Utilizarei comumente aspas para expressão ―cultura bancária‖ tanto para evidenciar a generalização temerária de tal concepção, como para chamar a atenção para apropriação da maioria dos funcionários do BNB entrevistados do termo ―cultura‖. Eles próprios falam da existência de uma ―cultura bancária‖ no BNB, um sistema simbólico relativamente coeso que antecede e perpassa as tomadas de decisão e atitudes dos servidores do Banco. 41

99

pertinentes a determinados modelos contemporâneos de desenvolvimento regional se restringe a pequenos núcleos dentro do Banco. O principal núcleo é o próprio ETENE, isolado do resto das atividades e dos ambientes da instituição. Quem vai pro ETENE, já vai com uma..., assim como quem vai para área de Políticas de Desenvolvimento, vai com essa boa vontade [de problematizar desenvolvimento regional]. Agora só a boa vontade não basta, tem que ter a capacitação, tem que ter o direcionamento da Diretoria do Banco mesmo (Cecília Maria).

As militâncias de Nelson pelo sucesso do PAPPS, por exemplo, são clamores solitários. Não há compartilhamento dessas informações dentro da magnitude institucional do BNB. Alguns setores universitários, fóruns populares, movimentos sociais, têm mais contatos com essas temáticas do PAPPS do que muitos servidores do Banco. Ceci, por exemplo, apesar de ser diretora-presidente da AFBNB e ter uma longa trajetória profissional em vários setores do Banco, tem pouquíssimo conhecimento sobre a metodologia dos Fundos Rotativos Solidários que permanece centralizada no ETENE e, mesmo dentro do ETENE, em figuras específicas como Nelson e Renato. Mas não há vazio do outro lado. Enquanto a AFBNB se esforça para levantar um amplo debate acerca de novos modelos de desenvolvimento regional para o Banco, Charles, Abner, Laureana, Silveira e Thiago têm outros domínios plausíveis acerca do papel do Banco do Nordeste no cenário político-econômico contemporâneo. Charles, por exemplo, compreende política de desenvolvimento como a produção de uma conjuntura socioeconômica favorável à consolidação de negócios e à geração de emprego e renda. O Banco do Nordeste não é um executor de todo o percurso da política pública planejada pelo Governo Federal. Ele entra como um dos agentes financiadores e apoiadores em determinados momentos dessa política. O BNB, ao aplicar um programa de microcrédito, recebe um direcionamento do Governo Federal, mas, ao mesmo tempo, ele está configurando situações de mercado no qual ele próprio

precisa

ser

autossustentável

financeiramente

e,

para

obter

essa

sustentabilidade, o Banco precisa, sobretudo, ser competitivo. Para produzir conjunturas locais socioeconomicamente favoráveis ao desenvolvimento do Nordeste, o Banco precisa aperfeiçoar o seu próprio cenário financeiro institucional. ―Sem crescimento não tem desenvolvimento‖. Hoje o banco é um banco de fomento, é um banco público, mas, é um banco que tem que dar lucro. E a rede [de responsáveis pelas políticas públicas]. E a

100

gente tem que entender o seguinte: qual é o papel da rede? Eu sou um defensor árduo do figura do agente [de desenvolvimento] porque eu faço todo esse trabalho de política pública a partir dos agentes de desenvolvimento, eu enquanto Superintendente. Mas a rede tem que estar muito calcada no seguinte: o Banco, pra dar lucro, ele precisa fazer operações de crédito, precisa, na verdade, ter tarifas por prestação de serviços, ele precisa ter rentabilidade para suas captações, porque toda nossa captação é concentrada no próprio Nordeste. Então, esse é um trabalho que o gerente geral das agências, do gerente de negócio e do próprio corpo de funcionários de uma agência. Então, imagine vocês, e logicamente eles têm na cabeça o papel que diferencia o Banco do Nordeste de um ―banco de varejo‖. Mas eles são cobrados pra exercer operações e concorrer de igual para igual com esses bancos de varejo no mercado (Francisco Charles Cavalcanti, em entrevista concedida na sede da Superintendência do BNB na Paraíba, em João Pessoa/PB, no dia 21 de março de 2013).

Como as relações dessa rede de gestão de políticas públicas são relações autônomas, onde cada agente público e privado tem um papel na estruturação do desenvolvimento regional, a efetivação de uma operação de microcrédito pode desencadear uma série de benefícios para produtores, comerciantes, moradores e consumidores de uma determinada localidade. A operação de microcrédito pode gerar empregos, os empregos gerados aumentam a renda, o aumento da renda configura novas situações de consumo que, por sua vez, fazem prosperar negócios, inovações tecnológicas que acabam por beneficiar todo o circuito socioeconômico local. Isso é desenvolvimento regional. Eu faço desenvolvimento quando eu estou vendendo um título de capitalização, eu faço desenvolvimento a partir do momento que eu estou captando dinheiro e investindo na região. Eu faço desenvolvimento quando eu faço um seguro, tanto de vida, como um seguro empresarial, porque eu estou mandando resguardar todo um ativo, um patrimônio. [...] Eu faço desenvolvimento quando eu faço um capital de giro na empresa, que o capital de giro é quem vai dar sustentabilidade ao empreendimento (Charles).

Longe de diluir o conceito de desenvolvimento em um palavreado economicista (comercial) presente em qualquer ―banco de varejo‖, e aproximar o Banco do Brasil ao Banco do Nordeste, ―vender um título de capitalização‖ faz parte da semântica das políticas de desenvolvimento do BNB na medida em que os conceitos de desenvolvimento econômico e, mais especificamente, de desenvolvimento regional não se definem pelo tipo de ação efetivada pelo Banco e sim pelos critérios que permitem a efetivação de uma dada ação institucional. ―Quando se vai pra uma meta no Banco do Brasil, ele vai dizer o seguinte: ‗olha, você precisa emprestar tanto‘. Então, o seguinte, ele [o gerente de negócios] sai como um maluco, pega, concentra, joga, eu preciso

101

captar e emprestar com qualquer pessoa ou empresa‖, nos diz Charles. Um gerente do BNB jamais fará isso. Ele se baseia em critérios de desenvolvimento regional. Aquele recurso só pode ser aplicado naquela comunidade ―x‖, ou naquela empresa ―y‖, porque ela está localiza na microrregião ―z‖ que apresenta tais e tais condições ambientais, tais e tais situações socioeconômicas. O Banco do Nordeste é um banco de fomento, não de varejo. As teorizações desenvolvimentistas de Charles não estão soltas ao vento nem são idiossincráticas. Fazem parte de um sistema cultural e intelectual arraigado do Banco do Nordeste que tende a estruturar toda uma argumentação lógica baseada em princípios da ciência econômica, originalmente delineados pelo economista Joseph A. Schumpeter no início do século XX. Schumpeter nasceu na Áustria em 1883 e foi responsável por uma revolução analítica nas teorias econômicas existentes, sistematizando os conceitos relacionados ao desenvolvimento econômico capitalista. Além de acadêmico, professor em várias Universidades européias e estadunidenses, Schumpeter exerceu uma vida profissional multifacetada, ocupando diversos cargos públicos e a presidência de um banco privado em Viena. Com 29 anos de idade, em 1912, escreveu sua obra-prima, referência obrigatória para os estudos atuais do capitalismo contemporâneo: Teoria do desenvolvimento

econômico.

Nesse

ensaio

analítico,

Schumpeter

caracteriza

primeiramente a existência ―natural‖ de um fluxo econômico comum em qualquer sociedade humana. Esse fluxo promoveria trocas de objetos e valores, invenção de moedas para estabelecimento de equivalências universais entre o preço das coisas, o oferecimento de serviços em troca de dinheiro, o salário, etc. Ou seja, tudo o que os economistas clássicos, de Smith a Marx, de Malthus a Walras, já tinham mapeado teoricamente como fenômenos econômicos ou de mercado. Se a sociedade, e ele se refere à ―ocidental‖, tivesse continuado nesse ritmo de atividades econômicas usuais, estaria estacionada historicamente em um tempo arcaico, sem a distribuição dos benefícios ocasionados pelas inovações tecnológicas periódicas e sem a distribuição de novas oportunidades de consumo e ―bem estar‖. Para romper com esse ciclo econômico comum, foi e é necessária a existência dos empreendedores inovadores. Esses empreendedores são, nas palavras do economista Rubens Vaz da Costa, nada mais nada menos que os agentes econômicos que trazem ―novos produtos para o mercado por meio de combinações mais eficientes dos fatores de produção, ou pela aplicação prática de

alguma

invenção

ou

inovação

tecnológica‖.

A

política

econômica

102

desenvolvimentista, então, deve ser um devir redistributivo exponencial para o próprio bem da sociedade: ―se a política se dirigir à redistribuição imediata, não se realizarão nem os desígnios dos reformistas, nem o aumento da produção‖ (1982: 9). O objetivo primeiro de uma política de desenvolvimento econômico é fazer com que o tradicional ciclo econômico ―gire‖ exponencialmente, em uma espiral crescente. Mas Schumpeter, assim como a maioria dos técnicos e gerentes do BNB, diferencia crescimento de desenvolvimento. Desenvolvimento econômico não é mero crescimento de um montante de capital, ele ocorre quando esse crescimento está atrelado a uma distribuição de benefícios tecnológicos e amplificam o raio de consumo de uma dada população. Dessa forma, desde seu nascedouro, o desenvolvimentismo aparece conectado ao empreendedorismo. O desenvolvimento, no sentido em que o tomamos, é um fenômeno distinto, inteiramente estranho ao que pode ser observado no fluxo circular ou na tendência para o equilíbrio. É uma mudança espontânea e descontínua nos canais do fluxo, perturbação do equilíbrio, que altera e desloca para sempre o estado de equilíbrio previamente existente (Schumpeter, 1982: 75).

Abner, gerente geral de uma agência do BNB localizada em João Pessoa, Paraíba, assim como Charles, avalia que a mera efetivação de uma operação de microcrédito pode desencadear uma série de benefícios para produtores, comerciantes, moradores e consumidores de uma determinada localidade. O desenvolvimento aparece quando os critérios desenvolvimentistas exigidos para aprovação de um crédito são efetivamente cumpridos. Quantas e quantas empresas, essa semana mesmo teve um cliente aqui de Catolé do Rocha me visitando, que eu fui gerente lá em Catolé do Rocha e ele tava dizendo: ―foi você que me financiou a primeira vez que a empresa pensou em crescer. Eu tinha 60 funcionários, hoje eu tenho mais de 400. É gratificante a gente saber que eles reconhecem o trabalho. E na realidade não sou eu, é o Banco quem patrocina essas pessoas e a gente se sente orgulhoso de ter participado. Quer dizer, se ele tinha 60 e hoje tem 400, com certeza o Banco participou dessas 340 famílias que ele conseguiu trazer a mais pra dentro da empresa e isso é importante pra gente também, faz parte da nossa missão (Abner).

Para que o desenvolvimento regional aconteça em determinados contextos locais não é necessário a seleção de classes ou segmentos sociais para liberação de créditos, o grande, o médio e o pequeno empresário, todos são convidados a participar

103

desse processo de desenvolvimento. Aliás, esse processo é revelado, de fato, quando todas as camadas da população apresentam um avanço nas condições de produção e consumo. Não tem nenhuma restrição por ser grande ou pequena. É o empresário que vai trazer desenvolvimento pra região Nordeste. A gente não pode estar, de forma alguma, ficando à margem do processo se todo mundo que quer contribuir com o desenvolvimento da região Nordeste não está junto, até porque faz parte da nossa missão, a gente é catalizador desse processo (Abner).

Os critérios para aprovação e liberação de créditos do BNB, dessa forma, não necessariamente passam por uma seleção de condições socioeconômicas desfavoráveis de determinado grupo ou segmento social. Os critérios para essa escolha passam por uma avaliação econômica e por uma avaliação da legalidade trabalhista e ambiental daquela empresa ou organização não-governamental que pleiteia uma dada modalidade de crédito. Apenas empresas e organizações socioambientalmente responsáveis, sejam elas pequenas, médias ou grandes, devem ser aprovadas nesse processo.

O Banco ele não faz apenas a análise econômica do projeto. A gente tá preocupado também quantos empregos esse projeto vai gerar, o acréscimo naquele empreendimento, a renda das pessoas que tão ali vai aumentar ou não vai aumentar, a questão ambiental, a empresa segue a legislação em vigor? Tudo a gente analisa. A gente tem uma preocupação se o empresário, é, a ―visão de futuro‖ desse empresário. [...] A gente faz visitas na empresa, conversa com o empresário, verifica o ambiente de trabalho que as pessoas estão trabalhando. Se você chega numa empresa onde o emprego está em condições subumanas, tá certo? O Banco não vai financiar por duas questões: primeiro porque o Banco estaria fugindo totalmente ao direcionamento que nós temos; segundo, qualquer fiscalização que chega, fecha essa empresa. E a gente vai abandonar aquela empresa? Não, a gente vai orientar de como ela pode mudar, dar uma contribuição. Se você quer ser parceiro do Banco, então vamos seguir essas regras (Abner).

Há, portanto, uma visão holística nos critérios de avaliação de projetos de financiamento do BNB. Um holismo que podemos compreender como mais pragmático em relação àquele holismo almejado pela AFBNB e em alguns estudos produzidos pelo ETENE. As questões legais trabalhistas e ambientais, provavelmente, são exigências para aprovação de créditos de outros bancos como o Banco do Brasil. Então, o que caracterizaria, exatamente, a missão de desenvolvimento regional do Banco do

104

Nordeste em meio ao novo universalismo empresarial das exigências trabalhistas e ambientais? O perfil do Banco do Nordeste, segundo Abner, não é um perfil de ―banco de varejo‖, do ―crédito pelo crédito‖. O Banco não empresta dinheiro, financia empreendimentos devidamente sustentáveis e úteis para o desenvolvimento do Nordeste. Se não há condições burocráticas para financiamento de um determinado projeto de empreendimento, a instituição não deve abandonar aquele projeto, deve imbuir-se de esforços para orientar a consolidação daquela parceria. O Banco tem um papel financiador e orientador a fim de melhorar as condições do empresariado presente na região em que atua. Em todas as ocasiões em que, nas minhas questões de pesquisa, empregava o termo ―emprestar‖, os servidores do Banco prontamente me corrigiam afirmando que o termo correto é ―financiar‖. Empréstimos caracterizariam uma postura típica de um ―banco de varejo‖ e o BNB se propõe institucionalmente como um ―banco de fomento‖. Portanto, o Banco, em qualquer modalidade de crédito, financia empreendimentos sustentáveis e avaliados como úteis para o desenvolvimento regional. O financiamento torna-se, então, necessário para provocar uma desestabilidade no fluxo econômico local preexistente. Schumpeter é taxativo quando o assunto é crédito e desenvolvimento econômico. O desenvolvimento, para ele, necessita do crédito para iniciar seu percurso de ciclos exponenciais. Entretanto, o crédito criteriosamente aplicado só deve ser oferecido aos indivíduos e empresas com perfil empreendedor e inovador: Primeiro devemos provar a afirmativa, estranha à primeira vista, de que ninguém além do empresário necessita de crédito; ou o corolário, aparentemente menos estranho, de que o crédito serve ao desenvolvimento industrial. Já demonstramos que o empresário, em princípio e como regra, necessita de crédito — entendido como uma transferência temporária de poder de compra —, a fim de produzir e se tornar capaz de executar novas combinações de fatores para tornar-se empreendedor (Schumpeter, 1982: 102).

É por isso que o economista Rubens da Costa (1982), presidente do BNB no final da década de 1960, afirma que Schumpeter é, na verdade, o grande idealizador da figura institucional do moderno banco de desenvolvimento. O Banco do Nordeste, que atualmente compõe uma máquina pública gerida por um governo petista com fortes tendências keynesianas, é culturalmente schumpeteriano. Se o ―automatismo‖ de benesses socioeconômicas locais desencadeadas pela política de financiamento (a autorregulação schumpeteriana), especialmente no âmbito

105

do microcrédito (Crediamigo e Agroamigo), não produz efeitos práticos de desenvolvimento em determinado grupo ou localidade, o erro, segundo Charles e Abner, não está na concepção do programa, mas em sua operacionalização. O BNB cumpriu seu papel. Ponto final. Criteriosamente, aplicou os recursos, financiou os empreendimentos ―x‖, ―y‖ e ―z‖. Se não houve desenvolvimento naquela localidade é porque faltou ―empoderamento‖ por parte dos demais agentes públicos e privados envolvidos no processo de planejamento, acompanhamento e avaliação daquela política pública. Além da responsabilidade de todos agentes envolvidos, ―empoderados‖ ou ―desempoderados‖, é o próprio Schumpeter quem afirma que o maior protagonista do desenvolvimento econômico é o próprio produtor que contrai o crédito. É o produtor que geralmente ―inicia a mudança econômica, e os consumidores, se necessário, são por ele ‗educados‘, eles são, por assim dizer, ensinados a desejar novas coisas, ou coisas que diferem de alguma forma daquelas que têm o habito de consumir‖ (1982: 65). Ainda neste tópico, quando tratarmos do papel dos agentes de desenvolvimento na Era Byron e na Era Smith retomaremos a questão do ―empoderamento‖. Para não criarmos mais ―ismos‖ em meio a tantas definições e problematizações levantadas por nossos colaboradores da pesquisa, vamos dizer que até o momento estamos situando na presente discussão um conjunto de ideias e valores que compõem o ideal desenvolvimentista da AFBNB, especialmente na pessoa de Cecília Maria e demais diretores da associação, que ocupa uma posição marginal institucionalmente, e existe um outro conjunto de ideias e valores que compõem o ideal desenvolvimentista da imensa maioria das áreas e ambientes institucionais do Banco, que ocupa uma posição hegemônica no planejamento estratégico do BNB. Renato, Superintendente do ETENE, assume uma posição mais conciliadora entre esses dois ―modelos‖ de apropriação e politização do conceito de desenvolvimento regional presentes atualmente no Banco do Nordeste. Para ele, dentro do Banco deve haver um espaço técnico suficiente para se pensar políticas que planejem, acompanhem e avaliem políticas cujo retorno financeiro para sustentabilidade bancária é bastante baixo, quase nulo, a exemplo dos Fundos Rotativos Solidários, e para se pensar políticas tradicionais de microcrédito que ofereçam nítido retorno financeiro, ainda que considerado baixo, para sustentabilidade bancária. Segundo Renato, quando o PAPPS começou a vigorar no Banco, alguns colegas ficaram desconfiados com a possível

106

concorrência dos FRS 42 em relação a programas já consolidados como o Crediamigo. ―Não, a economia solidária leva clientes pro Crediamigo. Nessa perspectiva a economia solidária, ela é uma porta de saída do Bolsa Família‖. Dessa forma, não há paralelismo entre os programas sociais do Governo Federal e os programas de microcrédito. O Bolsa Família pode ser um primeiro caminho de dignidade que leva à Economia Solidária, que por sua vez pode levar ao Microcrédito mais consolidado do Banco. 1.3.2. O regional e o ―outro‖ Silveira, do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental da sede do BNB em Fortaleza, ao resumir de um jeito popular a área geográfica de atuação do Banco, fala com tranquilidade: ―é onde chove pouco, onde a chuva ela é irregular, então, a gente está presente nesses locais‖. Laureana, do mesmo setor de Silveira, fala da missão institucional do órgão em que trabalha: ―melhorar a qualidade de vida do povo nordestino e reduzir as desigualdades sociais, fomentando o desenvolvimento‖. Um dos fatores que contribuíram para que Nelson, um sudestino, se inscrevesse no concurso do BNB é que ―havia todo um encantamento‖ do Nordeste no imaginário dele. Renato sente orgulho de ter participado da implantação inovadora de um cultivo pouco presente em nossa região: ―a gente vê aí soja no Nordeste inteiro, no cerrado né, quem primeiro financiou para implantar soja aqui, fomos nós do ETENE‖. Abner, gerente de uma agência localizada em João Pessoa, fala do Banco como uma instituição local, próxima, regional: ―quando a gente entrou o BNB era conhecido como ‗conterrâneo‘, já dava esse sentido de, hoje a gente diz ‗eu sou nordestino e sou forte, tenho orgulho de ser nordestino‘‖. Quando em 2012, no Congresso Nacional brasileiro, estava em debate a aprovação de uma lei que alterou a distribuição de fundos monetários federais entre os bancos públicos existentes no país, Ceci, representando a AFBNB, chamou atenção do Congresso para ―a questão da atuação diferenciada do BNB, a questão de que o Governo Federal precisa inserir o Nordeste dentro de um ‗Projeto de Nação‘‖. Júnior, assessor de crédito do INEC, faz questão de me manter informado: ―o agricultor nordestino é responsável por 30% da alimentação do Brasil. E se o agricultor não investir na sua atividade, seja ele pequeno ou grande agricultor?‖. E complementa: ―imagine se acontecesse novamente o êxodo rural, o que seria do Brasil? Teríamos que

42

Fundos Rotativos Solidários.

107

importar alimentação‖. Roberto, paulista de nascimento, ficou bastante feliz com a dedicatória que ninguém menos do que Celso Furtado lhe ofereceu em seu livro de cabeceira estudantil. Lá estava escrito: ―ao Roberto Smith, nordestino por teimosia‖. O Nordeste é muita coisa. Um lugar de seca, de desigualdades, de nossas raízes, é ―um lugar que precisa de novas tecnologias‖. Antes de tudo, antes de todas as desgraças, é um lugar forte e diferente. Em meio a essa seleção de pequenas assertivas produzidas por diferentes interlocutores, servidores, gestores e terceirizados, de uma instituição federal e nordestina como o Banco do Nordeste do Brasil, é um tanto tentador embarcarmos calmamente no discurso desencantado que desconstrói estereótipos e mitos da ―nordestinidade‖, do ―regionalismo‖, sem naturezas nem razões de ser, que institui um deserto mais seco do que o próprio Nordeste no imaginário do mundo acadêmico. Um deserto povoado apenas de ―enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos‖. Dando nomes aos bois refiro-me à badalada tese de doutorado, que resultou em um livro chamado A invenção do Nordeste e outras artes, escrita pelo historiador Durval Muniz Albuquerque Jr. A tese é fabulosa. O Nordeste é uma invenção prático-discursiva recente na enciclopédia nacional e, por que não, mundial. Essa conclusão parte do seguinte pressuposto descrito logo no primeiro parágrafo do prefácio Sonhos de Brasil, de Margareth Rago: Até meados da década de 1910, o Nordeste não existia. Ninguém pensava em Nordeste, os nordestinos não eram percebidos, nem criticados como uma gente de baixa estatura, diferente e mal adaptada. Aliás, não existiam. As elites locais não solicitavam, em nome dele, verbas do Governo Federal para resolver o problema de falta de chuvas, como registra Graciliano Ramos em Vidas Secas, livro que se tornou filme famoso. Ademais, o problema mal era anunciado; era apenas vivido. Sem grande visi/dizibilidade (Rago, 1996: 13).

Dito desse modo, ninguém, em sã consciência, duvidaria de tal invenção. Para pôr a prova a invenção do Nordeste, não precisamos ir muito longe nem consultar muitas literaturas. O Nordeste não é apenas uma ―região‖ no mapa do Brasil, ele faz parte do vocabulário dos brasileiros, do imaginário, do dia a dia, das piadas, dos assuntos jornalísticos, dos planos políticos nacionais. Como entidade viva pode receber inclusive um especial adjetivo: nordestino. Se colocarmos a palavra ―sudestino‖ na tela do nosso computador, o programa Word solicitará imediatamente a correção. Essa realidade não existe. São capixabas, cariocas, mineiros e paulistas, não podem ser misturados em um único adjetivo. Assim também como não existem os ―centro-

108

oestinos‖, palavra difícil de escrever, de dizer e que sequer existe. Talvez não pelos mesmos motivos que cuidam da inexistência dos sudestinos, mas o fato é que não existem. Os sulistas e os nortistas viraram adjetivos, mas com uso comedido e quando são usados é por excesso do dito e não por naturalidade discursiva. Nordestino é o ―Paraíba‖ no Rio de Janeiro e o ―baiano‖ em São Paulo. Eu tive a honra de ser apelidado de ―Ceará‖ e de ―nordestino‖ durante um curso em uma disciplina chamada Expansão da Fronteira Amazônica no Mato Grosso que fiz na Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT, na época em que morei em Cuiabá. Albuquerque Jr. (1999) defende que se os ―outros‖ dizem quem os nordestinos são, os nordestinos incorporam essa prática-discursiva e afirmam que eles são, de fato, ―nordestinos‖ de uma forma mais convicta e natural ainda. O regional, nesse caso, é incorporação da alteridade do outro pelo eu, a exemplo de Said (1990). É com desembaraço que nos assumimos ―regionais‖. Nas palavras de Albuquerque Jr.: ―devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria discriminação, opressão ou exploração‖ (1999: 21). Se os nordestinos se justificam existencialmente como um grupo discriminado, regional, tornam-se potenciais agentes de recebimento de dádivas. São os carentes, por excelência. É onde os olhos redistributivos do Governo Federal mais se concentraram, ou, pelo menos, mais deveriam se concentrar. Não teríamos aqui uma explicação para nosso ―complexo de vira-lata‖? Afinal, Mauss falando das ―nossas sociedades‖, assevera: ―a dádiva não retribuída ainda torna inferior quem a aceitou‖ (1974: 294). Será que por ter uma produtividade econômica historicamente mais baixa do que a do Sudeste nos faz ―maus recebedores‖ das políticas desenvolvimentistas para a região? Políticas essas oriundas de recursos dos impostos de contribuintes nordestinos e não-nordestinos. É difícil crer no ―espírito da coisa dada‖ operando livremente em populações tão amplas como a brasileira, uma espécie de ―inconsciente coletivo‖ de um povo estigmatizado pelo dom. O Nordeste, por uma série de ―deficiências‖ cientificadas por nós e pelos outros, historicamente é narrado como um dos agentes responsáveis pelo desequilíbrio da economia brasileira. Como, historicamente, o Brasil do Governo Federal se auto-afirma e tende a propor, sendo nação una e indivisível, um desenvolvimento regionalmente equilibrado, todo um estratagema político-econômico é constituído para promover, via máquina pública, investimentos nas regiões ―desfavorecidas‖. DNOCS, BNB, SUDENE, FNE, são instituições e fundos criados e responsabilizados para estruturação de um desenvolvimento regional que equilibrou no passado, equilibra no

109

presente e equilibrará ainda mais no futuro o desenvolvimento nacional, na procura de diminuir as disparidades regionais. Para reinventar a invenção do Nordeste e dos nordestinos, Albuquerque Jr. faz um recorte bem preciso de suas fontes. E acaba produzindo um maravilhoso inventário de enunciados e imagens a partir de obras da literatura, da filmografia e da discografia brasileira, bem como de produções acadêmicas sobre o assunto. Essa seleção de ―outras‖ fontes historiográficas e de aspectos afetivos do discurso, segundo Rago (1996), leva o argumento do pesquisador Albuquerque Jr. ―muito mais longe, mostrando como a produção deste lugar e de seus habitantes não pode ser explicada se nos colocamos apenas numa perspectiva econômica ou política‖ (1996: 14). A economia e/ou a política, sozinhas, não dariam conta de produzir uma produção historiográfica ―de um espaço social e afetivo‖. Entretanto, são justamente essas fronteiras acadêmicas cultura, economia e política o que ―a reinvenção da dádiva‖ presente neste trabalho dissertativo procura desestabilizar pela simples constatação de não conseguir estabelecer exatamente onde começa uma fronteira e termina a outra. A meu ver, textos de economia ou posicionamentos políticos de autores clássicos como Celso Furtado ou de Paul Singer podem também mobilizar um rico universo simbólico de valores subjetivos negativos e positivos, sagrados e profanos, puros e perigosos, ―afetivos‖, que narram o Nordeste real inventado. Ao trilhar o caminho das fontes consideradas ―mais simbólicas‖, as obras de arte, ao escapar dos clichês economicistas e politicistas, ao fugir da fala empoeirada de antigos fazendeiros e coronéis e de novos banqueiros e empresários urbanos, Albuquerque Jr. ingenuamente caiu em clichês das críticas literárias, artísticas e culturais que viram de dentro e de fora um Nordeste exótico, regionalista e lamuriento. O tiro sai, de algum modo, pela culatra. Por vezes, viu regionalismo onde nunca existiu regionalismo. Enxergou estereótipos ao usar lentes estereotipadas. Se a crítica literária do eixo Rio-São Paulo, por vezes, instituiu discursivamente a ―literatura nordestina‖, o ―regionalismo do romance de 1930‖, os autores não se assumiam em suas obras enquanto tal. Dois romancistas do referido período, explorados pela análise da tese de Albuquerque Jr., serão bastante ilustrativos desse pseudoregionalismo reverberado pela crítica literária e pelas lentes de A invenção do Nordeste: Graciliano Ramos e José Lins do Rego. A obra de Graciliano Ramos, a título de exemplo, não denuncia as calamidades do Nordeste e o autor não se utiliza de palavreado sertanejo por crer na beleza da

110

linguagem popular local. Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia, o Menino Mais Velho, o Menino Mais Novo, não são retratos do Nordeste, são personagens que expressam a arte realista universal. Graciliano escreveu as coisas que viu, que sentiu, que ouviu falar no seu terreiro afetivo, na sua casa, nos espaços onde habitou. É uma conversa com ele mesmo, e com suas redondezas. É uma conversa com Albert Camus e com outros autores de sua predileção, com existências criativas do outro lado do Atlântico, que também exercitam suas artes locais-universais. Não está de acordo com a estética proposta por Graciliano defender que ele procurou ―realmente afirmar no próprio estilo, na textura da linguagem, na sua forma de expressão, a imagem da região que constrói‖ (1999: 108). Quando Graciliano, certa feita, preconiza que ―deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício‖, mesmo que o ―lá‖ pareça remeter a uma terra outra que não o suposto centro do Brasil (Rio-São Paulo) de onde ele estaria afirmando o ―lá‖, o que ele compara são técnicas humanas e não técnicas regionais. As lavadeiras são de Alagoas porque é onde sua memória navega com mais tranquilidade. As palavras, então, devem ser ―secas‖ como as roupas lavadas, torcidas e dependuras das lavadeiras não porque o Nordeste é naturalmente seco, mas porque ―a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer‖. É o estilo artístico realista, presente aqui e em vários outros rincões do planeta e não o estilo regionalista, ou nordestino. Além disso, é o estilo idiossincrático de Graciliano, diferente da narrativa de Raquel de Queiroz, de José Américo de Almeida, de José Lins do Rego e dos demais contemporâneos do ―romance de 1930‖. Graciliano é seco por ele mesmo, era ―econômico‖ inclusive na oralidade. Do mesmo modo, José Lins do Rêgo não denuncia a exploração do trabalho nos engenhos, nem planejou escrever sobre apadrinhamento político no Nordeste. O antigo costume de ―serrar moça velha‖ não é descrito em Fogo morto porque Zé Lins faz parte de uma ―geração de regionalistas nordestinos‖. Mestre José Amaro, Seu Lula e Capitão Vitorino habitam um pequeno ponto do Nordeste, mas suas psiques traduzem o teatro universal da vida. Depois de ler e de se apaixonar por Miguel de Cervantes, Zé Lins procurou inventar Dom Quixotes que fossem dele também. A sua infância foi a de um ―menino de engenho‖ e não a de um nordestino. Quando se defende que para Zé Lins ―o Nordeste tradicional é o Nordeste da cana-de-açúcar, da sociedade patriarcal e escravista que se desenvolvera na Zona da Mata‖ (1999: 111), assim, sem contextualização biográfica nenhuma, se omite o fato dele ter sido ―criado‖ nesse

111

ambiente de opulência e decadência da cultura dos engenhos antigos, em Pilar, município localizado na zona da mata paraibana. Se é que um dia ele já afirmou durante sua vida, em algum depoimento, que o Nordeste verdadeiro é aquele patriarcal e escravagista, ele não se expressou por convicção regional, mas por convicção pessoal. O ―regional‖ nordestino do BNB também é repleto de ―imagens‖ e ―enunciados‖ passíveis de uma análise de discurso ―desconstrutivista‖, no melhor estilo Derrida. O regional não é uma verdade, é um efeito de verdade, um efeito simbólico no deserto do universo povoado de textualidades semiverdadeiras. Mas se a natureza das coisas físicas preexistentes ao homem histórico for verdadeira, o Nordeste regional do BNB é também pautado por ela. A narrativa das fronteiras que compõem o mapa do Nordeste brasileiro e a narrativa das fronteiras que compõem o mapa de atuação do BNB não partem de um zero imaginário à espera de uma frase estereotipada, de um mito fundador, ou da decisão de um rei. Não há apenas corte histórico aqui. Há, fundamentalmente, respaldo técnico em ―ciências da natureza‖. Foram elas, antes das ―ciências do homem‖, que inventaram simbolicamente o Nordeste. A conformação geográfica, a física, presente nesse espaço de encontro entre o norte e o leste brasileiro, na América do Sul, oferece uma história natural que precede o início das classificações técnicas e científicas dos homens. A antiga divisão Norte/Sul do país, aos poucos, não fazia mais sentido. Haviam especificidades naturais no lado leste do norte do Brasil que diferenciavam uma grande região de outra grande região. Em linguagem ambiental, eram ecossistemas diferentes, a Amazônia de um lado e a Caatinga do outro. Em linguagem latouriana, o clima, o relevo, a vegetação, os biomas são respeitáveis actantes e sileciosamente protagonizaram e protagonizam a produção sociotécnica de fronteiras. Vimos que a noção de região, que vem de regere ―comandar‖, remete, observação feita pelo próprio Albuquerque Jr. (1999), aos campos fiscal, administrativo e militar. Para ele, isso é o atestado etimológico da falha de tomar a região como um termo natural, físico e, por assim dizer, ―geográfico‖. Entretanto, o historiador esquece que a fiscalização e a administração, próprias do regional etimológico, ―comandar‖, a cultura militar, se configuram como lógicas que se aproveitam positivamente das diferenciações naturais do mundo, montanhas, uma planície, a umidade elevada da floresta amazônica, a ausência de chuvas dos ambientes das caatingas, são fundamentais para promoção da guerra e da paz. A região não existe por força de um ―efeito de verdade‖, não é apenas um espaço textual. Também não podemos imaginar que o Nordeste exista arbitrariamente,

112

tributário de um decreto caprichoso de um rei regionalista, ou por força de movimentos populares, lutas de classe, pressões coletivas que autorizariam uma classificação espacial. O Nordeste pode ser um somatório de todas essas ―variantes‖ sociológicas, mas também foi constituído por meio de construções técnicas e científicas sobre uma natureza tocável. O Banco do Nordeste do Brasil é uma das instituições mais poderosas que contribuíram para colocar mais uns tijolos na edificação técnica e científica de um Nordeste que, sempre é bom observar, não se confunde com as fronteiras do Nordeste do mapa político-administrativo do país. É um Nordeste maior na definição oficial e bem menor nos efeitos práticos, nos critérios técnicos e na atuação política dos departamentos, superintendências, agências e agentes de desenvolvimento do Banco. Em essência, estamos tratando de um Banco que atua no chamado ―semiárido‖, uma fronteira climatológica caracterizada pelo baixo índice pluviométrico. É onde, ciclicamente, ocorrem grandes períodos de estiagem popularmente conhecidos como ―seca‖. ―É onde chove pouco, onde a chuva ela é irregular‖, nos diz Silveira. E ele tem razão. É um fenômeno que não depende dos climatologistas, muito menos dos lingüistas e historiadores. O fenômeno foi cartografado e esquadrinhado por nossos ancestrais. Não é à toa que o cearense quando percebe um grande bloco de nuvens cinzas se formando no céu diz ―tá bonito pra chover‖. O nosso bonito não é o azul. Chuva é esperança de uma colheita farta, de bons empregos, de ver o filho se formando, de dinheiro no bolso para a compra da saúde ofertada pelos planos de saúde.Várias ciências são, então, chamadas pelo Banco para cartografar o que já foi cartografado, esquadrinhar o que já foi esquadrinhado: economia, agronomia, engenharias, administração de empresas, etc. Essas ciências devem ser aplicadas na melhoria das condições de desenvolvimento, hoje ―desenvolvimento sustentável‖ (social, econômico, cultural, ambiental), na área de influência (urbana e rural) da região, de fronteiras climatológicas, do semiárido. O resto é política e, se bobear, politicagem. O Nordeste climatológico, porém, e aí Albuquerque Jr. compreendeu muito bem, não nos permite investigar os vários porquês da estereotipia historicamente exponencial em torno do Nordeste e dos nordestinos. Por que nos pensamos como ―regionais‖? Por que assumimos uma unidade cultural? Que estabilidade discursiva é essa que nos faz orgulhar de algo que, por vezes, nos tem prejudicado? Para encerrar o tópico e não sair do debate sem mais uma tradicional lamúria nordestina, aqui vai um exemplo de um modelo de organização das políticas nacionais que tem prejudicado o Nordeste em relação às demais regiões do país. É uma questão

113

de matemática. O Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM, autarquia federal recentemente criada e ligada ao Ministério da Cultura, Governo Federal, decide dar continuidade à consolidação de um Sistema Brasileiro de Museus, uma rede de contatos, de participações, de promoção de melhorias nas condições de existência dos museus já atuantes e nas condições de criação de novos museus no país. Pois bem, na convocação de 2011 para formatação das diretrizes desse sistema nacional, optou-se por chamar um número fixo de representantes regionais para composição de uma mesa de decisões prévias. Dois por região. E isso não é uma prática excepcional. Vários colegiados nacionais planejam, acompanham e avaliam a construção de políticas institucionais

respaldados

nessa

simples

divisão

matemática.

Números

de

representantes divididos igualmente pelo número de regiões brasileiras. Entretanto, o Brasil é constitucionalmente representado por uma república federativa, uma república com a centralidade nacional dividida em Estados, cada qual com sua autonomia político-administrativa. Não é uma república regional. As nossas 5 regiões servem, ou deveriam servir, para compreensão dessa geografia nacional, das similitudes e diferenças ambientais, culturais, socioeconômicas de cada região. Servem, se é que há alguma serventia nessa classificação, para fiscalizar, administrar e comandar. O sentido etimológico da palavra não mudou o seu sentido ―prático‖. Se legalmente, somos 27 Estados, 1/3 deles estão localizados no que chamamos de região Nordeste. Esses 9 Estados são representados por 2 profissionais ou gestores de áreas ligadas aos museus. O Sul é composto por apenas 3 Estados e também é representado por 2 pessoas. Há uma nítida desigualdade de vozes políticas nos mais diversos debates democráticos no país pautada por uma classificação regional de representantes. Deliberadamente ou não, há uma mistura de fronteiras geográficas com fronteiras político-administrativas que prejudicam, em diversas esferas de ação governamental, o Nordeste inventado e real. 1.3.3. Agentes de desenvolvimento na Era Byron e na Era Smith Para melhor compreensão das reviravoltas institucionais e políticas que a ―categoria nativa‖ desenvolvimento regional configura atualmente no Banco do Nordeste é importante um olhar mais atencioso à função que o agente de desenvolvimento ocupou nas duas últimas grandes gestões do Banco: a Era Byron (1995 - 2003) e a Era Smith (2003 - 2011).

114

Como já sabemos, os agentes de desenvolvimento surgiram por meio do Programa Farol do Desenvolvimento, formatado pela Diretoria de Byron Queiroz, com o objetivo de descentralizar a atuação do Banco em todos os municípios do Nordeste, norte de Minas Gerais e norte do Espírito Santo. Essa descentralização também cumpriria o papel de operacionalizar as políticas de financiamento do BNB, especialmente via microcrédito. Dissemos também, por meio da experiência profissional de Renato, que exerceu a função de agente durante um bom tempo, que a concepção política do Programa Farol do Desenvolvimento ―é muito boa‖. Quando atuava em campo como agente, se reunindo com prefeituras, associações, instituições públicas e privadas interessad as no desenvolvimento de um dado município, Renato via que aquilo poderia dar certo, que dali nasciam bons planos de políticas públicas para a localidade. No entanto, ele reclama da forma de acompanhamento gerencial do Programa por parte da equipe de Byron. Eram muitas exigências burocráticas desnecessárias, ―muito papel‖, relatórios, atas de reunião, discursos, mas, na prática, os recursos não eram efetivamente aplicados. Charles, que fazia parte da equipe da Diretoria de Byron nesse momento, justifica a falta de aplicação de recursos desse período afirmando que não havia condições estruturais (logística e recursos) humanos para aplicar o montante de verba existente junto aos potenciais novos milhares de microempreendedores, pois o BNB não estava habituado operacionalmente a fazer isso. A instituição que trabalhava com grandes financiamentos de empreendimentos de médio e grande porte, de repente, teve que lidar com um novo perfil de clientes. Na época [gestão Byron Queiroz] eu era o Superintendente do Processo Operacional. Existia o seguinte: o Banco ele sempre foi avaliado pelos órgãos externos e o que se dizia, na verdade, é que as operações que o Banco fazia eram operações de grande monta e, logicamente, você jogar todos os recursos para os grandes clientes é fácil fazer. Uma coisa é você fazer uma operação de 1 milhão de reais com 1 empresário e outra coisa é você fazer 1000 operações com esse mesmo recurso. Esse é o primeiro ponto. Nós temos uma questão séria que é a questão tecnológica pra dar vazão, tem uma questão de análise porque todos os nossos projetos requerem análise, porque é aquela questão ―a gente não tá pra brincar‖. [...] Então, como dar vazão a todos esses recursos trabalhando só com micro e pequenos? Esse talvez foi o maior ―gargalo‖, que foi o foco da gestão do Byron. Agora, não, na verdade, Emanuel, é porque ele queria trabalhar apenas com micro e pequeno, mas porque existia, na verdade, uma pressão muito grande dos órgãos de controle porque o ativo no Banco naquela época era um ativo extremamente concentrado com os grandes (Charles).

115

Dessa forma, para Charles, a ―culpa‖ da não aplicação de recursos por parte do Programa Farol do Desenvolvimento não é decorrente das exigências burocráticas desnecessárias mencionadas por Renato e sim da própria falta de estrutura institucional no Banco para receber um novo e enorme público de clientes a serem financiados. O que Charles deixa implícito em sua fala é que, na verdade, as exigências burocráticas para liberação de créditos ficaram as mesmas do período anterior à gestão de Byron. O que era exigido, em termos de documentação, a um grande produtor, acostumado com gestão empresarial, não se diferenciava muito do que era exigido ao pequeno produtor, não familiarizado com negócios bancários. Então o processo operacional de aplicação do crédito era o mesmo. Só que agora não era apenas ―1 empresário‖, eram ―1000 microempreendedores‖. Essa mudança exponencial repentina (o ―gargalo‖) atravancou a aplicação do montante de recursos gerido pelo Banco. Charles afirma que a maior atenção ao pequeno produtor não foi oriunda de um processo político interno do Banco, muito menos de uma diretriz ou de um plano estratégico do Governo Federal, representado na época pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. A atenção ao microempreendedorismo foi resultante de uma pressão dos órgãos de fiscalização do poder público. Mesmo assim, em outro relato, Charles insiste no fato de que Byron e sua equipe de diretores (da qual ele próprio fazia parte) assumiam uma postura antagônica em relação à postura política neoliberal bastante notória no Governo Federal da época. Pois, foi na gestão Byron que aparece, pela primeira vez no plano estratégico do BNB, um direcionamento político voltado para os pequenos produtores. O Banco não operava com microcrédito, O que havia, na verdade, é o Programa Nacional de Agricultura Familiar, chamado PRONAF, tá certo? Financiamento pros micro e pequenos produtores rurais, mas não existia, na verdade, um processo de bancarização para o crédito urbano, não existia, certo? Então, houve primeiramente esse trabalho lá em Bangladesh quando surgiu aquilo, então começaram a falar de microcrédito no mundo, quando Byron, numa das reuniões que ocorreu no Banco Interamericano de Desenvolvimento, ele viu o seguinte, que existiam países desenvolvidos que tinham banco público de fomento. E ele dizia ―peraí, se o que eu aprendi foi ‗tirar os agentes econômicos estatais da economia‘, por que é que um país desenvolvido precisa e um país subdesenvolvido não precisa?‖ (Charles).

Todavia, é preciso entender que, ao ampliar as operações de microcrédito, o Banco não deixou de aplicar os mesmos grandes financiamentos para empreendimentos de larga escala de outrora. Não houve substituição da política de financiamento, houve

116

acréscimo de um grande público-alvo pulverizado em grupos e famílias de baixa renda. Charles informa que grandes corporações empresariais sempre se interessaram pelos recursos de bancos públicos desde que a taxa de juro somada às condições de mercado estejam favoráveis em comparação com outros possíveis espaços de investimento espalhados pelo planeta. Uma planta industrial de uma Ford ou de uma Fiat, por exemplo, passa por um grande estudo planejado sobre o melhor e mais estratégico local, em todos os aspectos (taxa de juros, mão de obra, riscos financeiros, exigências burocráticas, etc.), para a sua instalação. Para um grande empresário, sempre é mais negócio requisitar dinheiro de um banco para implantação de um novo empreendimento do que investir ―do seu próprio bolso‖. Quando você vai estudar investimento, quando você vai estudar a própria economia, diz o seguinte: o dinheiro do empresário sempre ele é mais caro do que dinheiro de financiamento. Se você for analisar na prática, hoje os recursos que são alocados pelos bancos oficiais são recursos de taxas, não são subsidiadas, mas taxas, na verdade, compatíveis com um investimento que dá retorno (Charles).

Ceci adiciona outros temperos, problemas e perspectivas para a figura do agente de desenvolvimento no Banco do Nordeste. A AFBNB, a associação em que ela atua como diretora-presidente, atualmente, imprime esforços políticos para que o Banco retome o papel dos agentes de desenvolvimento como plano estratégico da instituição. ―O agente de desenvolvimento hoje no Banco do Nordeste está sob uma redefinição‖. Essa ―redefinição‖ já dura algum tempo, talvez remonte o início da gestão de Smith. Desde então, a impressão é que essa função ficou em stand-by. O que fazemos com eles? Algo aconteceu na transição entre Byron e Smith, em reuniões de diretoria, que acabou contribuindo para o enfraquecimento dessa função. ―‗Foram lavar roupa suja‘, né‘, ajustar o que não tava funcionando direito. [...] Foram fazer uma avaliação e terminou que jogaram ‗tudo por água abaixo‘, tudo o que era capacitação, todo o trabalho social que o agente de desenvolvimento fazia‖, desabafa Ceci. Quais são os pormenores dessa ―lavagem de roupa suja‖? Isso nos ajudará a compreender ainda um pouco mais como ―funciona‖ a cultura bancária no BNB. Vários fatores, segundo Ceci, contribuíram para a desestabilização da função do agente de desenvolvimento dentro do Banco. O primeiro deles é o fato de que vários ―agentes estavam insatisfeitos nos lugares em que foram transferidos, queriam ser remanejados para o lugar de origem‖. A vida itinerante, como vimos no início deste primeiro

117

capítulo, é uma característica da trajetória profissional dos servidores do BNB. Contudo, esse nomadismo é triplicado quando se trata do trabalho dos agentes. O segundo fator apontado por Ceci revela que muitas das transferências e troca de cargos no Banco não se dão, na maioria dos casos, por conta de afinidade profissional de quem pleiteia a mudança e sim devido a interesses em aumentos salariais. Dentre os agentes, ―existia realmente pessoas que não estavam preparadas e como essa era uma função com uma remuneração diferenciada terminava que algumas pessoas queriam ser agentes de desenvolvimento porque queriam ganhar mais‖. Além desses dois fatores, uma série de outras questões também contribuía para que o Programa Farol do Desenvolvimento fosse avaliado negativamente pela nova Diretoria de Roberto Smith que coordenaria o Banco a partir do ano de 2003. Tinham várias questões que estavam aí, tinha a questão dos agentes que estavam aguardando, é, ser transferido para o local onde eles estavam anteriormente lotados. Tinha a questão, mesmo, da falta de condições, os agentes tinham que atender áreas muito dispersas, terminou ele tendo que fazer muitas, era uma agenda de trabalho muito complicada porque direcionaram tudo pra ele, prefeitura, comitês, direcionavam tudo pra ele e às vezes ele passava muito tempo externo e não tava muito na agência, digamos assim. Então, os gerentes desses hard, mais tradicionais, então dizia assim ―não, o agente de desenvolvimento tá ali sem fazer nada‖. Porque, na visão do gerente, estar lá no meio do povo, fazendo reunião, isso é perder tempo né. Então pronto, isso aí foi uma grande perda que se teve no Banco do Nordeste (Cecília Maria).

Nessa ―lavagem de roupa suja‖ na transição de Byron para Smith, FHC para Lula, PSDB para PT, onde nem eu nem Ceci estávamos presentes nas reuniões internas entre diretores do Banco, um assunto deveria pesar mais do que todos, fazendo com que as ―questões‖ apontadas por Ceci fossem meros agravantes de um problema principal: a falta de aplicação do montante de recursos destinados para os fundos que o Banco administrava e era responsável, especialmente o FNE. O diagnóstico do recém-empossado presidente do BNB, Roberto Smith, era fatal: Era um banco atravancado. Era um banco atravancado com muita burocracia e as pessoas eu acho que tinha desaprendido né, era falta de compromisso mesmo com desenvolvimento43 e também de instalar uma concepção dentro de um banco que ―um banco precisa ganhar dinheiro‖ né? Tinha um pessoal lá no Banco achava que o banco não era feito pra ganhar dinheiro. Eu disse ―olha, mas se não ganhar dinheiro, não capitaliza, se não capitaliza, não cresce e não 43

Grifos nossos.

118

auxilia no desenvolvimento do Nordeste!‖. [...] Mas, então, o que é que eu fiz pro Banco começar a operar? Eu prestei atenção que na Direção nós tínhamos pessoas que não tinham contato com o público, que viviam fora da realidade, essa coisa toda. Aí eu fiz umas viagens e conheci as pessoas que operavam nas agências e aí eu trouxe para Direção pessoas que trabalhavam na ponta, nas agências. Criei uma estrutura paralela de gente que operava com público, que sabiam as queixas. E comecei como resposta às críticas do Ministro [Ciro Gomes] a operar dentro dessa estrutura especial que eu coloquei. Até me disseram, o pessoal do Conselho de Administração disse ―é, mas ce tá fazendo aqui uma estrutura no Banco totalmente sui generis, é um negócio meio paralelo‖, eu falei ―é, eu tenho que pôr esse Banco pra funcionar. Depois eu vejo como é que eu ajeito‖. E o Banco deslanchou né (Roberto Smith).

Entre as várias possibilidades interpretativas a partir desse relato de Smith, podemos destacar, para início de conversa, o fato do presidente empossado em 2003 perceber a existência de pessoas no Banco contrárias a uma política de financiamento mais arrojada. Um grupo que pensa ―que banco não é pra ganhar dinheiro‖. Apesar do BNB ser um banco de fomento, nesse momento, Smith está dizendo: antes de tudo, ele é um banco, faz parte do mercado comum, precisa operar. Além do grupo desfavorável à política econômica mais arrojada, ele afirma que, no geral, os servidores do BNB ―tinham desaprendido, era falta de compromisso com o desenvolvimento‖. Ou seja, houve época do passado em que eles sabiam como operar, como aplicar recursos? Em 2003 não estavam mais sabendo e, esse ―esquecimento‖ institucional era danoso para uma política de desenvolvimento. Nessa concepção de Smith, ―desenvolvimento‖ se aproxima do que vimos nas falas de Charles e Abner, que ainda ocupam cargos relevantes dentro da estrutura do Banco. Os servidores públicos estariam acomodados com a situação. Não era, então, um diagnóstico negativo sobre os agentes de desenvolvimento, ou sobre o Farol do Desenvolvimento, em específico. Trata-se de um diagnóstico negativo acerca da cultura institucional e trabalhista do BNB. Era um problema arraigado. Uma solução emergencial era necessária para melhorar a imagem do Banco perante o Governo Federal, perante a sociedade e os demais bancos concorrentes. Uma grande contribuição para essa ―solução emergencial‖ estruturada pela Diretoria de Smith foi a reconfiguração jurídico-administrativa do Instituto Nordeste Cidadania, o INEC. O INEC deixou de ser uma organização não governamental de perfil de voluntariado para ser uma OSCIP e, assim, tornou-se legal para operacionalização das políticas de microcrédito do Banco. Dessa forma, o ―gargalo‖

119

apontado por Charles neste tópico da dissertação foi resolvido por Smith com a criação de uma estrutura institucional paralela ao Banco propriamente dito. Nós estamos trabalhando, porque o microcrédito, quando eu entrei no Banco ele já existia né e foi um avanço muito grande, como é que é o nome dela?... Foi chefe de Gabinete do Byron... Foi muito importante, foi ela que trouxe o microcrédito pro Banco do Nordeste... [não consegui descobrir o nome]. A gente reformulou, melhorou e tudo mais, mas o Banco já operava com microcrédito. Porque o problema é o seguinte: o microcrédito ele não tem sustentabilidade se você quiser cobrar uma taxa de juros baixa, ele não pode ter custos bancários. O microcrédito ele tem que ser operado de uma forma onde você possa ter mandatários né e aonde você possa trabalhar com estruturas, vamos dizer, de não funcionários bancários. Que são funcionários que trabalham só 6 horas por dia, não só por isso, porque o trabalho bancário ele é muito pesado, mas é que possa ganhar por produtividade. E naquela ocasião, quando eu entrei no Banco, se usava esses contratos com estudantes universitários, esses, estagiários, aí o TCU começou a dizer que ia proibir isso, que não podia, e que precisava ter uma estrutura de mandatários. Mas aí foi um esforço muito grande, isso demorou um certo tempo, pra gente criar isso por lei. Lula compreendeu perfeitamente, conseguimos aprovar a lei e aí então, quer dizer, já existia, o Instituto Nordeste Cidadania já existia. [...] Era voluntariado, mas aí houve um trabalho gradual de transformação do INEC num mandatário pra fazer, de acordo com a lei né (Roberto Smith).

Com esse relato de Smith, o cenário dessa transição política do Banco fica um pouco mais evidenciado. O que Byron em oito anos de presidência da instituição não conseguiu fazer, Smith, em poucos meses estava ―resolvendo‖. O ―gargalo‖ apontado por Charles, a trabalhosa transição de pequenas quantidades de grandes financiamentos para grandes quantidades de pequenos financiamentos, mantendo a mesma qualidade, não seria superado por meio dos próprios servidores (públicos) do Banco, mas por ―mandatários‖, empregados do setor privado, do INEC. Em um mandatário se pode mandar, com um servidor público é preciso mais negociação, reunião, ―empoderamento‖, convencimento. Sendo assim, não existe um brutal antagonismo entre Byron e Smith e poderíamos até arriscar o batido ―são duas faces da mesma moeda‖. Nisso, o próprio Roberto Smith está de acordo: O Byron fez muita coisa importante, sabe, eu não sou desses que demonizam o Byron. O Byron que não teve jeito é porque às vezes você se defronta com certas coisas que ce quer mudar numa estrutura e funcionários arraigados e tudo mais, e ele quis introduzir uma técnica empresarial de uma forma brusca, com desrespeito e uma série de coisas e pôs os pés pelas mãos. Eu acho que fui mais jeitoso (Roberto Smith).

120

Muito mais jeitoso, por sinal. Com o INEC, o Banco passou a operar e atingir aplicações recordes de recursos destinados à responsabilidade do BNB. O diagnóstico sombrio de Byron e Smith quanto à dificuldade de implantar no Banco uma política de desenvolvimento/financiamento mais arrojada por conta da postura acomodada dos servidores públicos está presente no discurso do próprio assessor de crédito do INEC. Edcarlos Júnior afirma que antes do INEC operacionalizar o Crediamigo e o Agroamigo junto ao pequeno produtor ou microempresário, as Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER, mais do que os agentes de desenvolvimento, eram as instituições que cumpriam esse papel de acompanhar ―mais de perto‖ o processo de política de microcrédito do BNB. Os técnicos das EMATERs eles eram cobrados apenas por quantidade não por qualidade, funcionários públicos. Até porque então, eles, como qualquer órgão público, são cobrados, claro, mas por conta da quantidade e a qualidade deixava muito a desejar. Não havia uma triagem ou uma seleção do cliente que estava pleiteando os financiamentos. [...] Esse é o grande diferencial, a palavra-chave do Instituto Nordeste Cidadania é que é um credito orientado e acompanhado. [...] O INEC hoje ele faz qualidade, não só números, ou seja, ele aplica um recurso e esse recurso, ele realmente faz a diferença na vida do cliente ou do consumidor (Edcarlos Júnior).

Para finalizar, cabe aqui considerar uma mudança de abordagem territorial das políticas de desenvolvimento na Era Byron e na Era Smith. Enquanto no Programa Farol do Desenvolvimento, marca da gestão Byron, o agente de desenvolvimento deveria cumprir a função de ―agência itinerante‖ em cada município individualmente, como vimos na experiência relatada por Renato, os agentes de desenvolvimento, no período em que Smith ficou no poder do Banco (e isso ainda acontece atualmente), trabalham junto a setores que agregam um determinado conjunto de municípios. Se um agente do Farol era responsável por ―cobrir‖ a estruturação de financiamentos em quatro, cinco municípios, um agente atual é responsável por cobrir uma área bem maior, que se confunde, em alguns casos, com a divisão em microrregiões proposta pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Esse fato sobrecarrega e despotencializa ainda mais a figura do agente de desenvolvimento. Se antes eram 510 agentes para dar conta de todos os municípios nordestinos, mais o norte de Minas e o norte do Espírito Santo, hoje são cerca de 200 agentes para atuação no mesmo espaço de influência do Banco.

121

Charles, que se mostra um entusiasta dos agentes de desenvolvimento, defende que os 200 agentes remanescentes no BNB ―dão conta do recado‖. Defende também que o atual modelo de gestão do Governo Federal, por recorte territorial e não municipal, é bem melhor do ponto de vista da economia dos gastos orçamentários com as diversas políticas de desenvolvimento que estão sendo implantadas pelo país a fora. Deu um exemplo genérico de um investimento no campo do incentivo às tecnologias agrícolas: ―ao invés de eu levar uma máquina [agrícola] para cada município, eu levo uma máquina, faço um consórcio de municípios e essa máquina transita, quer dizer, sai barato pro Governo o investimento‖. Como eu disse no início deste primeiro capítulo, nem eu tenho, como entrevistador, um perfil do ouvinte das reflexões de Benjamin em O narrador, nem meus colaboradores têm, como entrevistados, um perfil de narradores benjaminianos, exceção talvez seja feita a Abner. Aliás, essa não é uma questão de perfil, é uma questão situacional. A situação das entrevistas é que não eram situações para o modelo ―narrador-ouvinte‖. Pois bem. Então, eu fui um conversador. E quando Charles disse que gerir políticas de desenvolvimento em territórios era melhor do que gerir em municípios, eu contra-argumentei dizendo que tinha viajado muito por vários municípios paraibanos, por conta do meu trabalho de acompanhamento de políticas de patrimônio cultural, e que percebia que o recorte territorial gerava, na verdade, transtornos para pequenos produtores rurais tendo em vista que comumente era um município mais forte politicamente que centralizava o recebimento de uma máquina agrícola, ou de insumos, grãos de feijão e milho, para plantio em época de seca, e que os municípios vizinhos, as prefeituras e as associações rurais das redondezas ficavam à mercê da ―boa vontade política‖ da entidade ou grupo que recebeu primeiramente aquele incentivo do Governo Federal. E isso acontece de fato, o recorte territorial produz mais desigualdades dentro das desigualdades socioeconômicas que já existem no âmbito local. Aí Charles replicou afirmando que o que eu estava mencionando não era um erro da concepção do recorte territorial e sim um erro de operacionalização: ―porque eu digo o seguinte ‗como é que tá empoderamento que é dado a essa questão‘, as coisas têm que partir das pessoas, dessa comunidade, dessa associação que foi formada porque a questão não pode estar só no poder municipal‖. Guardemos bem esse diálogo ocorrido, pois ele é fundamental para compreensão da multiplicidade de noções acerca do conceito de política pública conforme o olhar atual dos servidores do BNB. 1.3.4. O dom do desenvolvimento

122

Resumidamente podemos situar na história do Banco do Nordeste duas posturas institucionais que norteiam o ideal desenvolvimentista do Banco. Uma primeira fase de grandes investimentos em grandes empreendimentos, onde prevalecia a concepção de que as indústrias, as obras de infraestrutura e as empresas de comércio, por meio da centralidade dos ―patrões‖, os empresários, seriam as responsáveis pela distribuição de empregos e geração de renda para as diversas populações desempregadas, subempregadas e necessitadas presentes na área de atuação no Banco. Após a gestão de Byron Queiroz e sua equipe, momento de uma maior pressão e controle dos órgãos de fiscalização do poder público, abre-se uma segunda fase no BNB de investimentos com maior divisão de critérios para distribuição do montante de recursos. Uma parte desse montante de recursos do Banco passou a ser aplicada em pequenos empreendimentos urbanos e rurais, por meio do chamado microcrédito. A centralidade discursiva do desenvolvimento não estava mais apenas nas mãos dos ―patrões‖ e sim no trabalhador autônomo e microempreendedor, que, por meio do autossustento da sua família e de uma pequena geração de empregos e renda no seu entorno imediato, contribuiria para o desenvolvimento da região Nordeste. Seja por meio dos ―patrões‖ ou dos novos ―autônomos‖, da participação dos servidores do Banco em todo o processo de implantação de financiamentos ou apenas cumprindo o papel de aplicar recursos descentralizados para a instituição, seja por meio de microcréditos convencionais ou fundos rotativos solidários, o desenvolvimento regional, a vontade de fazer isso acontecer, é uma ideia-força-chave que faz parte de negociações internas, entre os diversos agentes que compõem a instituição BNB, e de negociações externas, junto aos demais conjuntos de valores e princípios compartilhados por outras instituições e segmentos sociais. Assim, qualquer teoria, experiência, parceria, projeto que quiser ou tiver que dialogar com o BNB, passará pelo ―filtro cultural‖ do desenvolvimento regional. Por exemplo, a rede de economia solidária, em processo de implantação no Banco por meio do PAPPS, da Cáritas e da SENAES, não representa uma rede de economia solidária qualquer. Ela deve ser e é afetada pelo desenvolvimentismo. A rede de responsabilidade socioambiental em processo de implantação no Banco, por meio do Ambiente de RSA, ETHOS, do INEC e dos conselhos municipais, não é uma rede de responsabilidade socioambiental qualquer. Ela deve ser e é afetada pelo desenvolvimentismo.

123

Mas esse desenvolvimentismo dentro do próprio Banco não é um conceito/prática fechado. Como vimos, ele está aberto a novas fronteiras de negociações, a transformações, conflitos, consensos, hierarquias de hegemonias e marginalidades. Uma coisa é certa: todos no Banco são desenvolvimentistas. Nenhum servidor do Banco vai dizer em conversa formal ou informal que não é a favor do desenvolvimento (social, ambiental, econômico, regional, etc.) do Nordeste. Se há alguém não-desenvolvimentista no BNB, esse alguém sempre é o ―outro‖, o classificado, o discordante. Entretanto, se todos dentro do Banco são desenvolvimentistas, há a concepção de desenvolvimento hegemônica, incorporada pelos discursos institucionais e pelos planos estratégicos anualmente atualizados pelo BNB, e há as concepções de desenvolvimento marginalizadas. Marginalizadas, porém não excluídas. Elas estão no jogo político. Algumas concepções e práticas marginais podem se tornar hegemônicas, a exemplo das políticas de microcrédito urbano e rural. Depende de uma conjuntura político-econômica nacional e internacional. Fatores da cultura bancária interna do BNB também são decisivos para condicionar a incorporação ou não de um grande número de servidores da concepção e prática hegemônica de desenvolvimento. A origem humilde e a feliz ascensão repentina por meio do trabalho no Banco, por exemplo, também podem produzir em alguns dos servidores do Banco um forte desejo de retribuição de um dom, quem sabe divino, traduzido na incorporação sempre assídua do discurso institucional do BNB. Daí o ―vestir a camisa‖ em épocas de tendências neoliberais ou estadistas, daí uma despersonalização de suas trajetórias políticas dentro da instituição. Esse talvez seja o caso de servidores como Abner e Charles. Estamos falando do dom de dívidas assimétricas descrito em outros contextos de pesquisa por autores como Teresa Sales (1994) e Marcos Lanna (1995). O beneficiário se torna ―refém‖ das iniciativas e vontades do donatário, em um processo infindável de inferioridade em relação a uma enorme dádiva

que foi recebida cuja retribuição

desejada nunca tem fim. Trata-se de uma dívida que nunca deixará o beneficiário livre dos efeitos do hau, do ―espírito da coisa dada‖, eternamente fiel aos desígnios do donatário. Para aqueles que positivam a inserção de um conceito de desenvolvimento regional menos ―financista‖ e mais ―humanista‖, os novos perfis idiossincráticoculturais de funcionários que adentram o Banco via concurso público indicam, cada vez mais, uma mudança de comportamentos e valores sociais voltados para uma ética mais

124

pragmática e individualista de atuar no mundo. Nelson chama atenção para a existência de uma diferença entre gerações dos servidores ingressados no BNB. O pessoal ―da antiga‖ era mais engajado (apesar de, contraditoriamente, ser formado por ―conservadores‖/ ―filhos das oligarquias‖), compromissado com as ―causas‖ do Banco e com sua missão institucional. Estavam antenados com a situação socioeconômica do Nordeste e com as possíveis soluções para as mazelas existentes. O pessoal novo não está preocupado com isso, eles estão no BNB porque lá é um bom lugar para se trabalhar, o salário é satisfatório e a estabilidade é desejada. Eles são ―concurseiros‖. O Banco do Nordeste ele é filho das oligarquias, né? Os funcionários eram todos filhos das oligarquias e os próprios funcionários foram crias da ditadura. Em via de regra, os funcionários do Banco do Nordeste poderiam ser enquadrados dentro da ―sociedade política‖ como conservadores, de direita, né, campo da direta e tal... e aí se tinha alguns elementos que seguem os funcionários do Banco do Nordeste, movimento sindical, vários funcionários, foi pra esse campo, eu mesmo né, e vários outros funcionários também, entre os anos 60, anos 70, foram pra lá, alguns tempos muito difíceis foram os da ditadura. Se forem fazer uma pesquisa, uma etnografia do Banco do Nordeste, te garanto, pelo menos até eu penso assim, de maneira geral, taí o campo mais conservador. [...] O Banco do Nordeste ficou muito tempo, é um quadro antigo em termos de idade mesmo e aí vai haver necessariamente uma mudança, aliás, está havendo, está se processando uma mudança cultural porque os mais jovens estão entrando com outra cabeça, não passaram pela ditadura, né, eles vão entrar com uma nova ideologia, por exemplo, os meninos que estão entrando agora têm uma nova ideologia, a grande preocupação deles é com a gerência. [...] A gente tava mais preocupado com o Nordeste e essa garotada que chegou tá interessada na própria carreira individual, em fazer concurso, na estabilidade financeira, etc... A gente mais antiga não pensava muito em chefe; o chefe manda, mas manda na casa dele (Nelson).

Ceci demonstra preocupação ao ver que os recém-ingressos no Banco não recebem mais a capacitação básica de cursos presenciais sobre temáticas pertinentes ao desenvolvimento regional, a história do conceito e suas experiências locais e globais. O curso sobre a missão do BNB e o desenvolvimento regional atualmente é apenas virtual, enquanto todos os conhecimentos convencionais relativos ao métier geral bancário são obrigatoriamente ministrados por professores e profissionais do ramo em aulas presenciais. Cabe ressaltar, contudo, que ao observar a postura profissional e o uso da categoria ―desenvolvimento regional‖ por parte da nova geração de servidores do BNB, podemos compreender que não é exatamente a falta de cursos presenciais no início da carreira que produz desconhecimento da ―verdadeira‖ missão institucional do Banco no

125

espírito do funcionário recém imerso no universo da casa. Há uma espécie de saturação, um desgaste, do conceito-prática desenvolvimento regional entre os servidores mais novos do Banco. Ao que parece o termo ―desenvolvimento‖ , quando atrelado ao ―regional‖, não se encaixa mais no ideário político do mundo contemporâneo, torna-se deslocado historicamente. Por que a necessidade eternamente reiterada de equilibrar socioeconomicamente as regiões do país? O que, afinal, é o Nordeste? Como trabalhar um financiamento de uma confecção de roupas sonhada por uma determinada família que habita um bairro rural de um município do interior do Rio Grande do Norte e ainda se pensar que isso é ―desenvolvimento regional do Nordeste‖?

Estando

descolado do cotidiano profissional de quem atua nos anos 2000 em um departamento do Banco, os servidores aplicam essa tradicional ideia-força, tributária da própria missão institucional do BNB, maquinalmente. Teria o desenvolvimento regional ficado preso em um contexto político de rivalidades entre BNB e SUDENE nas décadas de 1950, 1960 e 1970? Se o desenvolvimento regional foi enfraquecido pelo martelar dos discursos governamentais e pelas estratégias políticas nacionais, ―desenvolvimento‖, essa palavra assaz vaga, precisou de outros adjetivos para manter sua vitalidade contemporânea. Distendida semanticamente entre o modelo financista e o modelo humanista (e eu dizia que não ia criar mais ―ismos‖...), essa ―categoria nativa‖ do BNB tende cada vez mais a se positivar em relação a outro termo: crescimento. O mau desenvolvimento passou a ser ―crescimento econômico‖ 44, o bom desenvolvimento passou a ser ―desenvolvimento sustentável‖. É por isso que mesmo aqueles servidores do Banco mais ―pragmáticos‖, que se mostram a favor de um banco de fomento que se contenta com um papel institucional de financiador dentro do cenário do planejamento, acompanhamento e avaliação de políticas públicas, mesmo eles, separam em suas falas um lugar especial para desenvolvimento em diferenciação com o ―mero‖ crescimento. Quem financia projetos, promove desenvolvimento, quem empresta dinheiro, apenas promove crescimento. Ao mesmo tempo, para aqueles dentro do Banco que defendem um desenvolvimento onde a instituição deve conhecer todo o processo de constituição das políticas públicas financiadas pelos Programas do BNB, compreendendo a especificidade de cada população, localidade, meio ambiente, diagnosticando as demandas e as questões dos diversos agentes locais, regionais e globais presentes Como vimos anteriormente, essa diferenciação entre ―crescimento‖ e ―desenvolvimento‖ já se encontra em Schumpeter no início do século XX. 44

126

naquela ―microrealidade‖, em todas as etapas, desde o planejamento das ações, o acompanhamento das atividades e a avaliação dos resultados de cada projeto, para esses poucos servidores do Banco, uma política de desenvolvimento má gerida leva ao (des)envolvimento. (Des)envolvimento é retirar das pessoas, dos diversos agentes, o dom da participação política, o envolvimento com suas ―causas‖, é promover um ação governamental ―de cima pra baixo‖. Essa incessante busca pela positivação moral do

real ou ideal de

desenvolvimento no Banco do Nordeste do Brasil, varrendo para as margens institucionais, aonde agora passam a habitar o crescimento, o (des)envolvimento, o ―banco de varejo‖ e os empréstimos de dinheiro, revelam seu devir histórico de dom, uma dádiva política e econômica organizada juridicamente por instituições laicas como um banco público de fomento. Mauss define esses princípios do dom, que se manifestam por meio de fatos sociais totais criadores e reprodutores de alianças de dependência e de ordens sociais em diferentes espacialidades e temporalidades, de instituições, em sentido semelhante ao que Mary Douglas anos depois teceria reflexões em um famoso ensaio antropológico. Esses princípios não são apenas curiosidades etnográficas, eles auxiliam na compreensão da moralidade implícita e explícita em ideias-força tais como desenvolvimento regional, a mais forte (ainda que ―saturada‖) categoria nativa do BNB. O Banco não é ―casa de caridade‖, como nos diz Laureana, tem que dar lucros e desenvolver a região. São programas de microcrédito, a juros considerados baixos em comparação com o mercado usual, que exigem o pagamento das dívidas dos microcredores. Por isso os assessores do INEC acompanham todo o processo de financiamento ―de perto‖. A melhor retribuição em troca da organização e implantação das políticas de financiamento do BNB é recebimento ―de volta‖ dos microcredores (acreditamos em vocês!), além do pagamento das dívidas (do ―boleto‖), de um pacto para produção de energias individuais, familiares e microempresariais em torno da melhoria das suas próprias condições socioeconômicas rumo ao desenvolvimento local. É dinheiro e serviço que são trocados por serviço e dinheiro em torno de um pacto comum em prol de ―algo maior‖, o desenvolvimento regional. O desenvolvimento regional, cada vez mais transfigurado pelas concepções de desenvolvimento local e desenvolvimento sustentável funciona como o hau maussiano apropriado pelo espírito dos servidores do Banco.

127

CAPÍTULO II ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA VEREDA CONTEMPORÂNEA PARA ENTRAR E SAIR DO (NO) CAPITALISMO

2.1. Evento e especialistas Baseado em um diário de campo, descreverei agora um ―evento‖, um seminário dividido em palestras, a fim de aproximar o leitor da complexa rede de sociabilidades, ideias e valores que costumam se refazer e ressignificar durante os encontros entre pessoas e instituições direta ou indiretamente ligadas a esse movimento denominado ―economia solidária‖. A partir da descrição dessa situação social específica, poderemos abstrair de um modo mais amplo uma vasta gama de relações e instituições presentes nos contextos abordados na pesquisa (Gluckman, 1958). Dia 17 de junho de 2011. Apesar de junho, era um dia ensolarado, com poucas nuvens no céu de João Pessoa, Paraíba, cidade onde eu moro. Estava feliz porque, pela primeira vez, iria conhecer um pouco do meu ―campo de pesquisa‖. Por meio de indicação da minha orientadora, professora Alicia Ferreira Gonçalves, fui convidado para participar de um evento acerca de um dos temas selecionados em meu estudo. Tratava-se de um seminário de debate. O título do encontro era Economia Solidária como Estratégia de Inclusão Social e Desenvolvimento Local. Foi realizado pela Revista Nordeste VinteUm, pelo Instituto Difusão Social e pelo Banco do Nordeste do Brasil. O evento aconteceu em um auditório da sede da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no centro de João Pessoa. O evento começou bem atrasado. Estava marcado para ter início às nove horas da manhã e só começou de fato por volta das dez e meia. Enquanto isso, ao que parece, os participantes reencontravam conhecidos e falavam de assuntos gerais, coisas do cotidiano. Então, iam se acomodando aos vários lugares do grande auditório, que era aconchegante, apesar de não dar conta de abrigar meus poucos instrumentos de pesquisa, um caderno de anotações, um celular com dispositivo ―gravação‖ e uma máquina fotográfica, pois os bancos eram do tipo móvel e só baixavam caso uma pessoa se sentasse neles.

128

Imagino que os participantes eram funcionários públicos e membros de organizações não-governamentais e instituições que aplicam ou pretendem aplicar conceitos e práticas relativas à economia solidária. Infelizmente, por falta de tempo e porque tinha o interesse maior concentrado no que seria dito pelos palestrantes, acabei não sondando quem eram aquelas pessoas que estavam dedicadas a comparecer a um evento como aquele. Se bem que, como veremos, algumas pistas sobre o público presente serão lançadas ao longo desta descrição. O que estava explícito nos preparativos para as palestras era o orgulho dos organizadores em deixar tudo em ordem, pois era um evento importante e seria muito bom para todos. Percebi o orgulho, por exemplo, na expressão das pessoas que colocavam uma tolha de mesa, de algodão cru, bonita até, em cima da bancada de apresentação. Nela, havia a inscrição Projetos Fundos Solidários do Nordeste: tecendo redes, entrelaçando vidas. Essa noção de ―redes‖, ―entrelaçamento‖, posta de uma maneira poética, é muito importante para aqueles que trabalham com economia solidária. Alicia Gonçalves, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal da Paraíba, foi muito solícita e me recebeu muito bem, me entregando uma carta de apresentação a ser apresentada ao representante do Banco do Nordeste com pequenos ajustes em relação à minuta que eu tinha enviado por email. Como se tratava de uma grande instituição, um banco de fomento ligado ao Governo Federal, com todos os protocolos e procedimentos burocráticos de uma organização empresarial de tal porte, é claro que eu precisaria, no mínimo, de uma carta de apresentação. Alicia seria uma das palestrantes, apresentaria uma pesquisa realizada junto aos pólos paraibanos solidários que tinham recebido investimentos do Banco do Nordeste. A ―academia‖ entra nesses eventos como um agente de certificação de diagnóstico crítico do mau ou bom funcionamento das políticas de apoio a projetos solidários. Para a minha sorte, Alicia tem bastante experiência nesse assunto e sabia de contatos importantes para pesquisa, conhecendo muita ―gente influente‖ relacionada a esse tipo de política e prática social, tema do meu trabalho de mestrado. Ela entregou a carta a Nelson, técnico do ETENE/BNB, e me apresentou a ele como pesquisador da UFPB. É o mesmo Nelson que estamos familiarizados desde o primeiro capítulo. Naquela oportunidade, ele me pareceu bem formal, uma ―autoridade‖, com paletó, gravata e notebook aberto, com uma apresentação em power point sendo reformulada. Na primeira mesa da manhã, as autoridades do poder público estavam presentes na mesa além de representantes da sociedade civil organizada. Para ser mais preciso, a

129

mesa era composta da seguinte forma: Francisco Bezerra, Presidente da Revista Nordeste VinteUm; Nelson dos Santos Filho, Coordenador de Estudos e Pesquisas do ETENE/BNB, que substituía José Sydrião de Alencar Júnior, então Superintendente do ETENE; Maria Aparecida Ramos de Meneses, Secretária de Desenvolvimento Humano do Governo do Estado da Paraíba; Lau Siqueira, Secretário de Desenvolvimento da Prefeitura de João Pessoa; Sandro Gomez, Presidente do Fórum Estadual de Economia Solidária da Paraíba; e Inácio Filho, Superintendente Regional do Trabalho e Emprego da Paraíba.

Foto 7. Mesa de abertura do Seminário Economia Solidária como estratégia de Inclusão Social e Desenvolvimento Local, ocorrido em João Pessoa no dia 17 de junho de 2011. Autor: Emanuel Oliveira Braga

Uma das falas que me chamou mais atenção, pela boa construção discursiva, pela oratória e pela lucidez da retórica política, foi a da Secretária de Desenvolvimento Humano do Governo da Paraíba, Maria Aparecida, conhecida pelos mais próximos por ―Cida‖. Com sua voz as ideias se tornavam óbvias. Imagino que para aqueles que militam pela economia solidária, a fala de Cida tenha soado muito bem. Disse, por exemplo, ―é preciso fazer com que a economia volte às suas origens e à sua essência solidária‖. Isto me soava marxista, o marxismo teórico, o capitalismo teria tornado o homem menos humano. Depois disse ―a ideia não é transformar o trabalhador num patrão‖ e ―o nosso foco são as camadas mais populares da sociedade‖.

130

Depois das falas e após participar de uma entrevista com o representante da Cáritas Brasileira45, Ademar Bertucci, Coordenador Nacional de Economia Solidária, percebi que as gerações mais velhas que estavam militando pela inserção da economia solidária no cenário político brasileiro eram ―remanescentes‖ de grupos de esquerda, de filiação religiosa ou não, de décadas anteriores, que lutaram, por exemplo, contra o regime militar pós-1964. Outra fala que me chamou atenção na primeira mesa do Ciclo de Debates foi a do Fórum Estadual de Economia Solidária, por meio de Sandro Gomez, cujo discurso, um pouco mais específico, estava em sintonia com a fala de Cida. Para Sandro, era fundamental situar a diferença da economia solidária em relação aos outros tipos de organizações socioeconômicas: ―a economia solidária se diferencia do modo de produção capitalista‖. ―Pois não prevê exploração do trabalhador‖. ―Não estamos falando em microempresas ou microempreendimentos‖. ―Não é uma solução emergencial para sanar problemas sociais deste país, é uma estratégia de desenvolvimento econômico para este país‖. ―A economia solidária é basicamente organização do trabalho coletivo. Não é economia de mercado, pois não precisa de um capital prévio para circulação de bens‖. ―Precisamos criar condições necessárias, condições políticas para que a economia solidária tenha o mesmo espaço conquistado por outros setores da produção e geração de renda neste país‖. Podemos ver que a grande preocupação de Sandro é defender a clara distinção que há, ou haveria, entre economia solidária e economia de mercado, prevalecendo uma positividade da primeira em relação a uma negatividade da segunda. O que pode nos indicar o porquê da antiga militância de esquerda das décadas de 1960, 1970 e 1980 ter ―migrado‖ para a lógica reverberada pelas políticas sociais que atuam com o conceito de ES 46. A última fala foi a do presidente da Revista Nordeste VinteUm, o jornalista Francisco Bezerra. O que tinha me surpreendido desde o início é ver uma Revista, dirigida por um jornalista-empresário, estar patrocinando e realizando tão diretamente aquele evento já que pressuponho que quem teria mais grana e interesse seriam os representantes do poder público e os bancos financiadores. O discurso de Francisco Bezerra é surpreendentemente o mais ―político‖ de todos aqueles que palestraram na mesa. Elogios à Paraíba, ao Nordeste, às figuras políticas históricas, tudo muito bem articulado oralmente. Falou e reiterou a importância de Celso Furtado pela tentativa de

45 46

Mais adiante, veremos um pouco da história e da missão institucional da Cáritas. Economia Solidária.

131

tornar a economia nordestina mais autosuficiente no cenário nacional. ―O Nordeste não é uma região problema‖ era um dos jargões mais presentes. Elogiou a palestra de Cida, chamando a atenção para a importância do Governo da Paraíba ter incluído os catadores de resíduos sólidos no programa do Governo Federal do Bolsa Família, mesmo que eles já possuíssem uma cooperativa estadual. Ao que parece, a ideia que perpassava todos os presentes nas palestras do Ciclo de Debates era a seguinte: o Bolsa Família é um projeto emergencial de solução de problemas sociais, a ES não. Mas o Bolsa Família não deve ser criticado, pois é necessário tendo em vista a situação atual do país. Ele deve ser uma alavanca para que as camadas populares possam se tornar independentes do Estado com uma organização socioeconômica autosuficiente que lhes possibilitem uma vida verdadeiramente digna. A ES poderia ser, inclusive, um segundo e último degrau de construção de uma dignidade cidadã para a população mais pobre deste país. Como vimos no primeiro capítulo, Renato, Superintendente do ETENE/BNB, avalia os Fundos Rotativos Solidários e a economia solidária como um estágio intermediário no caminho para ―acesso à cidadania plena‖ entre o Programa Bolsa Família e os tradicionais programas de microcrédito do BNB (Crediamigo e Agroamigo). No caso dos palestrantes do evento ora narrado, a ES não é uma solução intermediária, trata-se de uma solução definitiva. Ainda pela manhã, já pela hora do almoço, houve três palestras. Era o Painel que trazia Economia Solidária e Fundos Rotativos Solidários: histórico, panorama nacional e políticas para o desenvolvimento sustentável com os seguintes ministrantes: Ademar Bertucci, representante da Cáritas Brasileira; Roberto Marinho Alves da Silva, Diretor da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES; e Alicia Gonçalves, minha orientadora, representando a UFPB. O representante da Cáritas, coordenador do setor de ES da Cáritas, vinha para fazer mesmo um panorama geral do histórico e perspectivas das políticas sociais voltadas para o desenvolvimento da economia solidária e iniciou sua fala lembrando da palestra da primeira mesa, trazendo mais uma vez o exemplo dos catadores de lixo. Trouxe, pois, um depoimento de um catador de João Pessoa: ―não aumentou nossa renda, mas melhorou nossa vida‖. Assim como os demais palestrantes, citou expressões comuns ao meio dos militantes da ES pouco familiares para mim naquele momento. Ademar fez um breve histórico da Cáritas, de seu surgimento na Alemanha, de seu processo de internacionalização e o primeiro momento de atuação no Brasil, nos projetos pilotos do Rio Grande do Sul. Relatou que a preocupação com a economia

132

solidária já existia no Brasil com os movimentos da Igreja no Nordeste a exemplo das Comunidades Eclesiais de Base, nas décadas de 1970 e 1980. Defendeu que uma das missões da instituição é inserir os chamados ―Fundos Rotativos Solidários‖ na agenda política brasileira. A partir do governo Lula/Dilma, os ideais políticos da Cáritas passam a um nível de institucionalidade de política governamental. Em 2004, o BNB ―compra a ideia‖ da economia solidária e desenvolve os primeiros projetos pilotos. O desejo do trabalho desenvolvido pela Cáritas é que o Bolsa Família ―evolua‖ para iniciativas de microcrédito dentro do prisma da ES. Na prática, disse Bertucci, todos sabem que o BF47 não é abandonado e o que há, na verdade, é uma convivência dos dois tipos de políticas sociais. E isso não é um problema. Ademar deixa claro que o que o movimento da economia solidária deseja é ser inserido, cada vez mais, em setores ministeriais específicos do Governo Federal, com programas e recursos maiores de política de Estado, e isso, ao que parece, está longe de acontecer. Por enquanto, ela está no bolo do chamado ―terceiro setor‖: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, Microcrédito, Microempreendimento. E aí me veio a questão ingênua: onde está enquadrado o terceiro setor no governo brasileiro, no Ministério da Indústria e Comércio? No Ministério do Trabalho e Emprego? Ademar citou bastante o atual secretário da SENAES (uma secretaria especial, uma espécie de sub-Ministério do Governo Federal), o professor Paul Singer, que é um dos intelectuais brasileiros que realizou uma ―síntese teórica‖ das bases fundamentais da economia solidária. Depois da fala de Ademar, tivemos a palestra de Roberto Marinho, diretor da SENAES. Roberto reiterou todas as falas anteriores e estava em absoluta sintonia com a fala dos demais. Principalmente, buscou deixar assentado para aqueles que se inscreveram no Ciclo de Debates a seguinte afirmação: ―a economia solidária não é assistência social!‖. Não está preocupada em auxiliar o catador de lixo, mas em institucionalizar o ―resgate humano‖ do catador de lixo. Alguns clichês da esquerda democrática foram desenvolvidos na sua fala: ―redução das desigualdades sociais‖, ―partilha da riqueza gerada‖, ―é preciso que nossa sociedade procure institucionalizar o preço justo das mercadorias. O comércio deve respeitar o trabalho real que está embutido em cada mercadoria‖. Na fala de Roberto, tudo parece muito bonito,

47

Bolsa Família.

133

necessário e justo na economia solidária. ―É preciso estar atento à economia feminina que é a economia do cuidado: cuidar da vida, do tempo e do trabalho reprodutivo‖. ―E, por fim, é preciso manter também as características culturais de cada povo alvo de políticas sociais de economia solidária‖. Surge, então, o momento dos questionamentos da platéia. Uma moça se levanta e fala da experiência de vida dela e do fato de estarmos na sede da Superintendência do Trabalho e Emprego, onde todos os dias trabalhadores formam uma fila imensa logo pela manhã em busca de seus direitos trabalhistas (Eu já passei várias vezes pelo local pela manhã a caminho do meu trabalho e, de fato, a fila é enorme). Por isso, ela se pergunta e pergunta aos palestrantes: quem participa de circuitos e projetos de ES têm os mesmos direitos trabalhistas que os trabalhadores ―que possuem patrão‖, os trabalhadores de outros segmentos? Eu, particularmente, achei brilhante e muito oportuna a pergunta. Mas o pessoal que estava do meu lado achou que era uma questão desnecessária, passando a impressão que não gostaram do que ela disse e ―então, pra quê ela veio pro evento?‖. Lembrei agora que depois da pausa para o café (coffee break), entre a primeira mesa e a segunda, encontrei uma pesquisadora, socióloga, que fazia um trabalho de doutoramento em sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN cujo tema dizia respeito à construção das políticas sociais desde a origem do recurso nos cofres do poder público até a aplicação das ações pelo Cáritas e outras instituições que descentralizam as políticas junto às comunidades focos dos projetos de economia solidária. Seu nome é Luciana Mafra. Ela sentou ao meu lado e teve que ouvir por um bom tempo minhas dúvidas bastante básicas já que eu estava bem no início da pesquisa, era o ―primeiro dia de campo‖, enquanto ela já estava finalizando os resultados empíricos obtidos. Segundo Luciana, os ―receptores‖ dessas políticas sociais, ou seja, as ―comunidades‖, os grupos sociais pobres, os bairros populares, costumam confundir a origem do recurso aplicado na instalação de uma cisterna, por exemplo. Eles não sabem dizer se a ―grana‖ veio da Igreja, da Paróquia, do poder público municipal, estadual, ou federal, da Pastoral da Criança, da Cáritas ou do BNB, fazem comumente a confusão de quem é responsável pelo o quê nos projetos. E os aplicadores desses recursos consideram esse fato um ―sério problema‖, pois se os receptores desses benefícios não sabem ―quem é quem‖ no jogo político de setores municipais, estaduais e federais e organizações não governamentais, essas populações nomeadas como

134

―carentes‖ ficam à mercê do marketing politiqueiro eleitoral de ―falsos donos‖ dos projetos. Percebi que em todas as falas da manhã existe um forte discurso em prol da autosuficiência das comunidades, da necessidade delas autogerirem esses recursos disponibilizados. Palavras-chave implícitas e explícitas nas narrativas construídas pelos palestrantes são: independência, solidariedade, democracia e sustentabilidade. Mas continuemos com a fala de Roberto Marinho, diretor da SENAES. Para ele, ―os gastos das políticas sociais não são ‗despesas sem retorno‘; elas aumentaram o PIB48 do Brasil, assim como aumentou o segmento de trabalhadores formais‖. Ele chamou várias vezes os trabalhadores com carteira assinada, ―com patrão‖, de ―trabalhadores subordinados‖. Disse também que ―a média da renda individual da economia solidária é maior que a do Bolsa Família‖, que ―as comunidades precisam exercer a democracia‖ e que ―é preciso legalizar e institucionalizar a economia solidária‖. Na hora do almoço, acompanhei a socióloga Luciana e o seu mais novo entrevistado, Ademar Bertucci, da Cáritas. Ademar queria saber onde naquelas redondezas do centro de João Pessoa havia um restaurante com boa comida para almoçar. Eu sabia onde ficava e disse que ia levá-los lá. Não prestei atenção especificamente às questões de Luciana, mas na ―fofoca‖, coisas sobre a vida de Ademar e seu interesse pela economia solidária, por exemplo. A fofoca seria antropológica, enquanto os dados oficiais sociológicos. Fiz essa diferença inútil e infantil pro Ademar e ele riu. Mas respeitei a preferência de Luciana para a entrevista, coisa que ela já tinha me pedido no auditório. Durante a entrevista realizada no restaurante Aspargos, no centro de João Pessoa, descobri que Ademar era de origem pobre, do interior de São Paulo (do ABC paulista) e que, durante a juventude, tinha participado dos movimentos sociais desencadeados pela Teologia da Libertação. Bem, de todas as questões de Luciana, a que achei mais interessante foi: por que sempre a ES é vista como a ―outra economia‖; por que não é nominada com algum ―ismo‖? Ele não conseguiu responder direito, tergiversou, mas resumiu dizendo que nenhum movimento que se preze gosta de ser rotulado. E é verdade.

48

Produto Interno Bruto.

135

Ademar afirmou que a Cáritas começa com um discurso ilustrado de intelectuais que queriam ―salvar o mundo‖ e depois, com as experiências dos trabalhos realizados, segue com a ideia da necessidade do diálogo com o ―outro‖, da construção coparticipativa dos projetos. ―O pobre não é um ser carente; é absolutamente capaz. É necessário, pois, uma construção coletiva dos saberes‖. Reiterou que a opção da Cáritas é pelos mais excluídos socialmente. E afirmou ―são poucas multinacionais que mandam no mundo hoje em dia‖. ―O desenvolvimento deve partir de dentro da comunidade e não de fora para dentro, não a partir das iniciativas do Governo‖. No retorno do almoço, a primeira apresentação da tarde foi organizada pelo professor Eduardo Girão Santiago, da Universidade Federal do Ceará. A fala trazia a experiência de um projeto, chamado Cordel dos fundos rotativos solidários, coordenado pela Articulação do Semiárido na Paraíba – ASA/PB. Segundo Eduardo Girão, um mito foi reverberado durante muito tempo e ainda é reverberado para justificar os problemas sociais da região Nordeste. É o jargão que defende que o problema do semiárido é a falta de investimento. Mas ―não existe região no Brasil que recebeu mais investimentos de recursos públicos do que o nosso semiárido‖. Eduardo, que além de professor da Universidade Federal do Ceará, é membro do Comitê Nacional dos Fundos Rotativos Solidários e fazia parte de uma mesa do Ciclo de Debates juntamente com José Waldir de Sousa Costa, representante da ASA e José Dias Campos, do Centro de Educação Popular e Formação Social – CEPFS. Era um acadêmico que trazia dois representantes da ―comunidade beneficiada‖ pelas políticas de ES para oferecer palestras em um Ciclo de Debates cujo tema era economia solidária. Waldir apenas reiterou as opiniões de Eduardo, afirmando que ―o problema do Nordeste não está na seca e sim em historicamente ver o recurso público sendo aplicado em açudes particulares e obras faraônicas‖. Para certificar que a economia solidária não está sendo feita ―de cima pra baixo‖, defende: ―não fazemos solidariedade porque está na moda. Essa é uma palavra que surge na própria comunidade‖. Pelo meio da tarde, teve início a fala do representante do Banco do Nordeste, o Nelson. Depois de sua fala que resumia o histórico da atuação do BNB no âmbito da ES, das estratégias e ações do PAPPS, houve indagações do público presente (dois participantes) sobre a morosidade dos processos iniciados junto ao BNB. Um deles perguntou: ―quando o BNB será verdadeiramente solidário?‖ e foi aplaudido por uns e

136

criticado por outros presentes. Nelson respondeu simplesmente assim: ―quando o Brasil for verdadeiramente solidário‖. E completou: ―o BNB irá apoiar todas as iniciativas do Governo da Paraíba quanto aos investimentos em fundos rotativos‖. Com essa frase, ele foi aplaudido entusiasmadamente. Vi, então, que o BNB é, de certo modo, quando existe contexto favorável e abertura política local, o ―dono do dinheiro‖. Por isso, foi uma fala muito importante daquele encontro. Outro participante entregou um projeto local de ES pessoalmente ao Nelson, contando com a pressão do momento da plateia junto ao palestrante. E foi aplaudido, tendo recebido gritos de louvor pela iniciativa. Percebi que muitas das falas dos palestrantes eram justificadas por dados e gráficos estatísticos. Em alguns casos, esses dados e figuras são vistas como ―fatores‖ que ilustram determinadas verdades incontestes. Nelson buscou, em sua fala, combater a ideia de que o nordestino está fadado à pobreza e a ideia de que o nordestino não ser adepto do ―espírito cooperativo‖. Um participante da plateia pediu a palavra e disse que para que a economia solidária se torne mais hegemônica nas relações de trocas de bens e consumos na região Nordeste, seria preciso que os investimentos para projetos desse tipo fossem do mesmo montante daqueles que outros setores socioeconômicos da sociedade recebem, a exemplo dos microempreendedores, que recebem financiamentos de programas do BNB como o Crediamigo e o Agroamigo. Realmente, os FRS49 são bastante tímidos em relação aos créditos convencionais do Banco. Por último, tivemos novamente a fala de Sandro Gomez, presidente do Fórum Estadual de Economia Solidária, e a palestra da professora Bárbara Schmidt-Rahmer, da Fundação Esquel e da Pastoral da Criança. Sandro apenas reforçou o que havia defendido na mesa de apresentação da manhã e Bárbara, com sotaque estrangeiro, reiterou o que todos outros palestrantes defenderam: ―é preciso inserir as demandas da economia solidária na agenda do plano plurianual do Governo da Paraíba‖. Provavelmente, a Fundação Esquel ―rivaliza‖ com a Cáritas pelo bolo de projetos dos fundos solidários do Nordeste. Bárbara fez uma diferença entre os governos Lula e Dilma. Segundo ela, enquanto Lula funcionava pela pressão da sociedade, ou seja, ―quem me pressiona mais, eu atendo‖, Dilma tem um perfil mais tecnocrata, valorizando os dados produzidos por profissionais especializados apontando onde o Estado deve agir prioritariamente. Por

49

Fundos Rotativos Solidários.

137

isso, Bárbara defende que a Fundação Esquel precisa fazer um mapeamento completo da situação das experiências dos Fundos Rotativos Solidários existentes na Paraíba e em outros Estados da região Nordeste, para produzir dados precisos que convençam o Governo Federal da prioridade em atuar em tal aspecto e não em outro, em tal região e não em outra. Em seguida, afirmou em tom de promessa: ―vamos fazer chover recursos nessas comunidades que se mostrarem devidamente organizadas para alimentar, plantar e florescer o potencial das pessoas, desenvolvendo o Nordeste com solidariedade e sustentabilidade‖. Depois dessa mesa, foi encerrado o evento com falas bem mais políticas, que usavam de bastante recurso retórico poético de convencimento, feitas pelo presidente da Revista Nordeste VinteUm. Todos aplaudiram, se despediram e foram para suas casas viver suas vidas. Foi um dia inteiro de bombardeio de informações que só depois, ao longo das entrevistas e organização de dados seriam mais elucidativas. Entretanto, naquele dia mesmo consegui perceber duas características marcantes do movimento da economia solidária, reiteradas no referido almoço com a socióloga da UFRN, Luciana Mafra e o com Ademar Bertucci. Ademar é uma daquelas figuras carismáticas, que prendem imediatamente a atenção seja em uma conversa ou em uma apresentação de palestra. Duas características da mobilização em torno da ES me marcaram no dia do Seminário. A primeira se refere à impressão de absoluta sintonia e articulação entre todas as instituições presentes no evento. Uma fala complementava a outra de uma forma inovadora, não deixando brechas para questionamentos ou ecos entre uma apresentação e outra. Todo mundo se entendia ali e as poucas indagações de teor mais negativo que surgiam eram logo abafadas por representantes da mesa e da plateia. A única instituição em que o público se permitiu uma postura mais crítica foi justamente o BNB. Interessante perceber que, como afirmei anteriormente, um dos únicos momentos em que eu pude perceber, enquanto neófito no assunto, uma certa ―dissidência‖ de alguém da plateia em relação aos palestrantes foi no momento da fala de Nelson, Coordenador de Estudos e Pesquisas do ETENE. Depois da apresentação dele, que tinha como tema Sobre as políticas de desenvolvimento do BNB e ETENE, com

138

foco especial nos Fundos Rotativos Solidários 50, um rapaz levantou do público e indagou ao representante do Banco do Nordeste ―quando o BNB vai ser de fato solidário‖, ao que Nelson respondeu com traquilidade e sagacidade: ―quando a sociedade, de maneira ampla, for de fato solidária‖. Essa provocação do rapaz dizia respeito ao baixíssimo montante de recursos que o Banco do Nordeste destinava ao apoio institucional e financeiro a projetos de ES em relação à receita total de projetos incentivados pelo Banco. Nelson optou, naquele momento da palestra, por diluir a questão. Veremos, ao longo do presente capítulo, que a ES se configura de modo marginal, no escopo institucional do BNB. A segunda característica de ―impressão à primeira vista‖ do Seminário se refere à percepção do orgulho dos organizadores e participantes do evento, em estarem lá reunindo mais uma vez aquelas pessoas, cada qual representando uma instituição e falando em nome da ideia-força economia solidária. O evento Seminário, situação social que condensa em algumas horas diversos aspectos, relações e questões direta e indiretamente relacionadas à ES, exerce, com eficácia, o papel simbólico de reafirmação da identidade do grupo, procurando diluir possíveis residualidades ainda existentes e ocupando um determinado espaço político estratégico. De antemão, podemos visualizar estratagemas discursivos que buscam, a todo momento, situar a economia solidária em contraposição a duas históricas posturas políticas identificadas pelos interlocutores na história do nosso país e uma postura mais recente presente em nossa atual conjuntura governamental e do sistema políticoeconômico neoliberal como um todo. Dessa forma, temos os seguintes quadros de posturas políticas presentes no cenário governamental brasileiro criticadas negativamente pelo movimento em prol da economia solidária: Históricas 1. A exploração clássica do trabalho, por meio do modelo contratual e convencional do capitalismo (patrão x empregado); 2. O assistencialismo vicioso da máquina pública nacional, em contextos mais amplos e locais também, de tratar os problemas sociais com ações emergenciais, paliativas e

Ao longo deste capítulo, teremos oportunidade de detalhar e problematizar o instrumento de apoio financeiro a projetos de economia solidária no BNB que são os Fundos Rotativos Solidários. 50

139

eleitoreiras, que em vez de propor condições para a superação das nossas mazelas sociais, agravam a situação.

Recente 3. A hegemonia institucional das políticas de financiamento via microcrédito focalizadas no modelo empreendedorista, conforme narramos no terceiro tópico do primeiro capítulo desta dissertação.

2.2. Definições, consensos e conflitos Com uma grande variedade de narrativas históricas, definições acadêmicas e populares e proposições ideológicas, a chamada economia solidária tem produzido suas referências culturais e políticas sobre diversos contextos locais, nacionais e internacionais, estabelecendo consensos e conflitos por onde atua como movimento. Noëlle Lechat enumera uma miríade de nomenclaturas que caracterizam esse modo de viver e produzir: Para início de conversa, preciso enumerar os diversos nomes dados para o que identifiquei genericamente como economia solidária e, para tanto, vou apenas listá-los por ordem alfabética. Trata-se de cooperativismo popular, cooperativismo popular e autogestionário, economia alternativa, economia autogestionária, economia cidadã, economia da dádiva, economia da simplicidade, economia de solidariedade e trabalho, economia do trabalho, economia moral, economia popular de solidariedade, economia popular solidária, economia popular e solidária, economia social, economia solidária, economia solidária e autogestionária, a outra economia, socialismo autogestionário, socioeconomia popular e solidária, socioeconomia solidária (Lechat, 2004: 106).

Mas, de que se trata, afinal, esta economia de vários nomes, segundo os especialistas? Quando falo ―especialistas‖ no presente texto refiro-me a autores que se debruçaram com mais atenção ao tema e que, de certo modo, militam intelectualmente e que, em alguns casos, ―pegam a mão na massa‖, propõem projetos, organizam incubadoras de ES 51, acompanham o funcionamento de cooperativas, participam de 51 Incubadoras, no sentido genérico e técnico-científico, pode ser compreendida como a organização de grupos de trabalho responsáveis pela realização de reuniões, capacitações, ensaios por um período determinado de tempo, no intuito de elaborar um produto final ou uma situação efetiva, como uma invenção tecnológica, uma descoberta científica ou um modelo de gestão empresarial. As Incubadoras de

140

encontros sobre o assunto, etc. Os autores, em alguns casos, são atores sociais ativos no processo de constituição da cultura política da ES no país e no mundo. Quando Paulo Salles de Oliveira indagou ao economista Paul Singer 52, um dos grandes articuladores e ideólogos 53 do movimento da ES no Brasil, o que ele entendia por ―economia solidária‖, o entrevistado respondeu prontamente e de modo bem objetivo: Nós costumamos definir economia solidária como um modo de produção que se caracteriza pela igualdade. Pela igualdade de direitos, os meios de produção são de posse coletiva dos que trabalham com eles – essa é a característica central. E a autogestão, ou seja, os empreendimentos de economia solidária são geridos pelos próprios trabalhadores coletivamente de forma inteiramente democrática, quer dizer, cada sócio, cada membro do empreendimento tem direito a um voto (Estudos Avançados, 2008: 289).

Nesse mesmo tom, o sociólogo Luiz Inácio Gaiger (2003) considera o que chama ―economia popular solidária‖ como os movimentos populares de geração de trabalho e renda baseados na livre associação de trabalhadores e nos valores da autogestão e cooperação. O economista Marcos Arruda também caracteriza o que denomina ―socioeconomia solidária‖ de modo bastante amplo. Para ele, esse modelo, na verdade, trata-se de um modo de vida, uma visão de mundo, uma, por assim dizer, ―cultura‖. Um movimento que transcende as iniciativas restritas ao econômico. Além das transformações institucionais na esfera socioeconômica, implica em mudanças profundas no nível das relações sociais e culturais: envolve mudanças na visão de mundo e paradigmas, valores, atitudes, comportamentos, modos de relação, aspirações, paixões e desejos (Arruda, 2000: s/ pág. apud Bertucci & Marinho, 2003: 67).

Podemos, então, situar a economia solidária como um conjunto de proposições ideológicas (no sentido mais amplo do termo) de atuar no mundo, ou, como Singer prefere, um modo de produzir a existência. Não dá para definir, então, um contexto específico de aparecimento desse modus operandi; ele possui uma dinâmica de presença

Economia Solidária, ou as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares - ITCP, tem o mesmo sentido explicado anteriormente aplicado no desenvolvimento de práticas que preparem o grupo para a organização de empreendimentos autogestionários. 52 Em entrevista concedida no dia 23 de setembro de 2007, publicada na revista eletrônica do Instituto de Estudos Avançados da USP em abril de 2008. 53 Se Antonio Gramsci tivesse oportunidade de caracterizar uma figura como a de Paul Singer, o mesmo receberia a alcunha de ―intelectual orgânico‖.

141

em vários tempos e espaços históricos. Podemos dizer que se trata de uma determinada ―cultura política‖ atuante em conjunturas historicamente favoráveis. Durante a chamada Revolução Industrial, no século XIX, podemos encontrar a lógica cultural solidária, a título de exemplo, no movimento do que historicamente se denominou ―socialismo utópico‖, encabeçado por ativistas tais como o industrial galês Robert Owen. Em nações de tradição católica, países como Portugal e Brasil, José Murilo de Carvalho (2008) aponta a existência de certas formas de solidariedade socioeconômica que regulavam a organização da vida das vilas e cidades em épocas pretéritas. Estamos nos referindo às irmandades religiosas e às corporações de ofício. Na Europa, esses tipos de sociabilidade aparecem, desaparecem e reaparecem, com elevado grau de variabilidade, durante grande parte da chamada Idade Média e períodos posteriores. Na América colonial, elas foram bastante atuantes no entremeado dos séculos XVIII e XIX. Segundo Carvalho, no Brasil as corporações de ofício embandeiradas (peculiarmente entrosadas com as irmandades religiosas) ―seriam substituídas, a partir da década de 1830, pelas sociedades de auxílio mútuo e, mais tarde ainda, pelos sindicatos. Sobreviveram as irmandades estritamente religiosas, dedicadas ao culto dos patronos e à assistência individual dos sócios‖ (2008: 7). Mônica de Souza Martins (2008) argumenta que na cidade do Rio de Janeiro as corporações de ofício foram paulatinamente perdendo seu prestígio com a pressão exercida por grandes comerciantes fluminenses interessados em controlar as trocas comerciais e o crédito. A crescente burguesia estava aborrecida diante do modelo de aprendizado e a limitação de competição impelida pelas irmandades. Era o advento da política institucional liberal no Brasil. Há uma preocupação de quem trabalha com esse conjunto de conceitos e práticas de legitimar um lastro histórico, conectando os fenômenos contemporâneos desse modo de gestão socioeconômica, por exemplo, às guildas, às confrarias, às corporações de ofício e às irmandades de épocas pretéritas (de uma narrativa hegemônica da ―história geral‖ ou ―história do mundo ocidental‖) que constituiriam formas arcaicas de organização do trabalho solidário. Além do já mencionado Owen, outros pensadores dos séculos XVIII e XIX, a exemplo de Charles Fourier e Pierre Proudhon54, são situados genealogicamente como mentores intelectuais de um corpus

Segundo o economista Paulo Sandroni, para Proudhon, o mutualismo ―seria a forma de uma sociedade formada por pequenos proprietários e trabalhadores, com todas as forças coercitivas de governo abolidas e substituídas por associações voluntárias auto-administradas e federadas‖ (2005: 68). 54

142

de conhecimento que dá suporte ao fazer e refazer contemporâneos da economia solidária (Sandroni, 2005). No BNB, a presença de estudos voltados para a implantação de certos princípios da economia solidária no sistema operacional do Banco é desconhecido pela maioria dos bancários e quando há conhecimento sobre o tema, ele é colocado à margem do processo dos planos estratégicos da instituição. Alguns servidores como Nelson, Renato e Alencar, que atuam ou atuaram pelo ETENE, defendem uma maior solidez do movimento da economia solidária no Brasil para que o Banco do Nordeste também possa, paulatinamente, incorporar a cultura política da ES dentro de seu raio de políticas possíveis. Para eles, o movimento não pode ser caracterizado como experimental ou modismo. Na prática observada na pesquisa junto ao Banco e à rede de ES no Brasil, a economia solidária cresce enquanto movimento social que pressiona e cada vez se insere mais em níveis governamentais e institucionais de atuação, especialmente após a criação da SENAES, uma instância ministerial do poder executivo ligada diretamente ao Governo Federal, com menor aporte de recursos financeiros e menor estrutura institucional do que um Ministério propriamente dito. Enquanto Renato avalia que o Banco já foi muito ousado ao incorporar o tema em suas práticas institucionais, Nelson, fora de suas palestras, se considera a única pessoa que está ―tocando essa ação‖ no BNB. Não há de se negar que para um homem de esquerda como eu, essa economia/lógica cultural muito me agrada. E, ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato de estarmos lidando com um dialeto da militância de esquerda, inspirado na corrente de movimentos liderados pelos chamados ―socialistas utópicos‖ do século XIX europeu, onde diversas experiências cooperativas foram realizadas 55. O código narrativo da economia solidária pertence ao manancial teórico que pretende dar um novo foco ao marxismo considerado ―clássico‖ e apresenta várias interpretações que se aproximam em alguns pontos e se afastam em outros 56. Alguns interlocutores, a exemplo do próprio Singer, afirmam que a economia solidária representa o ―verdadeiro socialismo‖. Conforme suas palavras:

O código narrativo do ―socialismo utópico‖ ora se aproximava ora se afastava dos ideais políticos almejados pelo chamado ―socialismo científico‖ ou ―real‖. Interessante observar que contemporaneamente (após a Queda do Muro de Berlim?) a utopia se transmuta em realidade e o real se transmuta de quimera, quando vemos ascender movimentos em prol da economia solidária, considerada mais plausível e ―real‖ do que a proposta revolucionária ―clássica‖. 56 Ver discussão levantada por Nöelle Lechat (2002). 55

143

Ao me convencer de que Marx errou, vi que a idéia de centralizar o planejamento de toda a economia nacional num único grupo de dirigentes é profundamente antidemocrática e viola os direitos humanos, ou seja, não era uma boa idéia57. Ela estava levando o capitalismo com suas tendências de concentração do capital às últimas conseqüências. E ele sabia disso, só que achava que desembocaria no reino da liberdade. Na prática, não se mostrou nem um pouco isso. Mas, se esse não era o socialismo, o que era socialismo? Essa foi a indagação que me ocupou nos anos 1980. Num de meus livros chamado Aprender economia, há um capítulo chamado ―Socialismo‖. Era um curso que eu dei no Rio e, graças a Deus, no livro existe não só o que eu expus, mas também as respostas às perguntas da platéia. Ali já estão idéias de economia solidária sem esse nome (Estudos Avançados, 2008: 312).

Esse posicionamento teórico de Singer, que procura reinterpretar a obra marxista, me lembrou um fato ocorrido nos corredores da Universidade Federal da Paraíba, quando fui abordado por um colega meu bastante espirituoso a perguntar o que eu iria trabalhar na pesquisa de mestrado, qual seria o meu tema. Quando disse do que se tratava, ele olhou para mim em tom cínico e falou: ―é tudo muito simples, a economia solidária é socialista e a responsabilidade socioambiental é capitalista‖. Ora, ele tem razão. E, no entanto, quando esses conceitos/práticas são inventados e reinventados cotidianamente por cada agente institucional e parceiro do Banco do Nordeste, essa ―simplicidade‖ óbvia ganha os timbres da história pessoal de vida de cada um e os sentidos, sonhos e novas realidades de um ―mundo mais justo‖ trazem uma possibilidade, até então pouco provável, de fazer um estudo comparativo dessas duas veredas abertas no e pelo mundo contemporâneo. Para situar o leitor por meio de experiências e casos específicos e mais concretos de ações inspiradas nos princípios da ES que tiveram sucesso em seus objetivos, é importante trazer um exemplo considerado emblemático (Nobel da Paz!) descrito por R. Mota, Superintendente do ETENE: [...] exemplo é o do Grameen Bank (Banco da Aldeia), criado em Bangladesh, um dos lugares mais pobres do mundo, por Muhammad Yunus, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2006. Yunus inspirou um grupo de professores e estudantes de economia da Universidade de Chittagong, durante uma época de grande fome em 1974. Observou que a fome não resultava da falta de comida, mas da incapacidade de uma grande parte da população de comprá-la por falta de dinheiro. ―Em tempos de fome, apesar das abundantes reservas de cereais, os pobres não tinham acesso à alimentação‖ (YUNUS, 1997, p. 79 apud SINGER, 2002). Estudando e investigando as causas da pobreza na aldeia Jobra, próxima à Universidade de Chittagong, o grupo identificou 42 pessoas (em sua maioria viúvas, abandonadas, quase sempre com filhos), que trabalhavam por conta própria como artesãs ou agricultoras e que dependiam de empréstimos feitos a 57

Grifos nossos.

144

agiotas que depois lhes compravam a produção, criando um ciclo de dependência. Os professores fizeram uma descoberta revolucionária, de que o valor que os pobres necessitavam era irrisório, por exemplo: Sufia Begum, que fabricava tamboretes de bambu, poderia libertar-se do jugo da usura se pudesse dispor de cinco takas (moeda de Bangladesh), equivalente a 22 centavos de dólar, e a totalidade dos pobres da aldeia precisaria de uma soma de 856 takas (27 dólares) para se livrar das garras dos agiotas. O próprio Yunus, como aplicação filantrópica emprestou as 856 takas, sem prazo certo de reembolso e sem juros. Assim, começou a odisséia do Banco da Aldeia. Usando seu crédito pessoal como garantia, fez empréstimos em bancos e os repassou aos pobres. No início, Yunus convenceu o presidente do Banco Agrícola a abrir uma agência experimental em Jobra, o que permitiu o crescimento do Banco da Aldeia. Outra invenção metodológica importante foi substituir a garantia real (inexistente) pelo aval solidário. O Banco da Aldeia só aceitava como membros grupos de cinco mulheres, dispostas a se responsabilizar coletivamente pelos empréstimos feitos a cada uma. [...] Resumindo, o Banco da Aldeia é o antibanco: faz tudo o que os bancos convencionais fazem, porém, ao contrário. Trabalha com os clientes realmente pobres, enquanto os outros bancos se preocupam com a capacidade de pagamento dos clientes. A experiência do Banco da Aldeia inspirou programas de microcrédito no mundo todo, inclusive o CREDIAMIGO do BNB, embora nem sempre correspondam exatamente à proposta original, pois as especificidades locais estabelecem diferenciações. Hoje, no Brasil, existem várias experiências de microcrédito que têm priorizado os grupos mais pobres e que busca no seu cotidiano tecer relações democráticas e emancipatórias, inspirando-se não só no banco de Yunus, como também em outras experiências exitosas (Mota, 2009: 32 e 33).

Entretanto, ao contrário da experiência do Banco da Aldeia, de Bangladesh, o Crediamigo, citado por Mota, é um programa de microcrédito com previsão de juros. A experiência socioeconômica de Yunus deve ser melhor comparada à metodologia dos Fundos Rotativos Solidária aplicada pelo BNB em determinados contextos comunitários. Para além de Singer, Gaiger, Arruda e a narrativa do Nobel da Paz, outros autores apresentam uma visão que podemos classificar como inventariante e crítica, que chama a atenção para o fato da economia solidária surgir, muitas vezes, em contextos sociais marcados por crises econômicas e baixo índice de empregos formais. Ao historiar as experiências nacionais e latino-americanas de economia solidária, pesquisadores como Genauto C. França Filho e Jean-Louis Laville (2004) defendem que a organização de empreendimentos baseados nos princípios da economia solidária está relacionada com o cenário socioeconômico de exploração do trabalho e de constantes ameaças de desemprego, onde os trabalhadores, divididos em grupos ou famílias marginalizadas pelo mundo capitalista, lutam por condições mais dignas de vida constituindo cooperativas de produção em pequena escala. Nesse ponto de vista, as

145

cooperativas autogestionárias também constituiriam, em alguns casos, a solução encontrada pelos trabalhadores para conseguirem manter seus postos de serviço, assumindo, por exemplo, fábricas falidas ou em processo de falência e se transformando em administradores das mesmas. Ricardo Antunes (1999) demonstra uma perspectiva pessimista em relação à organização de empreendimentos cooperativos no Brasil e na América Latina como suposto contraponto à situação de falta de emprego ou de exploração dos trabalhos considerados ―formais e tradicionais‖. O trabalho não desaparece com o desemprego e muito menos com os processos clássicos de exploração dos serviços prestados pelos trabalhadores mais pobres. O trabalho, entendido como dispêndio de energia física e intelectual, segundo Antunes (2003) aumentou em relação a tempos pretéritos e tende a aumentar mais ainda nos próximos anos 58. Porém os benefícios e as condições para o exercício complexo das atividades atuais foram precarizadas. O trabalho se torna cada vez mais precário e sem proteção legal nem sindical. Se antes, nos sistemas taylorista e fordista, havia uma busca constante de proteção ao trabalhador por parte dos sindicatos cientes da condição de vida dos seus operários, hoje, no sistema ―de tipo toyotista‖, na era da acumulação flexível do capital, os trabalhadores são impelidos a fiscalizarem a si próprios, tornando-se, na expressão de Antunes, ―déspotas de si mesmos‖. ―No mundo produtivo um trabalhador é jogado contra o outro. É difícil imaginar que isso não tenha afetado com muita força o movimento sindical‖ (2003: 68). Silveira, servidor do BNB, vê esse sistema totalitário de avaliação implantado recentemente nos ambientes de trabalho do Banco de um modo bastante positivo: O banco historicamente, se você for comparar o mercado, é uma empresa que trata bem os seus funcionários, ele tem plano de saúde, tem uma taxa de previdência, a questão do Plano de Cargos e Salários, tem uma carreira, você é premiado por merecimento, a cada dois anos. Todo ano tem um processo de avaliação da empresa pra saber se você tá correspondendo e você acaba sendo beneficiado por se você tá atendendo bem. E, assim, o interessante eu acho desse processo de avaliação é, assim, porque você é avaliado pelo seu chefe, você é avaliado pelos seus colegas, e você se auto-avalia. É a chamada avaliação de trezentos e sessenta graus. É preciso problematizar e questionar mais essa questão do aumento das energias de trabalho do capitalismo toyotista em relação aos sistemas fordista e taylorista. Ricardo Antunes há de concordar que era um tremendo esforço físico e intelectual se concentrar em um mesmo tipo de atividade repetitiva durante oito, dez, doze horas por dia como operário de uma fábrica inglesa tradicional no entremeado dos séculos XIX e XX. Não temos como ―provar‖ que um trabalhador típico do capitalismo industrial de cem anos atrás produz mais ou menos força de trabalho do que um trabalhador típico do capitalismo informacional do século XXI. 58

146

Todo mundo se avalia. Aqueles dados que eu tenho relacionamento, aquele mesmo tipo de atividade eu avalio meus colegas que estão em conjunto comigo. Eu avalio pra cima, avalio pro lado e me auto-avalio. Então, nessa conjugação de forças eu for bem avaliado, então eu tenho uma grande chance de subir de posição na empresa (Silveira).

Como falei no início do primeiro capítulo desta dissertação, o Banco do Nordeste, apesar do recente processo de precarização do trabalho, ainda é um bom lugar para se trabalhar, na visão dos colaboradores da pesquisa, em comparação com outros modelos empregatícios. Silveira e outros bancários incorporam, com certa facilidade, o discurso toyotista 59 que, aos poucos, se apodera da cultura trabalhista do Banco. A grande massa de trabalhadores brasileiros e latino-americanos que estão em condição de desempregados ou subempregados, são forçados, em sua liberdade, a procurarem novos meios de vida na informalidade trabalhista de empreendimentos autogestionários ou na disponibilização de seus serviços para empresas terceirizadas com poucas garantias empregatícias. Não foram, portanto, à toa as questões provocativas lançadas para os palestrantes do Seminário narrado no primeiro tópico do presente capítulo. Se os palestrantes, Eduardo, Cida, Nelson, entre outros, falam da altura de seus empregos tradicionais e formais, que base eles têm para a defesa da ―libertação‖ das condições indignas de vida por meio do ―solidarismo‖ de uma ―outra economia‖? Para alguém que é ―carente de tudo‖, de emprego, de dinheiro, de alimentos saudáveis, de roupas decentes, de moradia confortável, é mais do que uma obrigação moral, na fala dos palestrantes da economia solidária, esse alguém solidarizar-se junto aos outros de igual ou pior situação em nome de um avanço para conquista da tão aclamada cidadania. Um ―carente de tudo‖ não pode se dar o luxo dos prazeres do individualismo de cada um. Dessa forma, ao finalizarmos este tópico, podemos encontrar uma ampla cartografia conceitual da economia solidária no Brasil contemporâneo. Desde posturas mais militantes que tendem ao pragmatismo (Singer), que tendem a uma perspectiva mais técnica e gerencial (Gaiger), que tendem a um teor mais transcendental (Arruda), 59 O chamado toyotismo é um modelo de organização produtivo-empresarial que propõe uma flexibilização das relações de trabalho a fim de promover um aceleramento na acumulação do capital. Originou-se no Japão após o término da Segunda Guerra Mundial como alternativa socioeconômica de ―reconstrução‖ do país assolado pelos anos de guerra. O toyotismo estabelece contrapontos metodológicos e estratégicos no paradigma fordista, demonstrando que por meio da procura constante de aperfeiçoamento, trabalho polivalente, autonomia e, sobretudo, confiança e conhecimento no trabalhador, é possível um processo motivacional que possibilite o aumento dos lucros de um determinado empreendimento.

147

até a postura inventariante (França Filho & Laville) ou mais crítica e pessimista (Antunes).

2.3. Movimento social global Existem várias teorias contemporâneas que buscam abordar as adaptações e permanências, a dinâmicas históricas, práticas e conceituais, dos ditos movimentos sociais. Algumas delas chamam atenção para o caráter globalizante dos novos movimentos que vêm se consolidando desde o final do século XX em contraposição à tradicional globalização do capital que poderíamos denominar de neocolonialismo ou neoliberalismo. O prefixo ―neo‖ não serve para muita coisa. Os pesquisadores Carlos Siqueira, Hermano Castro e Tânia de Araújo (2003) fazem um levantamento reflexivo dos autores que se debruçaram recentemente sobre o tema dos movimentos sociais globais. Jeremy Brecher, Tim Costello e Brendan Smith (2000) chamam esses novos modelos de movimentos sociais de ―globalização por debaixo‖. São movimentos organizados que se constituem como ―redes de resistência‖. John Arquilla e David Ronfeldt (2001) usam a expressão ―guerra de rede‖ para metaforizar o propósito político dessas organizações mundiais. Arquilla e Ronfeldt traçam características básicas presentes nesses movimentos sociais globalizantes: 1. organização de forma policêntrica, ou seja, presença de muitos líderes políticos; 2. flexibilidade, fluidez e autonomia nos canais de comunicação, que se dão pela rede virtual e pela disseminação de encontros e eventos; e 3. desestabilização de limites e fronteiras entre Estado e mercado, local e global, público e privado, legal e ilegal. Todas essas características ora delineadas podem ser encontradas no conjunto de movimentos sociais e instituições que compõem as redes de resistência da economia solidária. Idealista ou realista, revolucionária ou reformista, a ―outra economia‖ apresenta alternativas para modos tradicionais de aquisição de renda e se concentra, especialmente, no combate à miséria. Ao nos concentrarmos apenas no cenário contemporâneo, ela deixou de ser exclusivamente um movimento que congrega intelectuais em busca de ideologias mais arejadas de uma esquerda combativa e alguns setores populares e católicos (também combativos), para se tornar, cada vez mais, um movimento institucionalizado, atuando em diversos aspectos legais e governamentais da sociedade, criando representações jurídicas, normatizando leis, tornando-se política

148

pública e política institucional de Estado. Vários CNPJs, associações, entidades, institutos, órgãos públicos, foram constituídos em nome dessa ideia-força. No Brasil, podemos citar: Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (ANTEAG), União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo (UNISOL), Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP), Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) – ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), sem falar de importantes parceiros compromissados com a ―causa‖, a exemplo da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), Mutirão Nacional para Superação da Miséria e da Fome (MNSMF) e Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), dentre outros. Também não podemos deixar de mencionar as experiências dos bancos comunitários, que a exemplo do pioneiro Banco Palmas, instalado em uma periferia de Fortaleza, Ceará, têm promovido financiamentos de pequenos empreendimentos voltados para geração de renda local por meio de sistemas de economia solidária, com uso da chamada ―moeda social‖ 60, centrados em estratégias para superação da miséria urbana e rural. Além da criação de entidades que legitimam o movimento da economia solidária institucionalmente, as iniciativas autogestionárias ganharam grandes impulsos no Brasil por meio de pressões populares e estudantis manifestadas em expressivos documentos públicos elaborados por grupos de trabalho durante os Fóruns Sociais Mundiais61. O Fórum se converteu, em curto prazo, em um enorme espaço mundial de troca de experiências, uma verdadeira incubadora mundial de movimentos e idéias, articulando grande variedade de iniciativas e lutas contra os mais variados aspectos do neoliberalismo, como sugere o slogan Um outro mundo é possível. Em síntese, o Fórum Social adotou a estrutura de ―rede de redes‖ como alternativa ao modelo neoliberal centralizador e concentrador de poder anualmente avaliado e refinado em Davos, Suíça, e como instrumento de

Moeda social é um equivalente de troca de mercadorias e serviços utilizado, comumente, em experiências de economia solidária conectadas em rede: cooperativas, comércios e organizações que se comprometem a aceitar a moeda social como valor monetário. O uso é válido para pequenos circuitos de operações de compra e venda em âmbitos locais como bairros urbanos e rurais. 61 No II Fórum Social Mundial, de 2002, realizado, a exemplo do primeiro, em Porto Alegre/RS, foi elaborado um documento chamado Princípios da Economia Solidária para orientar iniciativas organizadas nos diversos Estados brasileiros. No III Fórum Mundial de 2003, foi produzido o documento ―Carta ao Lula‖, onde todos os presentes na oportunidade assinavam uma proposta de nomeação do professor Paul Singer para ocupar uma Secretaria de Economia Solidária a ser criada em um futuro próximo (fato consumado um ano depois da carta). 60

149

aglutinação de movimentos sem constituir-se em movimento ou em ―movimento dos movimentos‖ (Siqueira, Castro & Araújo, 2003).

Os eventos que promovem o encontro de diferentes organizações públicas, privadas e sem fins lucrativos são importantes porque fazem transitar os contatos pessoais de indivíduos que tomam decisões, ganham simpatia por causas, estabelecem parcerias, trocam referências, experiências e planejam o futuro. Um bom exemplo desses eventos é o Seminário que foi descrito por meio de um diário de campo e está presente no primeiro tópico do presente capítulo. 2.3.1. Um olhar sobre o II Encontro Nordestino de Incubadoras de Economia Solidária e a atuação da SENAES

Nos dias 9, 10 e 11 de outubro de 2012 aconteceu o II Encontro Nordestino de Incubadoras de Economia Solidária, no Campus I da UFPB, em João Pessoa/PB. O evento tratou de temas como ―Campos e Ações para as Incubadoras (Finanças Solidárias, Segurança Alimentar e Etnodesenvolvimento)‖, ―Metodologias de Incubação, Bancos Comunitários de Desenvolvimento‖, e contou com a participação de Paul Singer (SENAES), Joaquim José de Melo Neto Segundo (Banco Palmas), Genauto Carvalho França Filho (Universidade Federal da Bahia - UFBA), entre outros colaboradores. Foram convidadas para participar do encontro todas as Incubadoras Nordestinas de Economia Solidária e grupos universitários que atuam ou realizam pesquisas de ações solidárias. O convite estava aberto às demais Incubadoras presentes em outras regiões para troca de experiências e definição de ações conjuntas. No primeiro dia do evento, à tarde, esteve presente como palestrante na mesa de apresentação o Secretário Nacional de Economia Solidária, Paul Singer. Cheguei um pouco antes da fala dele, não havia ninguém no auditório do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ da Universidade Federal da Paraíba. No meio do pátio havia um grande aglomerado de pessoas reunidas em torno de Paul, um senhor branco, de bigode ralo, calvo, em idade avançada, com uma provável hérnia saliente no púbis, que abaixava a cabeça para ouvir melhor o que o pessoal mais próximo dizia. Alguns presentes queriam tirar foto com ele, solicitavam, apontavam máquinas fotográficas e celulares. É uma celebridade. O mentor intelectual da ES no Brasil, agora representante máximo da SENAES, ―ainda na ativa‖, como dizem, um ativista

150

solidário, ali presente fisicamente, de fato, é algo muito cativante. Esse burburinho em torno de Paul o acompanhou até a entrada do auditório, na passagem pelo corredor e quando sentou na primeira fileira de cadeiras, à espera de ser convocado para ocupar a mesa de apresentação. Apesar da presença da ―celebridade‖, não havia grande público acomodado nas cadeiras do auditório, o que trazia um clima mais íntimo ao encontro. Muitos dos que estavam fora do auditório, preferiram, por algum motivo, não entrar. O organizador do evento toma a palavra e chama Paul para compor a mesa, faz uma breve abertura do tema vespertino daquele dia e apresenta o palestrante ―que dispensa apresentações‖. Paul domina muito bem a arte da fala e prende a atenção de todos com sua narrativa que mais parece uma conversa pausada e calma, um longo ensinamento de quem tem muito mais experiência de vida do que você. Logo no primeiro ano do seu mandato, em 2003, o presidente Lula, atendendo a reivindicações e demandas de manifestantes favoráveis à inserção de uma atenção especial e institucional do Governo Federal às políticas públicas direcionadas para a economia solidária, criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego. O economista Paul Singer, o ―intelectual orgânico‖ presente em nossas referências conceituais, foi, como sabemos, indicado como o primeiro Secretário da SENAES. Em 2004, a Secretaria recém-criada lança o Programa de Economia Solidária com o objetivo geral de fortalecer e divulgar as experiências autogestionárias existentes no país, por intermédio de políticas públicas integradas, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento social dos trabalhos cooperativos (Mota, 2009). Como objetivos específicos da SENAES, podemos citar: Elaborar e propor medidas para articulação de políticas de finanças solidárias62; Intervir na revisão da legislação63 de cooperativas e propor estatuto de empreendimento autogestionário; Fortalecer os empreendimentos por meio do fomento material, articulação das cadeias produtivas e apoio ao consumo ético e ao comércio justo; Estimular a produção de conhecimentos, sistema de avaliação e de informações sobre Economia Solidária; Aqui podemos situar a inserção de agentes públicos financiadores como o BNB e o BNDES, que passam a atuar oficialmente com métodos de avaliação e liberação de recursos para projetos solidários, a partir de 2003/2004. 63 Aqui verificamos uma preocupação em institucionalizar a ES dentro do Estado brasileiro, por meio de ―marcos legais‖, criação de legislações específicas para tratar do assunto. 62

151

Fortalecer os espaços de organização da sociedade civil e demais entes governamentais para formulação de políticas públicas para o setor (Mota, 2009: 41).

Na sua fala como palestrante do encontro realizado em João Pessoa, Paul informa que a presidente da República, Dilma Roussef, dando continuidade aos programas sociais da gestão de Lula, pretende entregar para o próximo mandato presidencial um país sem pobreza extrema, sem miséria. É o Programa Brasil Sem Miséria, que conta com a participação e articulação de nove Ministérios. E a SENAES compõe as diretrizes desse programa porque o Governo entende que o combate à pobreza extrema passa por incentivos às iniciativas de empreendimentos solidários. Nós estamos diante de um desafio inédito. Por favor, levanta o braço se alguém aqui conhece algum país no mundo, não um país médio, mas um paísão grande, como o Brasil, que já acabou com a miséria, que não tem mais ninguém em miséria, alguém já ouviu falar nisso? Não, né? Nem eu. Também não levantei o braço. Nós somos os primeiros e estou muito comovido pelo fato de não só ser brasileiro e, portanto, estar aqui, vivendo esta experiência, mas, mais do que isso, poder participar. E vocês todos podem. Todos nós podemos fazer, podemos participar disso, sobretudo, não só aqueles que estão na esfera governamental (Paul Singer).

Depois Paul segue falando da importância das Universidades, por meio de suas extensões que a conectam com a sociedade como ela é, que desenvolvem projetos de apoio às Incubadoras de empreendimentos solidários. ―O processo de incubação, significa, na verdade, humildemente, aprender com os trabalhadores. [...] A incubadora não ensina o trabalhador aquilo que ele já é, mas, ela pode ajudá-lo a organizar de forma mais igualitária e democrática sua própria atividade‖. Por fim, finalizou seu discurso chamando atenção para as ameaças de destruição que os sistemas democráticos estão sofrendo por conta das conseqüências políticas e econômicas do capitalismo neoliberal. Depois foi dado início aos questionamentos, que foram muitos sobre variados aspectos das Incubadoras, das experiências de ES e das políticas desencadeadas pela SENAES. Podemos destacar alguns deles, de modo bastante resumido: 1. Sobre os recursos limitados do Programa Brasil Sem Miséria, especialmente no que se refere aos aportes para projetos de ES (Ana, IFPB); 2. Sobre as relações prático-conceituais existentes entre a ES e a economia doméstica, familiar (Cida, Prefeitura de Belo Horizonte/MG);

152

3. Se a SENAES está direcionada pelo Governo Federal para contribuir com o combate à miséria no Brasil e diante de uma situação em que os grupos mais pobres de nossa população não têm acesso às inscrições em editais de chamamento público, cheio de regras e burocracias, por que a SENAES só descentraliza recursos por meio de editais? (Vanessa, Pós-Graduação em Sociologia, UFPB); 4. Até quando a SENAES vai existir? (Valéria, Incubadora do IFPB); 5. Qual o papel da SENAES em relação às Incubadoras para além do repasse de recursos federais? (Prof. Paulo, UFPB); 6. Sobre a possibilidade da SENAES articular um Programa de ações continuadas com indicação de um piso orçamentário a ser repassado para gestão de projetos de economia solidária acompanhados pelas prefeituras municipais que atendessem a determinados critérios exigidos pela SENAES (Jácome, Prefeitura de João Pessoa/PB). Paul respondeu a todas as perguntas com a mesma tranqüilidade e sabedoria em que fez a palestra inicial da tarde de encontro. Para não nos alongarmos muito, nos deteremos em alguns pontos das respostas construídas pelo Secretário Nacional de Economia Solidária. Sobre a questão da falta de recursos e o problema do acesso da população de baixa renda aos editais lançados periodicamente pela SENAES, Paul argumentou que em um governo republicano, como o brasileiro, não havia outra alternativa para descentralização dos recursos da Secretaria a não ser via editais públicos, mas cabia ao ―movimento‖ a busca de novas fontes de recursos de projetos solidários como a experiência dos bancos comunitários e do financiamento conforme o modelo dos fundos rotativos solidários. No fundo, Paul estava dizendo: prestem bastante atenção nos nossos bancos de desenvolvimento, BNB, BNDES, Banco da Amazônia, eles têm muitos recursos, podem nos ajudar. Quando um professor da UFPB, de nome Paulo, presente no auditório pediu a palavra para elaborar uma questão para Paul Singer, antes, solicitou que todos os participantes aplaudissem a presença do Secretário Nacional de Economia Solidária aos gritos de ―viva a economia solidária, minha gente!‖, revelando ainda mais o caráter militante de um evento de ES. Paulo perguntou qual era o trabalho da SENAES junto às Incubadoras para além da aplicação de recursos do Governo Federal. Na resposta de Paul Singer à

153

referida indagação, podemos perceber o quão híbrido o movimento em prol da ES é. Paul Singer se coloca com representante da SENAES e do movimento, ao mesmo tempo. Qual seria o nosso papel a não ser apoiá-los [as Incubadoras], mas o apoio material que nós podemos dar ainda é pequenininho, mas o apoio político que podemos dar não é tão pequeno. [...] O fato de estarmos no Governo Federal lá em Brasília, ao lado do Planalto, com contatos frequentes e íntimos com os outros Ministérios, com a presidente da República, dão força à SENAES. E, portanto, nós podemos transmitir algo dessa força ao Movimento (Paul Singer).

No final dos pronunciamentos, Silmara, uma moça da equipe de organização do Encontro anuncia que Eneida, uma senhora que participa de uma experiência de Incubadora de ES, fará uma homenagem ao professor Paul Singer. O professor, então, desce da mesa onde acaba de participar de um caloroso debate acerca de temas pertinentes às políticas públicas desencadeadas pela SENAES e é recebido por três senhoras na primeira fila de cadeiras do auditório. Uma delas estava com um violão na mão. Agradeceram emocionadas à presença de Paul e toda a sua vida dedicada a uma ―boa economia‖ e dedicaram e executaram uma música de Roberto Carlos, Como é grande o meu amor por você, ao som do violão. Paul ficou bem próximo delas, com um sorriso sereno no rosto e um gestual tímido diante daquela manifestação lúdica inesperada. A música, o ritual de celebração, cabe em um evento ―científico‖ de políticas públicas porque a economia solidária, como veremos mais a frente no texto, produz o que eu denomino consenso carismático 64.

No terceiro capítulo, veremos o conceito de consenso carismático em relação ao consenso indiferente das experiências que se apropriam da ideia-força responsabilidade socioambiental. 64

154

Foto 8. Paul Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária recebe homenagem de representantes de uma Incubadora de ES no dia 9 de outubro de 2012 em João Pessoa/PB. Autor: Emanuel Oliveira Braga

2.3.2. BNB e os Fundos Rotativos Solidários O Banco do Nordeste assinou em 2004 um Protocolo de Intenções (também chamado ―Termo de Cooperação‖) com a SENAES a fim de consolidar uma parceria para a execução do Programa de Apoio a Projetos Produtivos Solidários – PAPPS, prevendo o aporte de recursos financeiros para concretizar projetos que estejam em sintonia com a ―metodologia‖ das cooperativas autogestionárias (Mota, 2009) 65. Um dos diferenciais do modelo de gestão voltado para a ES que o BNB incorporou em suas práticas é a metodologia dos Fundos Rotativos Solidários, que não está presente em outros bancos de desenvolvimento como o BNDES, por exemplo. No sistema dos FRS, os grupos sociais que forem selecionados para receberem investimentos direcionados a cooperativas autogestionárias são informados que o Segundo Mota, ―em sua primeira fase, o programa disponibilizou R$ 1.600.000,00 (um milhão e seiscentos mil reais) não reembolsáveis para 17 projetos apoiados no período de novembro de 2005 a maio de 2007, sediados na área de atuação do BNB. O Projeto Sementes da Solidariedade, da Cáritas Regional do Ceará, objeto do presente estudo, foi um dos 17 projetos financiados na primeira fase. Em dezembro de 2007, dentro do convênio, a SENAES repassou para o BNB, a quantia de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), e o BNB alocou como contrapartida R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), o que possibilitou o financiamento de mais 3316 propostas através do PAPPS‖ (2009: 47).

65

155

recurso emprestado quando devolvido (sem nenhum juro) retornará para aplicação em outras benfeitorias e serviços de sua comunidade e famílias. Não ficará com o Banco, ficará, sempre, em eterno retorno, para uso da população local. As famílias participantes decidem voluntariamente se devolvem integralmente ou parcialmente o dinheiro ―emprestado‖ pelo Banco. Além disso, os FRS estruturam toda uma dinâmica de participação do grupo social envolvido no processo de financiamento, não se restringindo apenas como instrumento bancário de crédito, mas atuando como um projeto político e pedagógico que objetiva ―despertar‖ nas famílias beneficiadas um espírito solidário para com sua coletividade. Mais uma vez estamos aqui diante de um contraponto prático-discursivo que rebaixa negativamente ―antigos‖ projetos sociais considerados ―assistencialistas‖, ―imediatistas‖ e ―paliativos‖. O assistencialismo é entendido como nocivo ao empoderamento dos grupos de miseráveis e desempregados por produzir um ciclo vicioso de dependência e conformismo. Os FRS se aproximam mais,

então,

dos

ideais

apregoados

pelas

políticas

públicas

idealizadas

contemporaneamente (abordagem holista, processo de construção multifacetado, relação dialógica, diversificação de alternativas nas propostas) do que outros projetos governamentais como o famoso Bolsa Família e a doação ―pura e simples‖ da instalação de cisternas para captação de água em comunidades rurais e bairros atingidos pela seca, por exemplo. Roberto Smith, em entrevista realizada após seu afastamento do Banco do Nordeste, nos narra um pouco da conjuntura de pessoas e intenções presentes no Banco no período em que os FRS passaram a ser um tema relevante nos debates internos da Diretoria: Eu já tinha contato com a questão da economia solidária mesmo porque o professor Paul Singer era uma pessoa com a qual eu já conhecia de longa data, nós tínhamos militado juntos certo, ele que havia sido meu professor na Faculdade de Economia da USP né e eu li os livros dele e todo o pensamento dele e ele foi uma cabeça pensante importante da economia solidária né, e, também, quer dizer, tive o apoio dentro do Banco, sobretudo, do Superintendente do ETENE, o Alencar né. O Alencar era um grande defensor disso e conversamos e eu achei que podia dar todo apoio aquilo que o Alencar se envolvia em termos de economia solidária e nós encontramos muitos adeptos e tudo mais pra poder desenvolver em todos os seus aspectos (Roberto Smith).

Dessa forma, entendemos que são pessoas e contatos pessoais que articulam dentro do BNB a relevância técnica de conectar os conhecimentos bancários aos

156

conhecimentos acumulados das experiências de ES pelo Brasil e pelo mundo afora. Smith lembra do ativismo influente de Paul Singer (um agente externo ao Banco) e de Alencar (um agente interno do Banco), um dos superintendentes da instituição na época da consolidação dos FRS e que era sensível à ―causa‖. Tentei fazer contatos por email e telefone com o referido Alencar, mas nunca recebi nenhuma resposta do mesmo. A centralidade da figura de Alencar é atestada também por uma ―carta de solidariedade‖, um documento com certa publicidade dentro dos movimentos locais e nacionais de ES, enviada ao Alencar no momento de sua exoneração do cargo comissionado que ocupava no ETENE. A carta foi assinada pelo Comitê Gestor dos Fundos Solidários, formado pela ASA Brasil, Fórum Brasileiro de Economia Solidária FBES, Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar - FBSAN, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Cáritas Brasileira e SENAES. Podemos ler no documento: Com tristeza recebemos a notícia de sua exoneração do cargo de Diretor do Banco do Nordeste. Queremos expressar, neste momento, nossa profunda apreciação do seu trabalho e sua contribuição nos últimos nove anos para que o Banco do Nordeste cumprisse seu papel de banco público de desenvolvimento, investindo no desenvolvimento local, nas populações excluídas e em alternativas inovadoras que fortaleçam a emancipação e o protagonismo das comunidades nordestinas. Você sempre buscou o diálogo com os movimentos sociais e as entidades da sociedade civil e teve a coragem de defender programas inovadores como a Programa de Apoio a Projetos Produtivos Solidários – PAPPS que teve um papel estratégico no fomento de 70 iniciativas de fundos rotativos solidários em toda região Nordeste e ajudou para tornar essa prática popular mais visível e apta para receber investimentos públicos. Sua incansável defesa das causas dos agricultores familiares, assentados, mulheres, negros, comunidades tradicionais, artesãos e outros grupos excluídos e das práticas sustentáveis de convivência com o semiárido e da economia solidária quebrou tabus dentro do BNB e deixou uma marca. Pode ter certeza que nos mobilizaremos para reivindicar do BNB que continue expandindo e consolidando as iniciativas inovadoras que Você ajudou a criar em prol do desenvolvimento local sustentável e solidário.

Provavelmente date desse período de exoneração, as queixas de Nelson quanto ao fato dele ser o único que ―está tocando as ações‖ de ES dentro do BNB. Essas queixas de Nelson somadas ao fato de que eu não consegui encontrar nenhum servidor dentro das agências e superintendências consultadas que se sentisse à vontade o suficiente para falar comigo sobre FRS, só ilustram o quanto a economia solidária é residual no BNB e extremamente concentrada no ETENE.

157

Fora os bancários do ETENE e o próprio ex-presidente Roberto Smith, apenas Charles, que atualmente é Superintendente do BNB em Pernambuco e já ocupou altos cargos de direção, conhece mais detalhadamente a inserção da ES dentro do BNB. Os demais se esquivaram das questões ou deram opiniões bastante rasas sobre FRS. Mas, se o ETENE é um departamento dentro do Banco responsável pelo desenvolvimento de estudos e de planejamento estrutural das ações que estão sendo ou vão ser implantadas na área de influência do semiárido brasileiro, por que quando o assunto é economia solidária, o ETENE, por meio hoje apenas de Nelson, exerce também papéis operacionais, acompanhando atividades desencadeadas pelo PAPPS? Segundo avaliação de Charles, os FRS não são incorporados às atividades das agências convencionais do BNB porque as agências precisam ter autossustentabilidade financeira. Elas são células independentes financeiramente das áreas de direção do Banco. Os FRS não dão retorno suficiente para que o Banco cubra os custos bancários de suas operações. Esse modelo de fundos não dá retorno lucrativo para o Banco e sequer tem autossustentabilidade própria para justificar sua existência. Por isso, fica restrito ao âmbito do ETENE, estando em uma espécie de ―fase de testes‖ e estudos que verificam se o BNB deve ou não implantá-lo em planos estratégicos da instituição. Charles defende as agências que porventura incorporam os FRS desenvolvem esses trabalhos por meio dos agentes de desenvolvimento. Não adianta eu querer ―vai gerente, vai você fazer isso‖ [os FRS], porque o tempo que ele gasta, não que não seja importante e é importante, mas o gerente ao fazer isso ele é cobrado porque ele sabe o seguinte: aquele esforço que foi ali investido, aquela associação que tá ali trabalhando, porque não é só produzir, mas tem que ter mudança, inovação, tecnologia tem que estar inserida neste processo produtivo para que ele tenha competitividade, e ele vai demandar um tempo. E o gerente, na verdade, ele tem que rentabilizar a agência naquele momento. Então, é por isso que eu digo há o papel do agente [de desenvolvimento] e há o papel do gerente. Porque não é que fundos rotativos solidários são recursos ―a fundo perdido‖, os fundos são ―não retornáveis‖, tá certo? Mas ele tem o papel preponderante de gerar riqueza. Porque eu não posso jogar dinheiro fora, jogar dinheiro no gargalo. Então, esse é o papel, e ai eu dizia o seguinte, cabe ao agente fazer este trabalho (Charles).

Como vimos no primeiro capítulo da presente dissertação, os agentes de desenvolvimento vivem atualmente uma situação de indecisão quanto à sua funcionalidade no Banco. Além disso, o número de agentes do Banco diminuiu drasticamente após a gestão de Smith. ―Agentes de desenvolvimento no BNB somos todos nós. Isso é fundamental, essa é a filosofia‖, nos diz Smith. Para agravar a situação

158

dos FRS e deixá-los de uma vez por todas centralizado nas mãos do ETENE, especificamente nas mãos de Nelson, Charles ainda observa que o agente de desenvolvimento incorpora os FRS em suas atividades cotidianas apenas quando há uma recomendação expressa, uma vontade política, por parte do superintende estadual da área em que atua. Vejamos um pequeno trecho de uma conversa que mantive com Charles sobre esses temas ora trabalhados: Charles: O agente faz [os FRS] quando existe um direcionamento, então aí o seguinte, depende muito da estratégia. Quando você encontra superintendente que tenha crença, ele trabalha a figura do agente fortemente, quando você tem um superintendente que a crença dele tá no financeiro66, aí o agente fica sem foco. Emanuel: então digamos, por exemplo, o Crediamigo, o Agroamigo é consolidado, independente de crença de qualquer gerente, de qualquer superintendente, ele vai ―botar a roda pra moer‖... Charles: Isso, ele vai ―botar o roda pra moer‖, porque o Crediamigo e o Agroamigo é um negocio. É um negocio, e que é sustentável. Emanuel: Já os Fundos Rotativos Solidários dependem sempre de uma certa militância? Charles: Isso.

Ceci, mesmo sendo diretora-presidente da AFBNB, não possui muitas informações sobre os FRS. ―Nós da AFBNB pedimos uma reunião porque a gente quer discutir fundos rotativos solidários‖. Ceci vê com outros olhos a centralidade dos FRS no ETENE e, especificamente, a centralidade dos projetos solidários nas mãos de Nelson. É porque é o seguinte, é porque ninguém quer e aí pega uma pessoa que gosta, bota ―pronto, fica aí‖ e, de uma certa forma, [...] né todo mundo que gosta de muito trabalho não, porque tem gente que trabalha menos não é, todo mundo quer as coisas mais práticas, que dê mais visibilidade e que ganhe mais, certo? (Cecília Maria).

Outro servidor do Banco, que vamos omitir o nome fictício, levanta questões de outra ordem quanto ao excesso de concentração da temática dos FRS na figura de uma pessoa só. Não seriam apenas questões técnicas e elementares do metier bancário nem o 66

Grifos nossos.

159

fato de ser um assunto que dá menos visibilidade e rentabilidade para um funcionário do Banco o que justifica o amplo desconhecimento do quadro de servidores do BNB acerca dos FRS. Esse desconhecimento se deve à vaidade de quem planeja e acompanha as ações relacionadas à aplicação dos FRS no âmbito da instituição. Algumas pessoas dizem assim ―não, mas é claro que ele não vai dividir os fundos [rotativos solidários] com ninguém. Ele dividindo o fundo, ele vai dividir as viagens, certo?‖. Então, o que adianta, sair viajando daqui pra acolá, daqui pra acolá. É uma remuneração extra que entra no final do ano. [...] Ce tá entendo? É esse o nível de questão que chega. Aí chega uma pessoa dizendo: ―eu quero trabalhar com fundo rotativo solidário‖. ―Quer trabalhar ou você quer viajar, me diga o que você quer?‖. Ce tá entendendo? (servidor do BNB).

Outra

―justificativa

técnica‖

dos

bancários

entrevistados

para

não

descentralização dos FRS no âmbito das agências convencionais do Banco é o medo da inadimplência dos clientes que recebem os créditos. A inadimplência, de um modo geral para a cultura bancária, é um fantasma que sempre assombra as dependências do Banco e influencia na tomada de medidas de planejamento estratégico. Como a taxa de inadimplência, em todas as modalidades de aplicação de recursos do BNB, foi durante muito tempo considerada alta, há uma certa desconfiança dentro do próprio Banco em relação a ―créditos não reembolsáveis‖. Roberto Smith, ex-presidente do BNB (gestão 2003 - 2011), em entrevista concedida ao sociólogo Gil Célio Cardoso, ao falar do aumento de fiscalização por parte do Banco Central a partir do final da década de 1990 em relação à aplicação dos fundos constitucionais, afirma: (...) até 1998 o Banco do Nordeste aplicava os recursos do fundo constitucional e ao Banco não era imputado nenhum risco de crédito. Ou seja, se ele aplicasse e o empreendedor não devolvesse o dinheiro, isso não afetava a contabilidade do Banco. Então, a aplicação era irresponsável, pelo menos para o Banco. Como resultado, tinha-se que até então o índice de inadimplência de grandes investidores era da ordem de 74 a 80%. E o do pequeno investidor era bem mais baixo, cerca de 17%, e na média tinha-se um índice de inadimplência de 56% (fala de Roberto Smith em 14 de janeiro de 2003). (Cardoso, 2006: 176).

Smith confirmou, na recente entrevista que me concedeu em março de 2013, a relevância dos históricos índices de inadimplência da instituição para que houvesse um impulso político em prol de uma reestruturação operacional no Banco.

160

Quando eu assumi o Banco do Nordeste a inadimplência do fundo constitucional era enorme. E essa inadimplência era muito maior das grandes empresas, era muito grande. [...] É, eu to dizendo a porcentagem de inadimplência dos grandes capitais era quase de 50 %. Eu quando sai do Banco, eu deixei a inadimplência do fundo constitucional em 3%, às vezes até um pouco menos do que isso. [...] Então, quer dizer, o que nós fizemos foi criar todas as formas de realmente de governança para que, passar a cobrar e recuperar dívidas, né, o volume de dívidas estava muito grande... (Roberto Smith).

Além disso, percebi nas entrevistas realizadas junto aos funcionários do Ambiente de RSA, do ETENE, da Superintendência da Paraíba, da agência bancária de João Pessoa e do próprio INEC, que há no BNB (e isso deve se repetir e até ser mais evidente em outros bancos) um padrão comportamental, uma ―cultura bancária‖, uma defesa genérica, de que um banco não deve simplesmente repassar recursos para pequenos, médios ou grandes empreendedores sem retorno lucrativo qualquer para o próprio banco. Em toda ação, o bancário está analisando qual seria o ―retorno‖ de tal decisão para a receita monetária do banco. Ceci me confidenciou que esse aspecto da ―cultura bancária‖ está presente em diferentes aspectos da instituição, em vários debates, planejamentos, negociações e valores expressos pelos servidores do Banco. Até quando os servidores do BNB estão lutando por melhores condições salariais, a questão de ―qual o retorno financeiro para o Banco?‖ entra na pauta da discussão. Em campanha salarial, isso acontece demais. Tivemos recentemente, a gente lá colocando uma discussão, discutindo reajuste salarial, ―não, nós não podemos porque se a gente for conceber isso aí, vai ter prejuízo pro Banco‖. Ou seja, um reajuste do Banco para o funcionário que tem direito, mas é prejuízo pro Banco, né?! (Cecília Maria).

Apesar de todas essas reticências, os FRS, no entender daqueles técnicos do BNB que lidaram ou lidam diretamente com essa metodologia, estão em sintonia com os princípios holísticos defendidos para a realização de ―boas políticas públicas‖ que procuram abarcar uma série de aspectos de uma mesma realidade do ―público-alvo‖ das ações sociais. Rubens Mota, ao referenciar a avaliação do projeto Sementes da Solidariedade, financiado pelo BNB e acompanhado pela Cáritas em duas comunidades do interior cearense, afirma que a proposta pedagógica de intervenção local incluía em seu escopo diversas abordagens, dentre as quais destaca, inclusive, o ―patrimônio cultural‖. ―As sementes são bens culturais que integram o patrimônio das populações

161

tradicionais a serviço da humanidade, não podendo ser confundidas como um mero insumo agrícola‖ (2009: 59). 2.3.3. O ―agente mobilizador‖: a Cáritas O movimento da economia solidária, apesar da constante defesa de sua ancestralidade histórica enquanto fenômeno social, no Brasil de hoje, já aparece para o neófito no assunto como contemporâneo, ―todo pronto para atuar‖, antenado aos princípios democráticos e ambientais, inimigo dos vícios do Estado, defendendo a participação efetiva dos grupos envolvidos. Não podemos negar, inspirados em uma obra clássica como Os parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido, que a tradicional vida caipira e sertaneja, presente em várias regiões deste país, revelou, durante muito tempo, um popular espírito cooperativo e autogestionário por meio da organização periódica dos sistemas de mutirão, adotado em obras coletivas, construção de moradias, atividades rurais diversas como plantação e colheita (Candido, 1977). Após a completa desarticulação desses regimes populares de mutirão, produzida pela histórica ausência de qualquer proposta minimamente coerente de reforma agrária e pelo avanço predatório dos latifúndios promovidos pelo agronegócio, hoje a ideia-força economia solidária, potencializada pela noção de política pública, quer reconvencer as populações mais pobres, sujeitas constantemente ao desemprego e outras mazelas sociais, que o sistema cooperativo é uma excelente proposta ―alternativa‖ (ora, vejam só, ―alternativa‖!) de sustentabilidade socioeconômica e ambiental. Sobre o projeto Sementes da Solidariedade, Mota afirma: A partir das casas de sementes [que devem ser obrigatoriamente ―coletivas‖, diga-se de passagem] vem se disseminando outra importante iniciativa, conhecida como roçados comunitários67, nos quais as famílias plantam as variedades de sementes crioulas para multiplicar e compor o estoque das casas de sementes e das famílias. Juntas essas reservas individuais e coletivas compõem um sistema de segurança de sementes adaptadas, de qualidade e disponíveis na quantidade e hora certas para o plantio (Mota, 2009: 66).

Sobre a atuação do ―agente mobilizador‖ da ES, o representante da Cáritas, R. Mota traz um esclarecedor depoimento:

67

Grifo nosso.

162

E, dentro do projeto, a gente trabalhou a questão da formação, que foram formações nessa perspectiva dos conteúdos técnicos, do manejo, da seleção, do armazenamento, de como fazer tudo isso. Foi trabalhada a questão da gestão da casa de sementes, em momentos pra trabalhar a questão da gestão e do associativismo, onde as famílias tiveram oportunidade de discutir o que era uma associação, como ela se constitui, quais eram as responsabilidades, quais são os direitos. A gente trabalhou esses conteúdos e, a partir daí, foram constituídas as diretorias dessas casas de semente, que ficam responsáveis por fazer as coletas das sementes, o empréstimo. Ou seja, o monitoramento e a organização (Alessandro – Cáritas). (Mota, 2009: 72).

Como já venho falando em tópicos anteriores, um importante agente institucional responsável por grande parte das mediações entre poderes públicos e as ―comunidades‖ é a Cáritas. Cáritas é uma organização internacional humanitária da Igreja Católica, com sede no Vaticano, que atua em diversos países, por meio de filiais nacionais. Sua missão é trabalhar ―para construir um mundo melhor‖, especialmente para os pobres, considerados ―oprimidos‖ e ―excluídos‖. A primeira organização da Cáritas foi estabelecida em Friburgo, Alemanha, em 1897. Outras organizações nacionais da Cáritas foram formadas ao fim de pouco tempo na Suíça (1901) e nos Estados Unidos (1910). Segundo o site oficial, a referida entidade rege-se pela ―doutrina social da Igreja‖ e orienta a sua ação de acordo com os ―imperativos da solidariedade‖, dando resposta às situações mais graves de pobreza, exclusão social e situações de emergência em resultado de catástrofes naturais ou calamidade pública. Os recursos financeiros das Cáritas locais advêm de fundos diocesanos, de coletas paroquiais e, principalmente, da captação de dinheiro por meio de projetos inscritos em editais públicos e de parcerias com agências financiadoras e bancos de fomento ao desenvolvimento. Segundo Mota (2009), ela vem desde a década de 1980 administrando recursos públicos através dos chamados Projetos Alternativos Comunitários – PAC68. No confuso site da Cáritas Internacional 69, encontramos a seguinte referência: Nos hemos comprometido a combatir la pobreza que deshumaniza, despojando a las personas de su dignidad y humanidad. Caritas tiene muchas caras, pero Os Projetos Alternativos Comunitários são pequenas iniciativas populares, nascidas a partir de apoios financeiros concedidos pela Cáritas. As finalidades desse apoio são o estímulo à ―vivência comunitária‖ e à participação dos envolvidos nas pastorais e nos movimentos sociais. Os PACs são interpretados pela Cáritas como instrumentos pedagógicos para uma ação social de um novo tipo, que se pretende não paternalista, nem assistencialista. Conforme informações do site da Cáritas: ―eles são uma espécie de ‗escola de cidadania‘, geradora de uma formação tanto profissional, quanto política‖. 69 Em www.caritas.org. 68

163

sólo un corazón. Caritas ayuda a los más vulnerables, sin tener en cuenta su raza, ni su religión, en nombre de los católicos de todo el mundo.

No site da Cáritas brasileira 70, encontramos mais detalhes sobre a ―institucionalidade‖ dessa organização: A Cáritas Brasileira é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. Sua atuação é junto aos excluídos e excluídas em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma sociedade justa, igualitária e plural. Fundada no Brasil em 12 de novembro de 1956, a Cáritas Brasileira faz parte da Rede Caritas Internationalis, presente em 165 países e territórios. Reconhecida como entidade de utilidade pública federal, ela também é um organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Atualmente a Cáritas Brasileira conta com 176 entidades-membro espalhadas por todo país e atua em 12 regionais: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Norte II (Amapá e Pará), Maranhão, Piauí, Ceará, Nordeste II (Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte) e Nordeste III (Bahia e Sergipe).

Na América Latina, muitos membros das atuais Cáritas nacionais atuaram, em décadas anteriores, no movimento político e religioso conhecido como Teologia da Libertação. Os objetivos das duas propostas de ―intervenção política no mundo‖ são bastante semelhantes. Ambas lutam pela emancipação dos pobres do estado de miséria em que se encontram e vislumbram a ―conscientização política e espiritual‖ dos grupos sociais mais pobres, mediante o engajamento ativo nas lutas ―por uma sociedade mais justa e menos desigual‖ (Bertucci & Silva, 2003). Problematizando essa conexão simbólica e histórica entre a Teologia da Libertação e a Cáritas, o sociólogo Joannes Paulus Forte escreveu: Tem início, na década de 1960, a mudança da atuação de setores da Igreja latinoamericana em relação às desigualdades sócio-econômicas, às questões de ordem política e às práticas caritativas, a exemplo do surgimento da Teologia da Libertação e do Movimento Igreja dos Pobres. No caso da Cáritas Brasileira, constata-se, a partir da década de 1970, a introdução de um elemento político que modificou a representação em torno do pobre, atualmente identificado por ela como ―excluído/a‖. Esta denominação incorpora um novo entendimento sobre a pobreza, que começa a ser percebida não mais como um resíduo a ser contornado pela assistência pública ou pela caridade privada, mas como determinação estrutural da lógica de concentração do capital. Excluído é aquele que não encontra lugar na sociedade de mercado capitalista e grita (Grito dos Excluídos) pela qualidade de cidadão (Forte, 2008: 20).

70

Em www.caritas.org.br.

164

Todos esses links de movimentos e organizações políticas e religiosas em prol da justiça social revelam a busca constante de universalização da ideia-força economia solidária, por meio de uma genealogia de valores morais (instituições, no sentido de Douglas), tais como ―cooperação para paz‖, ―trabalho honesto‖, ―preservação do meio ambiente‖, ―educação para a cidadania‖, que se pretendem ao mesmo tempo úteis, desinteressados e plausíveis internacionalmente. A Cáritas, contemporaneamente, pode ser considerada uma importante portadora e mediadora desses valores morais. Ela é uma das grandes responsáveis pelo trânsito desses valores morais e pela tessitura de redes de sociabilidades formadas a partir deles. Ela atravessa espacialidades e temporalidades, conectando o cristianismo, a laicidade, a cultura de paz, o BNB, o BNDES, o Governo Federal brasileiro, as ONGs e as demais entidades ligadas à economia solidária e os grupos sociais ―desfavorecidos‖ economicamente. Exerce inteligentemente uma simetrização de princípios morais entre diversos atores e da sociedade. 2.3.4. Economia solidária: entre o movimento social e as políticas institucionais Apesar do código da economia solidária ser um código nitidamente de esquerda, ao observar a mesa de abertura do já narrado, no início deste capítulo, Seminário de Economia Solidária ocorrido na capital paraibana, ao fundo dos palestrantes aparece o tema do encontro, cujo subtítulo revela expressões que produziriam um certo desconforto em muitos esquerdistas mais tradicionais, do ―partidão‖. Lá está escrito que a economia solidária é uma estratégia de inclusão social e de desenvolvimento local. Essas expressões ―nem cá nem lá‖ perpassam contemporaneamente as disputas de colorações partidárias e ganham o consenso dos ideais de realização de uma política pública. A ideia de ―política pública‖ constitui, entre outras, um meio-termo racional (e, portanto, natural) que unifica conceitos/práticas aparentemente tão díspares como economia solidária e responsabilidade socioambiental, proporcionando que os mesmos possam se encontrar em instituições como o Banco do Nordeste. Para além das colorações político-ideológicas, existe uma espécie de consenso em uma república que se pretende democrática, em uma nação que se pretende republicana, como o Brasil, que é o fato de que vários agentes sociais, o Estado, as empresas, as organizações não governamentais, os eleitores, os consumidores, esses diversos ―papéis sociais‖, são chamados a co-participarem das chamadas políticas públicas.

165

Na já referida entrevista concedida por Singer (2007), que confirma sua história intelectual de sistematizador da economia solidária brasileira, no Seminário de João Pessoa, nas conversas mantidas com funcionários do BNB que lidam direta ou indiretamente com essas práticas e nas dissertações sobre o tema, podemos perceber a economia solidária de um modo bastante multifacetado, indo desde o prisma mais revolucionário, a proposição de que uma ―outra economia é possível‖, até a concepção mais utilitária, que a vê como uma ótima alternativa de geração de renda e consumo diante das ―crises econômicas‖ locais e globais. Algumas invariantes interpretativas, entretanto, estão presentes: 1. Ideal de movimento social; 2. Ideal de autogestão socioeconômica; 3. Ideal de planejamento democrático; 4. Combate às desigualdades sociais; 5. Combate ao desemprego mundial; 6. Crítica negativa à alienação e exploração do trabalho; 7. Crítica negativa à meritocracia empresarial; 8. Crítica negativa à competição capitalista; 9. Apelo à solidariedade (cooperação) moral; 10. Necessidade do apoio institucional do Estado; 11. Crítica

negativa

às

políticas

compensatórias

e

emergenciais

(assistencialistas); 12. Preocupação com a preservação do meio ambiente; 13. Formação de redes de instituições e de pessoas interessadas; 14. Tentativa de desestabilizar a dicotomia trabalho intelectual x trabalho

braçal. Logo podemos perceber, em meio a essa esquematização grosseira, a existência do mesmo movimento contraditório presente na conceituação da dádiva maussiana: a dinâmica centrífuga entre utilidade e moral, entre obrigação e voluntariado. Afinal de contas, como um movimento que incentiva a autogestão assume descaradamente a dependência do apoio institucional do Estado? Singer (2002), ao justificar esse hibridismo paradoxal da economia solidária, afirma que mesmo que todo modo de produção socioeconômica estivesse pautado pelos princípios solidários, ainda assim

166

haveria a necessidade de um poder público como importante parceiro e com o objetivo de redistribuir os recursos materiais resultantes do trabalho de todos os setores da sociedade, a fim de equilibrar as desigualdades sociais existentes. Conforme posicionamento de Nelson, do ETENE, os movimentos sociais organizados em torno da economia solidária não devem ser diferenciados das políticas públicas e institucionais desencadeados por esses movimentos: A economia solidária é um movimento social muito especifico, ela não é um movimento social que nasce genuinamente dentro de uma sociedade, ela já nasce imbricada com o Estado, vamos dizer assim que ela é um movimento social híbrido, que já tem um lado social muito forte, uma articulação forte entre o Estado e a sociedade civil. [...] O pessoal da economia solidária tem militantes dentro deste espaço do governo. Então, não dá pra você fazer assim ―institucionalizar o movimento‖ porque este movimento já nasceu desta institucionalização diferenciada né. Então, isto é um caso muito interessante, os autores estão sempre tocando nesta questão, mas é uma situação até certo ponto inusitada (Nelson).

Não podemos esquecer que estamos tratando com um agente institucional do BNB, um representante do ETENE, que apesar de transitar entre o mundo real dos movimentos sociais e das organizações civis e o mundo real de uma instituição bancária, pertence, trabalha, recebe salários, é parte do quadro do Banco. Ele não é do Fórum de Economia Solidária, nem trabalha cotidianamente em uma cooperativa de reciclagem de papel que recebe financiamento do PAPPS, por meio de fundos rotativos solidários. A fala de outros representantes dessa vasta rede de sociabilidades que caracteriza a ES provavelmente não misturaria o caráter de movimento com o caráter governamental dessas ações. Mas Nelson traduz em sua fala a existência de uma militância de alguns servidores dentro do ―espaço do governo‖ que é o BNB. Algumas temáticas específicas, incorporadas às políticas de Governo e de Estado, tendem a atrair o compromisso pessoal com a função profissional que o jargão empresarial denomina ―vestir a camisa‖. Economia solidária, de fato, é uma dessas temáticas atraentes. Veremos que esse fenômeno da militância não aparecerá no debate acerca da responsabilidade socioambiental no BNB. Trata-se uma ideia sem força carismática. Em minha experiência profissional de técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, uma autarquia federal ligada ao Ministério da Cultura, responsável pela promoção de políticas de identificação, reconhecimento e proteção do patrimônio cultural nacional, vivencio cotidianamente esse envolvimento dos funcionários da área ―técnica‖ com a causa da preservação do patrimônio cultural, por

167

exemplo. Para além das obrigações funcionais, nos imbuímos de energias pessoais e emocionais, de interesses militantes, para que determinadas ações institucionais, que façam mais sentido para nós, tenham mais sucesso do que outras. Apesar desse carisma próprio, a ES não ―cola‖ no planejamento estratégico do Banco, pois a cultura bancária hegemônica do BNB, o desenvolvimentismo schumpeteriano, não consegue se apropriar da lógica dos FRS. Os Fundos Rotativos Solidários são projetos e ações outsiders em relação às tradicionais prioridades políticas do Banco do Nordeste, mas, justamente por serem outsiders, ganham a simpatia e o esforço militante de um funcionário com a história de vida e os interesses pessoais como Nelson, que se beneficia profissionalmente desse vácuo institucional, atuando como um herói quixotesco da ―boa economia‖, da justiça solidária dentro de um banco de desenvolvimento regional. E, então, quando eu pergunto aos outros servidores da sede do Banco em Fortaleza ―com quem eu posso tratar do assunto economia solidária no BNB‖, muitos dizem ―isso é com o Nelson‖. Os entrevistados pela presente pesquisa sempre buscam me elucidar em suas falas que os FRS não são ―a fundo perdido‖, são ―não reembolsáveis‖. Esse aparente eufemismo não deixa de ilustrar a principal preocupação da

perspectiva

desenvolvimentista do BNB. Como o Banco vai se justificar como um banco perante o mercado e o Estado brasileiro se não aplicar recursos que ofereçam em troca lucros cada vez mais vantajosos? O Banco é uma instituição de fomento, mas compete de igual para igual com os ―bancos de varejo‖. O espírito desenvolvimentista que pensa, ao mesmo tempo, em desenvolvimento regional, social, ambiental, econômico e cultural e em como tornar a instituição bancária autossustentável financeiramente ao liberar efetivação de créditos para grandes, médios e pequenos produtores, é inconciliável com os Fundos Rotativos Solidários. Façamos o seguinte, recuperemos as reflexões sobre o desenvolvimentismo hegemônico do BNB do primeiro capítulo da dissertação e façamos a comparação com algumas fala de Sandro Gomez, presidente do Fórum Estadual de Economia Solidária da Paraíba, no Seminário: ―a economia solidária se diferencia do modo de produção capitalista, pois não prevê exploração do trabalhador‖. ―Não estamos falando em microempresas ou microempreendimentos‖. ―Não é uma solução emergencial para sanar problemas sociais deste país, é uma estratégia de desenvolvimento econômico para este país‖. Essa desconexão de Sandro entre desenvolvimento econômico e microempreendedorimo não cabe no fluxo cultural do BNB atual. No Banco cabe, por

168

exemplo, a fala de Roberto Marinho, um dos diretores da SENAES, quando o mesmo defende que a ―economia solidária não é assistência social‖ e que os ―gastos com políticas sociais não são despesas sem retorno, elas aumentam o PIB do Brasil‖. As políticas sociais atuais, o dom contemporâneo que promete um mundo melhor, buscam situar e classificar as ―práticas assistenciais‖ em um período governamental sempre ―anterior‖. Essas práticas, vistas como ―assistencialistas‖ e ―clientelistas‖, são consideradas nocivas à organização da sociedade. Os FRS, nessa perspectiva, facilmente podem ser confundidos com um velho costume dos políticos brasileiros de combaterem a pobreza ―dando o peixe sem ensinar a pescar‖. Não podemos esperar pela ética do reembolso dos nossos miseráveis porque eles não têm ética, estão viciados pelo clientelismo eleitoreiro e oportunista que atravessa a Colônia, o Império e a República tupiniquim. Por isso, muito melhor do que os FRS ―não reembolsáveis‖, que beiram o ―a fundo perdido‖, é a paulatina implantação no âmago do ―povo nordestino‖ de uma cultura empreendedorista, que ative, finalmente, o fiel compromisso de pagamento dos boletos do financiamento de um projeto de desenvolvimento específico. Ao desenvolver o espírito empreendedor em uma família de artesãos, ou em uma associação de piscicultores, estaremos, automaticamente, promovendo o desenvolvimento de uma determinada área de atuação do BNB. Essa é a melhor recompensa e o sinal de que temos uma ―boa política‖. O microcrédito convencional (Crediamigo e Agroamigo) planejado em prol do desenvolvimento regional é mais dadivoso para a cultura bancária hegemônica do BNB do que os FRS, mesmo que os fundos sejam bastante positivados por determinados setores do catolicismo e militantes de esquerda. Toda a rede de contatos e politizações tecida minuciosamente pela Cáritas em torno da economia solidária acaba esbarrando no desenvolvimentismo schumpeteriano do Banco do Nordeste. Os FRS possuem descrédito perante a postura da maioria dos servidores do Banco e perante o INEC. Quando indaguei a Júnior, assessor de crédito do INEC, se ele tinha algum conhecimento acerca dos Fundos Rotativos Solidários, ele me respondeu no seguinte tom: É o que muitos chamam de ―fundo perdido‖ ou ―não reembolsável‖. Infelizmente o mal do nosso Brasil é esse. Uma das desculpas que mais ouvimos com os maus sujeitos [que não pagam os boletos do financiamento] é que o Agroamigo ele trabalha com o ―fundo perdido‖, é uma informação que não é verdadeira, porém que dificulta bastante o nosso trabalho (Edcarlos Júnior).

169

Em seguida, eu questiono se ele, como assessor de crédito, vislumbra que em um futuro próximo o INEC absorverá um linha de financiamento aos moldes dos FRS. A resposta foi a seguinte: Eu vou te dizer como funcionário do INEC e como pessoa, eu prefiro que o INEC não absorva este tipo de linha, até pela própria credibilidade do Programa, o que é que adianta a pessoa tá em campo, fazer o acompanhamento da correta aplicação ou não do recurso se no final de tudo, nos fins, não for o retorno deste crédito. Eu prefiro que continue sendo trabalhado da maneira que é, até porque então, o grau de ―acompanhamento‖, até porque a gente não gosta de dizer ―fiscalização‖, porque inibe o agricultor, mas quando é dito ―acompanhamento‖, torna amigável ao agricultor essa parceria entre o Instituto Nordeste e agricultor (Edcarlos Júnior).

O retorno da política aplicada pelo BNB, o financiamento por microcrédito, é a promoção do desenvolvimento regional através da consolidação junto aos pequenos produtores rurais e comerciantes de uma cultura empreendedorista que cumpra com seus compromissos de adimplência firmados com o Banco.

170

CAPÍTULO III RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL: REGULAMENTANDO A ESPONTANEIDADE OU TORNANDO ESPONTÂNEO O REGULAMENTO?

3.1. O Ambiente de Responsabilidade Socioambiental no BNB Os organogramas administrativos e técnicos do Banco do Nordeste são mutáveis. O presidente da instituição junto com sua equipe de diretores, todos cargos comissionados, nomeados por meio de indicações políticas, têm uma certa liberdade de alterações na estrutura organizacional do BNB. Byron e Smith, cada um com oito anos de gestão do Banco, implantaram muitas mudanças para ―reestruturação‖ da instituição a fim de imprimir uma marca administrativa e alcançar seus propósitos gerenciais. Os dois referidos ex-presidentes justificaram a necessidade de mudanças organizacionais pela ótica do melhor aproveitamento da aplicação dos recursos existentes diante da pressão de órgãos de fiscalização da administração pública. Smith obteve sucesso em seus propósitos, Byron não. Os modelos organizacionais da administração pública, nos âmbitos federal, estadual e municipal, são adaptados aos jogos políticos dos cargos comissionados, ou ―cargos de confiança‖. Se há em determinado órgão público a disponibilização de ―x‖ número de cargos em ―x‖ faixa salarial, o organograma desse órgão será pautado por esses cargos e valores e não exatamente por uma avaliação técnica do que ―de fato‖ é necessário classificar e setorizar em prol de uma dada missão institucional. Grosso modo, nas últimas gestões, o organograma do Banco se desenha pela centralidade da figura de um presidente, que toma as decisões finais sobre as diversas pautas e demandas técnicas e políticas da instituição, com a consultoria do Conselho de Administração e da Diretoria, que podem ou não convocar assembleias gerais para a tomada das decisões. Essa estrutura central é fiscalizada pelo Comitê de Auditoria, pela Secretaria da Comissão Ética e pela Ouvidoria. São atualmente seis Diretorias no Banco: Gestão do Desenvolvimento; Negócios; Financeira e Mercado de Capitais; Administração de Recursos de Terceiros; Controle e Risco; e Administrativa e Tecnologia da Informação. Cada uma das seis Diretorias é dividida em Áreas, que por

171

sua vez, são subdivididas em Ambientes. Duas Áreas são ligadas diretamente à Presidência do Banco, a Área do Gabinete da Presidência e a Área Jurídica. Na Diretoria de Negócios existe uma Área chamada Área de Supervisão da Rede de Agências, que é conectada administrativamente às Superintendências Estaduais do Banco, que abrigam um setor de planejamento central e as diversas agências bancárias. A Diretoria de Gestão do Desenvolvimento é divida em três departamentos: a Área de Agricultura Familiar e Microfinanças; a Área de Políticas de Desenvolvimento, onde Ceci atuou antes de ser eleita diretora-presidente da AFBNB; e o nosso falado ETENE, cujo Superintendente atual é o Renato e um dos técnicos é o Nelson. O Ambiente de Responsabilidade Socioambiental é vinculado à Área do Gabinete da Presidência do Banco e fica localizado na Casa Gilmário Ferreira, na sede do BNB, no bairro do Passaré, em Fortaleza. A casa foi reformada em 2010 para abrigar uma equipe de oito funcionários do Banco mais estagiários e terceirizados, acomodando fisicamente um projeto que vinha sendo estruturado desde 2008 para tratar do planejamento, acompanhamento e avaliação de atividades que são baseadas em princípios da chamada responsabilidade social e ambiental e contam com a participação do BNB. Trata-se de uma repartição pública empresarial tradicional. Espaços divididos por escaninhos com mesas de trabalho postas em forma de cruz denominadas

―ilhas‖

que

acomodam

quatro

pessoas

voltadas

para

quatro

computadores. Quando ia desenvolver as entrevistas, era recebido em uma sala de reuniões com mesa retangular, espaço reservado, onde eu e o colaborador da pesquisa ficávamos conversando por cerca de uma hora ou pouco mais. Funcionários terceirizados sempre traziam água e café para aquela nossa ―reunião‖. Próximo à recepção, em posição perpendicular aos banheiros masculino e feminino, existem dois computadores que, segundo a recepcionista, são disponibilizados para um projeto de ―inclusão digital‖ criado para beneficiar os próprios funcionários terceirizados bem como os mestres de obra e pedreiros que, vez ou outra, trabalham em alguma reforma de algum dos espaços que compõem o grande complexo que é a sede do BNB em Fortaleza. O Ambiente de RSA 71 foi criado na gestão de Smith, que viu a necessidade de aproveitar pessoas do Banco que já estavam ―antenadas‖ nesses assuntos e transformar essas energias individuais em um projeto institucional. Uma instituição como o BNB

71

Responsabilidade Socioambiental.

172

precisa entrar em sintonia com as legislações ambientais e, mais do que isso, regulamentar um setor específico para direcionar práticas mais efetivas de responsabilidade socioambiental. Smith prefere ―socioambiental‖ porque chama a atenção para a preservação do meio ambiente também. Antes de entrar no Banco, ele ―já tinha um tráfego bom nessa área‖, lembra que realizou palestras em um navio do movimento Greenpeace. Segundo Silveira, desde o seu nascedouro o BNB desenvolve atividades que podem ser consideras ―socioambientalmente responsáveis‖, mas diante dos novos conceitos que surgiram após a publicação de diretrizes advindas de acordos mundiais, o Banco passou a se concentrar na temática a fim de inseri-la no planejamento estratégico da instituição. De acordo com Laureana, o Ambiente de RSA não produz, por si mesmo, novas ações voltadas exclusivamente para o que, comumente, se conceitua como ―responsabilidade socioambiental‖. Não é esse o papel do Ambiente. O setor foi criado com o intuito de localizar, monitorar, aperfeiçoar e apoiar projetos já desenvolvidos pelo Banco por meio de parceria com as demais áreas institucionais internas e outros parceiros externos.

173

Foto 9. Aspecto de um passarela ligando blocos no Centro Político-Administrativo da sede do BNB no bairro Passaré, em Fortaleza/CE (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

174

Organograma do BNB (2012). Extraído do site institucional do Banco do Nordeste do Brasil em 11 de fevereiro de 2013

175

Foto 10. Aspecto interno de um setor do Centro Político-Administrativo do BNB (2012). Autor: Emanuel Oliveira Braga

Foto 11. Aspecto da Casa Gilmário Ferreira, localizada na sede do BNB no bairro Passaré, em Fortaleza/CE, onde funciona o Ambiente de Responsabilidade Socioambiental (2013). Autor: Emanuel Oliveira Braga

176

3.2. Definições, consensos e conflitos Quando Roberto Smith decidiu transformar e formatar um conjunto de práticas e projetos sociais e ambientais dispersos nas mesas de alguns poucos funcionários do Banco em um Ambiente institucional, ele fez isso ciente do que o ocorria comumente nas empresas ditas ―socioambientalmente responsáveis‖. Ele sabe que existe uma economia do ―capitalismo verde‖ no mundo, cada vez mais estratégica e rentável. Sabe, mas não concorda com isso. Eu sou contra todo esse processo de você gerar títulos né, de você fazer disso um... modelo financeiro. Você planta árvores, você pode emitir títulos que você vai vender e o cara que surgiu ele pode comprar esses títulos, como você tivesse trocando... Compensações. Isso dá dinheiro e tudo mais (Roberto Smith).

Nesse entendimento, Smith, pessoalmente, prima pela separação entre negócios financeiros e ações de salvaguarda do meio ambiente. De acordo com o ex-presidente do Banco, na época da criação do Ambiente de RSA, ele procurou reunir pessoas que já tivessem um histórico afetivo de engajamento ambiental e social. Danilo, que no Banco era apelidado de ―Danilo verde‖, foi nomeado gerente do recém-fundado Ambiente. A despeito das críticas que Smith tece à prática das compensações ambientais, do ―capitalismo verde‖, é importante compreender que a chamada responsabilidade socioambiental, uma variante da responsabilidade social empresarial, não propõe nenhuma ―outra economia‖ para o planeta, não propõe outro modo de produção nem outro modelo de organização social da vida humana. Muito pelo contrário, como podemos ver pelas linhas que seguem, conforme o olhar de alguns sociólogos que se debruçaram sobre o tema, representa um upgrade do sistema capitalista, agregando novos valores morais e monetários às empresas privadas e estatais e ao mercado financeiro. Joana Garcia (2004) defende que as campanhas, as práticas e o debate em torno da responsabilidade social das empresas surgem espelhados em um ―modelo cultural estadunidense de ver o mundo‖. Essa citação mostra um pouco do processo histórico que procura ressignificar essa especificidade cultural local em valores que se pretendem universais: É relevante indicar que os Estados Unidos são referência no mundo da filantropia e que sua prática – mais ampla e variada do que a dimensão

177

estritamente corporativa – é relacionada a uma tradição cultural baseada no individualismo e na iniciativa privada, combinada a um descrédito do poder governamental. Deriva de uma herança protestante, favorecedora do ―espírito do capitalismo‖, cuja força é revelada pela atitude puritana de um dos filantropos pioneiros, William Penn72 (1644 – 1718): ―o melhor passatempo é fazer o bem‖. Embora o apelo ao compromisso social fosse um valor indiscriminado na sociedade americana, a questão especificamente voltada para as empresas foi difundida a partir da publicação do livro Responsabilities of the Businessman, de Howard Bowen, em 1953, coincidindo e rivalizando com a presença marcante do Estado em países regidos pelo sistema do bem estar social. A partir daí, as obras de divulgação sobre o compromisso social das empresas são, nos EUA, incompatíveis, constituindo uma cultura de enaltecimento da função social para além dos valores de mercado (Garcia, 2004: 28).

Para Garcia, em um contexto ―de crise de motivação para a vida pública, marcada por uma baixa credibilidade em relação às instituições sociais, o empresário aparece como um ator qualificado a instituir a lógica da eficiência e do jeito novo de ‗fazer o bem‘‖. (2004: 16). A invenção, ou a reinvenção, desse personagem, o empresário cidadão, se confunde com outro aparecimento prático-discursivo recente: as organizações não governamentais sem fins lucrativos, conhecidas popularmente como ONGs. Essas entidades mesclam, em seus quadros, trabalhos voluntários e remunerados e, na imensa maioria dos casos, estão sempre na dependência de recursos de outrem, parcerias com órgãos públicos ou patrocínios privados. Possuem uma autonomia contraditória, se constituem como organizações de existência própria, porém não se sustentam materialmente por si mesmas. Empresários compromissados, associações sem fins lucrativos que precisam pagar contas de água e luz, assalariados generosos, voluntários remunerados, são muitos os híbridos responsáveis socialmente. Mas, afinal, como se justifica esse ―novo jeito de fazer o bem‖ é a questão que nos cabe provocar considerações agora. Há, por todos os lados, uma defesa de uma nova ordem de velhas prioridades políticas. Ressurge uma palavra saborosíssima, que irá ecoar em muitos recantos do globo: cidadania. E o Estado, essa figura cognitiva, não deveria ser o grande Estado Leviatã que em alguns contextos históricos buscou ser, responsável maior pelas diversas necessidades da população. O Estado deveria se fragmentar, amolecer, para ter uma maior capilaridade e perceber, finalmente, o que as pessoas necessitam em seu dia a dia. O empresário responsável e as ONGs teriam mais facilidade, acesso e ainda 72

Grifos nossos.

178

estariam mais ―arejados‖, e mais ―atualizados‖, para lidar tête-à-tête com o povo. A noção de política pública, conivente e conseqüente ao amolecimento do Estado, responsabiliza todos os segmentos sociais da sociedade para a construção das políticas sociais, ambientais, econômicas, culturais, etc. Em tese, os funcionários públicos, servidores do Estado, deveriam ser (meros?) mediadores de um processo político mais amplo e democrático que envolve e convida, diariamente, todos os cidadãos a participar. Mais recentemente as chamadas ONGs, em razão de sua multiplicidade e da dificuldade de manter a captação dos recursos privados, associam-se às prefeituras, por intermédio de ―parcerias‖ para elaboração e execução de programas sociais. Essa associação supostamente favoreceu todos os implicados: o Estado, que passou a contar com instituições que demonstram fôlego e quase sempre maior conhecimento da causa; as organizações nãogovernamentais, que capitalizaram maior respaldo político e suporte material; e, por fim, a população usuária, que usufrui a ampliação e melhoria dos serviços. Em termos de interlocução política com o Estado, essa é uma conquista valorosa para a democratização das esferas de gestão e controle social, embora uma análise mais crítica aponte para o perigo da desresponsabilização do Estado como garantidor das políticas públicas (Garcia, 2004: 18).

Na prática das atuais políticas (sociais, ambientais, culturais, turísticas, econômicas, etc.) do Estado brasileiro, e de outros Estados-Nacionais, o mercado e o ―terceiro setor‖ (as organizações sem fins lucrativos e de interesse público) estão sempre envolvidos na captação e aplicação de recursos públicos. Na minha experiência de acompanhamento de processos de licenciamento ambiental no Estado da Paraíba e elaboração de pareceres técnicos emitidos pelo IPHAN sobre os aspectos referentes ao patrimônio cultural presente em determinados contextos locais, vejo que a aprovação e desaprovação de licenças de instalação de empreendimentos produzem dinâmicas políticas, econômicas e culturais nos municípios onde serão implantadas determinadas obras de maior envergadura. Na maioria dos casos, os projetos são aprovados e são recomendadas as chamadas medidas compensatórias, mitigatórias e corretivas direcionadas para a população local. Os atores que organizam, participam e disciplinam tais ações não são aqueles funcionários públicos, técnicos como eu, que propõem a execução dessas medidas. Uma determinada cimenteira, a título de exemplo, se instala no interior da Paraíba e é obrigada, no processo de licenciamento ambiental para instalação e operação de seu maquinário e estruturas de funcionamento, pelo órgão ambiental estadual, a fazer um projeto de recuperação da mata ciliar ou um projeto de educação ambiental. Essa cimenteira, então, decide (quase se obriga), a terceirizar os serviços

179

para outras empresas ou ONGs (ou OSCIPs 73) para execução dessas ―pequenas políticas‖, em conformidade com as diretrizes legais controladas pelo poder público. Quase não há mais execução direta de projetos de políticas do Estado, ou seja, no referido caso, funcionários públicos que se encarreguem de fazer todo o trabalho de recuperação da mata ciliar, de educação ambiental ou de reflorestamento. Alega-se que não há recursos humanos suficientes para tanto no interior das instituições que compõem os poderes públicos. Também se defende a visão de um novo modelo de Estado, onde o mesmo passa a ser visto como agente mediador e gerencial e não mais como o promotor direto de políticas públicas (Garcia, 2004). Por isso, também se defende a articulação das chamadas ―parcerias‖, que são legitimadas contratualmente por meio de convênios, um modelo administrativo de gestão de recursos públicos que ocorre quando, supostamente, há interesse de todas as partes envolvidas na execução de um trabalho ou missão como ―preservação ambiental‖ ou ―salvaguarda do patrimônio cultural‖, que é de interesse precípuo do Estado, mas também pode estar no regimento interno de uma determinada empresa socioambientalmente responsável ou no estatuto de uma determinada associação civil. Todos devem compartilhar e se sentirem corresponsáveis pelas políticas públicas. São os indivíduos que, em nome das instituições, realizam as parcerias e assinam os convênios e, com simples gestos, misturam Estado, mercado e dom. O cenário para o aparecimento prático-discursivo das responsabilidades sociais, ambientais, culturais, dentre outras, é o cenário de tentativa de fragilização do papel do Estado como o grande agente responsável pela defesa dos valores públicos. Ainda segundo Garcia (2004), o frisson em torno da responsabilidade social empresarial e corporativa foi incorporado aos interesses dos diálogos globais (entre representantes dos Estados-Nacionais e dos organismos internacionais) desde meados da década de 1980, observando que seu aparecimento não é homogêneo nem sincrônico nos diferentes países que a ―adotaram‖. Ana Maria Kirschner (2009) contextualiza o aparecimento das primeiras iniciativas de responsabilidade social no Brasil no período de redemocratização política e implantação no início dos anos 1990 de políticas neoliberais, que reduziram as Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Para mais informações sobre as nomenclaturas e modelos de fundação e associação consultar o Portal do Terceiro Setor On Line: http://www.terceirosetoronline.com.br/ong-os-oscip/. No link, podemos ler: ―No Brasil, as entidades conhecidas como ONGs, caracterizadas como sem fins lucrativos, são constituídas sob a forma jurídica de associações e de fundações privadas. Porém, habitualmente, são identificadas como ONG, OSCIP, OS, Instituto, Instituição etc.‖ 73

180

intervenções sociais do Estado. As empresas, especialmente as multinacionais, deveriam se responsabilizar, através de ações junto ao público interno (funcionários, acionistas, colaboradores diretos, etc.) e ao público externo (populações do entorno, parceiros institucionais, organizações civis, etc.), por diversas demandas da sociedade, em sintonia com critérios mundiais de ―como viver bem neste mundo‖. Atualmente, após a ―Era Lula‖ e o novo fortalecimento do Estado brasileiro, a responsabilidade social das empresas tem sido incentivada, financeiramente, pelo próprio Estado (Kirschner, 2009). Entretanto, Marina de S. Sartore (2006), por meio de estudo realizado por Paola Cappellin & Gian Mario Giuliani (2004), diferentemente de Garcia e Kirschner, localiza os primórdios da ideia de responsabilidade social no Brasil ainda nas décadas de 1960 e 1970, no movimento encabeçado pela Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas do Brasil – ADCE, filial da International Christian Union of Business Executives – UNIAPAC, a primeira instituição que significativamente tentou introduzir uma ―consciência social‖ no campo das empresas. A publicação da Carta de Princípios do Dirigente Cristão de Empresas em 1965 pelo grupo de São Paulo provocou um debate sobre o papel social das empresas. Em 1974, a associação publicou outro documento importante, Decálogo do Empresariado, que continha pela primeira vez uma proposta explícita para ligar os negócios gerenciais com a responsabilidade social. A associação se tornou uma rede nacional em 1977. A rede desenvolvida pela ADCE elaborou novos instrumentos e reativou a tradição católica da caridade74 (Sartore, 2006: 9).

Apesar de fazer parte de uma realidade de práticas multifacetadas 75, onde cada organização empresarial seleciona determinados aspectos (preservação ambiental, assistência social, promoção cultural, promoção de direitos humanos, promoção do bem estar do trabalhador, etc 76.) de um quadro geral de recomendações internacionais para

Grifos nossos. Segundo problematização de Cheibub & Locke, apesar dessa explosão de interesse sobre os temas pertinentes à chamada ―responsabilidade social empresarial‖, ―um breve exame da literatura sobre o tema sugere que a própria idéia de RSE, suas características fundamentais, sua operacionalização e suas conseqüências para o mundo real ainda são objeto de disputa. Na verdade, tanto na literatura sobre RSE, como no que denominamos ‗movimento pela responsabilidade social das empresas‘, coexistem diversas definições competitivas sobre o que é RSE, por que ela é importante e como deveria ser implementada no mundo real‖ (2002, s/ pág.). 76 Uma questão provocada pelo contato com o campo de pesquisa ainda não respondida é: por que o Ambiente de RSA do BNB dá preferência a temas de projetos sociais como ―proteção da criança e do adolescente‖ e ―apoio ao esporte‖ e não outros temas entre tantos que há no escopo de princípios da responsabilidade social empresarial? 74 75

181

a ―aplicação‖ da RS 77, autores como Michael Porter & Mark Kramer (2006) defendem a tese da existência de uma transição da responsabilidade social considerada voluntária para uma prática cada vez mais regulamentada e pautada por uma estratégia empresarial. Conforme

entrevistas

com

funcionários

do

Ambiente

de

Responsabilidade

Socioambiental do BNB, da Superintendência Estadual da Paraíba, de uma agência bancária de João Pessoa e do INEC, bem como análise comparativa feita por cientistas sociais que pesquisam contextos e temas pertinentes à chamada Sociologia da Empresa, a responsabilidade social (socioambiental no caso do BNB), contemporaneamente falando, não mais se dá o trabalho de se autoproclamar moralmente desinteressada. Assume oficialmente, com tranqüilidade, mesmo para aqueles que vêem beleza no dom espontâneo (aí temos uma redundância), que as ações sociais planejadas e realizadas pelas ―empresas cidadãs‖ são um fator decisivo para o crescimento dos seus negócios e lucros. A chamada ―empresa cidadã‖ é entendida como uma organização de base empresarial que gere além dos seus próprios negócios, algumas estratégias e ações para melhoria das condições de vida dos seus trabalhadores, de populações presentes em seu entorno, da preservação do meio ambiente local, propondo alternativas, prevenções e compensações para diversos problemas sociais colocados em pauta no mundo contemporâneo. Essas preocupações sociais e ambientais, além da preocupação com a ―transparência‖ da gestão do negócio, inseridas cada vez mais no planejamento estratégico das empresas, agregariam valor aos próprios produtos vendidos por elas, atraindo um público consumidor ―cada vez mais exigente‖. Ao cumprir as obrigações instituídas pelos diversos tratados internacionais que asseguram a ―dignidade humana‖ em seus diversos aspectos, documentos discutidos amplamente e democraticamente, essas empresas alcançariam notável reputação e melhoria da imagem de sua mercadoria. As ―empresas responsáveis‖ se utilizariam desse consenso global acerca de ―soluções para uma vida melhor‖, trabalhando com noções e metas de trabalho como desenvolvimento sustentável e qualidade de vida para, assim, poderem acrescentar valor às suas marcas perante o público consumidor. Uso aqui o futuro do pretérito, o futuro incerto, não para provocar o leitor para a interpretação do possível ―faz de contas‖ que envolve o mundo empresarial que lida com o conceito/prática da responsabilidade social e seus derivados, mas no sentido de trazer o olhar para o prisma da idealização dessas práticas, que percorrem um longo caminho, entre o ideal e o real, até serem 77

Responsabilidade social.

182

vivenciadas, trabalhadas e reinventadas cotidianamente pelos funcionários de uma dada organização empresarial, já que os princípios da RS, em muitos casos, passam a ser normas institucionais internas, disciplinando alguns detalhes das experiências espaciais e temporais das pessoas.

Responsabilidade social e seus derivados

Acordos Internacionais Recomendações e Leis Nacionais Procedimentos Internos da empresa/instituição Disciplinar experiências espaciais e temporais dos público interno e externo das empresas/instituições.

Figura 1. Autor: Emanuel Oliveira Braga

3.2.1. O caso do INEC A referida transição do caráter voluntário (espontâneo) da responsabilidade social e seus derivados para um processo de regulamentação pautada por uma estratégia empresarial, conforme reflexões de Porter & Kramer (2006), pode ser lucidamente percebida na história do Instituto Nordeste Cidadania - INEC, uma OSCIP dirigida por alguns servidores do Banco do Nordeste do Brasil. Segundo informações do site institucional 78, o INEC surge no cenário de mobilização nacional em prol do combate à fome e à miséria promovida pelo sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, no início da década de 1990. O movimento ficou conhecido como Ação da Cidadania. Em 1993, por meio da fundação de uma ONG sediada na cidade do Rio de Janeiro, a Ação da Cidadania, em parceria com veículos nacionais de comunicação de massa, passou a mobilizar todos os segmentos da sociedade brasileira para criação de comitês regionais e locais. Os comitês deveriam organizar parcerias, articuladas com a direção nacional, atuando junto aos grupos sociais carentes do meio rural e urbano, 78

www.inec.org.br. Pesquisa realizada em 15 de novembro de 2012.

183

promovendo ações assistenciais e reunindo pessoas vítimas da miséria na luta pela conquista dos seus ―direitos sociais‖. Os comitês também deveriam identificar e formar voluntários, incentivar iniciativas solidárias individuais e coletivas e projetos em diferentes áreas de atuação, como doação de alimentos, roupas e brinquedos, geração de emprego e renda, educação por meio de oficinas de artes e técnicas profissionais, disponibilização de espaços para cuidados com a saúde, creches, ações de esporte e lazer, arte e cultura, assistência à população de rua, etc. Um desses grupos que conseguiram ser mobilizados pela ONG de Betinho foi o Comitê de Ação da Cidadania dos Funcionários do BNB, ―inicialmente com ações emergenciais mediante a doação de cestas básicas, roupas e brinquedos‖. Como sabemos, Silveira, que hoje atua no Ambiente de RSA, participou ativamente desse processo de mobilização de pessoas no Banco. Ceci, da AFBNB, na época assistente social do Banco, também participou efetivamente da fundação do grupo e da organização das primeiras reuniões. Em 1996, o Comitê se transformaria em uma ONG com o nome Instituto Nordeste Cidadania, acrescendo às ações ―emergenciais‖ já realizadas ―projetos produtivos geradores de emprego e renda‖. Em 2003, no início da gestão de Smith, o INEC é transformado em OSCIP e, segundo depoimentos de servidores da sede do BNB em Fortaleza, confirmado por informações do site institucional, passa, mediante termos de parceria, a ser um instrumento administrativojurídico que formaliza e executa a operacionalização de programas de microcrédito como o Crediamigo e o Agroamigo. No site do INEC há a postagem de um vídeo, ―linkado‖ via youtube, que conta a história do Instituto por meio de um cordel. Entre as rimas, podemos destacar esta apreciação do conceito de cidadania:

`

Resgatar a cidadania é mais que brinquedo e comida É preciso ganha-pão para que o homem leve a vida Investir em projetos produtivos, solução desenvolvida [...] Fábrica de doces e cajuína Galinha caipira, cabra leiteira Apiário, piscicultura E curso pra costureira Gerando trabalho e renda Pra essa gente brasileira Na sociedade também tinha Muita gente no informal Trabalhadores buscando

184

Crédito apoio, coisa e tal Querendo a sua inclusão Econômica e social [...] Entendendo que OSCIP Aumentava a inclusão Foi que o INEC buscou Nela sua qualificação Podendo operar microcrédito E expandir sua ação E por termo de parceria O casamento se fez INEC e BNB juntos Olhem só, vejam vocês Operando o Crediamigo Desde dezembro de 2003.

Trata-se da preocupação dos servidores do BNB, filiados ao INEC, em caracterizar uma nova forma de ―fazer o bem‖ desatrelada às doações filantrópicas e cada vez mais aproximada de valores considerados mais condizentes com a realidade de um banco com a histórica missão desenvolvimentista e financista, antenado contemporaneamente a noções como responsabilidade sociambiental, política pública e cidadania. Ao ―operar o Crediamigo e o Agroamigo‖, o Banco também cumpre seu papel institucional de banco, aumentando a sua receita financeira anual por meio da descentralização de execução de uma tarefa bancária-desenvolvimentista para uma OSCIP. Trata-se de estratégia empresarial e de governança corporativa direcionadas por Roberto Smith na época em que foi presidente do Banco. Mesmo a tradicional Campanha Natal Sem Fome do INEC, transformada em Campanha Natal Sem Fome dos Sonhos, única que ainda guarda uma relação direta com a primeira mobilização desencadeada pelas ações do Betinho em 1993, atualmente precisa ser ressignificada por um planejamento estratégico voltado para o desenvolvimento empreendedorista de pessoas, grupos, atividades, renda e negócios. A Campanha Natal sem Fome dos Sonhos de 2012, por exemplo, aborda a temática ―Brincando com Sustentabilidade‖, ―adotando a doação de brinquedos artesanais feitos por grupos produtivos em comunidades parceiras, unidades de abrigo e presídios‖ 79. Em outro vídeo ―linkado‖ do youtube no site institucional do INEC, podemos perceber como a campanha é engendrada por funcionários do BNB que ―defendem a

79

www.inec.org.br. Pesquisa realizada em 15 de novembro de 2012.

185

causa‖ dentro do Banco, no intuito de cativar outros funcionários para uma boa ação de final de ano. Nele, há a seguinte narração: A turma do INEC já começou a divulgação da campanha e com riso e música. A vigésima edição da Campanha vem com algumas mudanças. Pra começar, os brinquedos doados são ecológicos, feitos de material reciclável e produzidos pelas associações e comunidades parceiras do INEC.

Abre-se no vídeo, então, a imagem de Cássia Regina, diretora-presidente do INEC, com o seguinte depoimento: Desde janeiro a gente vem treinando pessoas de zona rural, pessoas que ainda estão sem emprego e presidiários, presidiárias e jovens das unidades de abrigo que estão em processo de ressocialização. Eles vem aprendendo durante o ano a confecção desses brinquedos. Tem muita gente colaborando, a gente iniciou aqui no Passaré, na direção geral, e tá sendo, assim, muito bem aceita, e as pessoas tão realmente se afetando, no sentido de criar esse clima de natal, de afetividade, de solidariedade, e fazer algo. E você que tá aqui na direção geral, em Fortaleza, pode vir ajudar a gente comprando os brinquedos populares no restaurante pra ajudar a pagar esses grupos produtivos, pode ajudar a gente nas festas que nós vamos fazer nas comunidades e ir lá voluntariamente entrar em contato um pouco com essa realidade que é nossa também.

É toda uma estratégia do ―fazer o bem‖ que encontramos nessas pequenas falas. A ―turma do INEC‖, composta de alguns bancários filiados, organiza um circuito de visitas aos ambientes de trabalho da sede do BNB em Fortaleza. Em algumas dessas visitas, vai um coral cantando músicas de sensibilização de ―mentes e corações‖. Os objetos das doações estão revestidos de um novo hau maussiano, de um ―espírito da coisa dada‖ de grandes poderes simbólicos, são brinquedos ecologicamente corretos feitos pelos humildes e excluídos da sociedade. São as crianças e os pobres os eleitos para o dom. Mauss (1974) percebe com astúcia em seu Ensaio que crianças80 e pobres constituem agentes e objetos da dádiva por excelência. A retribuição é sempre mais esperada e maior. Se unirmos a esses elementos à preservação do meio ambiente (―produtos ecologicamente corretos‖), teremos um magnífico ato de generosidade contemporâneo.

Podemos inventariar uma lista de falas da invenção da infância em nosso meio social que atestam a prioridade que elas naturalmente detêm para recebimento de dádivas: ―as crianças têm trânsito livre nos circuitos, nas visitas e nos cuidados familiares, são ‗intocáveis‘, perpassam os conflitos internos entre pais, mães, sogras, genros, cunhados, etc.‖; ―as crianças têm fragilidade física‖; ―as crianças são dependentes‖; ―as crianças são o futuro‖; ―as crianças são inocentes, não têm culpa dos erros da sociedade‖; ―a palavra ‗criança‘ não tem gênero; é a criatura‖. 80

186

Os brinquedos populares, feitos a partir de materiais recicláveis, feitos por desempregados, presidiários (em processo de redenção pelo dom) e por jovens humildes estão à venda no restaurante interno da sede do BNB em Fortaleza. Enquanto almoçamos ou tomamos um café no intervalo do expediente, podemos comprar os brinquedos artesanais e assim contribuir com a Campanha, comodamente. Ou se preferirmos, além disso, podemos colaborar com a organização das ―festas que nós vamos fazer nas comunidades e ir lá voluntariamente entrar em contato um pouco com essa realidade que é nossa também‖. É preciso, pois, uma ―campanha‖ para cativar o bem a tal ponto. Além das campanhas anuais, alguns funcionários do BNB contribuem mensalmente, com desconto em contracheque, com as ações organizadas pelo INEC. É uma opção pessoal de cada um. De acordo com Silveira, gerente executivo do Ambiente de RSA do BNB, trata-se de uma iniciativa espontânea do servidor que se mostrar interessado em participar. São poucos os filiados ao INEC, cerca de quinhentas pessoas, segundo dados de Silveira. Para ele, as ações são muito concentradas em Fortaleza, onde se localiza a sede do BNB, mas a tendência é que aja, cada vez mais, uma descentralização das ações acompanhadas pelo Instituto. O dinheiro do desconto que é feito no contracheque dos servidores filiados vai direto para a OSCIP e ―é rateado para pequenos projetos sociais‖. É interessante observar essa fala de Silveira que já foi coordenador da arrecadação de alimentos da Campanha do Natal sem Fome dos Sonhos: Em 2004 e 2005, e 2006, eu fiquei a frente aqui pelo Banco de coordenar a arrecadação de alimentos de todas as agências do Banco, e, hoje em dia, isso já é uma cultura. Várias agências do Banco fazem essa arrecadação no final do ano. A partir de 2009, a partir de 2008 na verdade, virou a Campanha do Natal sem Fome dos Sonhos. Não era mais arrecadar alimentos. Porque com o Programa do Bolsa Família, se entendeu, de alguma, que ele veio resolver essa questão da fome, não que isso exterminou, mas atendeu em grande parte, aí o problema agora era a questão da educação81 (Silveira).

Mais uma vez podemos perceber, tanto nos depoimentos feitos nos vídeos de divulgação postados no site institucional do INEC como no posicionamento de um funcionário do Ambiente de RSA, a construção de uma grande narrativa que perpassa as proposições ideológicas dos três conjuntos de ideias-força abordados na presente dissertação: desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade 81

Grifos nossos.

187

socioambiental. O caráter do bem, as idealizações de uma ―boa sociedade‖, é ressignificado, processualmente, por meio de uma crítica negativa a determinadas ações que recebem invólucros tais como ―assistencialismo‖ e ―solução paliativa‖ e, ao mesmo tempo, por meio de uma contraposição propositiva de novas estratégias e novos princípios para ―se fazer a coisa certa‖. Essa contraposição imprime um novo jogo de negociações de valores e planos de ação a serem implementados por vários segmentos da sociedade, a exemplo do Banco do Nordeste e do seu espelho estratégico, o Instituto Nordeste Cidadania. O jogo apresentado elenca outras necessidades não contempladas pela antiga e reprimível ―cultura filantrópica‖. Educação, sustentabilidade e cidadania contemporaneamente fazem parte de um vocabulário da dádiva reinventada. Entretanto, ao aproximarmos uma lente etnográfica sobre determinados ambientes de trabalho e projetos do BNB, um banco de desenvolvimento regional ligado ao Governo Federal brasileiro, verificaremos a coexistência, ao mesmo tempo consensual e conflituosa, entre as doações de roupas e alimentos e a implantação de programas de microcrédito, entre os mutirões natalinos e os projetos comunitários de sustentabilidade, entre os descontos espontâneos no contracheque dos servidores e o marketing

empresarial

lucrativo

do

BNB

visto

como

banco

responsável

socioambientalmente, portanto, legalmente aberto ao mercado internacional. ―Isso já é uma cultura‖, afirma Silveira. A arrecadação de alimentos no final de ano convive, em alguns meios sociais do BNB, com a tradicional e hegemônica cultura bancária desenvolvimentista. 3.2.2. Responsabilidade socioambiental e ―bem estar‖ do trabalhador Outra fala recorrente entre os bancários que atuam no Ambiente de RSA do BNB, reiteradas pelos técnicos do ETENE e pelos servidores entrevistados na Superintendência Estadual da Paraíba e em uma das agências do BNB em João Pessoa, remete responsabilidade socioambiental às ações direcionadas para o ―bem estar‖ do trabalhador. Essa preocupação está bem presente no BNB, apesar da pesquisa de Cardoso (2006) revelar que durante a administração do presidente Byron Queiroz (1995 - 2002) houve um processo de racionalização e precarização trabalhista no Banco, aumentando o controle e a pressão por ―resultados‖ dos serviços realizados. De acordo com o autor, o mencionado dirigente do BNB foi responsável pela efetivação de

188

muitas transferências 82 de servidores do Banco e pelo estabelecimento de princípios rígidos de normatização interna. Esses princípios defendem que os interesses pessoais não devem sobrepor aos interesses da Instituição, os postos organizacionais não constituem direitos trabalhistas, a estrutura da Instituição não é montada em função das pessoas e sim as pessoas é que são escolhidas para preencherem as estruturas, de acordo com as necessidades da empresa, etc. Na visão de quem planeja e analisa o ―bem estar‖ dos trabalhadores atualmente no Banco, para um servidor da área de recursos humanos da Superintendência do BNB na Paraíba, como Thiago, há a possibilidade de que os servidores insatisfeitos com seus postos de serviço sejam remanejados para outras áreas e atividades onde ―se sentirão melhor acomodados‖ desde que os critérios para essas transferências estejam pautadas em critérios técnicos e administrativos. Se um determinado servidor do Banco está sofrendo uma pressão psíquica muito grande porque está lotado como caixa e está perdendo dinheiro e repondo os prejuízos da agência com recursos próprios, Ele pode ser retirado do caixa. É uma análise, um estudo que deve ser feito. Ele pode ser retirado do caixa, ele não vai ser obrigado a permanecer no caixa se ele tá perdendo dinheiro. Mas, assim, ―ah tem um funcionário que não tá bem com uma agência e ele quer vir para uma gerência de negócios pra João Pessoa sede porque ele é o sonho dele e ele tá doente...‖. Não, ele não vai vir pra função, ele pode até vir, mas sem função (Thiago V. de Paiva Vicente, Assistente de Superintendência, em entrevista concedida na sede da Superintendência Estadual do BNB na Paraíba, no dia 21 de junho de 2012).

A meu ver, devemos ter um equilíbrio ao interpretar as falas do ex-presidente Byron (―o modernizador‖) e as falas de bancários como Thiago, entrevistados na presente pesquisa. Geralmente, quem consegue os melhores postos de trabalho ou aqueles em que se pode ―se sentir melhor‖, são servidores mais antigos e ―bem vistos‖ 82 As transferências eram motivadas pelo programa Farol do Desenvolvimento, que objetivava ocupar institucionalmente os municípios do interior dos Estados do Nordeste com representantes do BNB. Sobre o posicionamento do então presidente do Banco, Byron Queiroz, Cardoso relata: ―sem dúvida, o processo de transferências foi o que gerou maior conflito entre os funcionários da ativa e a direção geral do BNB. Segundo depoimento de Queiroz, ‗(...) teve enterro, missa de sétimo dia, out door, o que você imaginar de pressão, não só pressão sindical, mas pressão política também, já que eu era ligado ao grupo de Tasso Jereissati e recebia pressão dos grupos de esquerda. Eles [os funcionários] se pegaram com todo mundo e eu tive que negar pedido de governador, de senador, de deputado, de ministro do estado, de ministro de tribunais superiores, cada um arranjava um padrinho pra pedir. E eu tinha que dizer: olha, infelizmente eu não posso atender seu pedido. E realmente eu não abri nenhuma exceção. Todas as questões excepcionais eram tratadas por um Comitê multidisciplinar composto de seis pessoas, tinham que ter consenso sobre a decisão e eu tinha que tomar conhecimento. Portanto, tinha que resolver o problema da pessoa sem quebrar o princípio‘ (fala de Byron Queiroz em 11 de fevereiro de 2004).‖ (Cardoso, 2006: 158).

189

pelo Banco. Esses conseguem negociar, após anos de serviço prestados, uma melhor acomodação de seus interesses pessoais e profissionais, dependendo sempre do perfil de quem está ―no comando‖ e tem poder final de decisão sobre o presente e o futuro dos servidores do Banco. O próprio Cardoso relativiza esse autoritarismo de Byron, trazendo um importante depoimento do bancário Serafim Ferraz, Gerente do Ambiente de Recursos Humanos do Banco do Nordeste na primeira gestão do referido ex-presidente da instituição, relatando os jogos internos de poder que foram, de certo modo, condescendentes com certas decisões unilaterais de Byron: Byron é autoritário, sim, ele é uma pessoa forte, mas ele fez determinadas coisas lá é porque alguém ou algum grupo permitiu. Ele ocupou os espaços que os grupos internos deixaram. E essas pessoas deixaram esse espaço exatamente para não perder privilégios. Daí uma relação com o corporativismo, que é muito forte na Instituição (fala de Serafim Ferraz em 21 de novembro de 2004). (Cardoso, 2006: 170).

Ceci avalia que a gestão de Byron foi muito desrespeitosa no trato com os servidores do Banco. Entretanto, com Smith, segundo sua avaliação, não houve uma mudança brusca de postura perante o quadro de funcionários da instituição. Tudo o que Byron marcou pela temeridade, o Roberto Smith marcou pela ausência. [...]. Tava muito confortável, politicamente estava protegido, era uma indicação política de um grupo que estava no comando do PT, e não ousou, não se empenhou (Cecília Maria).

Outra preocupação bastante forte do Banco é com a constante capacitação do quadro de funcionários. Durante o ano são muitas as ―oportunidades‖ que os servidores têm para fazerem cursos, oficinas, participar de palestras, seminários, congressos, além da possibilidade de entrar em uma pós-graduação com apoio financeiro do Banco. Um dos colaboradores dessa pesquisa, por exemplo, teve que adiar para o turno da tarde nossa conversa sobre os assuntos do Banco porque ele estava em um curso de inglês no meio do expediente. Todavia, nem todas as capacitações e cursos solicitados pelos servidores são liberados e apoiados pela instituição. Geralmente, a formação desejada é aquela em temáticas relacionadas à gestão empresarial. Abner e Thiago, por exemplo, estão cursando Especialização/MBA à distância, pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, com ênfase em áreas como administração de empresas e gestão de negócios. MBA é a sigla para ―Master in Business Administration‖, ou, em português, ―Mestre

190

em Administração de Negócios‖. MBA é um curso de formação de profissionais executivos, nas diversas disciplinas da Administração, onde são estudadas matérias de Marketing, Finanças, Recursos Humanos e Contabilidade. Esse tipo de formação é de interesse do Banco já que contribui para atualização da ―cultura bancária‖ que, como sabemos, é pautada na ideologia ―desenvolvimento pelo empreendedorismo‖. Nelson, por exemplo, no início do ano de 2013, não foi liberado pelo Banco para efetivação de sua matrícula em um curso de Doutorado em Sociologia na UFF onde seu projeto sobre a experiência do PAPPS no BNB obteve êxito. Provavelmente, nem um doutorado em sociologia, nem um assunto como ―economia solidária no Banco do Nordeste‖ sejam interessantes para que o Banco libere, à custa da instituição, um servidor para aprofundamento de seus estudos. É mais um episódio que contribui para a interpretação da marginalidade do PAPPS na lista de prioridades estratégicas do BNB. 3.2.3. Responsabilidade socioambiental: obrigatoriamente voluntária e voluntariamente obrigatória Segundo os técnicos do Ambiente de RSA, uma empresa também pode ser considerada socialmente responsável ao destinar uma porcentagem do imposto de renda, a receber ou a pagar para o Estado, a determinados fundos de apoio à melhoria das condições de vida da criança e do adolescente e de apoio a práticas esportivas, por exemplo. Ser responsável socialmente é proceder com atividades e princípios que a sociedade, de um modo geral, entende como um ―bem‖, uma ―boa ação‖. Laureana ressalva que todos os anos o Ambiente de RSA organiza uma premiação destinada àqueles servidores que se envolvem mais com o projeto, que se mostram generosos no seu desconto do imposto de renda e conseguem sensibilizar mais doadores dentro e fora do Banco. A gente, desde a captação, a campanha, a campanha do FIA [Fundo para Infância e Adolescência], e estimula, faz a premiação, a gente faz uma premiação com aquela pessoa que conseguir mais doadores (né). Porque tem aquele pessoal que já se sensibilizou mais com a causa, já doou, viu que o seu dinheiro volta (né). É que às vezes a pessoa é desconfiada, ―será que isso vai dar certo? E tal... Então, a gente tem uma campanha também, mobilizando, premiando, tá certo? Para que as pessoas arranjem mais e mais... E prestando contas: olhe, são tantas e tantas crianças e adolescentes... Essas pessoas tão assim, assim, praticam tais e tais esportes, então tudo isso muito transparente

191

(Laureana Cunha, em entrevista realizada no Ambiente de RSA, na sede do BNB em Fortaleza, no dia 4 de janeiro de 2012).

Todos os funcionários do Ambiente de RSA entrevistados insistem, antes mesmo que eu inicie qualquer pergunta sobre o assunto, que responsabilidade socioambiental não é ―filantropia‖, não é solução paliativa, imediata nem emergencial das mazelas sociais e ambientais da sociedade, é ―gestão de negócios‖. Então, podemos e devemos naturalmente questionar: diante dessas descrições expostas até o momento, da instrumentalidade das ações sociais elencadas, do ―fazer o bem‖ na certeza do retorno material lucrativo, da obrigação de fazer em cumprimento de tratados e normas, do pragmatismo dos fins que justificam os meios, onde estará a dádiva nisso tudo? Mesmo sabendo que a dádiva é constituída por diferentes dinâmicas, conforme o ímpeto maussiano inventariante, pelo menos, temos o dever de duvidar: onde estará o caráter voluntário da dádiva nisso tudo? Não custa nada lembrar que a responsabilidade socioambiental funciona, é plausível, é lucrativa, somente na medida em que consumidores de ―produtos responsáveis‖ (e os empresários também são consumidores) desejam voluntariamente um ―mundo mais justo‖, independentemente do que essa ―justiça‖ seja na cabeça de cada um. Ora, a RSA torna empresas mais ricas por meio da crença coletiva em algum senso de justiça social, ambiental, cultural, mesmo que, no fundo, como nos diz Bourdieu (1996), tenhamos sérias dúvidas quanto a um possível embuste implícito nesse tipo dom. Além disso, é importante perceber que os funcionários do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental do BNB selecionam voluntariamente, baseados em

normas, quais projetos sociais,

devidamente

responsáveis, devem incentivar financeiramente e quais não devem. Por onde passa o crivo de seleção de bons e não tão bons projetos sociais? O caráter voluntário das práticas de responsabilidade socioambiental por parte das empresas, pode ser extraído justamente da não obrigatoriedade moral do setor empresarial para com a preocupação humanitária com o ―outro‖. Afinal, cabe-nos a pergunta: o que a sociedade deve legitimamente exigir dos empresários? Em que, exatamente, eles diferem de outros atores sociais? Por que os demais agentes sociais estão mais isentos de responsabilidades sociais, ambientais e culturais? Será que as empresas, apenas pela constatação de que produzem bens que são consumidos voluntariamente pela sociedade, elas já não estariam cumprindo sua função social precípua se conduzirem bem essa ―função básica‖?

192

Podemos louvar atos de filantropia e de responsabilidade empresarial, podemos até mesmo incentivá-los, mas o fundamental é que não temos o direito de esperar que empresários e as empresas sejam obrigados a praticar esses atos. Pelo menos não temos esse direito em relação às empresas enquanto não tivermos também o direito de esperar o mesmo para qualquer outro ator social (Cheibub & Locke, 2002: s/ pág.).

Essa obviação da necessidade do empresariado inserir, no seu rol de atividades, determinadas práticas de responsabilidade, passa a impressão de que os empresários, aprioristicamente, são considerados tão perversos, tão interesseiros, tão selvagens, que precisamos sempre exigir deles um senso mínimo de responsabilidade. Essa interpretação e expectativa negativa quanto ao segmento empresarial se revela, por exemplo, quando classificamos como ações de responsabilidade social (e seus derivados) até mesmo o cumprimento corriqueiro de normativas, leis e tratados por parte do empresariado. É como se sempre esperássemos o contrário, esperássemos que o empresário, culturalmente, tivesse a ―tendência natural‖ de desrespeitar acordos, contratos e leis. Se ele cumpre suas obrigações legais cotidianas, ele deve ser aplaudido porque foi uma exceção. Para Moses L. Pava (1996), não faz o menor sentido denominar de ―responsabilidade social‖ o mero cumprimento da lei. Dessa forma, [...] responsabilidade social, portanto, implica ações que vão além da ―letra da lei‖ e que não resultam de um embate político com sindicatos ou organizações de trabalhadores. É, na verdade, apenas e necessariamente um conjunto de ações que vão além do que é requerido por lei, por obrigação ou por necessidade (Cheibub & Locke, 2002: s/ pág.).

Os mais desconfiados da existência de espontaneidade (e aqui a espontaneidade é vista como algo extremamente positivo) no meio empresarial, questionarão, inclusive, se a rejeição da compreensão da regulamentação, do ―cumprimento da lei‖, como característica da responsabilidade social não seria, na verdade, uma estratégia maquiavélica para fazê-la parecer realmente voluntária. No entanto, é comum também o argumento que defende o ponto de vista de que se o empresariado cumprir todas as leis trabalhistas e seus compromissos com o Estado, já estaria desempenhando bem sua responsabilidade social (Garcia, 2004). Em contraponto a esse argumento, ―para outros ‗adversários‘, o problema está em usar a campanha da responsabilidade social apenas como retórica para promover socialmente as empresas. Para estes, o argumento da responsabilidade tem exclusivamente uma função de marketing‖ (2004: 31).

193

Zairo Cheibub e Richard Locke, no ensaio ―Valores ou interesses? Reflexões sobre a responsabilidade social‖, não deixam de se pronunciar moralmente sobre o tema pelo qual estão se debruçando analiticamente acerca da positividade de uma ―certa‖ responsabilidade dos empresários: Ações como apoio a projetos sociais (educativos, assistenciais, esportivos, etc), algumas políticas de gestão de pessoal (ação afirmativa para negros, mulheres, homossexuais, etc) ou normas de relacionamento com seus clientes/consumidores (segurança e qualidade dos produtos, indenizações por erros, etc) que excedam as obrigações legais e expressem responsabilidade social assumida voluntariamente pela empresa, são bons não apenas para a empresa, mas também para a sociedade como um todo. (Cheibub & Locke, 2002: s/ pág.)

O Banco do Nordeste, apesar de recentemente ter passado por um processo de remodelação organizacional para ―funcionar como uma empresa‖, é um banco público. A maior parte dos recursos dos fundos administrados pelo Banco advém de impostos pagos pela sociedade brasileira. A RSA desenvolvida pela instituição, dessa forma, agrega ainda mais o caráter obrigatório em sua prática-discursiva. Por isso, o reforço dado por Laureana: ―não somos casa de caridade‖. A ―caridade‖ é vista como uma prática privada e religiosa, mesmo que saibamos que as casas de caridade foram, durante muito tempo, uma das principais políticas oficiais do Estado brasileiro voltadas para os miseráveis e famintos, os ―carentes‖, as ―populações abaixo da linha da pobreza‖, no discurso politicamente correto. Apesar da pretensa normatização de valores considerados ―seculares‖ e ―válidos universalmente‖, que procuram conter impulsos individuais e coletivos de ―ajuda ao próximo‖, classificados como ―pessoais‖, os princípios da RS e seus derivados ganham nas suas aplicações práticas, em níveis locais, sabores idiossincráticos e identitários. Procurando caracterizar o diferencial da responsabilidade social no caso brasileiro, Garcia observa que ―em outros países, a responsabilidade social consiste essencialmente em estratégias de marketing que buscam associar o produto ou a empresa a um conjunto de valores favoráveis‖ (2004: 8). Quando narram experiências de trabalhos sociais responsáveis que o Banco do Nordeste pôde ―acompanhar de perto‖, os bancários do Ambiente de RSA, da Superintendência Estadual e da agência contemplados na presente pesquisa, relatam, em um mesmo leque de possibilidades, ações que remetem ora à obrigação legal/princípio institucional do banco, ora à boa vontade pessoal de cada servidor. Dessa forma, em uma mesma narrativa, encontramos, a título de exemplo:

194

1. A destinação de ―x‘ por cento do Imposto de Renda anual para aplicação em fundos para promoção da infância e da adolescência ou para o apoio de práticas esportivas (legal/institucional e individual/emocional); 2. A doação de alimentos, roupas e brinquedos para a campanha do Natal Sem Fome dos Sonhos (iniciativa individual/emocional); 3. A reforma de agências do BNB para atender o público deficiente físico (legal/institucional); 4. A. doação de equipamentos e cessão de dias da semana do BNB clube para a prática esportiva de grupos sociais carentes de Fortaleza (legal/institucional e individual/emocional). De acordo com Garcia, essa prática ―híbrida‖ de responsabilidade social se repete, de modo genérico, em vários contextos nacionais. Mesmo considerando que uma empresa socialmente responsável não está obrigada a realizar doações nem outra forma de atendimento assistencial, a filantropia empresarial, nos moldes como hoje é exercida, é uma referência significativa para as ações da campanha pela responsabilidade social, o que pode resultar na utilização desses termos como equivalentes (Garcia, 2004: 9).

Garcia explicita a ―moralidade religiosa‖ presente na ―filantropia à brasileira‖ 83: ―no Brasil, a filantropia – mesmo quando exercida em nome da ciência e de causas cívicas – freqüentemente esteve associada a uma moralidade religiosa e dirigida preferencialmente a ações e obras sociais voltadas para os pobres‖ (2004: 13). Outros exemplos do Banco do Nordeste ilustram o constante processo de ressignificação local dos ―grandes princípios para um mundo melhor‖ presentes em recomendações internacionais. Um dos critérios reiteradamente apontados pelos bancários do Ambiente de RSA do BNB, e confirmados pelos servidores da Superintendência Estadual da Paraíba e de uma das agências do Banco, para seleção de ―bons projetos‖, é o status de carência que o ―público beneficiado‖ tem. Quanto mais miserável for a condição social desse público, mais o projeto atenderia satisfatoriamente os requisitos de uma ação devidamente responsável, desde que tivesse bem delineado em seu escopo boas estratégias e métodos direcionados para o problema social.

A autora contrapõe a filantropia brasileira ao ―caso americano‖, mas não detalha quão diferente é a filantropia praticada nos Estados Unidos.

83

195

Ceci, que assume sempre uma postura mais crítica diante das práticas desenvolvidas pelo Banco, avalia a postura política da equipe que forma o Ambiente de RSA como ―despolitizada‖, estão apenas interessados em ―fazer um social‖ em pequenos projetos, cumprindo algumas recomendações internacionais, sem avaliação crítica nem provocação de debate junto aos outros setores do BNB. Eu acho ali muito despolitizado. Eu acho que é muito assim ―Legião da Boa Vontade‖, com todo o respeito às pessoas que estão lá. Não tem uma roda crítica, não faz acompanhamento de um projeto aprovado, aparecendo aqui e acolá. Não traz uma proposta pra ser debatida, pra ser incorporada pelo Banco. Ficam só ali naquele local e olhe lá! (Cecília Maria)

Tanto

responsabilidade

socioambiental

quanto

economia

solidária

se

reproduzem como duas estratégias técnicas, políticas e pessoais disputadas, dia a dia, simbolicamente, interna e externamente no universo de possibilidades institucionais do Banco do Nordeste do Brasil. Representam códigos não dominados, no plano sensorial e intelectivo, por todos os funcionários do banco, o que acirra e potencializa o fluxo cultural de invenção e reinvenção desses conceitos/práticas nos diversos ambientes e setores da instituição. Como vimos, essas duas ideias-força são decodificadas culturalmente por uma ideia-força anterior, historicamente sedimentada no Banco do Nordeste, o desenvolvimento regional, a ―categoria nativa‖ por excelência da instituição. Enquanto a ES se configura, na vivência individual dos servidores, como algo ―audacioso‖ e, sobretudo, ―marginal‖ no escopo institucional do Banco, a RSA se revela mais como um ―consenso universal‖ e uma ―obrigação legal‖, ainda que sem força institucional. Existe uma militância nos adeptos da ES, que ilustra o esforço pessoal de cada um ―em transformar uma utopia em realidade‖ do ―exército de um homem só‖ de um Nelson ou de um Alencar, que não se apresenta na lide cotidiana da RSA. Transitam entre essas duas ideias-força contemporâneas e globais, dois modelos de consenso ideológico. Enquanto a responsabilidade socioambiental configura sociabilidades de consenso indiferente, a economia solidária tende a configurar sociabilidades de consenso carismático. Denomino aqui ―consenso indiferente‖ a predisposição comportamental de um determinado grupo social para produção de significados e atitudes que se mostram indiferentes a um determinado acordo político geral (para todos) entre segmentos específicos da sociedade (acadêmicos, gestores públicos, índios, cartolas de futebol, kardecistas, ciganos, etc.). Esse acordo geral, que vale para a sociedade de um modo mais amplo, não provoca emoções, revoltas,

196

militância, grandes negatividades ou positividades. No nosso jargão popular, ―nem fede, nem cheira‖, ―nem é carne, nem é peixe‖, mas, ao mesmo tempo, aceitamos aquilo como ―natural‖ e ―esperado‖. Mesmo que ruim, não é tão ruim. Mesmo que bom, não é tão bom assim. Denomino aqui ―consenso carismático‖ a predisposição comportamental que se mostra simpática a esses acordos gerais de segmentos específicos da sociedade. Dessa forma, esse acordo geral tende a provocar emoções positivas ou negativas, inspirar adeptos, pessoas que vão, por si mesmas, ―defender a causa‖ voluntariamente.

3.3. Convenções internacionais e reinvenções locais 3.3.1. O Instituto ETHOS como ―agente mediador‖ da responsabilidade social e de seus derivados Um importante agente institucional responsável por grande parte das mediações de conhecimentos sobre responsabilidade social e seus derivados entre poderes públicos, empresas privadas e instituições sem fins lucrativos é o Instituto ETHOS de Empresas e Responsabilidade Social. Assim como nosso conhecido INEC, trata-se de uma instituição caracterizada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. Conforme o site institucional, sua missão é mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, ―tornando-as parceiras na construção de uma sociedade sustentável e justa‖. A referida organização se propõe a disseminar a prática da responsabilidade social empresarial, ajudando as instituições a: 1. compreender e incorporar de forma progressiva o conceito do comportamento empresarial socialmente responsável; 2. implementar políticas e práticas que atendam a elevados critérios éticos, contribuindo para o alcance do sucesso econômico sustentável em longo prazo; 3. assumir suas responsabilidades com todos aqueles que são atingidos por suas atividades; 4. demonstrar a seus acionistas a relevância de um comportamento socialmente responsável para o retorno em longo prazo sobre seus investimentos; 5. identificar formas inovadoras e eficazes de atuar em parceria com as comunidades na construção

197

do bem-estar comum; 6. prosperar, contribuindo para um desenvolvimento social, econômica e ambientalmente sustentável 84. Com sede em São Paulo capital, o ETHOS foi fundado em 1998 e possui uma imensa rede de associados, tendo uma área de atuação bastante capilarizada em todo o território nacional. De acordo com pesquisa realizada por Raphael Machado, o Instituto: [...] conta atualmente com mais de 1400 empresas associadas, que tendo seus faturamentos somados correspondem a algo em torno de 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e contam com mais de dois milhões de empregados espalhados pelo país. Para concretizar sua missão o Instituto Ethos vale-se de várias frentes: mais de 60 publicações (incluindo manuais, guias, livros, ferramentas de gestão); o balanço social, no qual as empresas disponibilizam seus balanços financeiros e atuação no campo social visando chamar a atenção de outros empresários; o prêmio Ethos de Jornalismo, que busca envolver os jornalistas e meios de comunicação no trabalho de promoção e divulgação dos princípios da RSE; o prêmio Ethos Valor, que se destina ao envolvimento de docentes, grupos de pesquisa, estudantes, e institutos de ensino superior com a RSE e o UniEthos - Educação para a Responsabilidade Social Empresarial e Desenvolvimento Sustentável - cuja missão é ―oferecer capacitação, referência e pesquisa aos meios empresarial e acadêmico, gerando conhecimento e contribuindo para o alinhamento da cultura organizacional aos princípios e práticas da responsabilidade social e do desenvolvimento sustentável‖. Além disso, o Ethos também propõe e pressiona para uma maior articulação das empresas com o poder público (Machado, 2012: 20).

Segundo Laureana e Silveira, gerentes executivos do Ambiente de RSA, o BNB solicitou ao ETHOS, por meio da Uniethos 85, uma parceria para capacitação dos servidores do Banco sobre as temáticas relacionadas à responsabilidade social e ambiental, a fim de que todos conhecessem essa nova ordem de saberes empresariais.

Em www.ethos.org.br. Pesquisa realizada em 14 de outubro de 2012. No site institucional do Instituto ETHOS, encontramos a seguinte referência sobre o Uniethos: ―no início da década de 2000, muitas empresas começaram buscar capacitações customizadas em temas ligados à responsabilidade social empresarial (RSE). O Instituto ETHOS, em razão de uma diretriz estratégica, não poderia mobilizar recursos para atender organizações privadas e, se o fizesse, não poderia cobrar pelo serviço. A resposta encontrada foi a criação, em 2004, de uma entidade independente do ETHOS, mas complementar em seus objetivos. Surgia assim, o Uniethos, uma associação independente, sem fins lucrativos, dedicada integralmente à educação por meio do desenvolvimento de estudos, pesquisas e capacitação em RSE. Desde o ano de sua fundação, o Uniethos é qualificado como uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). Cabe ao Uniethos atender as empresas de forma individualizada e cobrar por esse serviço, revertendo os recursos obtidos para a produção de conhecimento público. Atualmente, o Uniethos presta serviços para empresas de modo a desenvolver a sustentabilidade nos negócios, com a participação de públicos interessados e a articulação de parcerias que contribuam para ampliar a competitividade e gerar valor para a sociedade. O Uniethos atua de forma integrada com o Instituto ETHOS, numa estratégia conjunta de promoção de mudanças na economia e nas práticas empresariais, reforçando seu papel de ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente sustentável‖. 84 85

198

Nós adotamos isso aqui devido a nossa característica de banco de desenvolvimento que é muito voltado para a questão ambiental. Então, essa terminologia ―responsabilidade socioambiental‖ é muito nossa aqui [...] Então, a gente buscou essa cultura do ETHOS pra gente compreender melhor, trouxemos cursos de capacitação, hoje a gente tem cursos de aprendizado dessa temática, para que todos os funcionários compreendam o que é, saiam daquele víeis de que é filantropia, porque as pessoas entendem muito responsabilidade social como aquela ação pontual e não é isso, não é isso. A filantropia ela existe, ela é necessária, mas ela é aquela ação emergencial, pontual, com aquele caráter de assistencialismo, que é preciso a gente participar também. Então, nós somos executores de políticas públicas86 do Governo Federal, então a gente participa das campanhas emergenciais, da campanha da gripe, campanha para socorrer o pessoal das enchentes, aquelas campanhas internas com o público, questão de vacinação (né), a gente participa desses, digamos assim, dessas políticas públicas, certo? Buscamos a consultoria do ETHOS, mas a gente não tá obrigado, não tamos assim, essa agenda aqui é a mesma que o ETHOS adota (Laureana). Então, assim, em termos práticos, assim, o que a gente tem feito, é a gente procurou aprender com o tempo a desmistificar um pouco essa diferença do que é filantropia do que é responsabilidade socioambiental, que as pessoas confundem muito, acham que é tudo filantropia, tal. Você deve conhecer bem, essa diferenciação, né? A gente tem assim muito abrangente essa temática da responsabilidade social, a gente segue muito aquela linha do Instituto ETHOS adota, que segue uma orientação internacional, já virou uma norma ISO, já tem uma norma ISO internacional e também, se não me engano, já tem uma norma brasileira na NBR, se não me engano, é ISO 26.000, e na NBR é ISO 16.000 (Silveira).

Como já mencionei anteriormente, a responsabilidade socioambiental é conceituada pelos bancários do BNB que lidam diretamente com essas questões como contraposição à chamada filantropia, às ações sociais consideradas ―pontuais‖, ―emergenciais‖ e ―assistencialistas‖. Importante notar que na fala de Laureana essa noção de ―assistencialismo‖ é remetida na fala acima à expressão ―políticas públicas‖, mesmo que, como veremos no quarto capítulo, os próprios especialistas que trataram do assunto busquem constantemente remeter a análise das políticas públicas a modelos mais ―racionais‖ de desenvolvimento de ações governamentais. Silveira afirma que na gestão de Roberto Smith (2003 - 2011) toda essa problemática da responsabilidade socioambiental era configurada institucionalmente no Banco como um ―projeto‖ que alguns servidores estavam acompanhando mais de perto. Em 2008, os dirigentes do Banco viram a necessidade de transformar esse projeto em uma unidade administrativa da sede do BNB, ligada diretamente ao Gabinete da Presidência. A missão do recém-criado Ambiente de RSA era, nas palavras

86

Grifos nossos.

199

de Silveira, fomentar essa ―filosofia para os nossos colegas, a preocupação tanto com o social quanto o ambiental‖. 3.3.2. Acordos e recomendações da Organização das Nações Unidas: PNUD e ODM A ―filosofia‖ da responsabilidade socioambiental, mencionada por Silveira, não é uma particularidade do BNB, nem dos bancos de desenvolvimento regional, social ou ambiental, não é uma particularidade apenas das empresas brasileiras, nem tampouco se refere apenas a recomendações genéricas do Governo Federal. Esse ―modo de ver o mundo‖ é uma pauta política internacional, resultante de acordos e pactos globais ―para um mundo melhor‖, ―para um mundo mais sustentável‖. Refere-se à configuração repleta de estratagemas políticos, de teses científicas e de valores que se pretendem mundiais, almejando constituir historicamente uma ―cultura de preservação ambiental‖ e uma ―cultura de paz‖. Entre as diversas mobilizações institucionais voltadas para a ―construção de um mundo mais justo‖, destacamos aqui o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, encabeçado pela ONU, cujo lema principal é ―empoderando 87 vidas e fortalecendo nações‖. O PNUD oferece aos parceiros apoio técnico, operacional e gerencial, por meio de acesso a metodologias, conhecimentos, consultoria especializada e ampla rede de cooperação técnica internacional. Com o objetivo de contribuir para o ―desenvolvimento humano, o combate à pobreza e o crescimento do país nas áreas prioritárias‖, o PNUD brasileiro tem a missão de buscar alinhar seus serviços às ―necessidades de um país dinâmico, multifacetado e diversificado‖. Os projetos são realizados em parceria com o Governo Federal brasileiro, instituições financeiras internacionais, setor privado e sociedade civil. Presente em 177 países e territórios, o PNUD oferece ―uma perspectiva global aliada à visão local do desenvolvimento humano‖ para contribuir com o ―empoderamento de vidas e com a construção de nações mais fortes e resistentes‖ 88. Uma das ações desencadeadas pelas reuniões efetivadas pelo PNUD mais conhecidas é a definição do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que se

87 88

Abordaremos o conceito de empoderamento de modo mais aprofundado no quarto capítulo. Em www.pnud.org.br. Pesquisa realizada no dia 14 de outubro de 2012.

200

transformou, ao longo dos anos, em uma estatística social muito importante para avaliação dos resultados dos diversos tipos de políticas 89 públicas e governamentais. No ano de 2000 (―virada do Milênio‖), vários representantes das diversas nações e alguns ―líderes mundiais‖ se reuniram na sede da ONU e assumiram o compromisso de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM, um conjunto de oito metas, cujo objetivo é ―tornar o mundo um lugar mais justo, solidário e melhor para se viver‖, incluindo o objetivo maior de reduzir a pobreza extrema pela metade até 2015 90. Os oito ODM listados conforme aparece no site institucional do PNUD são: 1. Redução da pobreza; 2. Melhorar a saúde materna; 3. Atingir o ensino básico universal; 4. Igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; 5. Reduzir a mortalidade na infância; 6. Melhorar a saúde materna; 7. Combater o HIV/Aids, a Malária e outras doenças; 8. Garantir a sustentabilidade ambiental; 9. Estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento. Se nos atentarmos bem para os objetivos ora elencados, podemos perceber que alguns deles atravessam constantemente o arcabouço ideológico dos temas abordados no presente texto dissertativo. Eles estão presentes tanto no imaginário daqueles que lidam e defendem a economia solidária, como daqueles que lidam e defendem a responsabilidade socioambiental. Eles estão presentes, sobretudo, nos debates contemporâneos que envolvem a noção de política pública. Entretanto, é preciso distinguir esses dois movimentos globais abordados nesta pesquisa. A economia solidária é um movimento social que propõe uma globalização por meio de redes de resistência ―de baixo para cima‖, mesmo que ela não seja encabeçada diretamente por camadas populacionais de baixa renda. Como vimos, no Brasil, são intelectuais de certas alas da esquerda política, sejam teólogos, economistas, sociólogos, dentre outros, que militam ―em nome do povo‖ pela consolidação de circuitos sociais cada vez maiores Em 1990, o PNUD introduziu universalmente o conceito de ―desenvolvimento humano‖, que parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar três dimensões básicas: renda, saúde e educação. 90 Em www.pnud.gov.br. 89

201

de economia solidária. A responsabilidade social e seus derivados se constituem como um movimento internacional que parte de encontros fechados de ―líderes mundiais‖ e representantes dos governos nacionais. A partir dessa centralidade ―de cima‖, objetivam distribuir informações já preestabelecidas entre os diversos continentes, países, regiões e localidades do planeta, ―para baixo‖. Na lista dos ODM, verificamos diretrizes que pautam alguns critérios presentes na seleção de projetos sociais selados pela RSA que são aprovados pelo BNB. As práticas discursivas do Ambiente de RSA e do INEC, como vimos, dão preferência pelo ―atendimento às crianças e aos jovens presentes nas chamadas ‗comunidades carentes‘‖. Garcia argumenta que ―crianças e jovens são elementos fortes de mobilização social, e os setores de marketing das empresas sabem disso‖ (2004: 46). Já é sabido que crianças e

adolescentes

constituem

―objetos‖

privilegiados

de

motivação

para

o

desencadeamento de redes de dons. Mauss, ao falar da esmola em determinados grupos étnicos, observa que se trata de um dom, um dom-sacrifício, oferecido às crianças e aos pobres91. ―Essas dádivas às crianças e aos pobres agradam os mortos‖ (1974: 208), afirma. E, em seguida, escreve sobre a honra elevada do homem generoso, citando, em nota de rodapé, o naturalista Alfred Grandidier, a fim de mostrar a universalidade dos efeitos morais da ajuda aos pobres: ―os Betsimisaraka de Madagascar contam que, de dois chefes, um distribuía tudo que possuía, enquanto o outro nada distribuía e guardava tudo. Deus deu fortuna ao que era generoso e arruinou o avarento‖ (1974: 208). Há, portanto, uma tênue e resistente cadeia de forças simbólicas que cristaliza sentidos positivos às doações de bens e serviços às crianças e aos pobres, atravessando o dom considerado ―arcaico‖ e as constantes reinvenções da dádiva, essa dádiva que transita entre a esmola que agrada aos mortos e o marketing, a exibição lucrativa do bem92, que agrada aos vivos. As

estratégias

para

consolidação

das

práticas

de

responsabilidade

socioambiental configuram um importante acréscimo lucrativo para as empresas classificadas como ―socioambientalmente responsáveis‖ e, de quebra, por meio da noção de corresponsabilidade dos setores públicos e privados, contribuem para o paulatino descomprometimento do Estado em relação às políticas públicas.

Observação também feita por Lanna (2000). Garcia escreve: ―em entrevista a uma das revistas que exploram a vida dos famosos, uma socialite informa que nada se compara a chegar a seu programa social e ouvir várias crianças gritarem seu nome em coro. Isso a faz diferente entre os ricos‖ (2004: 48). 91 92

202

A ideia-força responsabilidade socioambiental não entra, em nenhum dos seus ―princípios‖, em contradição com a cultura bancária hegemônica presente no Banco do Nordeste do Brasil. Se a RSA não ganha mais espaço do que tem no Banco não é porque não se adapta à cultura empreendedorista do desenvolvimento schumpeteriano, o modelo financista, mas porque esse conjunto de proposições e práticas se caracteriza pelo o que eu chamei de consenso indiferente. Ela não aumenta significativamente os lucros do Banco, em seu anseio de autossustentabilidade financeira, mas, ao mesmo tempo, não interfere negativamente em nada. Como Abner resumiu bem: ―a responsabilidade socioambiental tem que tá ligada a outras atividades, não adianta você tá criando situações... Responsabilidade não é uma atividade bancária‖. O Ambiente de RSA está ali instalado na sede do BNB apenas para compor uma praxe empresarial contemporânea. O que não impede que os servidores que atuam nessa área defendam a sua importância dentro do Banco e continuem, muitas vezes, a organizar ações filantrópicas inspiradas em suas próprias morais pessoais e religiosas. Metaforicamente, a responsabilidade socioambiental representa, nas novas alegorias políticas mundiais, a ―nova direita‖ do mundo, assim como a economia solidária representa uma ―nova esquerda‖. Idealmente, trata-se de uma direita sem a violência explícita dos processos clássicos de exploração do trabalho e trata-se de uma esquerda sem os golpes violentos e revoluções sangrentas para tomada do poder político. Não é mais

o

socialismo/comunismo/anarquismo

que

se

contrapõe

ao

capitalismo/neoliberalismo. É a solidariedade/responsabilidade/sustentabilidade que se contrapõe a todos os demais ismos, em um processo centrífugo de ideias, valores, projetos e práticas sociais. Trata-se de uma caminhada para o meio, o meio-termo, centro-direita, centro-esquerda, para o ―capitalismo verde‖, para o ―socialismo solidário‖. Alguns princípios contemporâneos, como veremos no quarto capítulo, procuram sustentar essa nova obviedade apaziguadora. A centralidade política pretende reiterar para todos os ouvidos e mentes a falácia dos sistemas e das históricas bandeiras neoliberal e socialista. É como se, ao caminharmos para o centro, os problemas do mundo contemporâneo, a exemplo das disparidades sociais, fossem diplomaticamente resolvidos por uma série de dons, compromissos, acordos, processos educativos e corresponsabilizações. Entretanto, à revelia dessas tipificações ―para um mundo melhor‖, fenômenos como danos ao meio ambiente, processos de precarização do trabalho e autoritarismo político nunca saem de moda aqui no Brasil e alhures.

203

CAPÍTULO IV A REINVENÇÃO DA DÁDIVA, DO ESTADO E DO MERCADO E é este valor emocional das noções que desempenha o papel preponderante na maneira pela qual as ideias se aproximam ou se separam. (Durkheim e Mauss93)

O presente capítulo é dedicado às interfaces de conceitos e práticas que perpassam os três grandes conjuntos de descrições e reflexões que compõem esta dissertação: desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental no Banco do Nordeste do Brasil. Ao aprofundar esses intercâmbios de fluxos culturais de valores e instituições sociais, poderemos vasculhar no chafurdo de falas desencontradas, atitudes fragmentadas e episódios passageiros, algumas pedras de toque. Algumas reflexões aqui tecidas serão bastante pontuais, embora de amplo alcance, sobre determinados aspectos empíricos e teóricos levantados por esta pesquisa. Queiram me perdoar pelo tom ensaístico do texto até agora escrito e que este capítulo só irá reiterar. Peço também a compreensão do leitor caso, a partir do ponto em que estamos, os temas abordados parecerem desconexos uns com os outros. Mais que desconexões, são residualidades. Talvez isso se deva ao fato de que retomo certas provocações que foram apenas pinceladas durante os três capítulos de base da dissertação para esmiuçá-las e potencializá-las com contribuições de alguns autores que trataram de questões similares em outros contextos, espaços e tempos.

4.1. O vocabulário da dádiva: jogos de palavras e poderes do “fazer o bem” Ainda na Introdução da dissertação fomos convidados a conhecer um pouco do patrimônio de ideias e debates nos transmitidos por Marcel Mauss em seu Ensaio. De posse previamente daquelas definições e provocações maussianas acerca da dádiva e no intuito de promover uma melhor compreensão da discussão específica aqui proposta, é preciso, neste momento, fazermos uma digressão. Retomarei, espero que brevemente, Extraído do texto Algumas formas primitivas de classificação, publicado por Émile Durkheim e seu promissor sobrinho Mauss pela primeira vez em 1901.

93

204

uma problematização linguística feita anteriormente por mim em outro contexto de campo de pesquisa. Durante a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará, realizei uma experiência etnográfica em três comunidades católicas de Fortaleza94, focalizando a construção textual em temas referentes ao sistema simbólico da Renovação Carismática, às doações materiais aos ―mais necessitados‖ e às implicações dessas ações em um meio social de profundas desigualdades socioeconômicas, como é o caso da capital cearense. Naquele momento da pesquisa de graduação, algumas narrativas e usos linguísticos dos adeptos da Renovação Carismática me chamaram a atenção para um duplo movimento da dádiva em contextos de desigualdades socioeconômicas, que é o mesmo duplo movimento catalogado brilhantemente pelo próprio Mauss para o fenômeno do dom, a saber, a utilidade e a moral, ali, misturadas, imbricadas no universo simbólico das doações de esmolas aos moradores de rua do centro de Fortaleza. Ao mesmo tempo em que os carismáticos atribuíam o ―amor de doação‖ 95, a atuação predestinada do Espírito Santo, àquelas ações generosas, atribuíam também o imperativo cidadão da solução emergencial ―pragmática‖ da fome e miséria daquelas pessoas. Além disso, o referido estudo pôde também problematizar um interessante jogo de palavras 96 do universo das dádivas contemporâneas. Para alguns adeptos da Renovação Carismática contemplados na pesquisa, o termo caridade difere-se do termo solidariedade e difere-se hierarquicamente, um tem valor mais positivo do que o outro. Entre os carismáticos católicos, tanto o termo ―caridade‖ como ―solidariedade‖ possuem status de valor moral; sendo que, quando fazem a diferença entre as duas palavras e coisas, ―caridade‖ sempre está em nível valorativo mais elevado (Braga, 2005). ―Caridade‖, para eles, possui um valor supremo, afinal é um preceito bíblico97 e Comunidade Católica Obreiros da Tardinha – COT, Casa de Orações Deus Conosco e Legião de Maria. 95 ―Amor de doação‖ é uma categoria nativa presente nos grupos católicos abordados na pesquisa. Tratase de um sentimento, uma predisposição sentimental e espiritual para o exercício cotidiano do ―amor ao próximo‖ sem interesses individuais e materiais de ―troca‖. 96 Quanto ao ―jogo de palavras‖, é sempre bom lembrar uma observação feita por Marshall Sahlins, quando o mesmo afirma: ―no que diz respeito ao conceito ou significado, uma palavra é referível não simplesmente ao mundo externo, mas antes de tudo ao seu lugar na língua, ou seja, a outras palavras relacionadas. Por sua diferença em relação a essas palavras, constrói-se sua própria avaliação do objeto, e no sistema dessas diferenças há uma construção cultural da realidade‖ (2003: 69). 97 Na passagem bíblica (I aos Coríntios 13; 2-13), Deus afirma, por meio de Saulo de Tarso, que ―ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria‖. Evidencia-se o fato de que a caridade bíblica não se define somente pelas doações ou pelas ajudas ―sem dinheiro‖, mas aparenta ser uma coisa muito mais ampla, referindo-se ao dever de ―boa intencionalidade‖ em todas as ações humanas. A caridade bíblica representa mais uma predisposição reguladora (ethos) do ―homem de bem‖ do que os atos filantrópicos propriamente ditos. A caridade que se fala nesse trecho dos Coríntios, contextualizando-se 94

205

espiritual, é o ―amor de doação‖, o amor considerado incondicional, absolutamente voluntário e não obrigatório 98. Para o olhar de um leigo, é o amor impossível, pois, igualmente a Mauss, os leigos também sabem que toda dádiva, apesar de e por ser dádiva, é condicional. Já ―solidariedade‖, não presente no texto bíblico, é vista como uma ação social entre pessoas, um vínculo humano admirável, mas sem a intervenção direta de Deus. Quando uma determinada ação social revela, de algum modo, interesses particulares de reciprocidade, de troca, seja material ou puramente simbólica, aí devemos aplicar o termo ―solidariedade‖. Essa valorização das ―questões espirituais‖ pela Renovação Carismática, do ―ter fé pela própria fé‖, não indica, porém, um total abandono de discursos voltados para os fenômenos mundanos, de ―ordem material‖. Quando indagados sobre quais os problemas sociais eles consideravam os mais agravantes do país, os informantes dos três grupos analisados apontavam, geralmente, ―questões sociais‖ tais como fome, miséria, violência, desemprego e os diversos outros tipos

de

exclusão

social,

como

fontes

causadoras

ou

conseqüências

do

subdesenvolvimento nacional e não, ao contrário do que se poderia imaginar, a ―falta de Deus no coração dos homens‖ ou a ―ausência de fé, amor e bondade‖. Abaixo segue um quadro (com pretensão apenas esquemática) ilustrando a relação de positivação e negativação

valorativa

dos

termos

―caridade‖

e

―solidariedade‖,

conforme

a terminologia da época, deve referir-se principalmente a palavras como ―amor‖ e ―bondade‖; observação feita pelo próprio Mauss (1974: 66). Em outra passagem bíblica, A parábola do bom samaritano (Lucas 10; 33-37), resume-se bem esse padrão de sentimentos que serve de base para o comportamento social de cristãos e pagãos de educação cristã. A parábola surge quando um ―doutor da Lei‖ pergunta a Jesus o que poderia ser feito para herdar a vida eterna. Jesus responde através de alegoria dizendo que certa vez um homem de Jerusalém, ao viajar para a cidade de Jericó, fora surpreendido por ladrões que lhe levaram todos os pertences e ainda espancaram-no quase até a morte. O viajante ficou agonizando na beira da estrada, pela qual depois passaram um sacerdote, um levita e um samaritano. Os dois primeiros fizeram de conta que não viram o moribundo e seguiram caminho. O samaritano, porém, resolveu ajudá-lo de todas as maneiras possíveis. 98 O ―não obrigatório‖ da fala dos católicos carismáticos procura afirmar que o que eles fazem é caridade, é amor e não troca interessada. A pesquisa realizada caracteriza que na ação caritativa do carismático, ele também deixa uma espécie de ―espírito da coisa dada‖, um hau em termos maussianos, na sua intencionalidade de fazer uma ―boa ação‖ e no seu temor a Deus que ―tudo sabe e tudo vê‖ e por isso sabe da intenção de cada um no momento da doação. Usando os próprios termos empregados pelos informantes da época da pesquisa: ―o Espírito Santo está agindo por meio de nós‖. Sendo assim, os mendigos não estão recebendo somente aqueles alimentos, estão recebendo também uma ―força divina‖ por meio daqueles homens que trazem as doações. Na Bíblia, o livro sagrado dos cristãos, na Primeira Carta do missionário Paulo aos Coríntios, é dito que a caridade deve ser sofredora, não deve ser invejosa, não deve buscar interesses e que haverá uma recompensa para quem praticar esses atos dessa forma. Os agradecimentos dos mendigos, quando muitas vezes dizem: ―Deus abençoe ao senhor também‖, os sentimentos de ―bem estar‖, de ―conforto espiritual‖, da ―certeza de que se está fazendo o bem‖, de que ―se está realizando a vontade de Deus‖, experimentados pelos carismáticos quando fazem as doações, tudo isso faz parte de um retorno do ―espírito da coisa dada‖. Dessa forma, é a figura do Espírito Santo a responsável por realizar essa troca no campo simbólico. Deus é quem terá o papel de retribuir a dádiva dos ―homens de bem‖.

206

interpretações da Renovação Carismática nos três grupos da pesquisa realizada em Fortaleza: Renovação Carismática (2003 e 2004)

CARIDADE “Amor de Doação”

SOLIDARIEDADE Troca/Interesses

Quadro ilustrativo 1. Autor: Emanuel Oliveira Braga

Essa hierarquia de valores, intelectualmente pautada em escrituras sagradas, em debates teológicos e vivida na criatividade do cotidiano espiritual do fiel carismático e de outras religiosidades cristãs 99, é brutalmente invertida quando vamos para outra realidade de pensamentos, discussões, práticas e interesses que é o campo das estratégias de construção de políticas sociais, econômicas, ambientais, turísticas, etc, uma seara que se pretende ―laica‖, independente de critérios e princípios religiosos, místicos e espirituais. Durante a pesquisa para produção da monografia de graduação, fiz um pequeno apanhado no noticiário virtual de alguns jornais de comunicação de massa bem conceituados no Brasil entre os anos de 2003 e 2005 e pude verificar o uso dos termos ―caridade‖ e ―solidariedade‖ tanto em contextos considerados religiosos como laicos, prevalecendo uma positivação de ―solidariedade‖ em detrimento de uma negativação de ―caridade‖. A palavra ―caridade‖, quando colocada em sites de busca em jornais on line, é encontrada em certas frases que criticam negativamente alguma prática considerada ―assistencialista‖. Na época da pesquisa, a palavra ―caridade‖, quando colocada em sites de busca pela grande rede não aparecia em quase nenhuma das notícias publicadas e, se aparecia, era usada para criticar negativamente alguma prática assistencialista. Havia frases do tipo: ―a prefeitura de Mombaça não é instituição de caridade para ficar arrecadando alimentos para os pobres‖, ou então, ―não podemos ficar fazendo apenas caridade, sem saber como os moradores das Goiabeiras estão aplicando o material para construção civil‖. Por seu turno, usa-se predominantemente a palavra ―solidariedade‖ Importante observar que a vivência da ―caridade‖ se diferencia nos seus significados e práticas nas diversas denominações religiosas que se afirmam ―cristãs‖. 99

207

para os acontecimentos que envolvem ações de filantropia que causaram boa impressão à equipe de diretores e técnicos de um determinado jornal.

Para pessoas que se encontram na situação de moradores de rua, Fortaleza não apresenta muitas alternativas de abrigos provisórios ou permanentes, ou projetos de recuperação e socialização. A maioria das ações de solidariedade é voltada para a criança, adolescente ou o idoso (Jornal Diário do Nordeste, pesquisa feita em 14 de setembro de 2004 no site diariodonordeste.globo.com). Escorada em uma pesada porta na entrada da Catedral Metropolitana de Fortaleza, Maria das Dores Alves da Silva, de 49 anos, esperava pela solidariedade que geralmente acomete as pessoas na noite de Natal. Mas, ao contrário do que podia imaginar, experimentou a indiferença (Jornal O Povo, pesquisa feita em 13 de janeiro de 2005 no site www.opovo.com.br). O terremoto mais forte dos últimos 40 anos desencadeou além dos tsunamis, uma onda de solidariedade no mundo todo, tanto de ordem pública como privada (Folha On Line, pesquisa feita em 13 de janeiro de 2005 no site www.folha.uol.com.br).

O que é mais interessante notar é que as práticas filantrópicas relatadas no noticiário jornalístico do período e as doações dos católicos carismáticos da Casa Deus Conosco, da Legião de Maria e da Comunidade Católica Obreiros da Tardinha, observados durante a pesquisa de campo, consistem, comumente, no mesmo tipo de ação social: o oferecimento de regalias motivado por um sentimento de benevolência, cuja concretização se realiza em um meio social profundamente desigual do ponto de vista socioeconômico.

Jornais On Line (2003 e 2004)

SOLIDARIEDADE Ação responsável/ Projeto estruturado

CARIDADE Assistencialismo/ Ação paliativa

Quadro ilustrativo 2. Autor: Emanuel Oliveira Braga

Na parte da sociedade não ligada diretamente a valores religiosos, a hierarquia de valores sociais e morais se inverte. ―Caridade‖ e ―solidariedade‖ ganham dimensões de ações propriamente materiais, humanas, ambas, sendo impulsionadas por sentimentos de benevolência, classificados como ―religiosos‖ ou ―não religiosos‖. Mas,

208

entre os leigos 100, são as práticas de ―solidariedade‖ que representam ações de grande estima, sendo interpretada como uma virtude a ser cultivada por seres humanos de ―boa índole‖. A palavra ―solidariedade‖ parece nomear a nobre atitude que poderá resolver os problemas sociais dos homens. A solução para os problemas ocasionados pelas extremas desigualdades sociais consiste em ―ações solidárias‖. Já a palavra ―caridade‖ passou a ser a designação das famosas ―práticas assistencialistas‖, condenadas desde o século XVIII por pensadores tais como Daniel Defoe, Bernard de Mandeville, William Townsend, e em seguida por Alexis de Tocqueville, ricardianos e marxistas 101, no século XIX, geradoras de desemprego e de miséria, sendo, por isso, ações sociais de ―religiosos fanáticos que não sabem o que estão fazendo‖. Grande parte das críticas contemporâneas negativas quanto ao assistencialismo nefasto foram transferidas para o termo ―caridade‖, agora restrito à exclusiva positividade da vivência religiosa. As doações, a ―ajuda ao necessitado‖, passaram a ser criticadas negativamente, ao longo de todo o século passado, como sendo soluções superficiais, servindo apenas para amenizar (e até potencializar) as desigualdades inerentes ao mercado, de efeito paliativo. Partidos de inspiração esquerdista, cientistas políticos, líderes políticos pragmáticos, analistas de estatística social e grupos esquerdistas dentro da própria Igreja Católica, como a Teologia da Libertação, não mediram esforços para legitimar a ideia de que a ―caridade‖, quando feita sem a estruturação de outros projetos, é algo maléfico à sociedade. Etimologicamente falando caridade (do latim caritas), de fato, remete a um ―amor incondicional‖, a um amor sobre-humano que homens comuns podem e devem experimentar. Por outro lado, também etimologicamente falando, solidariedade (do latim solidus) remete, de fato, a uma coesão completa, inteira, firme, sólida e, portanto, a uma reciprocidade igualitária, justa, coletiva. Porém, o problema ora proposto não é propriamente etimológico; é semântico, político e moral. Tais acepções oficiais, descritas em dicionários e catálogos etimológicos, são ―abaladas‖ cotidianamente por interpretações diferenciadas que revestem e desestabilizam simples palavras em valores morais. A crítica negativa ao chamado assistencialismo, às dádivas consideradas ―imediatistas‖, ―emergenciais‖ e ―paliativas‖, também estão presentes nas ideias-força ―Leigo‖ deve ser entendido aqui como indivíduos não ligados diretamente a movimentos e sistemas declaradamente religiosos, que podem ou não apresentar referências espirituais diluídas em seus cotidianos. 101 Ver Karl Polanyi, A grande transformação (1980), capítulos 9 e 10. 100

209

desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental. Tanto nos encontros e seminários voltados para os referidos temas como nas entrevistas realizadas entre os anos de 2011 e 2013 junto a funcionários do ETENE e do Ambiente de Responsabilidade Socioambiental, em Fortaleza, e da Superintendência Estadual do BNB na Paraíba, da agência bancária do BNB e do INEC em João Pessoa, e mesmo nas dissertações acadêmicas e pronunciamentos públicos dos ―especialistas‖ sobre os referidos temas, são tecidos comentários depreciativos para o que chamam ―filantropia‖. O vocábulo ―filantropia‖ ganha, desta feita, narrativas do dom conceitualmente mais amplas, abrigando referências religiosas e seculares, assim como o vocábulo ―caridade‖ presente nos noticiários jornalísticos elencados anteriormente. Em contraposição à ―filantropia‖, vemos aparecer outras terminologias como ―estratégia empresarial‖ e ―sustentabilidade‖, vistas

como

positivas para

a caracterização

da cultura

desenvolvimentista do Banco e das práticas de responsabilidade socioambiental, e ―autogestão‖ para a caracterização das práticas de economia solidária. É interessante observar que essas palavras e expressões de ―melhor sonoridade‖, são bem aceitas pelo campo de ―especialistas no assunto‖, que vêem plausibilidade nesses novos usos linguísticos102.

Economia Solidária e Responsabilidade Socioambiental no BNB

Solidariedade/ Responsabilidade Projeto estruturado Ação Planejada

Filantropia/ Caridade Assistencialismo Ação Paliativa

Quadro ilustrativo 3. Autor: Emanuel Oliveira Braga

No terceiro capítulo vimos, por meio das falas de Silveira e Laureana, servidores lotados no Ambiente de RSA, uma busca por hierarquização de conceitos e práticas relacionadas a uma postura institucional mais adequada ao Banco. ―As pessoas entendem muito responsabilidade social como aquela ação pontual e não é isso. A filantropia ela existe, ela é necessária, mas ela é aquela ação emergencial, pontual, com Joana Garcia, por exemplo, tece o seguinte comentário, em tom desconsolado, no livro O negócio do social: ―as estratégias modernas de enfrentamento da pobreza são, na verdade, muito mais ações paliativas e emergenciais do que (como muitas vezes figura em discursos pragmáticos) formas efetivas de sua erradicação‖ (2004: 12).

102

210

aquele caráter de assistencialismo‖ (Laureana). ―A gente procurou aprender com o tempo a desmistificar um pouco essa diferença do que é filantropia do que é responsabilidade socioambiental, que as pessoas confundem muito, acham que é tudo filantropia‖ (Silveira). Mas não é apenas quem lida diretamente com RSA no Banco que é capaz de desenvolver esses jogos de signos e semânticas do dom reinventado. Quando Ceci nos narra as atividades do grupo de jovens em que participava na década de 1980 no bairro do Montese em Fortaleza, assevera que eles não tinham ―muita noção do político né, era muito da caridade‖. Caridade não remete a ações e reflexões verdadeiramente ―políticas‖. Ela também avalia negativamente as atividades organizadas pelo próprio ambiente de RSA do BNB: ―eu acho ali muito despolitizado. Eu acho que é muito assim ‗Legião da Boa Vontade‘, com todo o respeito às pessoas que estão lá‖. Renato, ao falar da experiência dos Fundos Rotativos Solidários no BNB, lembra do orgulho expresso por alguns moradores pobres do interior da Paraíba em afirmar que não receberam gratuitamente suas cisternas, mas pagaram por elas, por meio dos carnês dos FRS: ―eles dizem ‗paguei‘ não denunciando o Governo, foi com orgulho, ‗olha, eu paguei minha cisterna!‘‖. Pagar voluntariamente eleva a honra do beneficiário dos FRS. Receber obrigatoriamente políticas sociais (no fundo, assistenciais) dos governos gera uma dependência nociva por parte do beneficiário. Essa é a fundamentação do PAPPS do Banco do Nordeste, sob orientação de nomes como Paul Singer (SENAES), Ademar Bertucci (Cáritas) e Eduardo Girão (UFC). Ao falar da mudança de postura institucional do INEC, deixando de ser uma entidade não governamental organizada por servidores do BNB voltada para atividades voluntárias de assistência a grupos mais pobres presentes na área de atuação do Banco, para se tornar uma OSCIP responsável pela operacionalização do Crediamigo e do Agroamigo, Edcarlos Júnior defende que houve ―um melhoramento da atividade‖: ―até porque então combater a pobreza, a curto prazo, era emergencial naquele momento, mas não se pensava a longo prazo, em que forma ia ser modificado isso aí‖. O INEC enquanto empresa de aceleramento da aplicação das linhas de microcrédito do Banco surge para transformar o cidadão dependente de doações e ajudas de terceiros em um cidadão autônomo, empreendedor dos seus próprios negócios, interesses e escolhas de vida. Tal plausibilidade de hierarquização de valores é justificada por argumentos que apelam,

entre

outros

princípios,

para

o

ideal

de

igualdade

social.

Solidariedade/autogestão remete à positiva parceria enquanto caridade/filantropia

211

remete à negativa hierarquia. Ações que promovam o desenvolvimento da autonomia e do espírito empreendedor remetem à positiva liberdade enquanto assistência/ajuda remete à negativa dependência. Solidariedade e desenvolvimento da autonomia são atraentes por produzirem o que a socióloga Teresa Sales (2009) certa feita denominou fetiche da igualdade, ao tratar das obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Segundo a autora, esses clássicos do pensamento social brasileiro analisaram a formação do Brasil sob a ótica ilusória das mediações e conciliações de nossas diferenças de classes através de nossas raízes culturais ―cordiais‖ 103 que tendem a encurtar as distâncias entre ricos e pobres, brancos e negros. Mas o fetiche da igualdade tem o outro lado não vislumbrado por Sales. Se é fetiche a ilusão da existência da igualdade, é também fetiche o desejo por uma sociedade igualitária. Em meio a tanta desigualdade social, injustiça, fome, coronelismo, escravidão, é um alento saber que outras formas de sociabilidade podem estar presentes à nossa volta, como é o caso das comunidades tradicionais de bairros no meio rural ou dentro das grandes cidades, caracterizadas pelos sistemas de trocas vicinais, das comunidades alternativas de religiosos e de ambientalistas, dos grupos que organizam cooperativas de produção e consumo justos, de etnias que compartilham roçados comunitários, de empreendimentos populares incentivados por FRS que possibilitaram o autossustento de famílias vitimadas pela miséria, etc. Nesses ―modelos‖ de organização social, não deveria haver espaço para assistencialismo, para clientelismo, para exploração do trabalho alheio. As ações sociais assistencialistas estão presentes em contextos de desigualdades (injustiças) sociais, nos casos em que existe algum tipo Há aqui, a meu ver, uma interpretação errônea da noção de cordial expressa em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, muito comum na reverberação acadêmica rasa produzida a partir da referida obra. ―Cordial‖ vem de coração. Holanda quer caracterizar com esse termo um ethos mais voltado para atitudes consideradas emocionais presente entre os brasileiros, que os diferencia de outros ethos mais voltados para atitudes consideradas mais racionais presente em outros povos do planeta. Trata-se de uma proposição dicotômica: de uma lado o coração e do outro o cérebro. Um exemplo da cordialidade do brasileiro que sempre gosto de dar é o do motorista de ônibus urbano de uma grande cidade do nosso país. Quando estamos na parada de ônibus à sua espera, ele pode, vez ou outra, passar pelo outro lado da pista para não receber os passageiros, muitas vezes sem sequer olhar para o local da parada. Ele está fazendo isso ―impulsivamente‖, ―sem pensar‖, como costumamos dizer. Está talvez preocupado com o tráfego ou com o atraso de horários, mas, sobretudo, em si mesmo. Em outro momento, nós, passageiros, poderíamos (cordialmente) estar esperando o ônibus fora do local da parada, em uma calçada qualquer, por motivos quaisquer, e o motorista, ao ver darmos o sinal, não se importaria de parar ali, irresponsavelmente, generosamente. Para o motorista típico não há regras, convenções, atos que seguem um pragmatismo; o que há é a esperteza, a irresponsabilidade de escolher sua própria ética, antiinstitucional, a frouxidão dos seus sentimentos. Ele não pensa ―racionalmente‖ que existem pessoas que esperam na parada e que precisam daquele ônibus para ir para casa descansar ou para ir ao trabalho, ou outra coisa qualquer e, ao mesmo tempo, no segundo caso, ele pode simplesmente descumprir regras para fazer entrar, fora do ponto do ônibus, uma velhinha, uma moça que ele achou gostosa, ou, simplesmente, para satisfazer o seu ego de ―homem de bem‖. 103

212

de hierarquia entre as partes contratantes: o doador e o receptor; não existindo uma reciprocidade explícita, material, pois somente uma das partes oferece a regalia, a esmola.

Ora,

assim

se

justifica

a

positividade

laica

da

solidariedade/responsabilidade/sustentabilidade em relação à negatividade laica da caridade/filantropia/assistência social. É imperativo, pois, diante das críticas negativas ao eterno ciclo de reprodução das desigualdades sociais, raciais, culturais, políticas, reinventar o dom. É preciso construir dons laicos que se pretendem modernos, estratégicos, planejados, democráticos, que desenvolvam pessoas que careçam de desenvolvimento, solidarizem pessoas que careçam de solidariedade e responsabilizem pessoas que careçam de pessoas que se responsabilizem por elas. Entretanto, em situações histórico-culturais de cidadania concedida, outro conceito de Sales (2009), a ―cultura da dádiva‖ sempre reproduzirá relações sociais assimétricas. O fetiche da igualdade reitera a desigualdade ao revitalizar os dons assimétricos sob novos invólucros de idealizações acerca do ―bom funcionamento da sociedade‖. Sob a proteção do fetiche da igualdade (e eu acrescentaria do fetiche da autonomia), se desenvolve todo um processo de dicotomização e hierarquização de valores atribuídos às dádivas que se mesclam e se ressignificam com os princípios caros ao Estado e ao mercado. Podemos, então, produzir duas colunas de vocábulos tiposideais que ilustram esquematicamente a tentativa contemporânea de demarcar, definir e consolidar a existência de fenômenos sociais considerados, antes de tudo, ―laicos‖, que se pretendem válidos universalmente por se verem mais puros, práticos, imparciais, justos, e, em certa medida, livres de sabores e referências culturais locais, espirituais, religiosas, partidárias e emocionais.

Política Pública Parceria Planejamento Estratégia Solidariedade Autogestão Laico Moderno Racional Pureza Razão Prática

Filantropia Hierarquia Espontâneo Paliativo Caridade Assistência social Espiritual Antigo Irracional Perigo Cultura

Quadro ilustrativo 4. Autor: Emanuel Oliveira Braga

213

A caracterização da filantropia/caridade como algo desorganizado, paliativo e emocional, conforme vimos nos quadros ilustrativos 2 e 3, revela uma busca de autoafirmação da positividade do modus operandi da organização, do planejamento estratégico e da objetividade que as políticas públicas contemporâneas devem oferecer, varrendo para a exclusividade do mundo místico/mítico/religioso/espiritual o teor da dádiva não bem vista, nem desejada hodiernamente pelo ―Estado‖, o seu aspecto espontâneo, que supostamente poria em risco a racionalidade prática dos agentes institucionais que se pretendem, antes de qualquer outra caracterização, laicos. Ao falar das campanhas em prol da responsabilidade social, observou Joana Garcia, em O negócio do social: ―buscando contrastar-se a ideia de responsabilidade social com a filantropia, pretende-se opor-se a modelos tradicionais, muito próximos da referência religiosa, pessoalizada e assistemática‖ (2004: 26). Esses ―modelos tradicionais‖ são nomeados e, por isso, inferiorizados, pelo périplo político da laicidade. O laico deve se aproximar de significantes como ―impessoal‖ e ―sistemático‖, purificando-se dos lastros afetivos e provincianos. Voltando mais uma vez à etnografia realizada junto aos três grupos católicos de Fortaleza (2003 a 2005), cabe ressaltar que na oportunidade, consegui compreender o ―lado

racional-prático‖

daqueles

dons

ofertados,

recebidos

e

retribuídos

espiritualmente. As doações organizadas pelos grupos filantrópicos religiosos são planejadas por meio de reuniões prévias, delegação de funções práticas específicas para cada membro do ―sopão‖ de caridade, definição de espaços de atuação estratégicos e outras formas de gestão da ação proposta, revelando que a espontaneidade espiritual do dom religioso também pode apresentar modus operandi do universo classificado contemporaneamente como ―pragmático‖ (Braga, 2005). Em contrapartida, a presente pesquisa realizada junto ao Banco do Nordeste (2011 a 2013), em setores do banco na sede em Fortaleza e na superintendência, na agência e no INEC de João Pessoa, revela que a gestão empresarial e a gestão de políticas públicas, seja qual for a ―ala‖ desenvolvimentista do Banco, passa necessariamente pelo crivo das idiossincrasias locais e das subjetividades das pessoas envolvidas. O caráter racionalista e estratégico da filantropia religiosa pode ser verificado em vários contextos históricos brasileiros. Com efeito, alguns estudos ilustram a presença das Casas de Caridade, cujo marco maior foi a construção das Santas Casas de Misericórdia, nas nossas grandes cidades, como um estratagema político de controle e

214

combate de determinadas mazelas sociais do período. A belle époque fortalezense, por exemplo, foi marcada por um conjunto de medidas político-administrativas visando à remodelação do espaço urbano e a disciplinamento do meio social. No entremeado dos séculos XIX e XX, conforme a pesquisa do professor Sebastião Ponte (2001), o olhar clínico das elites intelectuais da capital cearense determinou para os loucos e os mendigos, considerados inúteis para a racionalidade produtiva do mercado de trabalho, a construção de instituições religiosas e filantrópicas em distritos longínquos da área central da cidade. [...] não eram poucas as assistências à pobreza na capital. A articulação delas com a polícia (mediante acordos para a erradicação da mendicância), além da promoção de palestras, conferências e campanhas filantrópicas, demonstra a existência de um dispositivo institucional apontado para o reajustamento disciplinar da massa de despossuídos em Fortaleza. Eis algumas organizações que os assistiam e internavam e que a pesquisa pôde compilar: para pobres e mendigos: Dispensa dos Pobres (1885), o antigo Asilo de Mendicidade (1886) e o novo, patrocinado pela maçonaria (1905); para menores abandonados: Patrocínio dos Menores Pobres (1903), Escola para Menores Pobres (1908), Dispensário Infantil (1914); para moças desvalidas: Patronato de Maria Auxiliadora para Moças Pobres (1922) e Asilo Bom Pastor (1928), destinado à ―conversão de mulheres arrependidas‖, segundo almanaque do Ceará para o ano de 1929 (Ponte, 2001: 163).

Ponte vê tal intervenção remodeladora como um dos mecanismos para a proliferação da ―higiene social‖ e dos valores da ―vida civilizada‖. O assistencialismo, dessa forma, pode ser entendido através da ótica funcional do controle policial sobre as camadas mais pobres da população. A tese maussiana referente à troca de dádivas por uma situação presente e futura de não-violência torna-se patente aqui. Falamos de um tempo em que política e religião, Estado e Igreja, essa mistura não era vista como perigosa. Muito pelo contrário. A moral pura consistia justamente nessa união inseparável de algo que, no fundo, nunca foi passível de separação. Vimos no primeiro capítulo da dissertação que as ações de mutirão sertanejo mobilizadas por Padre Ibiapina durante o século XIX voltadas para a amenização das situações de calamidades naturais e sociais presentes na área de influência do semiárido foram aproveitadas metodologicamente pelas iniciativas do governo imperial e do governo republicano que ensaiavam seus primeiros passos na virada do século XIX para o XX. Mesmo depois da criação de órgãos públicos técnicos específicos para combate à seca no Nordeste, como o IFOCS/DNOCS e CHESF, as ações direcionadas para região ainda consistiam em construções de barragens, poços artesianos e abrigos para

215

retirantes. O BNB e a SUDENE procuram mudar o foco dos direcionamentos políticoestratégicos para o diagnóstico da ―má formação socioeconômica da região‖, cuja solução seria o incentivo ao desenvolvimento industrial por meio de grandes empreendimentos e, mais recentemente, o apoio financista ao pequeno produtor rural e urbano. O desenvolvimentismo do Banco do Nordeste, por pressão de órgãos de fiscalização, está cada vez mais voltado para o pequeno produtor e o marketing institucional de promoção do Banco se baseia nas políticas de microcrédito. As experiências do PAPPS estão fincadas na superação da situação de miséria de alguns grupos sociais como os ―catadores de lixo‖ e os direcionamentos do Ambiente de RSA apontam para a seleção de públicos infantis e juvenis em estado de extrema carência socioeconômica. Por uma linha de princípios morais que atravessam a espontaneidade obrigatória de Padre Ibiapina e chegam aos ambientes burocráticos do BNB, dons assimétricos podem e devem ser reinventados. O circuito dar-receber-retribuir diluído nas experiências do microcrédito convencional, dos fundos rotativos solidários e das ações acompanhadas pelo Ambiente de RSA, reproduzem sentidos e anseios dos servidores (todos desenvolvimentistas) do Banco. Eu te desenvolvo (mesmo que seja você que se autodesenvolve) em troca do seu ―trabalho honesto‖ e, consequentemente, em troca da não-violência, da paz, que deve ser ofertada em retribuição às oportunidades de desenvolvimento que ofereço a juros módicos, ou por meio de fundos não-reembolsáveis, ou simplesmente pelas doações de fim de ano. Parece que a velha máxima de Van Ossenbruggen, citado por Mauss, é sempre muito atual: ―as dádivas oferecidas aos homens e aos deuses têm também por fim comprar a paz para uns e para outros‖ (1974: 63). ―Diante desse hibridismo‖, nos chama atenção Garcia: ―Estado e Igreja atuaram de modo coeso, e, além disso, a filantropia como uma forma de intervenção de origem privada encontrou forte proximidade com as práticas de origem governamental‖ (2004: 13). O termo ―hibridismo‖ nos remete, em alguns casos, à consideração da existência anterior de puros (―a filantropia privada e a filantropia pública‖ ou ―o Estado e a Igreja‖) que, com o tempo, se misturam por algum motivo. Mas não me parece esse o caso. Jamais fomos puros, sempre fomos híbridos, o que torna o hibridismo um tanto desnecessário como instrumento para análise. Além de situar que existem constantes fluxos culturais entre o Estado e o mundo privado e pessoal, é preciso compreender que as próprias experiências que contemporaneamente conseguem fugir dos estigmas

216

do arcaísmo, clientelismo, assistencialismo, religiosidade e espiritualidade, são atravessadas, elas mesmas, de valores emocionais e arbitrários 104. Mas, então, é tão líquido assim? Nunca fomos puros e esses fluxos institucionais (estruturais) são filtrados em níveis subjetivos-individuais e simplesmente as pessoas ―ressignificam‖, conforme suas idiossincrasias, e, assim, nascem pensamentos, atitudes e experiências diferenciadas em cada sabor local? Sim e não, infelizmente é a resposta. Eu, o funcionário do BNB, qualquer um de nós, podemos ser criativos e fazer escolhas criativas que deixam nossas vidas suportáveis, felizes, infelizes, interessantes, promissoras, úteis, etc. Contudo, as lógicas já estão por aí. Não precisamos a todo instante construir kantianamente um edifício filosófico individual que ofereça sentido às nossas existências. ―Os indivíduos em crise não tomam sozinhos decisões relativas à vida ou à morte‖, assegurou sabiamente Douglas. O problema é que Douglas carrega demais na tinta. Para ela, o raciocínio institucional é institucional e o individual é individual, e pronto, ponto final. Uma resposta, dessa forma, ―só parece ser correta quando apóia o pensamento institucional que já se encontra na mente dos indivíduos enquanto eles procuram chegar a uma decisão‖ (1998: 18). Mais a frente no texto, encontramos ―a fim de adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma fórmula que encontra sua correção na razão e na natureza‖ e precisamos, pois, ―demonstrar que o processo cognitivo mais elementar do indivíduo depende das instituições sociais‖ (1998: 55). É uma tese fabulosa, que traz à tona toda a força das reflexões durkheimianas, retirando a poeira da crítica posterior. Uma das grandes preocupações de Émile Durkheim (que, na verdade, é uma preocupação das ciências sociais) é afirmar as condicionantes sociais do pensamento individual. As lógicas, as operações, as classificações e as metáforas que nos guiam são produzidas socialmente, pertencem à ―sociedade‖ e é essa sociedade que disponibiliza as categorias do pensamento para os indivíduos. Todavia há um jogo de mão dupla entre o indivíduo e a instituição social. Se as categorias são sociais, há várias delas em trânsito no processo cognitivo individual, todas em relações e jogos que requerem a tomada de decisão para comparação, seleção, junção e hierarquização. Essas decisões são individuais, apesar de e por serem sociais. Essas decisões são arbitrárias, mas a arbitrariedade é construída socialmente.

Uso ―arbitrário‖ aqui não no sentido mais pejorativo do ―fazer algo de todo jeito, sem referências‖, mas procurando o sentido de ―juízo pessoal de valor historicamente construído‖. 104

217

4.2. O vocabulário da dádiva reinventada: estratégias discursivas “para um mundo melhor” Além de vocábulos como ―solidariedade‖ e ―responsabilidade‖ terem alcançado status político e laico positivado no fazer e refazer dos diversos agentes públicos e privados que se propõem ideologicamente pelo mundo afora, outras noções contemporâneas são recorrentes nas entrevistas com os bancários que atuam nos diversos setores do BNB abordados na pesquisa. Essas noções procuram disciplinar o novo modus operandi de contato e abordagem dos poderes público-privados junto aos grupos sociais ―necessitados‖, ―desprivilegiados‖, ―excluídos‖, ―carentes‖. Esses grupos, classificados e vivenciados como inferiores em diversas escalas de medição da dignidade humana, devem ser, por meio da assistência social, de financiamentos de créditos e de organização de políticas públicas, ―sensibilizados‖, ―empoderados‖, ―mobilizados‖, ―educados‖, ―conscientizados‖. Enquanto alguns desses termos caem em desuso por serem taxados de antidemocráticos, outros ocupam imediatamente o seu lugar, reproduzindo por meio de novos signos os mesmos sentidos. Não são apenas palavras soltas ao vento que estão em jogo. São novas ações que buscam, a muitos custos, descentralizar saberes e poderes em nome de uma quebra de dons dívida considerados venenosos, causadores de exploração dos mais fracos pelos mais fortes e de dependência dos mais fracos em relação aos mais fortes. Referindo-se às recomendações internacionais da RSA, Silveira fala em ―fomentar essa filosofia‖ dentro dos demais departamentos do Banco. Laureana enfatiza que o engajamento dos funcionários nas doações, por meio da declaração do Imposto de Renda, para o Fundo para a Infância e Adolescência – FIA aumenta naquele ―pessoal que já se sensibilizou mais com a causa, já doou, viu que o seu dinheiro volta‖. Renato busca explicações para o sucesso do PAPPS, ocorrido apenas no Estado da Paraíba, e afirma que ―existe uma sensibilização muito grande, muito forte no início de que aquilo vai servir para a comunidade‖. Na seleção de servidores para ocupar as vagas criadas para atuação no Ambiente de RSA, Roberto Smith avalia que ―tinham pessoas que tinham sensibilidade; elas foram escolhidas para estar nessa área onde elas já conheciam‖. Sobre o trabalho do agente de desenvolvimento, Abner lembra que eles ―estão sempre em contato com a comunidade, mobilizando pessoas‖. Quando eu teci argumentos sobre as desigualdades de distribuição de máquinas e insumos agrícolas no

218

Cariri paraibano, Charles me desafia: ―como é que tá o empoderamento que é dado a essa questão pela população local?‖. Ao descrever a sua experiência como assessor de crédito do INEC, Edcarlos Júnior fala de estratégias para se conseguir o aproveitamento máximo dos futuros clientes do Agroamigo: ―a gente tem que tratar ele como um cliente até porque hoje ele pode ser um mau cliente, mas se ele for reeducado e se for feito um novo trabalho, ele pode se tornar um bom cliente‖. Desde os mais antigos e em processo de desuso ―educar‖ e ―conscientizar‖ até os mais contemporâneos ―empoderar‖ e ―sensibilizar‖, esse linguajar das políticas públicas remete sempre a um processo dialógico de descentralização de poderes e saberes previamente existentes. Todavia, nas experiências políticas locais, esses poderes e saberes são tratados como conhecimentos e modelos apriorísticos. Tal empoderamento/sensibilização dos pobres e de suas representações organizacionais se orientaria para a ―conquista da cidadania‖, entendida como o processo de aquisição de uma capacidade e de uma liberdade para pensar e agir politicamente, intervindo coletivamente na realidade vivida por cada um (Romano & Antunes, 2002), de usar ―recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade no espaço público na defesa de seus direitos, influenciando as ações dos governos na distribuição dos serviços e recursos‖ (2002: 20). Segundo palavras do informante e autor Mota, ―através do conhecimento e do acesso à informação, pessoas ou grupos sociais podem sair da condição de ‗beneficiário‘ para sujeitos ativos do processo‖ (2009: 37). Ou ainda: ―a pobreza é um estado de desempoderamento; os indivíduos e os grupos pobres não têm poder suficiente para melhorar suas condições nem a sua posição nas relações de poder e de dominação nas quais

estão

inseridos‖

(2009:

38).

É

preciso,

pois,

metodologicamente

e

pedagogicamente, dotar essas populações carentes de uma liberdade básica de pensar e agir. Quando os representantes das ―comunidades‖ são convocados para reuniões de planejamento de políticas públicas, para encontros de associações locais, agentes públicos e privados, no intuito de um compartilhamento coletivo de experiências de projetos e trabalhos realizados em uma determinada temática ou demanda política, eles são muito bem recebidos pelos promotores e organizadores do evento, pois são os ―protagonistas‖ (outro vocábulo sacralizado) de um dado processo democrático que legitima as políticas públicas. Quando no Seminário de Economia Solidária, narrado no início do segundo capítulo, o professor Eduardo Girão compõe uma mesa de palestra

219

que popularmente recebeu o nome de Cordel dos fundos rotativos solidários juntamente com ―representantes da comunidade‖, José Costa e José Campos, ele traz uma experiência ―mais rica‖ para o debate sobre os FRS ―na vida como ela é‖. O que as pessoas da ―comunidade‖ têm a dizer sobre o cenário atual das políticas públicas? Não sei. Mas o que for dito será considerado mais ―real‖ do que os planos técnicos gestados em ambientes burocráticos de um banco de desenvolvimento. Quando esses ―representantes da população local‖ pegam no microfone e organizam uma fala em uma mesa institucional composta por diversos palestrantes para, de forma confiante ou tímida (por estarem na presença de uma plateia ansiosa ouvinte), dizerem o que desejam dizer, eles tendem a produzir muitos sorrisos de satisfação e de admiração nos demais presentes da mesa e do público em geral. De alguma forma, ali temos uma retribuição de dádivas que atravessam os sentidos subjetivos das pessoas que lidam cotidianamente com a produção simbólica das políticas de financiamento e das políticas públicas. De algum modo, sabemos que o agente comunitário presente como palestrante naquele evento está em processo de empoderamento, de sensibilização. Qual a diferença, então, entre o conceito de ―empoderamento‖ e os históricos processos de ―conscientização‖, ―politização‖ e o belo eufemismo ―sensibilização‖, presentes em diversas formas de proposições ideológicas, religiosas, juvenis, partidárias? Nenhuma. O empoderamento é um outro modo de dizer o que já é praticado há muito tempo por líderes, profetas, gurus e agentes comunitários, agregando à narrativa uma ordem mais democrática e dialógica de abordagem dos grupos sociais pobres, ―desfavorecidos‖. Mais uma vez temos uma substituição de signos sem substituição de semânticas. Alguém há de afirmar, por exemplo, que a velha e boa pedagogia da autonomia de Paulo Freire não é democrática e dialógica? Na perspectiva freiriana, o poder deve ser a possibilidade de desenvolver no oprimido uma ―faculdade crítica‖. Essa potencialidade que a educação libertadora e solidária tem de tornar o ―sujeito marginalizado‖ ou o ―sujeito alienado‖ capaz de exercer controle positivo sobre situações negativas, dialeticamente, implica na superação de um pesado passado de aceitação passiva de uma opressão imposta pelas classes dirigentes. Ora, isso é atualmente chamamos de ―empoderamento‖ e ―sensibilização‖! Não há nenhuma novidade nisso. É esse constante martelar do processo educativo como ―caminho‖ necessário, eficaz e admissível para a realização de políticas públicas que almeja institucionalizar o

220

desenvolvimento regional, a economia solidária e a responsabilidade socioambiental entre diversos segmentos sociais vistos como ―público-alvo‖. O mero e imperativo combate à pobreza extrema ganha, por meio da educação ―para a vida‖ e ―para um mundo melhor‖, outros timbres que procuram pensar essa humanidade excluída de modo holístico, agregando aos sujeitos-objetos de políticas públicas certos valores que se pretendem consensuais e universalizáveis como ―emancipação política‖ e ―sustentabilidade socioambiental‖. A experiência das políticas públicas brasileiras revela uma opção pragmática de resolução de problemas sociais definidos historicamente pela ―sociedade‖. Esse caráter pragmático seleciona dentro de uma grande amostra populacional da sociedade um público preferencialmente beneficiado: os pobres (Souza, 2006). Fazer política pública é contribuir para o ideal de justiça social, de busca de um maior equilíbrio nas desigualdades existentes entre ricos e pobres, entre empoderados e desempoderados, entre brancos e negros, entre maiorias e minorias. Os pobres foram, são e serão sempre muitos e vivem espalhados em comunidades. Apesar do termo ―povo‖ remeter a uma classificação humana mais ampla, os pobres são definidos como o povo por excelência. As atividades realizadas pelos pobres são populares. Como gestor de políticas públicas voltadas para o patrimônio cultural, servidor público federal, vivi muitas experiências profissionais e pessoais ao organizar encontros, promover eventos e participar como convidado de seminários que reúnem vários agentes envolvidos no planejamento, execução e acompanhamento de projetos de identificação, reconhecimento e preservação das chamadas ―referências culturais‖ de determinados grupos sociais detentores de conhecimentos tradicionais, representantes de uma ―cultura popular‖. Em alguns desses debates, participei como palestrante, em outros como mediador de ―rodas de conversa‖ e em outros como participante da plateia. E pude perceber que a produção simbólica das políticas públicas culturais tende a promover uma simetrização de referências e saberes locais inventariados sob a rubrica popular. Comumente esses grupos que são considerados detentores de conhecimentos tradicionais importantes para a nova alegoria do patrimônio cultural são formados por artistas de baixa renda. Esses artistas do povo são, além de povo, artistas e produzem interpretações vaidosas, hierarquias de apreciação da arte em que são mestres, rivalizando, muitas vezes, seus egos criativos com os egos dos outros artistas do seu meio. O esmero pela obra criada, a vaidade da invenção e a rivalidade entre inspirações individuais ocorrem em quaisquer outros contextos de produção e comercialização da

221

arte, independentemente da inserção dessa arte em determinadas classes e segmentos sociais. Na elaboração e reelaboração artística, há uma necessária diferenciação e hierarquização. Esses contrastes dificilmente conseguem ser especificados no escopo legal dos editais de repasse de recursos públicos e no detalhamento dos projetos de captação desses recursos. Os editais e projetos na área de política cultural costumam tornar equitativo (portanto, ―justo‖) o pagamento de serviços individuais de mestres da cultura popular e das apresentações coletivas de grupos da cultura popular. Eles são classificados como ―comunidade‖, suas referências são passíveis de massificação, suas técnicas, conhecimentos e artes são ―populares‖. As ideias-força desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental não se constituem, por si mesmas, como ―políticas públicas‖, mas em meio às suas extensas redes de agentes e instituições que movimentam, carismaticamente ou indiferentemente, seus efeitos práticos e suas ressignificações individuais e locais, experiências de políticas públicas podem ser ensaiadas e vivenciadas junto às populações locais. São experiências de configuração de parcerias (prefeitura, associação de moradores, câmara dos vereadores, ONGs internacionais, meios universitários) e mobilizações em torno de demandas específicas. O modelo de desenvolvimento do Banco do Nordeste que passamos a chamar temerariamente de ―humanista‖, extraído de alguns posicionamentos ideológicos de servidores como Ceci e Nelson, é favorável a presença institucional, por meio de intervenções de funcionários do BNB, na constituição dessas experiências de parcerias público-privadas, efetivando procedimentos de planejamento, acompanhamento e avaliação das políticas financiadas pela instituição, possibilitando que o corpo bancário técnico-administrativo interno corrija, melhore e adéque as estratégias do Banco em conformidade com as conjunturas específicas de cada meio ambiente, setor econômico e demandas sociais das populações contempladas pelo selo de uma ação do BNB. Já o modelo de desenvolvimento que passamos a chamar de ―financista‖, extraído de alguns posicionamentos ideológicos de servidores como Charles e Abner, tem a nítida compreensão que as experiências das políticas públicas são fundamentais para o sucesso das políticas de crédito do Banco, entretanto defendem que o papel da instituição no atual cenário do Estado brasileiro se restringe (e já é muita coisa) à avaliação das condições locais e individuais para liberação de financiamentos e, se for o caso, ao oferecimento de orientações para melhoramento dessas condições para, no fim das contas, aplicar o crédito que tenha segurança de retorno lucrativo para o BNB. Os dois modelos de desenvolvimento

222

procuram discursivamente se opor ao que consideram práticas nocivas do Estado brasileiro, a assistência social gratuita de serviços, dinheiro e bens móveis e imóveis, sem, contudo, subestimar a importância política e estrutural de programas sociais como o Bolsa Família. O Bolsa Família funciona como um primeiro degrau para acesso pleno à chamada ―cidadania‖. As políticas de microcrédito são vistas, hegemonicamente no Banco, como segundos e terceiros degraus para a dignidade do carente. Os FRS estão à margem dessa ―escalada cidadã‖, do ponto de vista majoritário do BNB. Diante desse apanhado de reinvenções de dons que a todo tempo se propõem mais racionais e puros do que os ―anteriores‖, a solidariedade responsável, a responsabilidade solidária, a preocupação em desenvolver o ―outro‖, o eterno carente, por meio do seu próprio empoderamento de conhecimentos e estratégias que o fará sair (se libertar) de sua realidade indigna ―para um mundo melhor‖, por que o carente não se liberta ou não deseja se libertar dessa dependência de seus tutores? Por que insiste em ser cliente do BNB? Por que se compromete a empreender? Por que se compromete a ser sensibilizado? E ainda podemos nos fazer a mesma velha questão de Claude Riviére (1989): até quando a promessa de uma felicidade incessantemente adiada consegue motivar as pessoas envolvidas nas dificuldades cotidianas de sobrevivência? Afinal, o que permite que essas pessoas acreditem na reinvenção de dádivas assimétricas que as inferioriza hierarquicamente?

4.3 BNB: entre o mercado, o Estado e a dádiva Apesar de grande parte da estrutura institucional do BNB revelar atualmente um

aparelhamento

aos moldes de uma

organização

empresarial bancária,

mercadológica, estamos falando de um ―braço‖ do Estado brasileiro. O que, de certo modo, privilegia o olhar da presente pesquisa para o que considero os três principais campos de interesse antropológico na construção desta dissertação: o Estado, o mercado e o dom. Alguns fundadores do Movimento Anti-Utilitarista das Ciências Sociais, M.A.U.S.S., sobretudo Alain Caillé e Jacques Godbout, veriam com bons olhos um ―objeto de pesquisa‖ tal como o nosso BNB, já que costumam dividir as relações sociais humanas nesses três ―paradigmas‖. Formas não-capitalistas não estão presentes apenas em situações ―isoladas‖ ou ―anacrônicas‖ como bem nos lembra Lanna (1995), estão presentes nos setores

223

considerados ―mais desenvolvidos‖ do Brasil. Mas será que isso vale só para o Brasil, esse tipo de convivência? É sui generis essa convivência? Talvez precisássemos, inclusive, superar esse anseio classificatório ―capitalismo‖ e/ou ―não capitalismo‖. Afinal, o que indicaria a pureza ideal típica do capitalismo? Quem foi que esquadrinhou isso? Karl Marx é uma boa resposta. O BNB opera como agente de políticas de desenvolvimento por meio de planejamento, acompanhamento e avaliação de financiamentos de empreendimentos direcionados,

segundo

o

discurso

institucional,

à

melhoria

das

condições

socioeconômicas de camadas mais pobres da população presente na sua área de influência do semiárido brasileiro (Nordeste e norte de Minas e Espírito Santo), e à diminuição das desigualdades regionais do país, especialmente entre Sudeste e Nordeste 105. Segundo Mota (2009), o Banco vem, ao longo de sua história, redefinindo e ampliando sua missão, obtendo nos últimos anos um grande aumento dos seus financiamentos e aplicações de recursos, que giraram em torno de 13 bilhões de reais no ano de 2008, com prioridade ao atendimento aos chamados micros e pequenos produtores. As instituições têm seus regimentos e estatutos, seus organogramas e missões, suas regras e valores, mas são as pessoas que ―fazem acontecer‖ as prioridades, as estratégias e os critérios, estabilizando ou mudando o ―jeito de fazer a coisa acontecer‖. É recorrente, por exemplo, na fala dos funcionários do ETENE, a influência positiva que a presença pessoal de Paul Singer em um seminário intitulado Economia Solidária e Políticas Públicas para o Nordeste, em 2003, teve junto aos servidores do BNB, ―sensibilizando‖ todos para a experiência do espírito autogestionário de atuar no mundo. Após esse contato com Paul, que foi professor de economia e é amigo do presidente do Banco da época, Roberto Smith, os técnicos do ETENE mantiveram contato aproximado com Ademar Bertucci, outra ―personalidade‖, coordenador de Economia Solidária da Cáritas Brasileira, figura carismática, um entusiasta pela causa que defende. Hoje todo o legado produzido por essas recentes mobilizações se concentra na memória e na vontade pessoal de Nelson. Smith durante a vida se envolveu com muitas militâncias socialistas e ambientalistas e foi justo na sua gestão presidencial do Banco, que o ETENE ensaiou desenvolver o PAPPS e que foi criado o Ambiente de RSA. Mas não foi ele quem inventou esses programas e projetos sozinhos, Interessante observar que essa ―missão‖ de diminuir as desigualdades regionais do Brasil foi o que também justificou a criação na década de 1950 da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, mesma época de fundação do BNB. 105

224

antes dele, outras pessoas já estavam motivadas dentro da instituição a trabalhar com essas temáticas, Alencar, Danilo, Silveira, Laureana, etc. O modelo financista de desenvolvimento regional é hegemônico no Banco porque Charles, Abner, Thiago, Laureana, Silveira, que representam a imensa maioria dentro da instituição, estão racionalmente convencidos de que ―um banco precisa ganhar dinheiro‖, de que ―um banco não é uma casa de caridade‖, de que ―um banco precisa aplicar todos os recursos disponíveis‖, de que ―financiamento é desenvolvimento‖. Mais do que convencidos, são agentes políticos de negociação dessas ideias, ideais, experiências e proposições dentro e fora do BNB. Não são sujeitos que precisam ser ―politizados‖ ou ―empoderados‖, eles são os próprios interlocutores de uma politização e de um empoderamento. Suas posturas e práticas bancárias são experiências de intervenção política no mundo. E Edcarlos Júnior, assessor de crédito do INEC, cumpre exatamente esse papel interventivo junto às populações e grupos beneficiários de políticas de financiamento do Banco do Nordeste. As leis, os códigos burocráticos e os critérios para justificativa do uso ou não de determinados instrumentos técnicos na realização de políticas de financiamento da instituição são filtrados interventivamente pelos gestores, servidores e pelos agentes terceirizados do Banco. Aqui vislumbramos que a burocracia, o Estado, e o mercado, compreendemos que o BNB, é composto, fundamentalmente, por pessoas. O Estado, independentemente do governo, são pessoas, são funcionários públicos. E digo isso não para reiterar ou revisitar as famosas e atualíssimas teses de Sérgio Buarque de Holanda sobre a característica formação personalista e patrimonialista do Estado brasileiro. Digo isso apenas reafirmando uma tese bastante geral acerca dos universos subjetivos e idiossincráticos presentes nas pessoas que tendem, voluntária ou involuntariamente, a subverter, obviar e inventar/reinventar (Wagner, 1975) as regras e objetividades de certas práticas sociais, do padrão institucionalizado, a exemplo da aprovação ou não de um determinado projeto definido por uma dada lei de incentivo ao esporte, cuja documentação passa pelo crivo técnico de um servidor público que está ali para aplicar (mas também reinventar) a lei. E cabe-nos, inclusive, a provocação: o Estado, essa mega-abstração de fortes efeitos práticos, a grande idealização-realização dos contratualistas europeus do século XVIII, não seria ele mesmo uma eficaz ―escrituração‖ (no sentido de traduzir uma determinada prática comum em processo de ―eternalização‖ na escrita) de velhas

225

prestações, contratos e relações sociais consuetudinárias (trocas, muitas vezes, dadivosas)? O Estado não seria uma tradução moderna (de pretensão messiânica e universal) de antigos costumes contratuais, proibições e princípios, que buscavam o ―equilíbrio funcional‖ do grupo social, como a etnologia clássica, funcionalista e estruturalista, defendeu por um bom tempo? Não seria ele mesmo, o Estado, uma poderosa reinvenção da dádiva presente em certos modos de fazer sociedade? Durante muito tempo, historicamente torna-se plausível que se definam os limites do Estado e os limites do mercado. Para a definição desses limites, grandes guerras e grandes acordos acontecem, muros são levantados e derrubados, e alguns agentes sociais foram e são tentados a defender politicamente a expansão da atuação do Estado ou a expansão e atuação do mercado. Falamos, é claro, das famosas esquerda e direita políticas, presentes em congressos nacionais e assembleias locais pelo mundo afora. Essas expansões são propostas em nome da ―sociedade‖, essa abstração bem mais ampla. ―Ismos‖ são constituídos para se compreender minimamente o que se passa: liberalismo, capitalismo, socialismo, comunismo, neoliberalismo, fascismo, reformismo, e tantos outros. Mesmo que concordássemos com a generalização de Marshall Sahlins acerca de La pensée bourgeoise, onde o utilitarismo é visto simplesmente como ―a maneira pela qual a economia ocidental, na realidade toda a sociedade, se experimenta‖ (1998: 167), a princípio, temos que reconhecer que a teoria econômica abriga uma ampla gama de ideias, modelos, conceitos e práticas ―teorizáveis‖. No entanto, de algum modo, historicamente, se atrela economia (ocidental?) a interesses do tipo ―os fins justificam os meios‖ e esses interesses são, por sua vez, conectados à categoria indivíduo. De modo que temos uma rede lógica de pensamento que assemelha, por dedução, economia, interesse instrumental e indivíduo. Daí temos individualismo e economicismo como ismos que representam uma das facetas do bicho-homem, enquanto do outro lado do esquema poderíamos encontrar coletivismo e simbolismo. Tudo o que não está nem lá nem cá é visto, então, sob o prisma ―híbrido‖, ou então representa uma terceira faceta paradigmática (a dádiva!?) considerada, na maioria dos casos, improvável. Ora, é o próprio Sahlins que nos faz a importante lembrança de uma assertiva de Karl Marx & Friedrich Engels, em A ideologia alemã, acerca da diversidade existencial (e por que não simbólica?) presente em um modo de produção (para espanto, talvez, daqueles que insistem em rotular o velho Marx de economicista): ―esse modo de produção não deve ser considerado simplesmente a reprodução da existência

226

física de indivíduos. É uma forma definida de atividade desses indivíduos, uma forma definida de expressar suas vidas, um modo de vida definido por parte deles‖ (Marx & Engels, 1965: 32 apud Sahlins, 1998: 168). Em outro momento do texto, podemos encontrar a seguinte referência: O interesse privado já é em si mesmo um interesse determinado socialmente, que só pode ser alcançado dentro das condições determinadas pela sociedade, pelos meios fornecidos pela sociedade e com os meios fornecidos pela sociedade; conseqüentemente, ele é compelido a reproduzir essas condições e meios. É o interesse de pessoas privadas; mas seu conteúdo, assim como a forma e os meios de sua realização, é dado por condições sociais independentes de todos (Marx, 1973 [1857-8]: 156 apud Sahlins, 1998: 135).

É também diante dessas tentativas e sucessos na definição de limites entre o mercado e o Estado, que o antropólogo francês Alain Caillé teve que se resignar a situar o seu adorável dom maussiano a um paradigma, a um terceiro paradigma, que na verdade, seria o grande paradigma força-motriz dos demais (mercado e Estado), tão forte, que na verdade mesmo, seria um antiparadigma. Afirma o autor, em tom entusiástico e propositivo: Não é submetendo-se ao despotismo da Lei ou refugiando-se no cada um por si e na trapaça que os seres humanos poderão conseguir encontrar um pouco de paz, de segurança e felicidade. Mas é, se além disso tiverem um pouco de sorte, aprendendo a aliar-se e associar-se, a (se) dar uns aos outros pondo a confiança nos ganhos outros e ganhando a sua confiança. O terceiro paradigma do qual necessitamos, para superar os pontos de vista igualmente limitados do individualismo e do holismo, é portanto um paradigma do dom. Como escrevia Claude Lefort, mais ou menos nestes termos, indivíduo e totalidade social são mutuamente transcendentes um com relação ao outro. Necessitamos portanto de meios intelectuais que nos possibilitem apreender essa dupla transcendência cruzada, esse duplo englobamento do contrário, e temos que aprender a pensá-los (Caillé, 2002: 19).

Defendo que a noção, de fortes efeitos práticos, de política pública é a forma que a dádiva, o Estado e o mercado, abstrações concretizadas em pessoas reais, encontraram para desestabilizar as sonhadas purezas do mundo moderno. O fazer, desfazer e refazer de experiências de políticas públicas já sedimentou suas referências culturais pelo Brasil e pelo mundo afora. É todo um linguajar específico que estrutura significados por meio de teorias sobre processos democráticos de acesso a poderes e saberes por parte de ―públicos beneficiados‖. Orçamento participativo, comitê gestor, conselho consultivo e deliberativo, fórum de debate, balanço social, qualidade de vida, empoderamento são alguns exemplos de expressões e práticas que buscam dar conta de

227

uma nova realidade idealizada para que as iniciativas políticas contemporâneas se tornem, de uma vez por todas, políticas públicas. É essa pequena política do cotidiano, que valoriza a experiência local enquanto processo de aprendizagem, que procura respeitar as especificidades e saberes locais, que propõe uma abordagem multifacetada e profunda das comunidades e uma relação dialógica simétrica. É justamente essa pequena política do cotidiano que passa a abrigar os novos rituais sagrados da democracia do século XXI.

228

CONSIDERAÇÕES FINAIS Quase todas as guerras foram organizadas pelos financistas, mas eles também organizaram a paz. (Karl Polanyi)

Os servidores do Banco do Nordeste, de um modo geral, estão habituados e trabalham com uma enorme gama de categorias prático-discursivas, pautadas por experiências pessoais e institucionais, que dariam para produzir vários volumes para além do que foi mencionado, ora superficialmente, ora de modo mais esmiuçado, nesta dissertação. Arrisquei-me em um esforço de trabalho de descrição densa de certas escolhas de vida, ideias, atitudes profissionais e instituições sociais. Tivemos aqui uma abordagem etnográfica de redes e lógicas de pensamento, de posturas e de ações que fazem parte do métier do Banco do Nordeste, mas não se restringem a ele. Como foi dito na parte introdutória do presente texto, essas redes compõem, metaforicamente, uma nebulosa que atravessa espacialidades e temporalidades, ganhando e perdendo sentidos variados nas mentes, nas bocas e nas atitudes das pessoas. Essas redes não são híbridas, pois não existem purezas anteriores. Também não são puras, obviamente. São experiências misteriosas de vida com o velho desejo de razão prática. Algumas questões levantadas pelo debate ficaram vagas e poderiam ser melhor discutidas em um futuro próximo. Um inventário de noções sobre o que os diversos setores do Banco produzem a partir da expressão ―política pública‖ talvez fosse interessante quando confrontado com o que outras instituições e ―especialistas‖ pensam sobre o tema. Outra referência empírica de grande relevância para um estudo futuro seria a convivência dos posicionamentos do desenvolvimentismo mais clássico do Banco, de teor schumpeteriano, com o cada vez mais famoso ―desenvolvimento sustentável‖, que andou perambulando pelos discursos dos nossos colaboradores à espera que eu marcasse um gol e eu não marquei. Essa convivência existe e é absolutamente despreocupada. Ao que parece, o desenvolvimento sustentável tornouse contemporaneamente outro dispositivo ideológico portátil maleável que cabe em vários modelos políticos e econômicos. Entretanto, essa portabilidade conceitual de algumas temáticas contemporâneas (e isso vale para a tríade desenvolvimento regional, economia solidária e responsabilidade socioambiental), torna-se legítima por meio de um constante processo

229

de reinvenção de signos e significados que purificam e transformam aparecimentos discursivos aparentemente recentes em princípios naturais e racionais (Douglas, 1998). Esses princípios (ou ―categorias‖ no sentido kantiano do termo) garantem um edifício social que abriga noções de justiça, uma justiça de valores universais. Como um mundo que se propõe positivamente cada vez mais laico, livre de influências espirituais e religiosas, arbitrárias e relativas, pode sedimentar princípios de justiça (solidária e responsável) para todos? ―Sem recorrer à religião, ao intuitivismo ou às idéias inatas, é muito difícil defender um princípio substantivo de justiça como algo universalmente correto‖ (1998: 121), responderia sem pestanejar Douglas. O problema é que se os nossos valores seculares podem ser, na verdade, valores espirituais e religiosos reinventados, há uma perigosa parcialidade nessa constatação. A pureza deve permanecer pura. Modernamente falando, a religião e a magia são imparcialidades. Elas são sobrenaturais e antinaturais. A parcialidade não é universal, não é um imperativo categórico. Então, em tábua rasa de princípios, como negociar com os diversos pontos de vista conflitantes e, porventura, belicosos, sem nenhuma carta na manga que seja absolutamente justa? Como defender, internacionalmente, a democracia, a laicidade, a paz, a preservação do meio ambiente, a cooperação, o desenvolvimento humano, se estamos falando não de objetividades, mas de versões, possibilidades existenciais de uma prateleira cultural cheia de vontades de potência? Como defender essa pureza se nunca fomos modernos? E se outras versões, versões indesejáveis, conseguirem emergir de seu poço relativista e reivindicarem o ar puro da plausibilidade? O antídoto, ao que parece, é inventar criativamente fronteiras conceituais de fortes efeitos práticos, fronteiras discursivas que nos ajude a apagar da memória coletiva uma antiga pureza que, aos olhos dos críticos, passou a misturar perigosamente fenômenos primitivos com princípios racionais. Essas fronteiras renovam a pureza perdida sob a forma de uma ética mais universal. Na Introdução do seu O espírito da dádiva, outro entusiasta do potencial paradigmático do dom, Godbout, nos brinda com a dinâmica do conceito maussiano, fronteiriço, paradoxal, onipresente, entre o espiritual e o material, entre o religioso e o laico, e por que não, entre a cultura e a razão prática! Demasiadamente humano. É disso que eu busquei escrever nesta dissertação, o tempo todo. Que o dom tenha cedido lugar à troca mercantil e ao cálculo, é algo que ainda se pode fingir deplorar em nome da nostalgia ou da esperança num mundo mais caloroso, humano e fraternal. Mas ninguém se queixa por a justiça ter

230

substituído a caridade e por os direitos à assistência, garantidos pelo Estadoprovidência, se terem substituído à esmola (Godbout, 1992: 11).

Entretanto, torna-se imperativo que avancemos ainda mais na análise de Godbout para perceber que não há ―substituição‖ de tipos ou formas de doar, presentear, ajudar e se preocupar com o outro. Defendo a existência de um devir histórico do dom, um fluxo cultural que movimenta inteligentemente os sentidos da dádiva, ressignificada por valores e interesses religiosos/espirituais e laicos/materiais. Proponho que interpretemos a prática da esmola cristã no convívio existencial com as estratégias políticas de responsabilidade socioambiental, a misericórdia cristã no convívio existencial com o boom da sedimentação dos direitos humanos, o ―amor ao próximo‖ bíblico no convívio existencial com os pactos globais de preservação do meio ambiente assinados pela Organização das Nações Unidas. São exatamente essas convivências o que eu estou nominando reinvenção. A reinvenção produz novos códigos linguísticos que tornam plausível a mesma estrutura que sustenta determinadas redes de pensamentos, posturas e ações. Afinal, como tornar as experiências cotidianas de injustiça e desigualdade sociais mais suportáveis sem a vivência das revoltas violentas? No artigo O guru e o iniciador, Frederik Barth, numa postura que pretende retomar reflexões das tradições antropológicas difusionistas, indaga os leitores contemporâneos sobre a possibilidade de ―voltarmos‖ a constituir uma antropologia social que promova sínteses regionais e históricas a fim de ―adquirir o caráter dinâmico necessário para dar conta da humanidade variável e em transformação‖ (2000: 143). Sugiro que o tema antropológico clássico da dádiva, desde o seu nascedouro maussiano, é aquele que propicia maior vitalidade para uma profícua análise comparativa das potencialidades culturais dessa ―humanidade‖. Para efeitos didáticos e ilustrativos, denomino ―homem de bem‖ (uma expressão bastante popular no Brasil, por sinal) um tipo ideal, no sentido weberiano, a exemplo da análise antropológica que Barth faz sobre as figuras universais do ―guru‖ e do ―iniciador‖. Ele escreve: [...] Espero demonstrar os efeitos acumulativos da performance desses diferentes papéis sobre as próprias tradições que são transmitidas. [...] O que tento trazer à tona são as fontes de duas economias informacionais basicamente distintas, através da identificação das pressões que direcionam os esforços intelectuais daqueles que assumem esses dois papéis muito diferentes106 (Barth, 2000: 146).

106

Grifos nossos.

231

Este ―homem de bem‖ pode aparecer em contextos culturais aparentemente muito distintos, sem, contudo, alterar substancialmente suas performances acumuladas ao longo dos diversos processos históricos e suas ―economias informacionais‖. Um católico carismático que distribui ―sopões‖ todas quintas pela madrugada em Fortaleza e um funcionário do Banco do Nordeste do Brasil com a história de vida e a trajetória profissional de Silveira podem fazer parte de uma mesma economia informacional, no sentido barthiano. Tais universos existenciais podem se encontrar por meio de uma mesma ética de atuar em sociedade. E, em alguns casos, essas ―ocupações‖ estão sintetizadas em um mesmo indivíduo. Um funcionário do BNB pode freqüentar cultos da Renovação Carismática. Como os ideais de cada instituição (no sentido mais amplo107) são trabalhados na subjetividade cognitiva desse indivíduo? Ulf Hannerz (1997) propõe a desagregação das grandes unidades explicativas que sintetizam realidades complexas em determinados traços culturais fixos, etnografados por especialistas. Algumas correntes de cultura são dificilmente identificáveis como pertencentes a qualquer lugar específico. Na medida em que são enredadas nessas diversificadas correntes de cultura presentes em seus hábitats, as pessoas, como seres culturais, provavelmente estão sendo moldadas, e modelam a si mesmas, por peculiaridades de sua biografia, gosto e cultivo de talentos. As identidades atribuídas ao grupo não precisam mais ser todo-poderosas (Hannerz, 1997: 18).

A dicotomia ―laico x religioso‖ tende a se fragilizar quando confrontada com nossas realidades de fluxos, fronteiras e hibridismos. Qualquer homem comum dilui no seu cotidiano várias emoções misturadas. Trabalho, família, credo, prazer, obrigação são palavras que procuram separar uma realidade que não é dividida. O exemplo do funcionário do BNB que frequenta cultos da Renovação Carismática se repete infinitamente. Ele aprova ou desaprova projetos sociais voltados para populações carentes, cuida dos afazeres domésticos, lê a bíblia sagrada pro filho mais velho, bebe cerveja aos domingos na Praia do Futuro. Assim como não existe um ―americano cem por cento‖ no exemplo relativista clássico de Ralph Linton (1959), não existe um ―carismático católico cem por cento‖ nem um ―bancário cem por cento‖. Felizmente, esse quiproquó de constantes contatos e fluxos culturais não impossibilita a existência de certas tradições, no sentido barthiano do termo, manifestação que apresenta ―um certo grau de coerência ao longo do tempo‖ que pode ―ser reconhecida em vários contextos em que coexiste com outras em diferentes 107

Ver Mary Douglas, Como pensam as instituições (1998).

232

comunidades e regiões‖ (1989: 124). É preciso chamar atenção para o caráter distributivo da cultura: ―o produto coletivo não é apenas o resultado da agregação temporária de uma cultura que se encontra diferencialmente distribuída: é algo que também se reproduz, na tradição‖ (1989: 135). Talvez Mauss, antes de Barth e Hannerz, tenha sido o registro mais exemplar de um pensador que transitava inteligentemente entre uma descrição absolutamente diversificada de costumes e curiosidades etnográficas 108 e uma busca ferrenha por conceitos que dessem conta de universalizar culturalmente o bicho-homem. No seu Ensaio, por exemplo, viajamos por várias referências culturais distintas, espacialmente e temporalmente afastadas e chegamos a conclusões gerais como ―recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra; é recusar-se a aliança e a comunhão‖ (1974: 58). Com tal postura inventariante, Mauss nos ajuda a compreender então porque tal fenômeno social (a exemplo da dádiva) pode ser considerado universalizável para todas sociedades humanas, contudo, continuamos sem saber como tal fenômeno pôde ser possível em tantos e tantos contextos temporais e espaciais. Aqui encontramos, provavelmente, questões que dizem respeito à própria constituição

dos

paradigmas

antropológicos

(difusionismo,

estruturalismo,

culturalismo, etc.) e suas disputas e consensos epistemológicos. Não é minha pretensão, é evidente, problematizar o conceito de dádiva no campo de debates acadêmicos entre os diversos matizes da Antropologia. Entretanto, à luz do pensamento barthiano, podemos nos arriscar a transitar entre o porquê inventariante de Mauss para o devir conceitual do como. O que possibilita que as práticas de ―fazer o bem‖/ ―ajudar o próximo‖, tão caras aos princípios cristãos e outros princípios religiosos/espirituais, ganhem, contemporaneamente, plausibilidade no universo considerado ―laico‖, em um planejamento de políticas típicas de Estado, por exemplo? Quais são as continuidades e descontinuidades que esse processo, no sentido eliasiano do termo, nos apresenta? Quais são as possíveis clivagens desse processo de reinvenção?

108 Aqui lembremos o excelente artigo intitulado Sobre o surrealismo etnográfico, de James Clifford, em que o legado maussiano, e de outros antropólogos ―seguidores‖, dialoga com o ideário artístico surrealista da década de 1920. ―[...] é notável, e sem dúvida comovente, perceber a enorme energia que Mauss colocava em suas aulas na Hautes Études. Uma olhada no Annuaire da École, no qual o resumo dos cursos eram registrados, revela extraordinária riqueza de erudição e análise disponíveis para uns poucos estudantes, em anos alternados, sem repetição, muitos dos quais nunca foram publicados. Mauss oferecia cursos que iam desde xamanismo siberiano à poesia oral australiana, passando pelo ritual polinésio e da costa oeste da Índia, imprimindo seu profundo conhecimento sobre as religiões orientais e sobre a Antiguidade Clássica‖ (2008: 127; 128).

233

Nossa intenção neste momento é abrir tais questões produzidas a partir de um pequeno recorte empírico de setores e pessoas muito específicas que têm em comum o fato de fazerem parte do quadro de funcionários do Banco do Nordeste do Brasil, um banco de desenvolvimento regional que estabelece vínculos de influência em redes locais, nacionais e globais. O presente estudo se deteve em redes de sociabilidade muito específicas que contam com pequenas contribuições existenciais do BNB: aquelas relacionadas à economia solidária, que transitam entre os movimentos sociais e os programas institucionais governamentais, que se configuram como ―redes de resistência‖ (de baixo pra cima) promovendo uma crítica convivente com o modelo de sociedade neoliberal; e aquelas relacionadas à responsabilidade socioambiental, que advém de tratados internacionais e estão inseridas em organizações públicas e privadas, que se configuram como redes que formalizam compromissos legais (de cima pra baixo). As redes de sociabilidade da economia solidária tendem a produzir consenso carismático no agenciamento junto aos grupos sociais, enquanto as redes de sociabilidade da responsabilidade socioambiental tendem a produzir consenso indiferente no seu agenciamento. Os posicionamentos expressos pelos funcionários do Banco do Nordeste, do INEC e pelo ex-presidente do Banco revelam o carisma político desencadeado pelo movimento da ES. Entretanto, esse carisma não se reflete na incorporação institucional do Banco dos programas e estratégias propostas pelas redes de

ES.

O

movimento

esbarra

em

códigos

culturais

hegemônicos

do

desenvolvimentismo do Banco que sempre privilegia a autossustentabilidade bancária e os financiamentos com retorno lucrativo assegurado, seja a curto ou a longo prazo. O mesmo não ocorre com a responsabilidade socioambiental, que consegue vasta capilaridade no Banco, apesar de ser tratada com indiferença pelos próprios servidores que atuam nessa ―área‖ no âmbito da sede, da superintendência e da agência. Se, como nos alerta Sahlins, ―os significados são, em última instância, submetidos a riscos subjetivos, quando as pessoas, à medida que se tornam socialmente capazes, deixam de ser escravas de seus conceitos para se tornarem seus senhores‖ (1990: 11), os servidores do Banco do Nordeste foram escravos e são senhores do desenvolvimento regional financista, o que torna custoso a ressignificação (ou o ―empoderamento‖) de outras ideias-força positivadas contemporaneamente. Os financistas do BNB têm razão. Um banco de desenvolvimento, antes de qualquer coisa, é um banco. O estranhamento dos movimentos de generosidade dentro

234

de instituições bancárias que me levaram ao início desta pesquisa permanece um estranhamento. Para os financistas, o mana, a honra elevada advinda de uma política de desenvolvimento, é produzido pela transformação dos pobres em empreendedores honestos, pagadores de dívidas e pacíficos. O Instituto Nordeste Cidadania tornou-se uma OSCIP para acompanhar esse processo de transformação dos pobres ―de perto‖. O plano desenvolvimentista, desta feita, é resgatá-los do vício assistencialista e colocá-los em degraus mais elevados de uma escalada cidadã. O BNB é um braço do Governo Federal brasileiro e a implantação paulatina de uma cultura empreendedorista no seio da população de baixa-renda é uma estratégia governamental da gestão atual. ―Ensine a pescar e não dê o peixe‖ é o jargão que vai permanecer por muito tempo. Para ensinar a pescar, é preciso cobrar juros. Nem tudo ocorre como se imagina e se planeja. Algumas representações de trabalhadores do campo na Paraíba já manifestaram recentemente a existência de muitos clientes do BNB endividados no meio rural que pedem ―o perdão das dívidas‖ ao Governo Federal. Ao buscar mais uma vez no mercado ―autorregulável‖ os sonhos de uma cidadania eternamente adiada, o desenvolvimento financista apenas reinventa as antigas dádivas que enchem de mana os poderosos e de dependência os resistentes.

235

Referências Bibliográficas

ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DO BNB. Por um Nordeste melhor: propostas de estratégias para o desenvolvimento regional. Fortaleza/CE: AFBNB, 2006. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife/PE: Ed. Massangana; São Paulo/SP: Cortez, 1999. ANTUNES, Ricardo. ―A centralidade do trabalho hoje‖. In: FERREIRA, Leila da Costa (org.) A Sociologia no Horizonte do Século XXI. São Paulo/SP: Boitempo, 1999. ARQUILLA, John. & RONFELDT, David. Networks and netwars: the future of terror, crime, and militancy. Santa Monica, Califórnia: RAND Corporation, 2001. ARRUDA, Marcos. & BOFF, Leonardo. Globalização: desafios socioeconômicos, éticos e educativos. Rio de Janeiro/RJ: Vozes, 2000. BARTH, Frederik. ―A análise da cultura nas sociedades complexas‖. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000. __________. ―O guru e o iniciador: transações de conhecimentos e moldagem da cultura no sudeste da Ásia e na Melanésia‖. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000. BENJAMIN, Walter. ―O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo/SP: Brasiliense, 1987. BERTUCCI, Ademar. & SILVA, Roberto Marinho Alves da (Org.). 20 anos de economia popular solidária: trajetória da cáritas brasileira dos PACs à EPS. Brasília/DF: Cáritas Brasileira, 2003. BONFIM, Washington Luís de Souza. ―De Távora a Jereissati: duas décadas de política no Ceará‖. In: PARENTE, Josênio. & ARRUDA, José Maria. A era Jereissati: modernidade e mito. Fortaleza/CE: Edições Demócrito Rocha, 2002. BOURDIEU, Pierre. ―A ilusão biográfica‖. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996. pp. 183-191. __________. ―Marginália. Algumas notas adicionais sobre o dom‖. In: Mana: Estudos de Antropologia Social, Vol. 2, N. 2. Rio de Janeiro/RJ: Relume Dumará/ PPGAS Museu Nacional – UFRJ, outubro de 1996, pp. 7-20.

236

__________.O poder simbólico. Rio de Janeiro/RJ: Bertrand Brasil, 1989. BRAGA, Emanuel Oliveira. O “homem de bem‖: uma interpretação da dádiva em três grupos

católicos

de

Fortaleza.

Monografia

de

Graduação.

Fortaleza/CE:

Departamento de Ciências Sociais/UFC, 2005. __________. ―O homem de bem: algumas representações sociais acerca da generosidade na Renovação Carismática‖. In: Dossiê Dádivas e Políticas Sociais Contemporâneas. Jornal_do_M.A.U.S.S._Iberolatinoamericano,_setembro_de_2011. BRANDÃO, M. de A. ―A regionalização da grande indústria no Brasil: Recife e Salvador na década de 1970‖. In: Revista de Economia Política. São Paulo/SP, 1985, pp. 77-98. BRECHER, Jeremy.; COSTELLO, Tim. & SMITH, Brendan. Globalization from below: the power of solidarity. Cambridge, Massachusetts: South End Press, 2000. BRITO, Lydia Maria Pinto. O salto para a modernidade: contradições de um processo de mudança numa empresa estatal brasileira. Tese de Mestrado em Sociologia. Fortaleza/CE: UFC, 1997. CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. CANDIDO, Antonio. ―As formas de solidariedade‖. In: Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo/SP: Livraria Duas Cidades, 1977. CAPPELLIN, Paola. & GIULIANI, Gian Mario. ―The political economy of corporate responsibility in Brazil: social and environmental dimensions‖. In: Technology, Business and Society Programme. United Nations Research Institute for Social Development. Paper Number 14, october 2004. CARDOSO, Gil Célio de Castro. O Estado desenvolvimentista e o Nordeste: o BNB na busca de um novo modelo de desenvolvimento regional. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Natal/RN: PPGCS/UFRN, 2006. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2008. CHEIBUB, Zairo. & LOCKE, Richard. ―Valores ou interesses? Reflexões sobre a responsabilidade social‖. In: KIRSCHNER, Ana Maria; GOMES, E. & CAPPELLIN, Paola (Orgs.). Empresa, empresários e globalização. Rio de Janeiro/RJ: Relume Dumará, 2002. CLIFFORD, James. ―Sobre o surrealismo etnográfico‖. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro/RJ: Ed. UFRJ, 2008.

237

COSTA, José Jonas Duarte da. Impactos socioambientais das políticas de combate à seca na Paraíba. Tese de Doutorado em História Econômica. São Paulo/SP: USP, 2003. COSTA, Rubens Vaz da. ―Introdução‖. In: SCHUMPETER, Joseph A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo/SP: Abril Cultural, 1982. CSORDAS, Thomas J. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre/RS: Editora da UFRS, 2008. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte/MG: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. DINIZ, Clélio Campolina. ―Celso Furtado e o desenvolvimento regional‖. In: Nova Economia. Vol.19, N. 2. Belo Horizonte/MG, maio de 2009. DOUGLAS, Mary. Como pensam as instituições. São Paulo/SP: Edusp, 1998. _________. Pureza e perigo. São Paulo/SP: Perspectiva, 2010. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro (RJ): Rocco, 1985. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Col. Os Pensadores. São Paulo/SP: Abril Cultural, 1978. _________. & MAUSS, Marcel. ―Algumas formas primitivas de classificação‖. In: Rodrigues, José Albertino (org). Durkheim. Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo/SP: Ed. Ática, 1978. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo/SP: Martins Fontes, 1992. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar, 1993. __________. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização. Vol. 2. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar, 1993. FORNIER, Marcel. ―Para reescrever a biografia de Marcel Mauss...‖. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 18, n°. 52, junho de 2003. FORTE, Joannes Paulus Silva. A Igreja dos homens: o trabalho dos agentes de Cáritas para o desenvolvimento da EPS no Ceará. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Fortaleza/CE: UFC, 2008. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo/SP: Martins Fontes, 1995. _________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro/RJ: Graal, 1981.

238

FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. & LAVILLE, Jean-Louis. A economia solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre/RS: Editora da UFRGS, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo/SP: Paz e Terra, 1996. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro/RJ: Record, 1998. FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo/SP: Arte Nova, 1977. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo/SP: Nacional, 2001. GAIGER, Luiz Inácio. ―A economia solidária diante do modo de produção capitalista‖. In: Caderno CRH. N°. 39, Salvador/BA, julho de 2003, pp. 181-211. GARCIA, Joana. O negócio do social. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar, 2004. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro/RJ: LCT, 1989. __________. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis (RJ): Vozes, 2001. GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2001. GONÇALVES, Alicia Ferreira. Cultura, mercado e transnacionalidade: um olhar etnográfico. Campinas/SP: CMU – Unicamp, 2006. __________. Experiências de economia solidária. Campinas/SP: CMU – Unicamp/ Editora Arte Escrita, 2006. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 1982. HADDAD, Fernando; ANTUNES, Ricardo & outros. Sindicatos, cooperativas e socialismo. São Paulo/SP: Fundação Perseu Abramo, 2003. HANNERZ, Ulf. ―Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da Antropologia Transnacional‖. In: Mana: Estudos de Antropologia Social, Vol. 3, N. 1. Rio de Janeiro/RJ: Relume Dumará/ PPGAS Museu Nacional – UFRJ, abril de 1997, pp. 739. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo/SP: Edições Loyola, 1992. HIRSCHMAN, Albert. Os problemas do nordeste brasileiro. Rio de Janeiro/RJ: Fundo de Cultura, 1965.

239

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 1996. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo/SO: Martins Fontes, 2008. KIRSCHNER, Ana Maria. ―Considerações sobre a responsabilidade social das empresas em contextos de desigualdade e exclusão‖. In: Dossiê Política & Sociedade. Vol. 8, n°. 15, outubro de 2009. __________. ―Sociologia da empresa e responsabilidade social das empresas‖. In: Nueva Sociedad 202, 2006. LANNA, Marcos P. D. A dívida divina: troca e patronagem no Nordeste brasileiro. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 1995. __________ . ―Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva‖. In: Revista de Sociologia e Política. n°. 14, junho de 2000. LATOUR, Bruno. Nunca fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro/RJ: Ed. 34, 2009. LECHAT, Noële Marie Paule. Trajetórias intelectuais e o campo da economia solidária no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas/SP: Unicamp, 2004. LEMENHE,

Maria

Auxiliadora.

Todos

“participam”

enquanto

alguns

decidem.

Fortaleza/CE: SBS, 2001. LÉVI-STRAUSS, Claude. ―Introdução à obra de Marcel Mauss‖. In: Sociologia e antropologia. São Paulo/SP: Cosac Naify, 2003. LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à antropologia. São Paulo/SP: Livraria Martins Editora, 1959. MACHADO, Raphael Amorim. O desenvolvimento do Instituto Ethos e o campo da responsabilidade social empresarial do Brasil. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Campinas/SP: PPGCP/Unicamp, 2012. MAFRA, Clara. ―A ‗arma da cultura‘ e os ‗universalismos parciais‘. In: Mana: Estudos de Antropologia Social. Vol 17, n°. 3, dezembro de 2011. MARANHÃO, Silvio. Estado e planejamento regional: a experiência do Nordeste brasileiro. Recife/PE: CMS/PIMES, 1982. MARTINS, Mônica de Souza Nunes. Entre a cruz e o capital: as corporações de ofícios após a chegada da família real (1808-1824). Rio de Janeiro/RJ: Editora Garamond, 2008.

240

MARTINS, Paulo Henrique. ―A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação‖. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. N°. 73, dezembro de 2005. MARX, Karl. & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feurbach, Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2007. __________. Trabalho assalariado e capital. São Paulo/SP: Edições Sociais, 1977. MAUSS, Marcel. ―Don, contrat, échange‖. In: Oeuvres: cohésion sociale et divisions de la sociologie. Vol. 3. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969. __________. ―Ensaio sobre a dádiva‖. In: Sociologia e antropologia. São Paulo/SP: Edusp, 1974. __________. ―La prière‖. In Oeuvres: les fonctions sociales du sacré. Vol. 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. __________. ‗‗A expressão obrigatória dos sentimentos (rituais orais funerários australianos)‘‘. In: Ensaios de sociologia. Estudos. São Paulo/SP: Perspectiva, 1969. __________. & HUPERT, Henri. ―Essai sur la nature et la fonction du sacrifice‖. In: Oeuvres: les fonctions sociales du sacré. Vol. 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de. ―Padre Ibiapina: figura matricial do catolicismo sertanejo no Nordeste do século XIX‖. In: Revista do Instituto do Ceará. Tomo CXII, n. 112, p. 73-98, 1998. MERLEAU-PONTY, Maurice. ―De Mauss a Claude Lévi-Strauss‖. In: Maurice MarleauPonty: textos selecionados. Col. Os Pensadores. São Paulo/SP: Nova Cultural, 1989. MOTA, José Rubens Dutra. Políticas públicas e economia solidária: avaliação do projeto Sementes da Solidariedade. Tese de Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas. Fortaleza/CE: PRPG/UFC, 2009. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo/SP: Companhia das letras, 1999. OLIVEIRA, Paulo de Salles. & SINGER, Paul. ―Economia Solidária: entrevista com Paul Singer‖. In: Estudos Avançados. Vol. 22, n°. 62. São Paulo/SP, abril de 2008. PARENTE, Francisco Josênio. ―Uma política pública de sucesso: o Banco do Nordeste e a modernidade cearense‖. In: Revista do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade. Ano 1, n°. 1, Fortaleza/CE, UECE, janeiro de 2001.

241

PAVA, Moses L. ―The talmudic concept of ‗beyond the letter of the law‘: relevance to business social responsibilities‖. In: Journal of Business Ethics. Vol. 15, n°. 9, setembro de 1996. PETTER, Margarida. ―Linguagem, língua, lingüística‖. In FIORIN, José Luiz. (Org.) Introdução à lingüística. São Paulo/SP: Contexto, 2002. PINTO, Agerson T. O Banco do Nordeste e a modernização regional. Fortaleza/CE: BNB, 1977. PLATÃO. O banquete. Col. Os Pensadores. São Paulo/SP: Abril Cultural, 1984. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro/RJ: Campus, 1980. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle epoque: reformas urbanas e controle social 1860 - 1930. Fortaleza/CE: Edições UFC, 1993. PORTER, Michael. & Kramer, Mark. ―Strategy and society: the link between competitive advantage and corporate social responsibility‖. In: Harvard Business Review, dezembro de 2006, pp. 78–92. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo/SP: Record, 1977. RÊGO, José Lins do. Fogo morto. Rio de Janeiro/RJ: José Olympio, 1965. RIBEIRO, Eleazar de Castro. A múltipla percepção dos elementos da cultura organizacional de uma instituição bancária estatal: uma tentativa de síntese metodológica. Dissertação de Mestrado em Administração. São Paulo/SP: USP, 1996. RIBEIRO FILHO, Geraldo Browne. O banco mundial e as cidades: construindo instituições na periferia – o caso do PRODETUR, Bahia. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro/RJ: UFRJ, 2006. RIVIÉRE, Claude. As liturgias políticas. Rio de Janeiro/RJ: Imago, 1989. ROBOCK, Stefan. Desenvolvimento econômico regional: o nordeste do Brasil. Portugal: Fundo de Cultura, 1964. RODRIGUES, Lea. Metáforas do Brasil: demissões voluntárias, crise e rupturas no Banco do Brasil. São Paulo/SP: Annablume; Fapesp, 2004. RODRIGUES, Lea; MORENO, Isidoro & RUBEN, Guilhermo (Orgs.). Trabalho, políticas públicas e estratégias empresariais. Fortaleza/CE: MAPP/ Expressão Gráfica e Editora, 2010. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. A democracia liberal segundo Aléxis de Tocqueville. São Paulo/SP: Mandarim, 1998.

242

ROMANO, Jorge. & ANTUNES, Marta (Org.). Empoderamento e direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro/RJ: ActionAid Brasil, 2002. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Coleção Os Pensadores. São Paulo/SP: Abril Cultural, 1999. SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável.

Rio de Janeiro/RJ:

Garamond, 2002. __________. Estratégias de transição para do século XXI: desenvolvimento e meio ambiente.

São

Paulo:

Studio

Nobel/

Fundação

para

o

Desenvolvimento

Administrativo, 1993. SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar Editor, 2003. __________. Ilhas de história. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar Editor, 1990. SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro/RJ: Record, 2005. SALES, Teresa. ―Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira‖. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Nº 25, São Paulo/SP: ANPOCS, 1994, pp. 26-37. SARTORE, Marina de Souza. A inserção da responsabilidade social do setor bancário no contexto global da governança corporativa. Dissertação de Mestrado – Programa de PósGraduação em Engenharia de Produção. São Carlos/SP: UFSCar, 2006. SCHUMPETER, Joseph A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo/SP: Abril Cultural, 1982. SENA, Jorge de. ―Shakespeare‖. In: A literatura inglesa. São Paulo/SP: Cultrix, 1980. SILVA, Ciro Valério Torres da. Entre o bem estar social e o lucro: histórico e análise da Responsabilidade Social das Empresas através de algumas experiências selecionadas de Balanço Social. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Niterói/RJ: PPGCP/UFF, 2000. SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo/SP: Fundação Perseu Abramo, 2002. SIQUEIRA, Carlos Eduardo.; CASTRO, Hermano. & ARAUJO, Tânia Maria de. ―A globalização dos movimentos sociais: resposta social à Globalização Corporativa Neoliberal‖. In: Ciência e saúde coletiva [online]. Vol.8, n°. 4, 2003, pp. 847-858.

243

SOUZA, Celina. ―Políticas públicas: uma revisão da literatura‖. In: Sociologias. Ano 8, n°. 16, Porto Alegre/RS, julho de 2006. SOUZA, Simone (Coord.). História do Ceará. Fortaleza/CE: Fundação Demócrito Rocha, 1994. TORRES FILHO, Ernani Teixeira. ―Mecanismos de direcionamento do crédito, bancos de desenvolvimento e a experiência recente do BNDES‖. In: FERREIRA, Francisco Marcelo Rocha & MEIRELLES, Beatriz Barbosa. Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro/RJ: BNDES, 2009. VALIAS

NETO,

Francisco

Monticeli.

&

CONSENTINO,

Daniel

do

Val.

―Desenvolvimento regional no Brasil: as contribuições de Rômulo de Almeida e Celso Furtado‖. In: IV Conferência Nacional de História Econômica e VI Encontro de Pós Graduação em História Econômica. São Paulo/SP: USP, 2012. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo/SP: Cosac Naify, 2010. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo/SP: Livraria Pioneira, 1985. __________. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo/SP: Cultrix, 1993. __________. ―Conceitos sociológicos fundamentais‖. In: Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volume I. Brasília/DF: Editora da UNB, 1994. __________. ―Sociologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas)‖. In: Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volume I. Brasília/DF: Editora da UNB, 1994.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.