A Relação da Gastronomia e os Produtos do terroir na Contemporaneidade

July 15, 2017 | Autor: Ágata Britto | Categoria: Terroir, Gastronomia
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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 A Relação da Gastronomia e os Produtos do terroir na Contemporaneidade 3 7 The relation between Gastronomy and terroir products in the Contamporary days. Ágata Morena De Britto – Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS3 8 RESUMO O presente artigo busca apoiar teoricamente a relação entre os produtos do terroir e a gastronomia. Com o apogeu da industrialização, modifica-se a relação do homem com o alimento. O surgimento dessa nova forma de se alimentar, através da comida, abre espaço para novas formas de se relacionar, como as cozinhas regionais e produtos do terroir. Na sociedade contemporânea essas relações se modificam novamente, devido às mudanças no que se refere ao tempo, espaço e consumo. Por meio do contexto sócio -cultural, vislumbram-se as potencialidades de valorização dos produtos do terroir no território brasileiro no mercado contemporâneo e sua relação com a gastronomia. Palavras Chave: Produtos do terroir; cozinha regional; gastronomia; sociedade contemporânea; Brasil. ABSTRACT This paper was developed to explain the possible relations between terroir products and gastronomy. With the industrialization climax, the relation of man and nutriment is modified. The appearance of a new way to feed it self, through food, opens space to new forms of relation, like regional cuisine and terroir products. In contemporary society, these relations are modified once again. This is due to the changes in space, time and consumption. By the social-cultural   context   it’s   possible   to   vizualize   the   potencial of increasing value to terroir products in the brazilian territory. Keywords: terroir products; regional cooking; gastronomy; contemporary society; Brazil. Considerações Iniciais Este artigo é resultado do trabalho de investigação inserido em um grupo de pesquia sobre processos metodológicos com foco na valorização do território. No nível macro, o grupo mapeia experiências que produzem sentido ao território resgatando valores “perdidos”   ou   estimulando   processos   de   inovação   sobre   o   mesmo.   A   partir   des sa investigação mais ampla, desdobram-se outras pesquisas com focos específicos. Este texto apresenta a base teórica de uma dessas sub-pesquisas que está em fase de coleta de dados. O foco deste estudo é a valorização dos produtos dos terroirs brasileiros. Em um contexto mundial de globalização, a valorização de produtos locais torna -se uma estratégia que busca o reconhecimento do trabalho das comunidades produtoras e a melhora da experiência de consumo. Esse processo de valorização se mostra também como u ma alternativa para o consumo sustentável dentro de uma sociedade que privilegia o consumo

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Linha de Pesquisa:  “Técnicas  e  Produtos:  tradições,  inovações  e  sustentabilidade.” Mestranda em Design na Unisinos, especialista em gestão gastronômica pela Escola Superior de Hotelaria Castelli (2005) e graduada em Hotelaria pela UCS (2003). Atualmente é professora e coordenadora do curso de gastronomia da Unisinos, atuando no exercício da docência desde 2008. E-mail: [email protected] 38

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 em excesso. Os objetos de observação da pesquisa que dá base a este artigo, são os produtos agroalimentares com certificação de origem do estado do Rio Grande do Sul. A partir dessa perspectiva, o objetivo deste artigo é apresentar e problematizar as bases teóricas que darão suporte a essa pesquisa. Neste artigo, a abordagem é feita pela gastronomia, compreendendo essa como uma disciplina que enxerga o alimento de forma sistêmica, já que para uma refeição se tornar fonte de bem estar é necessário refletir sobre o sistema produto do mesmo como um todo. As bases teóricas que fundamentam a pesquisa giram em torno das relações entre a sociedade, cultura e gastronomia. Bourdieu (2008) e Rodrigues (2000), na estruturação do conceito de experiências e habitus; Lipovetsky(2010), para o posicionamento de uma visão de sociedade contemporânea; Ascher (2005) e Montanari (2006), para descrever a relação do individuo contemporâneo e sua comida. A tese aqui enfrentada é que a articulação entre gastronomia e produtos do terroir leva, por um lado, a melhoria da experiência de consumo, e, por outro lado, promove o desenvolvimento sócio-econômico para as comunidades produtoras, estimulando a inovação no campo gastronômico. A visão gastronômica de forma estratégica pode focar nos valores, e por meio deles, orientar o sistema produto-serviço para uma oferta que tangibilize esses valores. O artigo está estruturado em três partes: na primeira parte, contextualiza-se a gastronomia na contemporaneidade; na segunda parte, apresenta -se o panorama dos produtos do terroir no Brasil; por fim, discuti-se as considerações finais sobre o potencial de valorização dos produtos do terroir na sociedade brasileira. Gastronomia na Contemporaneidade O comer na sociedade contemporânea se expressa pela individualidade dos gostos, se tornando fonte de um prazer privado. Ou seja, nessa sociedade não se trata mais de uma busca por um alimento, e sim por uma comida que expresse as múltiplas identidades desse individuo contemporâneo. Com a sociedade contemporânea marcada por mudanças de comportamento e cultura, se desenham novos tipos de produtos. Estes surgem para responder a novos tipos de desejos dos indivíduos. Os novos produtos procuram preencher a necessidade e quereres do individuo contemporâneo (ASCHER, 2005: 132). Na sociedade atual, a vida cotidiana se torna cada vez mais uma questão de gosto, até mesmo de degustação. O indivíduo contemporâneo come aquilo que ele gosta, com restrições diversas, que variam desde seu orçamento a sua dieta, passando pelos hábitos adquiridos em um momento ou outro de sua vida. Comer se tornou uma questão de gosto individual(ASCHER, 2005:210). É importante lembrar do significado da palavra gastronomia. A mesma tem sua origem no grego “gaster” ou “gastros” que quer dizer estômago e “gnomos” conhecimento, ou seja, o termo significa conhecimento, estudo do estômago. Levando -se em consideração que o prazer que a comida gera é, de uma forma física, nos sentidos do individuo, se permite afirmar que a gastronomia estuda e lida com os alimentos, de forma a transmitir, através da comida, as identidades, cultura, história e outras representações, que intermediam a busca pelo bem estar. A comida se mostra então como o artefato que compõe a gastronomia contemporânea. A busca pelo prazer não se dará por meio do simples alimento, do suprir as necessidades básicas do corpo e sim pela satisfação gerada pelo consumo de determinada refeição. E para gerar satisfação individual não será a mesma comida que irá satisfazer diferentes indivíduos, pois a satisfação do mesmo está diretamente ligada a construção do gosto individual. Para compreender essa relação, neste artigo trata-se da formação do gosto individual, amparada nos conceitos de experiência de Rodrigues e habitus de Bourdieu, já

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 que o gosto individual é desenvolvido pelos conjuntos de valores criados pelas práticas das experiências, que estruturam e se estruturam no habitus. A experiência é o c onhecimento, o saber popular, que engloba um conjunto de saberes, crenças fortemente embasadas no hábito, o que diferencia -se do saber científico, baseado em questionamentos desenvolvidos racionalmente. A experiência de cada individuo é construída em parte por esse saber popular. Através dele, o individuo gera um sistema, chamado por Rodrigues de sistema de expectativas, no qual ele baseia a vida, regulando seus padrões, hábitos, costumes, interpretando o mundo a sua volta, criando assim expectativas com relação a si próprio, os outros e o ambiente, definidos como domínios (RODRIGUES, 2000:171). Habitus para Bourdieu(1998:61), como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e uma posse pessoal, um capital, conceito complementar ao de experiência colocado por Rodrigues. O conceito de habitus explica a influência da tradição nas decisões de cada individuo. Se mostra mais como um conhecimento espontâneo e tácito que explícito. O habitus pode tornar-se um sistema de base das disposições, para a tomada de decisões, como uma estrutura estruturante. Na transformação da sociedade moderna para a que vivemos atualmente, a mesma estrutura-se na busca por bem estar e a dominação do gosto individual, o que é chamado por Lipovestsky de hedonismo. O hedonismo exprime-se na valorização da novidade e da diversidade gastronômica. O individuo privilegia o fooding3 9 , a cozinha world fusion4 0 que conjuga diversos sabores, misturando os gostos e os produtos para além das fronteiras da tradição.   Para   ele,   “a   mesa   deve   ser   a   ocasião   de   uma   “viagem”   de   uma   espécie   de   experiência sinestésica que satisfaz os seis sentidos, sendo o sexto sentido a emoção, sensibilidade”   lembrando   ainda   que   esta   experiência   deve   exaltar   o   gosto   individual   de   cada   ser e seus conjuntos de valores na busca de novos prazeres (LIPOVETSKY, 2010, 235:237). A   gastronomia   contemporânea,   descrita   por   Lipovetsky   como   de   “patchwork”,  não  se   caracteriza apenas pelos apectos de mistura e hibridação que a compõe de forma geral, mas também pela apropriação de elementos diversos de culturas distintas. A falta de padrões estabelecidos, juntamente com a globalização dos sabores, adapta -a a realidade do individuo contemporâneo, ao meio, cultura, produtos (ingredientes) e diferentes grupos. Com a vida contemporânea baseada em uma questão de gosto, conseqüentemente, pode-se afirmar que a escolha alimentar de cada individuo está da mesma forma atrelada a este conjunto de saberes que cada individuo carrega consigo, ou seja, o seu sistema de expectativas será definidor na escolha de sua alimentação. Um alimento não é bom ou ruim de forma absoluta, mesmo que os seres humanos tenham sido ensinados a reconhecê-los como tal, ou seja, gostar ou não de determinado alimento depende do gosto. O gosto de fato não é subjetivo e incomunicável, mas sim coletivo e comunicativo, é uma experiência cultural transmitida ao individuo desde o nascimento. O mesmo não é definido pelo sabor que se sente na boca, mas pelo cérebro. Dessa forma, o gosto é uma escolha cultural a qual é transmitida e ensinada p elo critério de avaliação através do tempo e espaço a partir de um capital. As predileções de gosto variam de grupo para grupo e na sociedade contemporânea até mesmo de individuo para individuo, assim como o gosto evoluiu ao longo dos séculos (MONTANARI, 2006). O gosto, portanto, irá variar de acordo com as influências que o sujeito recebeu ao longo de seu desenvolvimento como individuo, conjunto de informações e valores podendo compará-lo com o capital cultural descrito por Pierre Bourdieu: “o   capital   cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa, um habitus... Esse capital “pessoal”   não   pode   ser   transferido   instantaneamente   (diferentemente   do   39

Fooding: Movimento de pessoas interessadas em comida de alta qualidade, que buscam a relação da comida com a filosofia. 40 World fusion: Tipo de gastronomia de fusão, na qual se privilegia a mistura de sistemas culinários e culturas, além de ignorar as fronteiras no que diz respeito a busca por ingredientes.

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 dinheiro, do titulo de propriedade, ou mesmo do tit ulo de nobreza) por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca. Pode ser adquirido no essencial, de maneira totalmente dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições primitivas de aquisição (BOURDIEU,   2007,   74:75).” Assim, o gosto pertence a este capital cultural indissociável ao individuo, se desenvolvendo de forma especifica e individual em cada ser humano, sendo mediador das escolhas alimentares de cada individuo. A escolha alimentar é feita pelo conjunto de valores simbólicos que compõe o gosto do individuo e este conjunto de valores se desenvolve em seu contato com os grupos o qual este faz parte, família e amigos, além das representações de valores nacionais, como por exemplo, o feijão e arroz para o brasileiro. O comer na sociedade contemporânea se tornou um processo com maiores códigos de respeito, éticos e morais. A mesa se tornou ponto de encontro entre diversos modelos alimentares.   A   tendência   atual   é   a   do   reforço   do   natural,   antigo   e   “tradicional”,   mesmo   que   este tradicional esteja baseado na visão do passado mítico e não necessariamente real. Portanto, a gastronomia torna-se um campo em que se concentram questões que ultrapassam o alimentar, exprimindo esta nova cadeia de valores que permeia a sociedade contemporânea, o desejo de respeitar as diversidades biológicas, culturais, geográficas, religiosas, porém sem respeitar uma identidade especifica, formando um mosaico de identidades, que resultam na experiência contemporânea (FUMEY, 2007). O contexto do desenvolvimento do sistema alimentar na sociedade contemporânea se expressa na gastronomia como a experiência com a comida, na busca pelo prazer do estômago. Isso se torna uma ação concreta através das comidas originadas das cozinhas regionais e dos ingredientes do t erroir, que hoje formam a hibrida gastronomia contemporânea. Como já visto, o conceito de experiência, segundo Rodrigues(2000:171), é o do saber popular, que engloba um conjunto de saberes, crenças fortemente embasadas no habitus, o que diferencia-se do saber científico, baseado em questionamentos desenvolvidos racionalmente. O individuo vive diferentes tipos de experiências criando, com o conjunto das mesmas, o corpo da experiência individual. Essa experiência individual gera um sistema, chamado por Rodrigues de sistema de expectativas, no qual o individuo baseia a vida, regulando seus padrões, hábitos, costumes e interpreta o mundo a sua volta, criando assim expectativas com relação a si próprio, aos outros e ao ambiente. A partir da experiência, criam-se conjuntos de saberes que servem como base para as ações dos indivíduos. Por meio dessas experiências se reconhecem as cozinhas regionais e os ingredientes provenientes do terroir. Estes saberes não são fundamentados racionalmente, porém são usados pelas pessoas em suas vidas por que são crenças, convicções baseadas no habitus, produzido de forma retroalimentar pela experiência. O surgimento de novos valores nos sistemas alimentares criou uma crise alimentar, entre o natural e o industrial, dando espaço para o crescimento do artesanato alimentar, que encontra na terra um novo eixo de valorização de um recurso estratégico. A comida se torna valorizadora e alavanca o desenvolvimento local, em oposição as angústias da industrialização alimentar e diluição das identidades locais. A conseqüência disto é a atual valorização do território (POULAIN, 2006). Valorizar os produtos do terroir, para que desta forma se possibilite o consumo dos mesmos, é indispensável na experiência gastronômica, pois os ingredientes são a base da construção do sabor e do prazer que a comida proporciona ao individuo.

O Brasil no Contexto Gastronômico Mundial

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 A gastronomia brasileira vem se destacando no contexto mundial, de um lado pelo exotismo, sabores inusitados e únicos de seus ingredientes, diferentes dos comercializados nos continentes que detêm o poder simbólico gastronômico, em especial o continente europeu. De outro lado, pelo desenvolvimento técnico e tecnológico dos profissionais da gastronomia no Brasil. O poder simbólico é um poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade dos que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. O mesmo constrói a realidade, ou seja, o sentido imediato do mundo. Nesse sentido, a gastronomia explicita a relação do poder simbólico entre os diferentes agentes dentro do campo o qual faz parte. A gastronomia brasileira, elemento representativo da cultura nacional, demonstra, pelo status adquirido na sociedade contemporânea, uma mudança do modelo mental do próprio brasileiro. Nesse caso, a gastronomia é legitimadora da cultura brasileira, modificando a sua relação com as culturas dominantes. A partir do momento em que o brasileiro passa a valorizar a sua própria comida e os produtos originários de sua nação, modificam-se a relação de dominante e dominado. Essa mudança de modelo mental do brasileiro se torna evidente na busca pela valorização dos produtos locais, produtos de seu terroir, o que demonstra o poder quase mágico que o simbólico possui, não através da força, ma s da mobilização, por meio do reconhecimento e reprodução da crença (BOURDIEU, 1998). A gastronomia pode ser vista, então, como uma arena com vários objetos sendo disputados simultaneamente. A possibilidade de valorização de ambos os elementos, tanto a gastronomia quanto os produtos locais, favorecem a mudança de modelo mental do brasileiro, por meio de uma tomada de poder simbólico gastronômico. No sentido de compreender esse processo é necessário entender como a identidade gastronômica brasileira se produz. A identidade gastronômica de um país é uma “comunidade   imaginada”   e   a   diferença   entre   as   diferentes   gastronomias   é   a   forma   como   são imaginadas (HALL, 2006, pag. 51). As nações são construídas por meio de estratégias representacionais usadas na construção do senso de pertencimento e identidade nacional, originadas nos mitos construídos nas mentes dos individuos através do espaço e o tempo. O discurso da cultura nacional constrói identidades que são colocadas entre o passado e o futuro, por meio dos símbolos e rituais que representam as experiências partilhadas. A narrativa da nação é assim criada e se mantém por meio da atemporalidade da mesma. Essa atemporalidade ocorre através da estratégia discursiva de invenção da tradição. No entanto, as identidades gastronômicas nacionais são criadas em sua diversidade pelo confronto com diferentes culturas. De fato, as identidades não existem sem as trocas culturais. O movimento atual em direção a ética, moral e sustentabilidade na gastronomia se mostra como um proc esso de proteção dos bens e saberes. Porém, proteger a biodiversidade cultural e natural não significa enclausurar cada identidade numa concha, mas, sim, conectá-las. As tradições alimentares e gastronômicas são extremamente sensíveis às mudanças, à imitaç ão e as influências externas (MONTANARI, 2009). Na gastronomia contemporânea se vê essas conexões ocorrerem de diversas formas. Uma delas é através das cozinhas regionais e ingredientes dos terroirs. Este é um movimento global na sociedade contemporânea. No entanto, no que se refere ao terroir e cozinhas regionais, deve-se destacar que o conceito utilizado atualmente, inclusive neste texto, surgiu em um contexto europeu no inicio da era da industrialização. Este foi um processo que não ocorreu no Brasil. Independente disto no Brasil, país com um percurso no tempo e história diferentes dos países europeus, a utilização destes conceitos faz parte da estratégia de valorização do território local. As cozinhas regionais e ingredientes do terroir existem no Brasil, porém em grande parte não são reconhecidos como tais, já que o brasileiro não passou pelo processo histórico, social e econômico que gerou este conceito importado de outras regiões. O fato do Brasil não ter passado pelos processos que a Europa sofreu, f ez com que o brasileiro

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 não associe seus ingredientes com o terroir de origem. Por essa mesma razão, se desconhece os terroirs brasileiros, o que dificulta qualquer processo de valorização dos produtos originados dos mesmos. Como defende Dória(2008: 211), “O   terroir é   a   ecologia   e   a   cultura   do   sabor”,   é   evidente a necessidade de reconhecimento destes saberes e sabores locais. Porém, no Brasil ainda se está distante de um sistema de valorização do terroir, pois o conhecimento de que cada terroir é permeado pela sua singularidade alimentar é algo relativamente novo, senão desconhecido para a maior parte dos brasileiros. No entanto, existem programas governamentais sustentados no conceito, como o sistema de classificação de produtos brasileiros de acordo com o critério territorial, por meio do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). A relativa novidade dos produtos de terroir no Brasil pode ser confirmada por meio dos números de produtos agroalimentares com certificação no Brasil: com menos de dez produtos classificados, enquanto, em países europeus como a Itália, pode -se contar centenas de produtos com selos de denominação de origem territorial controlada. Com relação a história desses produtos, podemos dizer que no passado os nobres europeus consumiam os produtos para eles exóticos. Assim, eles podiam mostrar seu status e riqueza. A queda da nobreza, desenvolvimento da burguesia, a influência da industrialização criam mudanças marcantes na sociedade. Por causa dessas mudanças, os produtos do terroir, que expressavam a identidade dessa nova classe de assalariados, se tornam produtos reconhecidos, representando a nostalgia por identidades passadas. Esse pode se dizer que foi o trajeto do processo de valorização dos produtos do terroir no contexto europeu. O mesmo não se pode dizer que ocorreu no Brasil. Com a chegada da corte no Brasil, houve o movimento de valorização do produto que vinha de fora. Esse processo de valorização do bem estrangeiro em detrimento ao nacional nunca de fato se encerrou. Umas das razões para isso é que o Brasil teve uma industrialização tardia, principalmente em relação a Europa. Além disso, O Brasil como um pais colonizado se tornou governado por uma cultura dominante que vinha de fora. O que era um movimento natural na tentativa se manter suas raízes com os locais de origem. Assim, como poderiam esses novos moradores do território se identificar com algum produto da terra, que servisse como fonte de nostalgia por uma identidade deixada para trás? Com isso, os produtos dos terroirs brasileiros se tornam órfãos de quem os reconheça. O brasileiro tem dificuldade de reconhecer o seu próprio capital simbólico. Portanto, como boa parte da composição de um produto do terroir é seu capital simbólico, o esquecimento se torna a condição da grande maioria dos produtos dos terroirs brasileiro. O que se vê nos dias atuais, é um processo contemporâneo de valorização dos produtos do terroir. De um lado, os estrangeiros valorizando os produtos brasileiros em suas pesquisas, como no caso das exc ursões do chefe espanhol Ferran Adrià, que considera o Brasil, a Amazônia em especial o futuro da inovação gastronômica. Ou mesmo, o caso da fava   de   “Tonka”,   nome   que   recebe   na   Europa   a   semente   da   arvore   de   cumaru,   muito   comum no norte do pais. A semente de cumaru, é um exemplo de produto desconhecido, talvez não reconhecido. A mesma que é disputada no mercado externo e vendida a valorizados 500 euros o kilo, entretanto, no próprio Brasil continua desconhecida. Para encontrar a semente é necessário comprar direto no site de um produtor ou em farmácias da cidade de Belém do Pará. Porém, além da atenção estrangeira aos produtos dos terroirs brasileiros, esses produtos começam a chamar a atenção de cozinheiros e gourmets nacionais. Com isso, cria-se um movimento de valorização interno. Assim, com a entrada destes produtos no consumo gastronômico local se cria uma demanda e a organização da oferta se torna estratégica. Um exemplo de iniciativa privada é a marca Retratos do Gosto, que comercializa produtos locais com um apadrinhamento de um chefe de cozinha local e produção subsidiada, estimulando os produtores a continuarem produzindo.

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 Mas por que o terroir é tão importante na cozinha? O ato de cozinhar depende de forma indissociável dos produtos usados em seu preparo, ou seja, apenas se irá obter um resultado de qualidade superior com produtos de qualidade superior. O terroir pode se tornar uma ferramenta de desenvolvimento no contexto da globalização. A força simbólica do produto do terroir é utilizada como estratégia de integração em uma economia aberta, e como reconhecimento de uma especificidade cultural. O local de origem serve como um marcador, um portador de sentido. O resultado disso é uma inserção cada vez mais forte das economias locais no sistema da economia globalizada. Os terroirs, em uma sociedade aberta e em um contexto de diversificação da oferta alimentar, oferecem não apenas um potencial de diferenças, uma nova biblioteca de comidas e de produtos nos quais as empresas possam usar, mas constitue m assim um dispositivo de integração na economia global. Este dispositivo é concretamente muito poderoso, de um lado, por que comer é um ato cotidiano, e de outro lado, por que se nutrir permanentemente de fontes de diferentes origens não é culturalmente neutro. Os produtos do terroir são assim um ponto de incorporação do global no local, economicamente e simbolicamente (Ascher, 2005). Nesse sentido, a pesquisa que origina este artigo busca compreender a relação da valorização dos produtos ligados ao territ ório com as certificações de origem. Para isso, os objetos de pesquisa definidos foram os produtos agroalimentares com certificação de origem no estado do Rio Grande do Sul. Com a pesquisa ainda em período de coleta de dados, já é possível vislumbrar algumas das forças e dos problemas dos produtos agroalimentares atrelados ao conceito de território no Rio Grande do Sul. A pesquisa mostra uma lacuna entre produtores e consumidores, na qual o significado destes produtos muitas vezes se perde, fazendo com que conseqüentemente a força simbólica dos mesmos não exista. Nesta etapa da pesquisa explora-se como de fato é construído o significado desses produtos, pois alguns não conseguem se inserir no mercado devido ao desconhecimento do consumidor brasileiro e outros se inserem no mesmo, porém sem alcançar vantagens econômicas dentro do mercado. A questão atual é: como construir o significado destes produtos, gerando assim uma diferenciação no mercado? Portanto, torna-se determinante o processo de reflexão sobre os produtos do terroir na gastronomia, pois com suas características múltiplas, é preciso adequar a comida ao consumidor que irá experimentá-la. Esta reflexão se mostra indispensável já que um tipo de comida irá satisfazer plenamente um consumidor, enquanto outro poderá ter uma experiência decepcionante com o mesmo produto. Considerações Finais sobre o Potencial de Valorização dos Produtos do Terroir A nova cadeia de valores éticos, solidários e sustentáveis evidencia que comemos o que queremos ser, mostrando que os sistemas alimentares atuais ultrapassam hábitos territoriais, porém sem esquecer o valor do território e do local. Além disso, esse consumidor com um sistema de valores mais diverso e heterogêneo reflete mais antes de comer. Após ter acesso à qua ntidade e qualidade, ele se torna mais exigente e procura por novas qualidades. O que se acrescenta ao fato da população mundial estar com condições econômicas de comer com qualidade melhor, fazendo com que o mercado agroalimentar entre em expansão qualita tiva. (ASCHER, 2005). Esta diversificação de consumidor e mercado faz com que a indústria agroalimentar e a gastronomia desenvolvam alternativas para tirar proveito das especificidades do terroir e aprendam a utilizar a origem dos produtos como sinal de qualidade.

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 Pelo fato de ser um produto fabricado em conformidade com as regras habituais de qualidade daquele território, ele é considerado como diferenciado no mercado contemporâneo. Com as ameaças sanitárias dos últimos anos, como a vaca louca e a gripe aviária, se instaurou pela crise uma falta de confiança. Como conseqüência da crise de confiança no setor dos alimentos, se criaram categorias de alimentos, uma dos produtos mais próximos do natural e outra do artificial. Com isso, o produto mais próximo do natural, como os do terroir são vistos como uma salvação diante dos riscos contemporâneos (ASCHER, 2005). Nos sistemas de disposições construídos pelos indivíduos, encontra -se a relação do grupo com o espaço de vivência. Este é o espaço onde se fixam para melhor criar um senso de pertencimento e adaptabilidade. A relação com o espaço fortalece os seus sistemas de representação por meio da identificação com o território. O individuo reinventa a paisagem para efetivar o valor dos objetos e conquistar o território, tornando este parte de sua identidade pessoal. É neste momento que surge a relação do individuo com o alimento de seu território, que na Europa gerou os produtos do terroir. Ao reinventar a paisagem, o individuo integra o seu espaço e cria em conjunto com ele um objeto único dessa relação, o conceito de terroir. Portanto, o elemento terroir se torna um fator de diferenciação baseado no imaginário do qual a tradição é a priori boa. Em uma sociedade estabelecida no movimento e nas trocas, a questão do passado e seus traços mudam de significado. Os produtos do terroir possuem um valor de raridade que é visto como economicamente interessante, além de estimularem uma nostalgia imaginada do consumidor, do passado que não existiu. Ao comer produtos do terroir, se engolem também imagens, paisagens, referências sociais, e se absorve da região, da nação, do passado, uma identidade coletiva (ASCHER, 2005). Assim, o individuo se apropria das referências imaginadas, com isso ele não refaz uma tradição, mas de forma contemporânea, ele seleciona e escolhe a tradição que deseja. O produto do terroir se torna uma prática tradicional retirada de seu contexto histórico e geográfico, instrumentalizado no quadro de um projeto contemporâneo. No entanto, deve se levar em c onsideração o perfil do consumidor brasileiro. Este seria o mesmo descrito no decorrer deste texto, embasado no perfil dos indivíduos contemporâneos construídos pelos pesquisadores europeus? Através da coleta de dados da pesquisa que origina este artigo, pretende-se compreender o perfil do consumidor brasileiro e, através disso, possibilitar estratégias de diferenciação dos produtos no campo gastronômico. Portanto, é necessário compreender todos os elos da cadeia de valor dos produtos do terroir, pois o entendimento do papel de cada um dos agentes, a compreensão do contexto sócio-cultural brasileiro e a forma como essas relações geram os significados desses produtos, poderá facilitar a valorização dos produtos locais ligados ao seu território de produção. Referências Bibliográficas ASCHER, François. Le mangeur Hypermoderne. Une figure de l`Individu Écletique. Vol. 2. Paris: Editora Odile Jacob, 2005. BORDIEU, P. Poder Simbólico. Lisboa: Diefel, 1998. BOURDIEU, Pierre. Os três estados do Capital Cultural. In: Escritos de Educação. NOGUEIRA, Maria Alice (Organizadora) Petrópolis: Vozes, 2007. DORIA, Carlos Alberto; ATALA, Alex. Com unhas, dentes e cuca- Prática Culinária. São Paulo: SENAC, 2009.

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Congresso Internacional de Gastronomia – Mesa Tendências 2012 Senac São Paulo | 05 e 06 de Novembro de 2012 FUMEY, G. Cuisine, culture et patrimoine. Gusto Magazine - Gastronomie: Tendances et cultures, n°4.Paris: Ed. Gustopress, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro - 11 edição. Editora DP&A. São Paulo 2006. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MONTANARI. Food is culture. Stanford: Cloth, 2006. MONTANARI, Massimo. O mundo da cozinha: História, identidade, trocas. São Paulo: Senac, 2009. POULAIN, J. Sociologias da alimentação. Florianópolis: Ed. Da UFSC,2006. RODRIGUES, A. D. R. Experiência, modernidade e campo dos media. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2000.

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