A Relação entre a Serpente e Satã em Paradise Lost

May 31, 2017 | Autor: Marcos Zamith | Categoria: English Literature
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARCOS AURÉLIO ZAMITH FERNANDES

A RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ EM PARADISE LOST

SÃO PAULO 2016

MARCOS AURÉLIO ZAMITH FERNANDES

A RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ EM PARADISE LOST

Trabalho de dissertação apresentado ao Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras.

ORIENTADOR: Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira

SÃO PAULO 2016

F363r

Fernandes, Marcos Aurélio Zamith. A relação entre a Serpente e Satã em Paradise Lost / Marcos Aurélio Zamith Fernandes – São Paulo , 2016. 102 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016. Orientador: Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira Referência bibliográfica: p. 99-102.

1. Paradise Lost. 2. Milton, John. 3. Satã. 4. Serpente. I. Título.

MARCOS AURÉLIO ZAMITH FERNANDES

A RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ EM PARADISE LOST

Trabalho de dissertação apresentado ao Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof.ª Dr.ª Glória Carneiro do Amaral Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral Universidade do Extremo Sul Catarinense

AGRADECIMENTOS

A Deus, que pela Sua providência governa todas as coisas (Sb 14:3).

A familiares pelo apoio dado e disposição de ajudar-me durante o curso, em particular ao meu pai, Odilon Truman, e ao meu tio Francisco Zamith.

Aos meus amigos Danielli Morelli, Ana Caltabiano, Rita Petrucelli, Haim Fridman, Thiago Blumenthal, Reuel Martinez, Lucas Nishikawa e Juliana Pereira, pela convivência e pelos assuntos discutidos, parte integrante do meu aprendizado como mestrando.

Aos examinadores da minha qualificação no Mestrado, professor orientador Leonel, professor Gladir e professora Glória, pelas orientações e comentários sobre minha dissertação a fim de ganhar forma e conteúdo mais aprimorados, contribuindo significativamente na minha formação seja como estudante, seja como professor.

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas (Gn 1:1).

RESUMO

Este trabalho visa a analisar a personagem Satã da obra épica Paradise Lost do escritor puritano John Milton (1608-1674). Mais especificamente, objetiva-se oferecer uma resposta à questão: de que maneira os traços da serpente refletem Satã? Para isso, a análise se dividiu em partes. No primeiro capítulo, apresentou-se o contexto de produção e recepção literárias da obra Paradise Lost com a finalidade de mostrar características desse corpus e relacioná-las com outras obras literárias e com seu momento histórico. No segundo capítulo, aplicaram-se à protagonista conceitos da teoria da narrativa de Mieke Bal (1997) para que fosse fundamentada teoricamente a análise de Satã em si mesmo e em relação a outros elementos da narrativa. Finalmente, no terceiro capítulo, com base numa lista de características fornecidas por Charlesworth (2010) a respeito do animal serpente (especialidade do autor), relacionaram-se essas características com a serpente de Milton de modo que se compreendessem traços da personagem serpente que em conjunto se relacionam com Satã. Esta análise se justifica na medida em que se encontraram vários trabalhos sobre o Satã de Paradise Lost, no entanto nenhum cujo tema fosse delimitado dessa forma. Escolhidos uma teoria da narrativa e textos da fortuna crítica de Milton e de sua épica pertinentes ao presente tema, espera-se que esta dissertação permita que o leitor de Paradise Lost adquira uma visão mais apurada a respeito da função da personagem Satã na trama, em particular da forma de serpente tentadora assumida por Satã.

Palavras-chave: Paradise Lost. John Milton. Satã. Serpente.

ABSTRACT

This work aims at analyzing the character of Satan in the epic work Paradise Lost by the Puritan writer John Milton (1608-1674). More specifically, it aims at offering an answer to the question: in what manner do the traits of the serpent reflect Satan? In order to do that, the analysis was divided into parts. In the first chapter, it was presented the context of the literary production and reception of the work Paradise Lost in order to show features of this corpus and to relate them to other literary works and with its historical moment. In the second chapter, concepts of the narrative theory of Mieke Bal (1997) were applied to the protagonist so that the analysis of Satan in itself and in relation to other elements of the narrative was theoretically based. Finally, in the third chapter, based on a list of features provided by Charlesworth (2010) about the animal serpent (author's expertise), these features were related to the Milton's serpent so that one comprehends traits of the character of the serpent that together relate to Satan. This analysis is justified because many works were found about the Satan of Paradise Lost, nevertheless none whose theme was delimited in that manner. Once a narrative theory and texts from the literary criticism on Milton and of his epic poem pertinent to the current theme were chosen, it is expected that this dissertation allows the reader of Paradise Lost to acquire a more accurate view on the function of the character of Satan in the plot, particularly in the form of the tempting serpent assumed by Satan.

Key-words: Paradise Lost. John Milton. Satan. The Serpent.

LISTA DE ABREVIATURAS

PL X.Y

PL = Paradise Lost; X = Livro; Y = Verso

SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO ……………………………………………………………...

19

1.1

OBJETIVOS ………………………………………………………………….

21

1.2

TEMÁTICA E PROBLEMATICIDADE …………………………………….

21

1.3

HIPÓTESE ……………………………………………………………………

21

1.4

JUSTIFICATIVA …………………………………………………………….... 23

1.5

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E FORTUNA CRÍTICA .............................. 24

2.

CONTEXTO DE PRODUÇÃO E RECEPÇÃO DE PARADISE LOST ...... 26

2.1

MOVIMENTO PURITANO ............................................................................... 27

2.2

MODELOS CLÁSSICOS ...................................................................................

2.2.1

Epopeia primária ............................................................................................... 37

2.2.2

Epopeia secundária ...........................................................................................

2.3

BÍBLIA DE MILTON ......................................................................................... 41

2.4

INFLUÊNCIA DE MILTON ..............................................................................

45

3.

ANÁLISE LITERÁRIA DA PERSONAGEM “SATÔ ...............................

48

3.1

TEORIA DA NARRATIVA DE BAL ................................................................ 48

3.2

TRIMORFISMO DE SATÃ ...............................................................................

3.3

SATÃ E OUTROS ELEMENTOS DA NARRATIVA ...................................... 52

3.3.1

Texto ...................................................................................................................

3.3.2

História ............................................................................................................... 54

3.3.3

Fábula ................................................................................................................. 60

3.4

CONSIDERAÇÕES SOBRE SATÃ ..................................................................

4.

A SERPENTE E SATÃ ..................................................................................... 68

4.1

A SERPENTE .....................................................................................................

70

4.1.1

Ausência de braços e pernas / movimento (quase) circular ..........................

72

4.1.2

Ausência de ouvido ............................................................................................ 73

4.1.3

Ausência de voz .................................................................................................. 73

4.1.4

Ausência de pálpebras e de visão em algumas ................................................ 75

4.1.5

Movimento rápido e sem som ........................................................................... 77

4.1.6

Dois pênis / muitos descendentes ...................................................................... 77

4.1.7

Língua bífida ...................................................................................................... 78

4.1.8

Carnívora ...........................................................................................................

32

39

50

52

67

79

4.1.9

Socialmente independente ................................................................................

80

4.1.10 Sangue frio .........................................................................................................

81

4.1.11 Quase invisível ...................................................................................................

81

4.1.12 Não demonstração de medo .............................................................................. 82 4.1.13 Troca de pele ...................................................................................................... 83 4.1.14 Desaparecimento na terra ................................................................................

84

4.1.15 Possibilidade de beleza surpreendente ............................................................

84

4.1.16 Veneno mortal ...................................................................................................

85

4.1.17 Ausência de emoção facial ................................................................................

86

4.1.18 Posição de pé / falo ............................................................................................

87

4.1.19 Penetração no jardim ........................................................................................ 87 4.1.20 Grandeza e majestade .......................................................................................

88

4.1.21 Misteriosa e desconhecida ................................................................................

88

4.1.22 Antissocial / sem comunicação com o homem ................................................

90

4.2

ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ ...........................

91

4.2.1

No Céu ...............................................................................................................

91

4.2.2

No Inferno .........................................................................................................

91

4.2.3

Na Terra ............................................................................................................

92

4.3

SÍNTESE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ ............................

95

5.

CONCLUSÃO ...................................................................................................

97

REFERÊNCIAS ................................................................................................

99

19

1. INTRODUÇÃO

No Mestrado em Letras, tenho tido a intenção de procurar alguma obra literária que compreendesse tanto temas filosóficos quanto teológicos, que são do meu interesse. Paradise Lost de Milton é uma obra literária que responde a esse interesse. Além disso, por ser uma obra da literatura inglesa, o tema desta dissertação de Mestrado tem afinidade com a disciplina Literatura em Língua Inglesa que tenho lecionado no Ensino Superior. Do ponto de vista da literatura, meu interesse é despertado à proporção que me é possível tanto analisar a narrativa de Milton – o Dante do protestantismo (CARPEAUX, 2011) – à luz de uma teoria da narrativa, quanto poder fruir de uma maior animação das personagens em relação ao Gênesis (intertexto de Paradise Lost), em particular da serpente, que participa do clímax da narrativa, sendo ela o objeto de estudo desta pesquisa. Paradise Lost1 (1674) é um poema épico em versos brancos, composto de 12 Livros, do escritor puritano inglês John Milton (1608-1674). Com base em Drabble (2000, p. 762-763), seu enredo, em resumo, é assim estruturado: 

Livro I: O poeta invoca a “musa celestial”; são apresentados a queda do homem pela desobediência e o arcanjo derrotado Satã, que convoca um conselho de demônios.



Livro II: O conselho debate se devem batalhar para recuperar o Céu; Belzebu anuncia a criação de “um outro Mundo, o assento feliz de alguma nova Raça chamada Homem” (PL II.347-348); Satã decide visitá-lo sozinho.



Livro III: Milton prediz o sucesso de Satã e a queda e punição do homem; o Filho de Deus se oferece como resgate e é exaltado como o Salvador; Satã se disfarça de querubim para entrar na Terra.



Livro IV: Satã, que decide que o Mal seja o seu Bem (PL IV.110), escuta a conversa de Adão e Eva sobre a árvore do conhecimento proibida e decide tentá-los a desobedecer à proibição.



Livro V: Rafael, enviado por Deus, vai ao Paraíso, avisa Adão do perigo que o circunda e lhe ordena obediência; discursam sobre livre-arbítrio, predestinação e como Satã inspirou suas legiões a se revoltarem contra Deus.

1

Utilizam-se nesta dissertação citações de trechos em língua inglesa e portuguesa da 1ª edição bilíngue de Paradise Lost da Editora 34, cujo tradutor é Daniel Jonas. Referem-se a esta edição as indicações de versos conforme a abreviatura “PL X.Y”, onde PL = Paradise Lost; X = Livro; Y = Verso.

20



Livro VI: Rafael continua sua narrativa contando como Miguel e Gabriel foram enviados para lutar contra Satã.



Livro VII: Rafael descreve os seis dias da criação, terminando com a criação do homem, e renova o alerta a Adão de que a morte será a penalidade se comer do fruto da árvore do conhecimento.



Livro VIII: Adão inquire sobre o movimento dos corpos celestiais – controvérsia sobre os sistemas ptolomaico e copernicano – e a resposta de Rafael é “duvidosa”.



Livro IX: Satã entra no corpo da serpente, persuade Eva a comer do fruto da árvore do conhecimento; Eva leva Adão ao fruto e ele, também comendo do fruto, decide perecer com ela.



Livro X: Satã retorna ao Inferno e anuncia sua vitória; ele e seus anjos são transformados em serpentes; Adão acusa Eva, mas, reconciliados, decidem buscar a misericórdia do Filho de Deus.



Livro XI: Deus decreta que Adão e Eva devem deixar o Paraíso e envia Miguel para executar sua ordem.



Livro XII: Miguel descreve a vinda do Messias, sua encarnação, morte, ressurreição e ascensão, o que leva Adão a se alegrar.

A temática da obra é tanto filosófica quanto religiosa: estabelece interdiscursividade com narrativas míticas que tratam de temas universais como a origem e queda do homem, o mal no mundo, como também estabelece intertextualidade com o primeiro livro bíblico, o Gênesis, funcionando como uma releitura do texto original por manter elementos originais do Gênesis – como personagens (Adão, Eva, serpente), espaço (Éden), ações (escolha de desobediência a Deus) – e, finalmente, inclui elementos ausentes no Gênesis, como a caracterização de personagens (Satã alado e majestoso, Deus Pai e Filho), espaço (Inferno situado além do caos, particularização do fruto proibido como maçã), ações (conselho no Inferno para Satã se vingar de Deus, diálogos com arcanjos, romantismo entre Adão e Eva) etc. Além de exemplo da literatura religiosa, Paradise Lost é considerado a obra-prima de Milton (HACHT; HAYES, 2009). “Conspícuo entre todos seus contemporâneos como o poeta representativo do Puritanismo e, por consentimento quase igualmente geral, distintamente o maior dos poetas ingleses exceto Shakespeare, está John Milton2.” (FLETCHER, 1919, p. 203, tradução nossa). “O Paradise Lost é um monumento. Uma epopeia pelo menos igual à “Conspicuous above all his contemporaries as the representative poet of Puritanism, and, by almost equally general consente, distinctly the greatest of English poets except Shakespeare, stands John Milton.” 2

21

Gerusalemme liberata e a Os Lusíadas, uma das poucas epopeias que ainda se leem com admiração sincera.” (CARPEAUX, 2011, p. 801).

1.1 OBJETIVOS

O objetivo geral deste trabalho de mestrado é explicar como as características da serpente refletem a personagem Satã. Os objetivos específicos são: 1. Apresentar o contexto de produção e recepção literárias da obra Paradise Lost, o corpus deste estudo; 2. Aplicar conceitos da teoria da narrativa de Bal (1997) a Satã e outros elementos da narrativa relacionados; 3. Mostrar significações simbólicas relativas à serpente de Milton de 22 características da serpente listadas por Charlesworth (2010);

1.2 TEMÁTICA E PROBLEMATICIDADE

Dos vários temas possíveis de serem analisados numa obra literária, escolhe-se neste trabalho delimitar a análise à personagem serpente, que é a terceira forma assumida por Satã (após as formas de arcanjo celestial e de príncipe dos demônios). De acordo com Cervo, Bervian e Silva (2007, p. 75), “problema é uma questão que envolve intrinsecamente uma dificuldade teórica ou prática, para a qual se deve encontrar uma solução.” A dificuldade teórica que gera a problematicidade desta pesquisa é expressa pela questão: “De que maneira os traços da serpente refletem Satã?”. Ou ainda, pretende-se mostrar a correspondência entre características da serpente tentadora e de Satã na narrativa miltoniana.

1.3 HIPÓTESE

O problema da relação entre a serpente e Satã parte do seguinte fragmento de Paradise Lost:

22 [...] assim o orbe Cruzou e examinou, e com minúcia Considerou os seres, e qual deles Mais útil fosse aos seus ardis, e achou Ser a serpente a mais sutil das bestas. Após longo debate, e em pensamentos De errante turbilhão, firmou a escolha Seu vaso conveniente e receptáculo P’ra fraude, onde esconder sugestões negras Da mais fina visão: pois na serpente De ardis nenhuns ninguém suspeitaria, Como se naturais, de sutil berço Procedendo, o que em outros levaria À suspeição de forças diabólicas Ativas nos sentidos do que é bruto.3 (MILTON, 2015, p. 591)

Com efeito, Milton, na própria obra, PL IX.86, responde à questão de Satã ter escolhido a serpente para tentar Eva com um intertexto de Gênesis 3:1: “Ser a serpente a mais sutil das bestas4” (MILTON, 2015, p. 591). A personagem serpente, parcialmente verossímil à serpente real, após inspeção profunda foi escolhida por Satã. Ela comporta um simbolismo cujo conjunto dos traços seus nos permite relacioná-los a Satã, seja pelos traços, seja pelas ações deste. Assim, para provar a hipótese de que a serpente contém um conjunto de traços que refletem Satã, tomam-se do conjunto de “trinta e duas características virtualmente únicas de uma cobra” resumidas em Charlesworth (2010) (embora o autor tenha maior preocupação em mostrar a possibilidade de a serpente simbolizar elementos positivos) 22 que podem ser atribuídas à serpente de Milton.

“[...] thus the orb he roamed With narrow search; and with inspection deep Considered every creature, which of all Most opportune might serve his wiles, and found The serpent subtlest beast of all the field. Him after long debate, irresolute Of thoughts revolved, his final sentence chose Fit vessel, fittest imp of fraud, in whom To enter, and his dark suggestions hide From sharpest sight: for in the wily snake, Whatever sleights none would suspicious mark, As from his wit and native subtlety Proceeding, which in other beasts observed Doubt might beget of diabolic power Active within beyond the sense of brute.” (PL IX.82-96) 4 “The serpent subtlest beast of all the field.” 3

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1.4 JUSTIFICATIVA Tamanha é a importância de Satã em Paradise Lost que vários trabalhos acadêmicos – em sua maioria em língua inglesa, mas também em língua portuguesa – têm sido feitos sobre a personagem. Há como exemplos queda dos anjos5, argumentação de Satã6, trimorfismo de Satã7, estudo de gênero/sexo8, origem e significação9, representações do diabólico10, etos satânico11, psique de Satã12, relação com a tradição medieval13, evolução de Satã em Paradise Lost e Paradise Regained14, melancolia de Satã15, promessa de transcendência16, dualidade no herói-vilão trágico17 etc. Assim sendo, dentro do contexto de diversas análises sob diferentes vieses acerca do Satã miltoniano, é relevante também buscar o significado da terceira forma assumida pela protagonista na épica, a serpente, haja vista no texto literário a maior elaboração de elementos da narrativa como funções e relações de personagens, descrição de espaço, em face do texto do Gênesis: “[...] o Paradise Lost distingue-se de todas as outras epopeias por mais uma qualidade especial: a força dramática da caracterização das personagens; sobretudo o Satã de Milton é um dos maiores personagens dramáticos da literatura universal.” (CARPEAUX, 2011, p. 801). Nas palavras de Shoulson (2014):

5

BUTLER, George F. Giants and Fallen Angels in Dante and Milton: The Commedia and the Gigantomachy in Paradise Lost. Modern Philology. The University of Chicago Press, v. 95, n. 3, p. 352-363, 1998. 6 FERNANDES, Fabiano Seixas. Lógica luciferina: argumentação em Paradise Lost, de John Milton. Acta Scientiarum. Language and Culture, Maringá, v. 35, n. 3, p. 233-244, julho-setembro, 2013. 7 KASTOR, Frank Sullivan. Lucifer, Satan, and the Devil: a genesis of apparent inconsistencies in Paradise Lost. 1963. 218 f. Tese (doutorado em Língua e literatura gerais) – University of California, Berkeley. pdf. 8 WIEST, Kari Anne. Milton’s feminized Satan: a study of gender imbalance in Paradise Lost. 2014. 64 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – Grand Valley State University. pdf. 9 SIEMENS, Katie. Milton’s Satan: a study of his origin and significance. 1953. 180 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – The University of British Columbia. pdf. 10 STUTZ, Chad P. No “Sombre Satan”. Religion and the Arts, Boston, v. 9, n. 3, p. 208-234, 2005. 11 ZART, Paloma Catarina. O etos satânico: a oratória entrecortada de um rebelde renegado. 2011. 137 f. Dissertação (mestrado em Letras) – Universidade Federal de Santa Maria. pdf. 12 BROWN, M. Dawn Henderson. Original and eternal seduction: Satan’s Psyche in Paradise Lost. 2008. 57 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – University of North Carolina Wilmington. pdf. 13 MATHEWS, Justin Lee. Paradise Lost and the medieval tradition. 2008. 90 f. Dissertação (mestrado em Artes / literature inglesa) – Western Kentucky University. pdf. 14 CAMMARERI, Nicole. The Evolution of Milton’s Satan through Paradise Lost and Paradise Regained and Milton’s Establishment of the Hero. 2011. 42 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – Stony Brook University. pdf. 15 OWEN, Thomas Clinton. The humorous despair: the melancholy of Satan in John Milton’s Paradise Lost. 1971. 95 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – Texas Tech University. pdf. 16 MISTLER, Thomas Christopher. The paradise within thee: the undying promise of transcendence in Paradise Lost. 2012. 43 f. Dissertação (mestrado em Artes / inglês) – Stony Brook University. pdf. 17 MICALLEF, Jessica. Duality in Milton’s Tragic Hero-Villain in Paradise Lost. 2013. 59 f. Monografia (especialização em Artes / inglês) – University of Malta. pdf.

24 [...] a retenção de detalhes da Bíblia, sua ausência de interioridade, sua sequência de eventos lacônica, paratática, convida seus leitores a inferirem e inventarem muitas das características da narrativa – impressões subjetivas, motivações pessoais, relações causais entre eventos, e assim por diante – que se encontram mais diretamente fornecidos em outros tipos de narrativas18. (SHOULSON, 2014, tradução nossa)

1.5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E FORTUNA CRÍTICA

Utiliza-se neste trabalho a teoria da narrativa de Mieke Bal (1997), conforme a autora a expõe em seu livro Narratology: An Introduction to the Theory of Narrative. Bal (1997) aponta o que compreende por “teoria da narrativa” e distingue três camadas num texto narrativo: o texto (text), a história (story) e a fábula (fabula). Ademais, explicita a diferença entre atores (actors) e personagens (characters). Em seu capítulo sobre os elementos da fábula, uma seção é dedicada a “atores”. Nesse espaço, a autora trata de tópicos como a funcionalidade do ator, a teleologia dos atores, a relação entre a narratologia e a gramática, os actantes, o sujeito e o objeto, o poder e o receptor, o ajudante e o oponente, a desconexão entre “ator” e “pessoa”, a duplicação, o antissujeito, a competência, o valor de verdade – real, segredo, não existente, mentira (actual, secret, non existing, lie) –, relações psicológicas e ideológicas. Desse modo, é possível utilizar a concepção teórica da autora como base para analisar as relações e funções da serpente na narrativa Paradise Lost. Embora não seja profunda, Gancho (2006) expõe a divisão das características da personagem redonda, que são úteis à análise da personagem Satã na narrativa: características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas, morais. Segundo a distinção estabelecida por E. M. Forster entre “personagem plana” e “redonda”19, deve-se considerar Satã como uma personagem redonda, pois, em virtude de suas transformações e ações empreendidas na trama (como seu trimorfismo e estratégia de sedução de Eva), ele pode ser considerado capaz de surpreender de um modo convincente: “O teste de uma personagem redonda é se ela é capaz de surpreender de uma maneira convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se ela não convence, ela é uma plana fingindo ser redonda20.” (FORSTER, 2010, p. 118, tradução nossa) “[...] the Bible’s withholding of details, its absence of interiority, its laconic, paratactic sequencing of events, invites its readers to infer and invent many of the features of storytelling – subjective impressions, personal motivations, causal relations between events, and so forth – one finds more directly provided in other kinds of narratives.” 19 Um poema épico é narrativo e fictício. Por essa razão, considerou-se apropriada a classificação de personagens de Forster (2010). 20 “The test of a round character is whether it is capable of surprising in a convincing way. If it never surprises, it is flat. If it does not convince, it is a flat pretending to be round.” 18

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Charlesworth (2010), que despendeu seis anos estudando imagens e símbolos de serpentes, apresenta 32 características da serpente que podem ser buscadas em Paradise Lost e associadas a outros elementos da narrativa, como a imagem de Satã no Inferno, o diálogo entre a serpente e Eva, ações de Adão e Eva, conforme exposto na seção Hipótese. Finalmente, no tocante à fortuna crítica, vale destacar alguns críticos literários de Paradise Lost. Forsyth (2014), em coletânea sobre Paradise Lost, dedica um capítulo a Satã, onde trata de sua identidade, motivação, experiência do Inferno, função de “herói trágico” etc. Carey (1999), autor de “Milton’s Satan” em coletânea sobre Milton, aponta para a existência das críticas satanista e antissatanista de Paradise Lost, bem como analisa a personagem à luz de conceitos como “ambivalência”, “profundidade” e “trimorfismo”. Segundo este último termo que deve ser mantido em evidência, Carey (1999) informa ao leitor as três formas que Satã assume na narrativa: arcanjo no Céu, príncipe dos demônios no Inferno e serpente no Éden. C. S. Lewis (1961) não só trata do processo degenerativo de Satã como também do gênero épico, o qual divide em primário e secundário, e o relaciona a obras clássicas da Antiguidade. Por fim, recorre-se a outros críticos conforme a necessidade da análise ao longo dos capítulos.

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2. CONTEXTO DE PRODUÇÃO E RECEPÇÃO DE PARADISE LOST

É bom lembrar que o pecado dos sociologismos não estava em relacionar texto e contexto social: estava apenas em dissolver o texto na história e em seus determinismos. O new criticism e o formalismo russo cometeram o erro oposto: salvando o texto, esqueceram-se do contexto social. (MERQUIOR, 2015, p. 178)

Para que se realize a análise de Paradise Lost, assume-se nesta dissertação que se deva levar em consideração o seu contexto de produção e recepção literárias, sem que, como apontado por Merquior (2015) na epígrafe, o contexto social seja seu determinante ou que ele deva ser excluído da análise literária. Não se pode negar que haja uma relação entre o contexto histórico e a obra literária de modo que informações do seu contexto histórico podem lançar luz sobre a análise. Por exemplo, constatam-se: relações como o conhecimento de latim de Milton e o latinismo em Paradise Lost; o enquadramento de Paradise Lost no gênero épico, assim como a Eneida de Virgílio; a temática bíblica ou cristã de Paradise Lost e a religião de Milton, ou ainda, a intertextualidade com o Gênesis; a cosmologia em Paradise Lost e o geocentrismo e heliocentrismo da Revolução Científica. Assim, é preciso conhecer movimentos, estéticas literárias e fatos históricos da época – ainda que, conforme aponta Souza (2014, p. 92), “fato histórico” seja “uma noção problemática e um tanto desmoralizada” na teoria de hoje – para que se encontrem motivações da criação da obra literária e relações com outras obras, bem como os efeitos de sentido produzidos em seu público-leitor. Assim, pode-se assumir a conclusão de Amora (2006) no tópico “ambiente cultural” (em sua Introdução à teoria da literatura), que trata da relação entre a obra literária e seu ambiente cultural, da seguinte forma: A interação obra-ambiente cultural é um fenômeno de tal significação que, mesmo não nos ocupando particularmente dele (no campo da história e da análise literária), temos de o levar em conta para compreender, até certo ponto, a gênese e a vida de uma obra, pois ela nasce em um ambiente e ao longo de sua ação vai influenciando outros ambientes. Mesmo os críticos literários, que julgam uma obra em si e nos seus valores, não podem deixar de ter em mente o modo como ela funciona em sucessivas épocas de cultura. (AMORA, 2006, p. 135)

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Posta a importância do contexto de produção e recepção da obra literária, as próximas seções deste capítulo tratam do movimento puritano, dos modelos clássicos relacionados com Paradise Lost e da Bíblia e influência de Milton.

2.1 MOVIMENTO PURITANO

Antes de relacionar a obra literária Paradise Lost com o movimento puritano, convém ter uma visão geral da sequência de monarcas da Inglaterra das dinastias Tudor e Stuart, que é ilustrada na tabela abaixo, baseada em Blake e Reveirs-Hopkins (1916): Henrique VII (1485-1509) Henrique VIII (1509-1547) Dinastia Tudor

Eduardo VI (1547-1553) Maria I (1553-1558) Isabel I (1558-1603) Jaime I (1603-1625) Carlos I (1625-1649)

Dinastia Stuart

Commonwealth (1649-1660) Carlos II (1660-1685) Jaime II (1685-16880

Dada a sequência dos monarcas, é possível localizar Henrique VIII no século XVI, pois tanto ele quanto João Calvino são duas figuras representativas das Reformas Protestantes. Conforme Romag (1941, p. 63), João Calvino (1509-64) foi fundador da terceira família protestante. Calvino distingue-se bastante de Lutero e de Zuínglio por maior clareza e lógica da doutrina, por maior pureza de costumes e por seu gênio organizador. Nas suas mãos, a doutrina do reformador de Vitenberga se transformou em verdadeiro sistema teológico, cuja nota distintiva é um sombrio rigorismo. O conceito que tinha de Deus é caracterizado pela ideia da majestade severa. A doutrina da justificação é a predestinação absoluta, consequência do conceito que tinha do pecado original. Este corrompeu a natureza humana de tal maneira que deixou o homem incapaz de praticar, por si próprio, senão o mal. (ROMAG, 1941, p. 63)

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Segundo ele, os membros da Igreja são unicamente os predestinados. Por sua vez, o Protestantismo na Inglaterra teve como verdadeira causa motriz o divórcio de Henrique VIII. Este foi um zeloso defensor da fé católica durante o primeiro período do seu reinado até romper com a Igreja. Apesar de tudo, Henrique se considerava ainda filho da Igreja Católica, mantendo a antiga fé. Por isso, perseguia a reforma luterana com a mesma sangrenta tirania como a adesão ao papa. Nos seis artigos de 1539, mandou, sob pena de morte, crer e admitir: 1) a transubstanciação, 2) a comunhão debaixo de uma só espécie, 3) o celibato dos eclesiásticos como instituição divina, 4) a obrigação dos votos religiosos, 5) a missa pelos defuntos e 6) a confissão auricular. [...] O primeiro resultado da mudança religiosa na Inglaterra foi, pois, uma Igreja nacional cismática, não herética. (ROMAG, 1941, p. 72)

Tulloch (1861) aponta raízes da Reforma na Inglaterra: O movimento da Reforma na Inglaterra se tornou caracteristicamente um movimento oficial: o soberano era seu guia e chefe; o Estado objetivava direcionar e regular o curso da inovação, e moldar o novo Protestantismo dentro da conformidade com a constituição histórica e usos venerados do velho Catolicismo. Mas, sob toda essa direção oficial, vivia desde o início um ardor religioso e zelo ativo por reforma, impaciente de controle21. (TULLOCH, 1861, p. 2-3, tradução nossa)

Quanto aos ideais religiosos, informa Long (1919), a época foi de grande fermento: despedaçava-se o grande ideal de uma Igreja nacional como implicado no nome da Igreja Católica – à semelhança do grande governo romano dos primeiros séculos –, que mantinha o ideal de uma Igreja unida de sorte que o esplendor e a autoridade de Roma incidissem sobre a mais humilde vila até os mais longínquos confins da Terra. “No lugar da Igreja em todo o mundo, que era o ideal do Catolicismo, veio o ideal de um Protestantismo puramente nacional22.” (LONG, 1919, p. 188, tradução nossa) O historiador marxista Christopher Hill (1977) mostra uma diferença de interpretação da revolução inglesa de 1640 (portanto, na dinastia Stuart). Segundo Hill (1977), a explicação

“The Reform movement in England became characteristically an official movement: the sovereign was its guide and head; the State aimed to direct and regulate the course of innovation, and to mould the new Protestantism into conformity with the historical constitution and venerated usages of the old Catholicism. But, under all this official guidance, there had lived from the first a religious earnestness and active zeal for reform, impation of control.” 22 “[...] instead of the world-wide church which was the ideal of Catholicism, came the ideal of a purely national Protestantism.” 21

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mais comum da revolução é a de historiadores whigs e liberais, segundo a qual o governo era tirânico. A explicação da revolução do século XVII mais comum, é a que foi apresentada pelos leaders do Parlamento em 1640, nas suas declarações de propaganda e apelos ao povo. E tem sido repetida desde aí, com pormenores e enfeites adicionais, pelos historiadores Whigs e Liberais. Esta explicação diz que os exércitos parlamentares lutavam pela liberdade do indivíduo e pelos seus direitos, consagrados na lei, contra um Governo tirânico que o lançava para a prisão sem processo jurídico, o tributava sem o seu consentimento, aquartelava soldados na sua casa, lhe saqueava os bens e procurava destruir as suas estimadas instituições parlamentares. [...] (HILL,1977, p. 13)

Hill (1977), por outro lado, apresenta a interpretação da escola de historiadores “tory” (em oposição a whig) para quem a política real não era tirânica: Outra escola de historiadores – aos quais chamamos “Tory”, em oposição aos Whigs – sustenta que a política real não era de modo nenhum tirânica, que Carlos I, tal como ele afirmou ao tribunal que o sentenciou à morte, falava, “não pelo meu próprio direito apenas, visto que sou vosso Rei, mas pela verdadeira liberdade de todos os meus súbditos.” [...] (HILL,1977, p. 15-16)

A oposição enfrentada por Carlos era organizada por homens de negócios politicamente identificados com a Câmara dos Comuns e religiosamente com o Puritanismo. Apresentadas ambas as linhas de interpretação, e sem a pretensão de adotar nesta dissertação como correta uma ou outra visto que se requer uma devida formação no assunto, de acordo com Neto e Milton (2009) vale notar que havia um conflito entre o rei Jaime I na Inglaterra e os puritanos. Jaime I procurou encarnar a doutrina francesa do direito divino dos reis23 e suspeitava de toda religião que não estivesse de acordo com suas ideias sobre Igreja e Estado. Durante a Revolução Protestante, muitos ingleses se converteram ao Calvinismo e aos poucos se formavam como puritanos: seu objetivo era “purificar” a Igreja Anglicana de qualquer resquício católico. Favoreciam um tipo de moralidade ascética e abolição de observâncias “papistas” e condenavam o sistema episcopal de governo da Igreja. Por isso Jaime I os considerava traidores por lhe parecer deslealdade que não se submetessem aos bispos

“Essa personagem [Jaime I] curiosa, de pernas tortas, língua demasiado comprida (a extremidade saía-lhe da boca), mãos sujas e roupas manchadas, esse tagarela impenitente cujos confusos discursos teológicos enfastiavam os visitantes, tinha uma concepção tão exigente e imperiosa do poder real como a sua antecessora. Não expôs ele, em dois tratados, que os reis, escolhidos por Deus, têm todos os direitos, ao passo que os súditos apenas têm o de obedecer?” (DANIEL-ROPS, 1999, p. 228) 23

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nomeados por ele. Carlos I, que sucedeu a Jaime I, mantinha as mesmas ideias acerca do poder real e entrou em oposição com os puritanos. Embora o Puritanismo seja normalmente associado ao Protestantismo, ele compreendia, segundo Long (1919), todas as matizes de crenças: Incluía clérigos ingleses bem como separatistas extremos, calvinistas, pactuantes, nobres católicos – todos unidos em resistência ao despotismo na Igreja e no Estado, e com uma paixão pela liberdade e retidão como o mundo nunca viu. [...] e é de uns poucos zelotes e fanáticos que surge a maioria dos nossos equívocos sobre os puritanos24. (LONG, 1919, p. 187, tradução nossa)

O autor acrescenta uma consideração a respeito do valor do movimento puritano: Que os puritanos tenham proibido o mastro de maio e a corrida de cavalos é de pequena importância comparado ao fato de que lutaram pela liberdade e justiça, que derrubaram o despotismo e tornaram a vida e a propriedade do homem seguras da tirania dos governantes25. (LONG, 1919, p. 187, tradução nossa)

A imagem dos puritanos como teocratas, regicidas, caçadores de bruxas, matadores de índios, caçadores de heresias fanáticos, se arraigou por muito tempo na cultura popular, no entanto, se essas distorções não são falsidades absolutas, são estereótipos profundamente absorvidos. O Puritanismo nunca atingiu uma identidade clara como outros movimentos religiosos dos séculos XVI e XVII tais como o Luteranismo, o Catolicismo, o Calvinismo genebrino. Num nível mais simples, os puritanos procuravam reformar a si mesmos e a sua sociedade purificando suas igrejas dos resquícios dos ensinamentos e práticas católicos romanos encontrados na Inglaterra pós-Reforma (BREMER, 2009). Long (1919) afirma que o movimento puritano pode ser considerado uma segunda e grande renascença, um renascimento da natureza moral do homem que seguiu o despertar intelectual da Europa nos séculos XV e XVI. O Renascimento foi essencialmente pagão e sensual; houve uma degradação política e moral da Itália, nação culta. Por outro lado, no norte, especialmente entre povos alemães e ingleses, o Renascimento foi acompanhado de um despertar moral. Nesse contexto, se insere o movimento puritano, que tanto visava a tornar os

“It included English churchmen as well as extreme Separatists, Calvinists, Covenanters, Catholic noblemen, – all bound together in resistance to despotism in Church and State, and with a passion for liberty and righteousness such as the world has never since seen. [...] and it is from a few zealots and fanatics that most of our misconceptions about the Puritans arise.” 25 “That the Puritan prohibited Maypole dancing and horse racing is of small consequence beside the fact that he fought for liberty and justice, that he overthrew despotism and made a man’s life and property safe from the tyranny of rulers.” 24

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homens honestos pela retidão pessoal quanto a fazê-los livres pela liberdade civil e política. Milton foi um puritano. Na literatura, a era puritana foi confusa devido à quebra com antigos ideais: padrões medievais

de

cavalaria,

amores

e

romances

impossíveis,

uma

Igreja

nacional.

Semelhantemente, não havia padrão fixo de crítica literária que prevenisse os exageros dos poetas metafísicos, que são os paralelos às seitas religiosas como os anabatistas. “Essa assim chamada época sombria produziu alguns poetas menores de trabalho primoroso e um grande mestre do verso cuja obra glorificaria qualquer época ou povo – John Milton, em quem o espírito puritano indomável encontra sua mais nobre expressão26.” (LONG, 1919, p. 189, tradução nossa). Por outro lado, enquanto para Dryden e Johnson os poetas metafísicos revelavam mau gosto, gerações posteriores (desde Coleridge até T. S. Eliot) redescobriram o valor dessa poesia, de modo que os “defeitos” arrolados por Johnson foram interpretados como “virtudes” da poesia por T. S. Eliot (NETO, MILTON; 2009, p. 94). John Milton foi um polemista em prosa, segundo Sanders (1994). Dois exemplos de produções suas são cinco panfletos que produziu no início dos anos 1640 atacando tanto a ideia quanto as supostas monstruosidades do episcopado inglês e quatro folhetos entre 1643 e 1645 a favor do divórcio com base na infelicidade de seu próprio casamento. Por fim, segue a afirmação de Hill (2003) a respeito de Milton e seu De Doctrina Christiana (trabalho herético não permitido ser publicado na Inglaterra): Milton, e muitos outros como ele, acreditava que – admitindo-se a livre discussão – a verdade consensual surgiria entre cristãos honestos e de mente aberta; e passou muitos anos de sua vida dedicando-se à compilação bíblica, De Doctrina Christiana (Sobre a Doutrina Cristã), que objetivava à reconciliação de todos os protestantes. O trabalho que ele produziu foi tão radicalmente herético que não pôde ser publicado na Inglaterra, nem mesmo em latim, e quando se tentou publicá-lo depois de sua morte nos Países Baixos, todo o poder da diplomacia britânica foi utilizado para evitá-lo. Tratava-se de um trabalho que estraçalhava a ideia de uma única verdade Bíblica que fosse aceita por todos os governantes de seu país. (HILL, 2003, p. 27)

“This so-called gloomy age produced some minor poems of exquisite workmanship, and one great máster of verse whose work would glorify any age or people, – John Milton, in whom the indomitable Puritan spirit finds its noblest expression.” 26

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2.2 MODELOS CLÁSSICOS

Antes de tratar da relação entre Paradise Lost e os modelos clássicos, vale notar a posição de Massaud Moisés (1999) a respeito do tema: ele considera Paradise Lost um malogro relativamente às epopeias greco-latinas: Explica-se assim que as tentativas de epopeia no século XVII (como o Paraíso Perdido, de Milton, para não mencionar a Prosopopeia, de Bento Teixeira), e no XVIII [...] não passassem de malogros, relativamente às epopeias grecolatinas; a Inglaterra e a França já haviam superado a fase intermediária própria ao florescimento da poesia épica, àquela altura em franco declínio nas literaturas ocidentais. A última e única epopeia moderna digna de nome tinha sido Os Lusíadas, porque representava um povo que atingira, com o atraso de sempre, sua fase intermediária. (MOISÉS, 1999, p. 314)

Apesar disso, nesta seção, objetiva-se mostrar como Paradise Lost se relaciona com modelos de obras clássicas. De acordo com Carter e McRae (1998), É interessante que – como Spenser e Malory antes dele, e como Tennyson dois séculos depois – Milton foi atraído às lendas arturianas como o assunto para a sua grande épica. Mas o tema da Queda vai além de uma épica nacional e deu ao poeta o alcance para analisar a questão inteira da liberdade, do livre-arbítrio e da escolha individual27. (CARTER; MCRAE, 1998, p. 135, tradução nossa)

Em todas as obras de Milton, uma das maiores figuras na literatura inglesa e cuja base dos estudos estéticos era clássica, estão expressos valores de tolerância, de liberdade e de autodeterminação, como expressaram Shakespeare, Hooker e Donne. Milton é indiscutivelmente o mais consciente de gênero dos poetas ingleses, segundo Lewalski (1999). Quase todos (Bowra; Di Cesare; Hunter; Steadman 1967) concordam que Paradise Lost é uma épica cujas afinidades estruturais são próximas da Eneida de Virgílio e desse modo se redefine o heroísmo nos termos cristãos. Por causa de os valores heroicos terem sido profundamente exagerados na obra o poema às vezes é assinalado como além de épico: pseudomorfo, poema profético, apocalipse, antiépico, épica transcendente (Spencer; Steadman 1973; Wittreich 1975; Tollvier; Webber). Uma resposta parcial a Milton ter incorporado um espectro tão completo de formas e gêneros literários em Paradise Lost é que muito da teoria crítica do Renascimento apoia a noção da épica como um heterocosmo ou compêndio de assuntos, formas e estilos. “[...] as grandes 27

“It is interesting that – like Spenser and Malory before him, and like Tennyson two centuries later – Milton was attracted to the Arthurian legends as the subject for his great epic. But the theme of the Fall goes far beyond a national epic, and gave the poet scope to analyse the whole question of freedom, free will, and individual choice.”

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narrativas inglesas do século XVI com reivindicações ao status épico – New Arcadia de Sidney e Faerie Queene de Spenser – eram bem obviamente misturas de épico, romance, pastoral, alegoria e canção28.” (LEWALSKI, 1999, tradução nossa) Milton emprega modos29 literários específicos em sua epopeia: o modo heroico para Satã e sua sociedade condenada; pastoral, para a vida pré-queda no Éden; trágico, para a vida humana no mundo decaído. Os vários modos importam ao poema valores tradicionalmente associados a eles: “grandes feitos, coragem de batalha, glória (aristeia) para o modo heroico; amor e canção, otium, a vida despreocupada para a pastoral; responsabilidade, disciplina [...]; a pena e o terror da condição humana pelo trágico30.” (LEWALSKI, 1999, tradução nossa) Lewalski (1999) trata de várias formas literárias presentes em Paradise Lost. Estão associados de perto a Satã a épica clássica, a retórica deliberativa, o solilóquio, o fazer soneto petrarquiano, enquanto outros tipos literários não estão disponíveis a Satã como o verdadeiro diálogo, o louvor de hinos, o otium da pastoral. De acordo com Kilgour (2014), é possível ler Paradise Lost – um poema épico onde se imagina o início de todas as coisas – sem o conhecimento de suas fontes antigas, no entanto atentar-se ao uso que Milton faz dos clássicos enriquece grandemente a leitura do poema. Desde os românticos há a tendência de pensar que a poesia se origina do gênio único do poeta, no entanto para a geração de Milton os autores aprendiam a escrever imitando as obras dos escritores anteriores. Para os escritores do Renascimento, a “tradição não era um corpo estático de conhecimento remoto, mas um processo contínuo de transformação no qual eles mesmos desempenhavam um papel dinâmico31.” (KILGOUR, 2014, tradução nossa). Milton era fluente em latim, grego, italiano, e capaz de ler em muitas outras línguas. “Ambos os poemas latinos e ingleses seus estão cheios de ecos e alusões a épicas clássicas, odes, pastoral, elegia, drama, sátira e invectiva, e também mostram o seu conhecimento das

“[...] the major sixteenth-century English narratives with claims to epic status – Sidney’s New Arcadia e Spenser’s Faerie Queene – were quite obviously mixtures of epic, romance, pastoral, allegory, and song.” 29 “O termo Modo é apropriado para diversos tipos literários expressivos [expressive literary kinds] – pastoral, satírico, cômico [comedic], heroico, elegíaco e trágico, entre outros que são identificados principalmente pelo objeto formal [subject matter], atitude, tonalidade e motivos, e que interpenetram obras ou partes de obras em diversos gêneros. Por exemplo, podemos ter uma comédia ou romance ou canção pastoral, uma épica ou conto [short story] ou balada trágica, uma epístola de verso ou epigrama ou ensaio satírica.” (LEWALSKI, 1999, tradução nossa). 30 “great deeds, battle courage, glory (aristeia) for the heroic mode; love and song, otium, the carefree life for pastoral; responsibility, discipline [...]; the pity and terror of human condition for the tragic.” 31 “[...] tradition was not a static body of remote knowledge but an ongoing process of transformation in which they themselves played a dynamic role.” 28

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traduções europeias e inglesas anteriores e adaptações dos antigos 32.” (KILGOUR, 2014, tradução nossa). O fim de Paradise Lost é um tipo de elegia: a perda do Éden e a entrada da morte e do mal no mundo. Escrever uma épica exigia trabalho difícil e tempo, pois o autor devia não só dominar a técnica poética (em particular para sustentar a narrativa longa), mas também adquirir conhecimento numa ampla variedade de assuntos como ciência, geografia, religião, filosofia, história. Como todos os gêneros, a épica tem as suas próprias convenções e conjuntos de propriedades, que os leitores esperariam: invocações a musas, um grande herói, catálogos, símiles épicos, batalhas, jogos, narrativas embutidas, a intervenção dos deuses, uma descida ao submundo, uma profecia do futuro, e assim por diante. No entanto, desde as primeiras linhas do poema, Milton mostra como essas convenções ganham novos significados num contexto cristão33. (KILGOUR, 2014, tradução nossa)

Dentre as características citadas pela autora, pode-se identificar, por exemplo: a invocação do narrador à musa celestial já início da obra (PL I.6); o grande herói – “herói trágico”, segundo Forsyth (2014) – que seria Satã por exercer a função de protagonista na trama; a batalha entre os anjos no Céu; a intervenção do Filho para terminar a guerra entre os anjos no Céu ou de Rafael para avisar Adão do perigo que o circundava; a queda de Lúcifer e seus anjos ao Inferno; o relato do anjo Miguel no último Livro sobre o que acontecerá: a encarnação, a morte e a ressurreição da “Semente da Mulher” (a mulher é Eva – cf. PL X.1031), isto é, de Cristo. Kilgour (2014) estabelece um paralelo: Paradise Lost se torna o nosso telescópio pelo qual o escritor e o leitor podem perceber o próprio mundo épico distante de nós, assim como Galileu (com quem Milton se encontrou quando viajou à Itália em 1638) mostrou pelo seu telescópio a perspectiva de que a Terra gira em torno do Sol. A mesma autora explica por que a Eneida foi o modelo central para a épica no Renascimento:

“Both his Latin and English poems are full of echoes and allusions to classical epics, odes, pastoral, elegy, drama, satire, and invective, and show his knowledge also of earlier European and English translations and adaptations of the ancients.” 33 “Like all genres, the epic has its own conventions and set of properties, which readers would expect: invocations to the muses, a great hero, catalogs, epic símiles, battles, games, inset narratives, the intervention of the gods, a descent to the underworld, a prophecy of the future, and so on. However, from the very first lines of the poem, Milton shows how these conventions take on new meanings in a Christian context.” 32

35 Onde Aquiles e Odisseu são ambos muito egoístas em suas formas diferentes, Eneias é conduzido pelo dever. Tal autossacrifício pode torná-lo um herói desinteressante aos leitores modernos, mas o fez extremamente atrativo para os leitores cristãos da Idade Média e Renascimento que viram em sua história um protótipo daquele de Cristo. [...] Satã se parece muito com um herói clássico: como Aquiles ele é irritado e se sente desonrado; como Odisseu ele é um viajante astuto; como Eneias, ele conduz seu povo a uma nova pátria. [...] O fato de que ele tem um escudo o alia especificamente com Aquiles e Eneias, cujos escudos são descritos finalmente na Ilíada 18 e Eneida 8. Por essas razões e outras, os românticos pensaram que ele era o verdadeiro herói do poema, com quem o Milton revolucionário estava subconscientemente em simpatia34. [...] (KILGOUR, 2014, tradução nossa)

No tocante à pastoral, da qual Milton sofreu influência por Phineas Fletcher e Spenser, segundo Cuddon (1998), este mesmo autor afirma: Fundamentalmente, é sobre isso o que a pastoral é: ela exibe uma nostalgia pelo passado, por algum estado de amor e paz hipotético que de alguma maneira foi perdido. A ideia e tema dominantes da maioria das pastorais é a busca pela vida simples longe da corte e da cidade, longe da corrupção, da guerra, da contenda, do amor pelo ganho, longe de “pegar e gastar”. De uma maneira, ela revela uma ânsia por uma inocência perdida, por uma vida paradisíaca pré-Queda na qual o homem existia em harmonia com a natureza. É, assim, uma forma de primitivismo [...] e uma saudade potente por coisas passadas35. [...] (CUDDON, 1998, p. 647, tradução nossa)

Observa-se, então, que as ideias relativas à pastoral se aplicam a Paradise Lost. Ocorre inicialmente a nostalgia pelo passado quando Adão diz a Eva, após terem pecado, que seja buscada uma resolução mais segura (PL X.1029) – subentenda-se a misericórdia de Deus. A corrupção, a contenda são iniciadas quando Satã seduz Eva. A menção de Cuddon (1998) à “pré-Queda” é mais óbvia ainda em Paradise Lost. Confirma-se, enfim, que as cenas no Jardim do Éden – Paraíso delicioso (PL IV.132), que fica agradável à vista de Satã (PL IV.27-28) – nos remetem à tradição pastoral, de acordo com Kilgour (2014).

“Where Achilles and Odysseus are both in their different ways very selfish, Aeneas is driven by duty. Such selfsacrifice can make him a rather unappealing hero to modern readers, but it made him extremely attractive for Christian readers of the Middle Ages and Renaissance who saw in his story a prototype of that of Christ. [...] Satan looks very much like a classical hero: like Achilles he is angry and feels dishonored; like Odysseus he is a cunning traveler; like Aeneas, he leads his people to a new homeland. [...] The fact that he has a shield allies him specifically with Achilles and Aeneas, whose shields are described at length in Iliad 18 and Aeneid 8. For these reasons and others, the Romantics thought that he was the true hero of the poem, with whom the revolutionary Milton was subconsciously in sympathy. [...]” 35 “Fundamentally, this is what pastoral is about: it displays a nostalgia for the past, for some hypothetical state of love and peace which has somehow been lost. The dominating idea and theme of most pastoral is the search for the simple life away from the court and town, away from corruption, war, strife, the love of gain, away from ‘getting and spending’. In a way it reveals a yearning for a lost innocence, for a pre-Fall paradisal life in which man existed in harmony with nature. It is thus a form of primitivismo [...] and a potent longing for things past. [...]” 34

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Segundo Kilgour (2014) ainda, copia-se Satã de modo muito próximo de Ovídio, na medida em que ele se assume como cobra, assim como sua descendente Pecado em relação ao monstro Cila de Ovídio. [...] Está-se dizendo, portanto, que Satã se apega a formas obsoletas de heroísmo épico. Por toda a mudança de forma de Satã, ele resiste à mudança real, e, ironicamente, copia Ovídio muito de perto: a metamorfose final numa cobra no Livro 10 é baseada numa cena em Metamorfoses 4.563-603. Sua descendente Pecado é ela mesma uma cópia do monstro Cila de Ovídio de Metamorfoses 13-14, uma figura famosa que já havia sido imitada por Spenser e outros escritores36. (KILGOUR, 2014, tradução nossa)

Encontram-se em Paradise Lost, como se pode esperar numa épica, características em grande escala: a batalha entre Céu, Terra e Inferno. É crucialmente a linguagem de Milton que estabelece a estatura do poema. O uso de símiles épicos e alusões extraídos de escritores antigos como Homero e Virgílio é parte do que empresta ao poema ressonância e riqueza. Além disso, o uso de solilóquio e espetáculo visual faz com que o leitor seja constantemente surpreendido por novas perspectivas e novas visões. (PECK; COYLE, 2002, p. 108) Explica-se proximamente, com base em Baldick (2001) e em C. S. Lewis (1961), a relação entre Paradise Lost e o gênero epopeia, conforme o qual foi produzido. Na definição de epopeia de Baldick (2001, p. 81-82) constam algumas características que condizem com Paradise Lost: 

um longo poema narrativo: a obra37 tem 10.565 versos, portanto é longa; seus versos são brancos38, notavelmente usados por Milton em Paradise Lost (CUDDON, 1998); por fim, o tipo textual é a narrativa, visto que narra uma sequência de eventos;



grandes feitos de um ou mais heróis lendários: Satã funciona como o herói lendário em Paradise Lost; grandes feitos seus são a rebeldia e batalha no Céu, a viagem que fez sozinho à Terra e a tentação de Eva;

“It is telling therefore that Satan clings to outmoded forms of epic heroism. For all of Satan’s shape-shifting, he resists real change, and ironically, copies Ovid too closely: his final metamorphosis into a snake in Book 10 is based on a scene in Metamorphoses 4.563-603. His offspring Sin is herself a copy of Ovid’s monster Scylla from Metamorphoses 13-14, a famous figure who had already been imitated by Spenser and other writers.” 37 MILTON, John. Paraíso perdido. Tradução de Daniel Jonas. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2015. 38 “O metro de Paradise Lost é o verso branco iâmbico, quase sem exceção em versos de dez sílabas (decassílabos), geralmente terminando com um forte acento monossilábico. O verso de abertura do poema é típico da estrutura geral, mas também de sua flexibilidade (as sílabas acentuadas estão em caixa alta): ‘Of | MAN’S | FIRST | dis|ob|ED|ience||, AND | the | FRUIT’. Conforme o troqueu do segundo acento já indica, versos individuais podem variar tremendamente em padrões métricos, criando um senso de imensa liberdade além da simples rigidez e do passo padrão do pentâmetro iâmbico. De qualquer maneira, esse certamente não foi o estilo métrico aceito para o verso inglês heroico ou épico à época. [...]” (REISNER, 2011, tradução nossa) 36

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herói descido dos deuses: os “deuses” seriam o Pai, o Filho, os anjos bons, Lúcifer até que tenha descido ao Inferno com seus anjos rebeldes;



o herói realiza façanhas sobre-humanas em batalhas: por exemplo, a luta de Lúcifer no Céu que se perpetuaria se o Filho não interviesse;



o herói realiza viagens maravilhosas: Satã percorre o universo desde o Inferno até o Éden na Terra;



o herói geralmente salva ou funda uma nação: a façanha de Satã é destruir a “nação” feita por Deus na Terra, para que de algum modo se assemelhe à sua própria no Inferno;

Baldick (2001) prossegue ainda distinguindo duas espécies de epopeia: a primária e a secundária. As primárias ou tradicionais são aquelas derivadas de uma tradição oral de recitação, como a Ilíada e a Odisseia de Homero, ao passo que as secundárias ou literárias são aquelas que imitam as epopeias primárias, como escreveram Virgílio e Milton. O crítico literário C. S. Lewis (1961), em seu prefácio a Paradise Lost, trata mais profundamente de ambos os tipos de epopeia: a primária e a secundária.

2.2.1 Epopeia primária

C. S. Lewis (1961) dedica os capítulos III, IV e V à epopeia primária e os capítulos VI, VII e VIII à epopeia secundária. No capítulo III, Epopeia Primária, explica que tem a preferência de fazer a divisão da epopeia em primária e secundária, não significando, porém, que “secundária” se refira à “segunda classe”, mas que derive da primária. Como ilustrações da epopeia primária, utiliza poemas homéricos e o Beowulf inglês. Afirma que toda poesia é oral, entregue pela voz, além de musical. Há dois tipos de poesia oral: uma poesia popular e uma poesia da corte. Esta, divide-a em poesia da corte leve e poesia da corte séria. A epopeia primária não deve ser identificada com “poesia oral da era heroica” ou com “poesia oral da corte”. Aponta que o autor de Beowulf tem consciência dos diferentes tipos de poesia da corte. Refere-se à epopeia como “a mais sublime e mais séria dentre os tipos de poesia da corte no período oral, uma poesia sobre nobres, feita para nobres e realizada de vez em quando por nobres. A qualidade expressa pela palavra solempne – solene – do inglês medieval é o festivo, o faustoso, o cerimonioso, a ocasião própria para a pompa, da qual não se deve ter a terrível

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ideia, fruto de complexo de inferioridade, de que tenha qualquer conexão com vaidade ou presunção. A epopeia é solene; espera-se a pompa. A tradição da epopeia primária herda a técnica oral – repetições e dicção estilizada de poesia oral – e o tom festivo, aristocrático, público, cerimonioso. No capítulo IV, A Técnica da Epopeia Primária, afirma que “a característica mais óbvia de uma técnica oral é seu contínuo uso de palavras, frases, ou mesmo linhas inteiras de uso comum39.” (LEWIS, 1961, p. 20, tradução nossa). Essas repetições são uma grande ajuda para o cantor enquanto as está recitando mecanicamente e está formando subconscientemente o próximo verso. Lewis (1961) aponta que essa é uma questão estética: assim como a música não são os melhores sons a se fazer, mas a se ouvir, a boa poesia não é aquela que os homens gostam de compor, mas as que os homens gostam de escutar ou ler. Na epopeia, que é a mais alta espécie de poesia oral, a linguagem deve ser familiar, mas não familiar no sentido de coloquial ou lugar-comum, pois “qual é o sentido de ter um poeta, inspirado pela Musa, se ele conta as histórias assim como você ou eu as teria contado 40?” (LEWIS, 1961, p. 21, tradução nossa). Para comparar com a dicção épica, Lewis (1961) cita como exemplos os rituais de comida de Natal e de liturgia, que são definidos deliberadamente fora do uso cotidiano, mas são completamente familiares. “A dicção também produz o esplendor incansável e a implacável pungência dos poemas homéricos41.” (LEWIS, 1961, p. 23, tradução nossa). Técnicas de Beowulf são expressões reiteradas, nomes “poéticos”, verso aliterativo... a técnica oral “própria” desse poema é a variação ou paralelismo. “A regra é que aproximadamente tudo deve ser dito mais de uma vez42.” (LEWIS, 1961, p. 26, tradução nossa). No capítulo V, O Assunto da Epopeia Primária43, Lewis (1961) tem a opinião de que o grande assunto não foi uma marca da epopeia primária. Na Odisseia, as aventuras de Odisseu, que voltava da Guerra de Troia, não fizeram daquela guerra o assunto do poema. O interesse recai sobre as fortunas de um indivíduo. A Ilíada tem sido tratada como uma epopeia a respeito do conflito entre o Oriente e o Ocidente. Lewis (1961) não vê a ideia de gregos unidos contra bárbaros, mas o contraste entre a totalidade dos gregos e um membro dessa totalidade. A Guerra

“The most obvious characteristic of an oral technique is its continual use of stock words, phrases, or even whole lines.” 40 “What is the point of having a poet, inspired by the Muse, if he tells the stories just as you or I would have told them?” 41 “The diction also produces the unwearying splendour and ruthless poignancy of the Homeric poems.” 42 “The rule is that nearly everything must be said more than once.” 43 “The Subject of Primary Epic” 39

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de Troia não é o assunto da Ilíada, mas meramente o plano de fundo de uma história puramente pessoal. Paralelos de outras literaturas sugerem que a epopeia primária simplesmente quer uma história heroica e não se importa com um ‘grande assunto nacional’ [...] A verdade é que a epopeia primária não teve, nem poderia ter tido, um grande assunto no último sentido. Esse tipo de grandeza surge somente quando algum evento pode ser mantido para efetuar uma mudança profunda e mais ou menos permanente na história do mundo, como a fundação de Roma fez, ou ainda mais, a queda do homem44. (LEWIS, 1961, p. 29, tradução nossa)

2.2.2 Epopeia secundária “O assunto épico, conforme os críticos vieram a entender mais tarde, é invenção de Virgílio; ele alterou o significado da palavra épico45.”, inicia Lewis (1961, p. 33, tradução nossa) no capítulo VI, Virgílio e o Assunto da Epopeia Secundária. O autor afirma que uma das revoluções mais importantes na história da poesia foi tomar uma simples lenda nacional e tratá-la de modo que percebamos implícito nela um tema mais vasto. Cartago é uma cidade antiga, a boca do Tibre está muito distante: Virgílio está expandindo sua história tanto no tempo quanto no espaço. Os homens, sobre quem é posto um fardo, têm uma vocação; a profecia de Júpiter no Livro I tem vislumbres do futuro; o Lácio está à espera dos troianos. A Eneida é a transição na ordem do mundo: do antigo para o germe do novo. Com Virgílio, a poesia europeia cresce. “Se devemos ter uma outra epopeia ela deve partir de Virgílio46.” (LEWIS, 1961, p. 39, tradução nossa). No capítulo VII, O Estilo da Epopeia Secundária, Lewis (1961) afirma que a epopeia secundária almeja uma solenidade maior do que a primária. Afirma também que se deve fazer com que a pessoa privada leitora do livro sinta que esteja presente no ritual solene. Essa “grandeza” ou “elevação” de estilo, conforme diz respeito a Milton, se atinge por três coisas:

“Parallels from other literatures suggest that Primary Epic simply wants a heroic story and cares nothing about a ‘great national subject’. [...] The truth is that Primary Epic neither had, nor could have, a great subject in the later sense. That kind of greatness arises only when some event can be held to effect a profound and more or less permanente change in the history of the world, as the founding of Rome did, or still more, the fall of man.” 45 “The epic subject, as later critics came to understand it, is Virgil’s invention; he has altered the very meaning of the word epic.” 46 “If we are to have another epic it must go on from Virgil.” 44

40 [...] (1) O uso de palavras levemente não familiares e construções, incluindo arcaísmos. (2) O uso de nomes próprios, não somente ou principalmente por seu som, mas porque eles são os nomes das coisas esplêndidas, remotas, terríveis, voluptuosas ou celebradas. [...] (3) Alusão contínua a todas as fontes de interesse elevadas na nossa experiência sensorial (luz, escuridão, tempestade, flores, joias, amor sexual e afins), mas todos cobertos e “gerenciados” com um ar de austeridade magnânima47. [...] (LEWIS, 1961, p. 40-41, tradução nossa)

A função do parágrafo de abertura48 de Paradise Lost é dar a sensação de que algo grande está prestes a acontecer. Milton, como alguns modernos, lança ideias juntas por causa das relações emocionais que têm em nossa consciência; e, diferentemente dos modernos, fornece uma fachada de conexões lógicas: essa é a chave para muitos de seus símiles. Milton evoca a consciência do Paraíso mantendo o senso de segredo do Éden: coisas infinitamente preciosas, guardadas, trancadas, postas afastadas. No Livro III, Milton faz Satã visitar o Sol com manchas solares recém descobertas por Galileu. As propriedades do Sol, por sua vez, se conectam com o ouro, ao qual são atribuídos poderes ilimitados da alquimia. Encontra-se Uriel, Fogo de Deus, que é um daqueles espíritos que são os olhos de Deus. O latinismo – uma característica do estilo de Milton – das construções de Milton é severamente criticado. Segundo Lewis (1961), Milton evita a descontinuidade por evitar o que os gramáticos chamam de frase simples. “Ele, portanto, compensa a complexidade de sua sintaxe pela simplicidade dos amplos efeitos imaginativos sob ela e a perfeita retidão de sua sequência49.” (LEWIS, 1961, p. 45, tradução nossa). O inglês, por não ser flexionado, paga o preço de uma ordem fixa de palavras, enquanto que as construções de Milton permitem que o poeta deixe essa ordem fixa para que escolha a ordem das ideias em sua frase. Milton lida com imagens na mente humana: Céu, Inferno, Paraíso, Deus, Diabo... Enquanto ele descreve sua própria imaginação, na verdade ele desperta a nossa. Enfim, quanto a esse tipo de poesia de Milton, Lewis (1961) defende que conhecemos o nosso centro, o centro da humanidade, não o centro do poeta.

“[...] (1) The use of slightly unifamiliar words and constructions, including archaisms. (2) The use of proper names, not solely nor chiefly for their sound, but because they are the names of splendid, remote, terrible, voluptuous, or celebrated things. [...] Continued allusion to all the sources of heightened interest in our sense experience (light, darkness, storm, flower, jewels, sexual love, and the like), but all over-topped and ‘managed’ with an air of magnanimous austerity. [...]” 48 “Of man’s first disobedience, and the fruit Of that forbidden tree, whose mortal taste Brought death into the world, and all our woe, With loss of Eden, till one greater Man Restore us, and regain the blissful seat,” (PL I.1-5) 49 “He therefore compensates for the complexity of his syntax by the simplicity of the broad imaginative effects beneath it and the perfect rightness of their sequence.” 47

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No capítulo VIII, Defesa Desse Estilo, Lewis (1961) trata da manipulação: tanto com a retórica quanto com a poética, usa-se a linguagem para manipular o público. Diz que os críticos antigos estavam certos quando diziam que a Poesia ensinava pelo deleite, ou deleitavam pelo ensino. Por fim, Lewis (1961) afirma que gigantes, dragões, paraísos, deuses e afins são a expressão de certos elementos básicos na experiência espiritual do homem. Assim, Paradise Lost é útil a essa mesma experiência.

2.3 BÍBLIA DE MILTON

De acordo com Hill (2003), no contexto das revoluções do século XVII, a Bíblia teve um papel central em toda a vida da sociedade. Seu vernáculo é a base de uma autoridade monárquica da independência protestante na Inglaterra como também um livro da moralidade. Tinha a vantagem de poder ser citada em defesa de questões heterodoxas ou impopulares assim como os clássicos gregos e romanos, por serem reconhecidos como autoridades impecáveis, difíceis de refutar. Impressa e muito diferente da Vulgata manuscrita (propriedade privada do clero), a tradução da Bíblia para o inglês foi contemporânea da imprensa. No século XVII, a Bíblia era aceita como um elemento central em todas as esferas da vida intelectual, não sendo apenas um livro “religioso”. Ela, patrimônio da nação inglesa protestante, deveria ser o fundamento de todos os aspectos da cultura inglesa. Foi também fundamental para toda a vida moral dos séculos XVI e XVII. Surgiu um novo interesse pela educação popular porque protestantes e impressores demonstraram que mais pessoas podiam aprender a ler. A Bíblia, onipresente em quase todas as casas, foi uma descoberta literária importante, principalmente para aqueles que aprendiam a ler através dela.

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Hoje, quando a cultura impressa se encontra em declínio, talvez seja mais fácil não exagerarmos sua importância. A Bíblia já não era mais o Livro Sagrado secreto, reservado a uma elite instruída. Muitos meninos e meninas aprenderam a ler através dela. Ela já não era mais um mistério acessível unicamente àqueles que conheciam o latim e haviam tido uma educação universitária; durante cerca de dois séculos suas histórias foram um componente essencial de leituras populares leves. Naquela época ainda não havia romances capazes de competir com as excitantes narrativas bíblicas, como a de Noé e sua arca, José e seus irmãos, Jonas e a baleia, Sansão e os filisteus ou a luta entre Davi e Golias. [...] (HILL, 2003, p. 60)

Em relação à literatura, Hill (2003) afirma que a era mais importante da literatura inglesa são os cem anos entre 1580 e 1680. Levou-se tempo até que a Inglaterra tivesse uma literatura comparável à grandeza da Grécia ou Roma. Se o inglês tivesse pretensões literárias, deveria ler em italiano, espanhol e francês. Ao contrário, como não havia autores em inglês com exceção de Thomas More, ninguém se importava em aprender a língua. Já por volta do século XVIII qualquer intelectual europeu deveria ler em inglês. A Bíblia, que poderia ser uma “autoridade rival” contra os clássicos greco-romanos, oferecia muitos elementos que atraíam um novo público-leitor. “Paráfrases dos Salmos e de outros livros da Bíblia proliferavam: havia poetas capazes de arrancar os dentes para conseguir parafrasear os Salmos ou o Cântico dos Cânticos.” (HILL, 2003, p. 468). Quanto ao drama religioso, “as peças começaram a ser associadas com a licenciosidade dos subúrbios, com a imoralidade e com a profanação do Sabbath. O governo preocupava-se que a ordem pública acompanhasse os escrúpulos protestantes.” (HILL, 2003, p. 473). Carpeaux (2011) afirma que Milton foi poeta dramático, afastado do teatro vivo50 pelas convicções puritanas e pelo ambiente burguês. Enfim, os poemas bíblicos eram uma alternativa a todos os clássicos difundidos. Os leitores comuns recebiam uma nova poesia lírica não pagã da Bíblia vernácula. Jeffrey Shoulson (2014) escreve o capítulo Milton’s Bible em The Cambridge Companion to Paradise Lost onde trata do papel da Bíblia no poema de Milton, que é cheio de referências bíblicas. Ainda que o poema tome a forma épica e muitas convenções literárias de seus precedentes clássicos, quase todas as suas histórias centrais, temas e personagens são extraídos de materiais bíblicos. Suas versões dos materiais bíblicos divergem frequentemente de modo radical dos precedentes bíblicos.

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O teatro comercial foi introduzido por Shakespeare e seus colegas. Milton desconfiava do teatro comercial popular. (TESKEY, 2015)

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O encontro de Milton no século XVII com a Bíblia teria sido através de diferentes versões. Linguista talentoso, Milton certamente pôde e leu porções da Bíblia nas suas línguas originais – principalmente hebraico para o Antigo Testamento e grego para o Novo Testamento. [...] Quanto a essas traduções, é provável que Milton tivesse conhecido e lido a partir de muitas delas. Ele provavelmente conheceu a Grande Bíblia de 1539, a Bíblia do Bispo de 1568, e mesmo a versão católica Douay-Rheims de 1610. Podemos estar ainda mais confiantes que ele estava familiarizado com a Bíblia de Genebra de 1560, a singular tradução protestante mais importante do século XVI, notável por suas notas e glosas extensas, muitas delas tendo o propósito explícito de argumentar pela teologia reformada que seus tradutores estavam desenvolvendo durante seus anos de exílio em Genebra enquanto a Maria católica sentava-se no trono da Inglaterra. Tem sido amplamente aceito, no entanto, que a tradução da Bíblia inglesa da escolha de Milton foi a King James ou Versão Autorizada, primeiramente publicada em 1611 quando ele tinha apenas dois ou três anos de idade. Distinta pela ausência de todas senão algumas glosas e anotações marginais (e dessa forma muito diferente da tradução de Genebra), essa versão veio a dominar a cultura inglesa51 [...]. (SHOULSON, 2014, tradução nossa)

Usando a versão do Rei Jaime, Milton teria se baseado muito sobre o melhor estudo textual e filológico da época. Por isso, o século XVII foi uma época rica para a leitura e releitura da Bíblia. Paradise Lost é muito mais do que uma paráfrase bíblica: é uma reescrita e rearranjo espetacularmente audaciosos da Bíblia no qual o novo saber se combina com a remodelagem da história literária clássica e medieval. O diálogo entre o Pai e o Filho em Paradise Lost, por exemplo, não tem virtualmente precedente bíblico:

“As for these translations, it is likely that Milton would have known and read from several of them. He probably knew the 1539 Great Bible, the 1568 Bishop’s Bible, and even the 1610 Catholic Douay-Rheims version. We can be even more confidente that he was familiar with the 1560 Geneva Bible, the single most important Protestant translation of the sixteenth century, noteworthy for its extensive headnotes and glosses, many of them having the explicit purpose of arguing for the Reformed theology its translators were developing during their years of exile in Geneva while the Catholic Mary sat on the throne of England. It has been largely accepted, however, that Milton’s English Bible translation of choice was the King James, or Authorized, Version, first published in 1611, when he was just two or three years old. Distinctive for the absence of all but a few marginal glosses and annotations (and thus very different from Geneva translation), this version came to dominate English culture [...]” 51

44 Em Paradise Lost, mais notavelmente no Livro 3, Milton parece violar diretamente sua própria regra, imaginando uma troca entre o Pai e o Filho sem virtualmente nenhuma referência bíblica. Os críticos gostam de ligar à Bíblia o diálogo entre um Pai irado exigindo justiça e um Filho tranquilo rogando misericórdia por meio de uma caracterização difusa (e enganadora) da diferença entre o Deus vingativo do Antigo Testamento e o Deus compassivo do Novo Testamento. O Diálogo Celestial mesmo não tem paradigma bíblico, mas os detalhes da mudança são cheios de alusões bíblicas fragmentárias, e tais alusões nem sempre se conformam à simples dicotomia do Pai do Antigo Testamento e do Filho do Novo Testamento52. (SHOULSON, 2014, tradução nossa)

Alguns detalhes em Paradise Lost não se encontram na versão bíblica: a separação entre Adão e Eva quando vão trabalhar; a intrusão de Satã na serpente inconsciente para a sua tentação; a troca extensa entre Satã e Eva que a conduz a comer do fruto; a reverência de Eva à árvore e sua longa deliberação sobre compartilhar a fruta com Adão; o retorno de Eva a Adão e a explicação de Adão a Eva por que ele escolhe comer com ela; o encontro sexual de Adão e Eva imediatamente após a Queda; as acusações recriminatórias de Adão. Essas expansões poéticas abrem assuntos de teologia, de governo, de gênero e sexualidade, de ontologia, de epistemologia etc. Shoulson (2014), enfim, aponta para vantagens da elaboração literária de Paradise Lost sobre o texto do Gênesis: “[...] a retenção de detalhes da Bíblia, sua ausência de interioridade, sua sequência de eventos lacônica, paratática, convida seus leitores a inferirem e inventarem muitas das características da narração da história – impressões subjetivas, motivações pessoais, relações causais entre eventos, e assim por diante – que se encontram mais diretamente fornecidas em outros tipos de narrativas53.” (SHOULON, 2014, tradução nossa)

“In Paradise Lost, most notably in Book 3, Milton seems directly to violate his own rule, imagining an exchange between the Father and the Son with virtually no biblical precedent. Critics like to link the dialogue between an irate Father demanding justice and a tranquil Son pleading for mercy to the Bible by means of a diffuse (and misleading) characterization of the difference between the vengeful God of the Old Testament and the compassionate God of the New Testament. The Celestial Dialogue itself has no scriptural paradigma, but the details of the Exchange are fraught with fragmentary biblical allusions, and such allusions do not always conform to the simple dichotomy of Old Testament Father and New Testament Son.” 53 “[...] the Bible’s withholding of details, its absence of interiority, its laconic, paratactic sequencing of events, invites its readers to infer and invent many of the features of storytelling – subjective impressions, personal motivations, causal relations between events, and so forth – one finds more directly provided in other kinds of narratives.” 52

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2.4 INFLUÊNCIA DE MILTON

A influência de Paradise Lost sobre os falantes do inglês talvez tenha sido maior do que qualquer outro poema, de sorte que a doutrina da criação tenha sido a fase da influência mais importante. Huxley, na primeira de suas palestras sobre a evolução, atacou a “hipótese miltônica” da criação, assim chamada por ele. Afirmou que a interpretação de Milton no Livro VII de Paradise Lost é bastante clara, assim como a interpretação incutida em nós na nossa infância, embora ele não soubesse o significado do primeiro capítulo do Gênesis nem houvesse concordância entre os estudiosos do hebraico. (PACE, 1918) Para Hill (2003, p. 511), “Milton e Bunyan foram respectivamente o maior escritor de poesia e o maior escritor de prosa do final do século XVII [...]”. Ambos são autores dos dois grandes épicos do puritanismo bíblico: Paradise Lost e The Pilgrim’s Progress. Eles não reproduziram as histórias bíblicas, mas as reimaginaram à luz de sua própria sociedade. Segundo Carpeaux (2011), Paradise Lost é a maior obra da literatura inglesa do século XVII e Milton, o maior poeta inglês depois de Shakespeare. Milton recebeu sua formação definitiva na Itália – sua arte tem o aroma da perfeição latina. No capítulo 16 de The Cambridge Companion to Milton, Griffin (1997) trata da influência literária de Milton nos séculos XVIII, XIX e XX. Procura-se calcular a proporção de leitores que Milton teve, porém, embora os estudos de leitura tenham se multiplicado nos anos recentes, a evidência sobre a leitura de Milton é anedótica. Sugere-se que a fama de Milton tenha sido estabelecida em seu tempo de vida e que em meados do século XVIII qualquer leitor de “literatura polida” provavelmente conheceria Paradise Lost. No século XIX, entre os leitores do inglês, algum conhecimento de Milton deve ter sido aproximadamente universal e Paradise Lost foi considerado um livro apropriado para famílias em ocasiões religiosas. Já no fim do século XIX talvez tenha sido um livro mais reverenciado do que lido. É provavelmente seguro dizer que no fim do século XX as obras de Milton sejam lidas principalmente por alunos de literatura inglesa, alguns dos quais se voltam a Milton depois que deixam a escola ou a universidade. Isso diz pouco sobre Milton e talvez mais sobre hábitos de leitura contemporâneos. Griffin (1997) afirma que as obras de Milton faziam parte do que se poderia chamar de consciência nacional: “[...] são finalmente suas obras que mais influenciaram a cultura literária

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do mundo falante do inglês. Num tempo, foram tão bem conhecidas que formaram parte do que se poderia chamar de consciência nacional54.” (GRIFFIN, 1997, p. 244, tradução nossa). Três equívocos relativos à influência de Milton no século XVIII são citados por Griffin (1997): que ele foi uma “má” influência no século; que ele tornou a épica impossível às gerações seguintes e esgotou todo o potencial de diversos outros gêneros – soneto, tragédia clássica, elegia pastoral. No geral, os leitores de Milton admiravam suas obras (especialmente, Paradise Lost), mas eram hostis ao seu republicanismo grosseiro e sua piedade farisaica. “Para alguns ele permaneceu um vilão, mas para muitos ele serviu como um tipo de modelo de integridade 55.” (GRIFFIN, 1997, p. 246, tradução nossa) Milton aparece em biografias do século XVIII como um tipo de herói literário. Ele combinava o cristão e o clássico, o gênio e a aprendizagem, o racional e o maravilhoso, de modo que nenhum escritor inglês fizera antes. Havia um poeta nacional para classificar com Virgílio ou Homero. Relativamente ao século XIX, “sem dúvida o antigo Blake e a Shelley madura consideraram o Cristianismo contemporâneo psicologicamente repressivo e politicamente tirano56 [...]” (GRIFFIN, 1997, p. 253, tradução nossa) Em sentido técnico restrito, por muito tempo Satã foi pensado como o “herói” de Paradise Lost. Shelley, em Defence of Poetry, disse que o Satã de Milton era “superior” ao Deus de Milton “como um ser moral”, mas não é sempre observado que Shelley pareceu achar tanto Satã quanto Deus moralmente repreensíveis. Wordsworth, apesar de sua grande admiração, não hesitou em criticar Milton ou expressar esperança de que ele poderia mesmo igualar-se a Milton. Ao longo do século XIX, Milton permaneceu como o grande poeta inglês, cuja influência foi provavelmente mais amplamente difundida que antes, tanto na Inglaterra quanto no Estados Unidos. Com relação ao século XX, “Milton parece ter tido pouco efeito sobre a poesia moderna desde o fim do grande movimento modernista na poesia por volta de 194557.” (GRIFFIN, 1997,

“[...] it is finally his works that have most influenced the literary culture of the English-speaking world. At one time, they were so well known that they formed part of what one might call the national consciousness.” 55 “For some he remained a villain, but for many he served as a kind of model of integrity.” 56 “Without question the early Blake and the mature Shelley thought contemporary Christianity psychologically repressive and politically tyrannical [...]” 57 “Milton seems to have had little effect on modern poetry since the end of the great modernist movement in poetry about 1945.” 54

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p. 258, tradução nossa). O ritmo da “indústria” de Milton cresceu marcadamente desde 1960, ainda que os estudiosos e os críticos nunca tivessem parado de escrever livros. Nos anos sessenta, os miltonistas produziram cerca de 100 livros e artigos por ano. Pelo início dos anos setenta, a média cresceu para cerca de 140 por ano (parcialmente como uma reflexão da expansão da academia), e permaneceu naquele nível nos anos oitenta, cerca de duas vezes a quantidade anual de trabalhos publicados sobre poetas como Blake ou Yeats. Muito do trabalho é de natureza especializada e de grande interesse para os especialistas em Milton. Mas alguns são concebidos para um público mais amplo: Milton tem sido usado como uma lente para examinar a Revolução Inglesa, o crescimento do casamento de companheirismo58 e a dinâmica da influência literária59. (GRIFFIN, 1997, p. 258-259, tradução nossa)

Griffin (1997) finaliza seu capítulo afirmando que agora Milton atinge um número de estudantes sem precedentes, assim como figura predominantemente nas antologias de literatura inglesa mais vendidas no Estados Unidos, o que garante ao menos uma certa influência em públicos nas comunidades universitárias. Muitos dos leitores [...] vêm a Milton sem a base profunda na Bíblia inglesa e nos clássicos gregos e latinos que Milton poderia assumir em seus primeiros leitores, e que seus leitores “gerais” provavelmente apreciavam até o início deste século. Mas a obra de Milton, e especialmente Paradise Lost, ainda parece ter o poder de despertar reação nova em estudantes modernos mais de trezentos anos após sua morte60. (GRIFFIN, 1997, p. 259, tradução nossa)

“companionate marriage”: um casamento baseado no consentimento mútuo e na igualdade dos parceiros para o propósito de companhia em vez da expectativa de criação de filhos ou suporte financeiro. (Em www.thefreedictionary.com/companionate+marriage, acessado em 10 de fevereiro de 2016, tradução nossa) 59 “In the sixties Miltonists produced about 100 books and articles per year. By the early seventies the average had risen to about 140 per year (partly as a reflection of the expansion of the academy), and has remained at that level in the eighties, about twice the annual amount of published work on such poets as Blake or Yeats. Much of the work is of a specialized nature, and of interest largely to Milton specialists. But some is designed for a broader audience: Milton has been used as a lens to examine the English Revolution, the rise of companionate marriage, and the dynamics of literary influence.” 60 “Many of those readers [...] come to Milton without the deep grounding in the English Bible and the Greek and Latin classics which Milton could assume in his first readers, and which his ‘general’ readers probably enjoyed until the beginning of this century. But Milton’s work, and specially Paradise Lost, still seems to have the power to arouse fresh response in new students more than three hundred years after his death.” 58

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3. ANÁLISE LITERÁRIA DA PERSONAGEM “SATÔ Better to reign in hell than serve in heav’n (PL I.263)

Apresentado o contexto histórico e o contexto de produção literária de Paradise Lost, aplica-se na análise deste capítulo a teoria da narrativa de Mieke Bal (1997) particularmente à personagem Satã. Associado ao mal por Milton, alvo de críticas satanistas e antissatanistas, complexo, assumido com diferentes modos de existência, possuidor de relação com os discursos religiosos e artísticos externos à obra literária a que pertence, construído com semelhanças aos seres humanos, Satã é a personagem protagonista de Paradise Lost analisada nesta dissertação. Esta análise se divide em três momentos: 1. Exposição de conceitos fundamentais da teoria da narrativa de Bal (1997) relacionados à narrativa Paradise Lost: texto, história e fábula; 2. Explanação do trimorfismo de Satã com base na fortuna crítica de Paradise Lost bem como na própria obra literária; 3. Aplicação de conceitos da narratologia de Bal (1997), conforme desenvolvidos ao longo dos capítulos de seu livro, de modo que o objeto focalizado pela análise seja não somente Satã como também sua relação com outros elementos da narrativa relevantes à sua compreensão.

3.1 TEORIA DA NARRATIVA DE BAL

Bal (1997) compreende que uma teoria é um conjunto sistemático de declarações generalizadas a respeito de um segmento particular da realidade. Aquilo sobre o que sua narratologia tenta fazer pronunciamentos, o seu corpus, são os “textos narrativos” de todos os tipos. Paradise Lost é um exemplo de texto narrativo. A autora tem ciência de que a descrição textual obtida por meio de sua teoria não pode ser considerada a única descrição adequada possível. Os conceitos que apresenta devem ser considerados como ferramentas intelectuais. Com relação ao corpus, Bal (1997) mostra uma diferença conceitual de “texto”: se um texto precisa estar numa língua ou se é possível denominar “texto” quando comporta outro sistema de signos. Em todo caso, Paradise Lost, escrito em língua inglesa, é certamente um “texto de língua” (language text) (BAL, 1997, p. 4, tradução nossa).

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Bal (1997) prossegue: “um texto é um todo finito, estruturado, composto de signos linguísticos. [...] há uma primeira e uma última palavra a serem identificadas61" (BAL, 1997, p. 5, tradução nossa). Assim, a edição de Paradise Lost estudada nesta dissertação é bilíngue (signos linguísticos pertencentes à língua inglesa e portuguesa) e estruturada em 12 Livros, portanto diferente da sua primeira publicação.

Milton originalmente compôs Paradise Lost em dez livros, mas revisou a estrutura para a segunda edição do poema, publicada em 1674 (a última a ser impressa no tempo de vida de Milton) em doze livros, presumivelmente para adequar ao modelo clássico da Eneida de Virgílio62 [...]. (REISNER, 2011, p. 25, tradução nossa).

Em seguida, Bal (1997) introduz alguns conceitos segundo os quais os capítulos de seu livro são divididos: texto narrativo (narrative text), história (story) e fábula (fabula): Um texto narrativo é um texto em que um agente relata (“conta”) uma história num meio particular, tal como língua, imagem, som, construções ou uma combinação disso. Uma história é uma fábula que é apresentada numa certa maneira. Uma fábula é uma série de eventos relacionados lógica e cronologicamente que são causados ou experimentados por atores63. (BAL, 1997, p. 5, tradução nossa)

Dadas essas definições gerais, pode-se acompanhar a linha de raciocínio da autora que justifica essa divisão: texto, história e fábula. O texto com que se está lidando neste trabalho, por exemplo: é impresso, comparado a alguma edição on-line como as veiculadas pelo site www.paradiselost.org; possui versos indicados com algarismos frente à ausência dessa indicação na tradução em língua portuguesa de Antônio José Lima Leitão (2006). Essas são algumas características do texto narrativo em questão, ao que se pode acrescentar: “Evidentemente, os textos narrativos diferem um do outro mesmo que a história relatada seja a mesma64.” (BAL, 1997, p. 5-6, tradução nossa). O próximo passo é a distinção entre história e fábula, a qual é baseada na diferença entre a sequência de eventos e a forma como são apresentados. O evento é uma transição de um estado a outro estado. Dado que a trama de Paradise Lost é estruturada segundo o padrão in media “a text is a finite, structure whole composed of language signs. [...] there is a first and last word to be identified.” “Milton originally composed Paradise Lost in ten books, but revised the structure for the second edition of the poem published in 1674 (the last to be printed in Milton’s lifetime) into twelve books, presumably to suit the classical model of Virgil’s Aeneid [...]” 63 “A narrative text is a text in which an agente relates (‘tells’) a story in a particular médium, such a language, imagery, sound, buildings, or a combination thereof. A story is a fabula that is presented in a certain manner. A fabula is a series of logically and chronologically related events that are caused or experienced by actors.” 64 “Evidently, narrative texts differ from one another even if the related story is the same.” 61 62

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res65, essa característica é clara para a distinção entre história e fábula. Do ponto de vista do tempo cronológico, é possível estabelecer três momentos para Satã: primeiramente, rebelou-se, guerreou e não esteve mais presente no Céu; num segundo momento, tornou-se chefe dos demônios no Inferno, onde se menciona a raça do homem; num terceiro momento, adentrou o Jardim do Éden para tentar o primeiro casal. No entanto, a narrativa de Paradise Lost não segue essa ordem cronológica. Na obra, primeiramente, Satã se encontra no Inferno; num segundo momento, é narrada por Rafael a rebeldia de Satã no Céu; e num terceiro momento há a atuação de Satã no Jardim do Éden. Assim sendo, na história se está lidando com a forma como os eventos foram dispostos na narrativa, no caso in media res, ao passo que na fábula, se está lidando com os eventos dispostos lógica e cronologicamente: Satã no Céu, Satã no Inferno, Satã no Éden. Bal (1997) afirma que o material que temos para nossa investigação é o texto. A divisão de um texto em três camadas é uma suposição teórica baseada num processo de raciocínio. A distinção de três camadas – texto, história, fábula – é o ponto de partida para a sua teoria da narrativa. Implica que seja possível analisar cada camada separadamente, no entanto não que “existam” independentemente uma da outra.

3.2 TRIMORFISMO DE SATÃ

Dados os conceitos centrais da teoria da narrativa de Bal (1997), explica-se nesta seção o trimorfismo de Satã, para então serem aplicados, na próxima seção, mais conceitos narratológicos seus a Satã. Considerando que para Forster (2010) a personagem redonda é aquela que é capaz de surpreender de um modo convincente, Satã pode ser classificado como tal, pois surpreende o leitor: sua motivação de atravessar o universo para cumprir seu propósito de destruir a humanidade (PL V.228); sua afirmação de que é melhor reinar no Inferno do que servir no Céu66; não suportar ajoelhar-se ao Pai e ao Filho enquanto que os anjos bons permaneceram em obediência a Deus (PL V.775-784); escolher a serpente, o mais astuto de todos os animais, após percorrer todo o globo terrestre e considerar cada criatura (PL IX.82-86); dentre outras razões.

“frase latina que significa ‘no meio das coisas’, aplicada à técnica comum de contar história pela qual o narrador começa a história em algum ponto empolgante no meio da ação, ganhando, desse modo, o interesse do leitor antes de explicar os eventos precedentes por analepses (‘flashbacks’) em algum estágio posterior. Era convencional iniciar poemas épicos in media res, como Milton faz em Paradise Lost.” (BALDICK, 2001, p. 124, tradução nossa) 66 “Better to reign in hell, than serve in heaven” (PL I.263) (MILTON, 2015, p. 54), um dos mais bem conhecidos versos da poesia inglesa, segundo Forsyth (2014). 65

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Cinco características da personagem redonda que Gancho (2006) lista podem ser aplicadas a Satã: físicas, psicológicas, sociais, ideológicas e morais. Fisicamente, Satã é de poderosa estatura e segura chamas em suas mãos (PL I.222), expande suas asas e voa (PL I.225), tem em seu rosto profundas cicatrizes de raio firmadas (PL I.600-601), entrou no corpo da serpente (PL IX.188-191). Psicologicamente, é motivado por inveja e vingança (PL I.35), sente orgulho monárquico consciente do valor mais alto (PL II.427-429). Socialmente, é chefe de muitos poderes (PL I.128), dialoga com Eva (PL IX). Ideologicamente, Lúcifer pretendeu toda a igualdade com Deus (PL V.763), então atraiu para si um terço das hostes celestiais (PL V.710). Moralmente, Satã é chamado por Rafael de falso arcanjo (PL V.694), por Abdiel de soberbo (PL VI.131). Enfim, essas são algumas características que compõem a personagem redonda Satã. Carey (1999), corroborando a ideia de Satã como personagem redonda, afirma:

A história tradicional de Satã, como finalmente tomou forma, envolve Satã em três papéis separados – um Arcanjo, antes e durante a guerra no céu; um Príncipe dos Demônios no concílio no inferno; uma serpente-tentadora no jardim. Satã não é, assim, um conceito simples, mas um trimorfo67. (CAREY, 1999, tradução nossa)

O mesmo autor mostra a existência da crítica satanista (A. J. A. Waldock, E. E. Stoll, G. Rostrevor Hamilton, William Empson e outros) e antissatanista (Charles Williams, C. S. Lewis, S. Musgrove, Stanley Fish) de Paradise Lost no século XX. "Críticos satanistas geralmente enfatizam a coragem de Satã, os antissatanistas, seu egoísmo ou tolice68." (CAREY, 1999, tradução nossa). Por causa desse debate, Carey (1999) afirma que uma reação mais razoável seria reconhecer que o poema é insoluvelmente ambivalente enquanto diz respeito a Satã. "A ambivalência do Satã de Milton se origina parcialmente de sua concepção trimórfica; pró-satanistas tendem a enfatizar seus dois primeiros papéis, antissatanistas, seu terceiro 69." (CAREY, 1999, tradução nossa). Assim sendo, o trimorfismo de Satã é consensual, no entanto, ainda que Carey (1999) tenha o posicionamento apenas citado a respeito do que considera a ambivalência de Satã, Nicolson (1998) e C. S. Lewis (1961) têm um outro posicionamento (preferido nesta

“The traditional Satan story, as it eventually took shape, involves Satan in three separate roles – an Archangel, before and during the war in heaven; a Prince of Devils in the council in hell; a serpent-tempter in the garden. Satan is thus not a single concept, but a trimorph.” 68 “Satanist critics generally emphasize Satan’s courage, anti-Satanists his selfishness or folly.” 69 “The ambivalence of Milton’s Satan stems partly from his trimorphic conception; pro-Satanists tend to emphasize his first to roles, anti-Satanists his third.” 67

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dissertação): defendem a degeneração70 de Satã ao longo da trama. Noutros termos, dado que Satã é trimórfico, isto é, assume três formas (arcanjo, príncipe dos demônios e serpentetentadora), essa transformação é considerada pelos dois autores como um processo degenerativo. De acordo Nicolson (1998, p. 186), Milton, segundo a “escola satânica” – Blake, Shelley, Byron –, tomou partido do Diabo, estivesse ele consciente ou não disso, sendo Satã o herói de Paradise Lost. A autora, contrariando essa crítica, afirma que, quando descobre tendências ao “satanismo” entre seus alunos, geralmente descobre que não leram além dos Livros I e II (geralmente aqueles extraídos em antologias). Assim, questiona se Blake, Shelley e Byron leram o Livro X, onde Satã e seus demônios são derrotados. C. S. Lewis (1961, p. 99, tradução nossa), para mostrar como Satã se degenerou, assim se expressa: “De herói a general, de general a político, de político a agente de serviço secreto, e daí a uma coisa que perscruta em janelas de quartos ou banheiros, e daí a um sapo, e finalmente a uma cobra – tal é o progresso de Satã71.”.

3.3 SATÃ E OUTROS ELEMENTOS DA NARRATIVA

Em cada camada do texto narrativo (texto, história, fábula), Bal (1997) trata de alguns conceitos que serão estudados com o objetivo de analisar a personagem Satã e suas relações com outros elementos da narrativa. Segue a divisão conforme o livro de narratologia de Bal (1997): texto, história, fábula.

3.3.1 Texto

Bal (1997) define que um texto narrativo é aquele em que um agente narrativo ou narrador conta uma história. Ela estabelece que esse agente não é o autor (biográfico) da narrativa, mas um sujeito linguístico, uma função e não uma pessoa. Cita como exemplo que Jane Austen não é a narradora de Emma. Assim, segundo o ponto de vista de Bal, o narrador de

Assume-se nesta dissertação que Satã é “herói trágico” (expressão de Forsyth (2014)): herói, na medida em que corresponde às características de herói numa épica citadas por Baldick (2001); trágico, na medida em que sofre a degeneração e é derrotado. 71 “From hero to general, from general to politician, from politician to secret service agent, and thence to a thing that peers in at bedroom or bathroom windows, and thence to a toad, and finally to a snake – such is the progress of Satan.” 70

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Paradise Lost não é Milton. Cuddon (1998), por outro lado, demonstra um posicionamento diferente do de Bal em seu verbete “narrador”:

Platão e Aristóteles distinguiram três tipos básicos de narrador: (a) o falante ou poeta (ou qualquer tipo de escritor) que usa sua própria voz; (b) aquele que assume a voz de uma outra pessoa ou pessoas, e fala numa voz não própria sua; (c) aquele que usa uma mistura de sua própria voz e a de outros. [...] Um bom exemplo da combinação de três vozes pode ser encontrado em Paradise Lost. Milton começa em sua própria voz na primeira pessoa para invocar a “Musa Celestial”. No verso 34, Livro I, a impressão é que a Musa (isto é, o Espírito Santo) responde à invocação formal de Milton (q.v.) iniciando dessa forma a narrativa principal. Quando Satã fala primeiro (verso 84) a terceira voz é introduzida. Subsequentemente, cada personagem diferente tem sua própria voz, embora todas, por assim dizer, sejam de Milton. No início do Livro III, Milton toma alento e usa sua “própria” voz novamente72. [...] (CUDDON, 1998, p. 535, tradução nossa)

Cuddon (1998) considera que Milton assume sua própria voz na primeira pessoa, ao passo que Bal (1997) discordaria dessa afirmação. Dada essa diferença, pode-se tomar a colocação de Fallon (2014, tradução nossa) de que, em Paradise Lost, “há pouca demarcação entre narrador e autor. A linha que estamos acostumados a traçar entre poeta e narrador, entre autor e falante, é difícil se não impossível de encontrar em Paradise Lost73.” Ainda no nível do texto, pode-se relacionar os nomes “Satan” e “Lucifer” à sua personagem correspondente. “Satan” e “Lucifer” são termos na língua inglesa utilizados para designar a protagonista de Paradise Lost, que sofre transformações ao longo da trama. Deve-se notar que sua carga semântica não é a mesma. “Satã, seu nome agora, que o de outrora Já não se ouve no Céu [...]74;” (MILTON, 2015, p. 385) Pela etimologia, de acordo com Harper (on-line), “Lucifer” vem do latim “lux” (luz) e “ferre” (levar), portanto “o que traz a luz”, enquanto que “Satan” vem do hebraico “satan”: “Plato and Aristotle distinguished three basic kinds of narrator: (a) the speaker or poet (or any kind of writer) who uses his own voice; (b) one who assumes the voice of another person or persons, and speaks in a voice not his own; (c) one who uses a mixture of his own voice and that of others. [...] A good example of the combination of three voices can be found in Paradise Lost. Milton begins in his own voice in the first person to invoke the ‘Heavenly Muse’. In line 34, Book I, the impression is that the Muse (that is the Holy Spirit) responds to Milton’s formal invocation (q.v.) thus beginning the main narrative. When Satan first speaks (line 84) the third voice is introduced. Thereafter each different character has his own voice, though all, as it were, are Milton’s. At the beginning of Book III Milton draws breath and uses his ‘own’ voice again.” 73 “[...] there is little demarcation between narrator and author. The line we are used to drawing between poet and narrator, between author and speaker, is difficult if not impossible to find in Paradise Lost. 74 “Satan so call him now, his former name Is heard no more in heaven; […]” (PL V.658-659) 72

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adversário, aquele que maquina contra um outro. Assim, essa variação de nome que se manifesta na camada do texto está de acordo com a mudança de perfil da personagem na fábula: inicialmente, estava em luz no Céu (“Lucifer”); posteriormente, aquele que realiza ciladas seja no Céu, seja na Terra (“Satan”).

3.3.2 História “Se se considera o texto primariamente como o produto do uso de um meio, e a fábula primariamente como o produto da imaginação, a história poderia ser considerada como o resultado de uma ordenação75.” (BAL, 1997, p. 78, tradução nossa). A autora afirma que talvez o princípio de ordenação mais fácil de se compreender seja o da apresentação dos eventos, diferente de sua ordem cronológica. Já foi mostrado que Paradise Lost, por ser in media res, exemplifica a diferença entre história e fábula da obra. No capítulo 2, sobre os aspectos da história, Bal (1997) apresenta o conceito de anacronia de maneira técnica, ou ainda, quando se refere à anacronia, não quer lhe atribuir uma conotação negativa. Chama de desvios cronológicos ou anacronias as diferenças entre o arranjo na história e a cronologia da fábula. Dentro do contexto da história, as duas possibilidades de direção apontadas por Bal (1997) – retroversão e antecipação – ocorrem relacionadas a Satã. No Livro IV, há na fala suspirada de Satã ao Sol uma retroversão. Satã diz que odeia os feixes do Sol porque lhe trazem à lembrança o estado glorioso no qual estava e do qual caiu, guerreando no Céu contra o Rei incomparável até que o orgulho e a pior ambição o lançassem para baixo (PL IV.37-41). Já no Livro VI, na fala do Pai ao Filho, há uma antecipação relacionada a Satã. O Pai diz que, conforme computam os dias no Céu, dois dias se passaram, Miguel foi domar os desobedientes e que os anjos estarão em perpétua luta sem que alguma solução seja encontrada. O Pai dispõe o terceiro dia ao Filho de modo que seja do Filho a glória de terminar a grande guerra, visto que ninguém senão o Filho poderia terminá-la (PL VI.680-703). O Pai antecipou o futuro, embora a sequência de eventos da narrativa tenha sido outra por causa da intervenção do Filho segurando dez mil raios (PL VI.836). Neste episódio de luta constante entre os anjos, pode-se observar o elemento ritmo da narrativa, que mede a velocidade de apresentação. Na narrativa, de acordo com a fala do Pai, Satã e os anjos rebeldes estavam lutando durante dois dias, tempo este próprio da narrativa e diferente do tempo de leitura real do texto narrativo. “If one regards the text primarily as the product of imagination, the story could be regarded as the result of an ordering.” 75

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Outra relação que Bal (1997) aponta ainda no mesmo capítulo é entre atores (actors) e personagens (characters), de maneira que os primeiros são mais abstratos e os últimos mais específicos. “[...] empregarei o termo personagem para figuras antropomórficas sobre as quais o narrador nos conta. Disso, quero dizer o ator fornecido com características que juntas criam o efeito de uma personagem76.” (BAL, 1997, p. 114, tradução nossa). As personagens se assemelham às pessoas. Não têm psique, personalidade, ideologia ou competência para agir reais, mas têm características que tornam possíveis descrições psicológicas e ideológicas. Assim, Satã, embora como personagem seja anjo, pensa, sente, fala, age como uma pessoa. Por exemplo, honrado pelo seu grande Pai e o Rei Messias proclamado ungido, Lúcifer não pôde suportar aquela visão pelo seu orgulho, e considerou-se prejudicado. (PL V.663-665) Bal (1997) entende a personagem como mais ou menos previsível. A previsibilidade do Satã miltoniano é possível de ser conhecida pelo leitor à proporção que conhece a doutrina religiosa cristã sobre Satã. Assim, dado o credo puritano de Milton, pode-se prever que Satã é aquele que governa os demônios, que tem a intenção de realizar ações más, que sente orgulho, que em algum momento é derrotado, o que está de acordo com Paradise Lost. Por outro lado, é de menor previsibilidade o conteúdo do diálogo de Satã com Pecado sobre a chave dos portões adamantinos no Livro II ou com Abdiel em guerra no Livro VI. A autora afirma que a repetição é um importante princípio de construção da imagem de uma personagem. Por exemplo, há uma repetição de expressões com carga semântica negativa relativas a Satã: arqui-inimigo (PL I.81), adversário de Deus e do homem (PL II.629), adversário (PL III.156), o tentador, o acusador da humanidade (PL IV.10), seu primeiro nome não é mais ouvido no Céu (PL V.658-659), soberbo (PL VI.131), apóstata (PL VII.44), inimigo (PL IX.274), antagonista do poderoso Rei do Céu (PL X.387), com seu mundo pervertido (PL XII.547). Desse modo, forma-se uma imagem de Satã que possui base no Cristianismo e que pode ser colocada num quadro de oposições como amigo/inimigo, bem/mal, soberbo/humilde etc. No tocante, por fim, ainda à função de personagem, Bal (1997) levanta o problema do herói. “Muitas características problemáticas se acumularam no termo, de modo que é melhor deixá-lo sozinho. Às vezes, tentativas são feitas para definir o termo herói, mas essas não

“[...] I shall employ the term character for the anthropomorphic figures the narrator tells us about. By this, I mean the actor provided with distinctive characteristics which together create the effect of a character.” 76

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resultaram em nada particularmente concreto77.” (BAL, 1997, p. 131, tradução nossa). Dado o gênero épico de Paradise Lost, Satã funciona como o herói, entretanto, dado que é associado ao mal, Satã não seria exatamente um herói, mesmo porque, como mostra Lewis (1961), ele sofre um processo degenerativo de transformação. Forsyth (2014, tradução nossa) afirma que “ele pode não ser um herói no sentido épico, mas é difícil negar-lhe o status de um herói trágico78.”. Dessa forma, Satã desempenha o papel típico do herói na épica, no entanto, como é mau e derrotado no final, qualifica-se como “trágico”. Outro elemento da narrativa é a localização ou lugar, que se refere à posição topológica onde os atores se situam e os eventos acontecem.

Em princípio, os lugares podem ser mapeados, da mesma forma que a posição topológica de uma cidade ou um rio podem ser indicados num mapa. O conceito de lugar está relacionado ao formato físico, matematicamente mensurável, das dimensões espaciais79. (BAL, 1997, p. 133, tradução nossa)

Nos três principais lugares de Paradise Lost – Inferno, Céu, Éden – Satã esteve. Partindo-se da colocação de Bal (1997) de que a construção do conteúdo semântico do espaço, assim como da personagem, se faz por uma combinação de determinação, repetição, acumulação, transformação, relações entre vários espaços, relacionam-se com Satã características dos lugares Céu, Inferno e Éden. O primeiro problema relativo ao espaço é a estrutura do universo80 em Paradise Lost. Warren (1915) apresenta as imagens de intérpretes variados do universo de Milton: David Masson, George H. Himes, Homer B. Sprague, Thomas N. Orchard. Em todos eles, de todo modo, o Inferno ocupa uma posição inferior, o Céu, uma superior, e a Terra, uma intermediária, o que transmite uma ideia de hierarquia. Por exemplo, segue a interpretação do universo em Paradise Lost de David Masson em Warren (1915, p. 73):

“Lots of problematic features have accrued to the term, so much so that it is better left alone. Sometimes attempts are made to define the term hero, but these have not resulted in anything particularly concrete.” 78 “He may not be a hero in the epic sense, but it is hard to deny him the status of a tragic hero.” 79 “In principle, places can be mapped out, in the same way that the topological position of a city or a river can be indicated on a map. The concept of place is related to the physical, mathematically measurable shape of spatial dimensions.” 80 Uma obra recente sobre o tema: DANIELSON, Dennis. Paradise Lost and the cosmological revolution. Nova York: Cambridge University Press, 2014. 77

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Outra questão relativa ao espaço em Paradise Lost é se Milton adotou o geocentrismo ou o heliocentrismo. Em nota ao texto do Livro VIII, afirma-se: “A terra nunca é descrita explicitamente como no centro do sistema: no Livro III, 722, diz-se que é ‘downward’ com respeito ao sol. No Livro VII (372-3) parece que o sol circunda a terra81.” (MILTON, 1984, p. 621, tradução nossa). Edwards (2014), por sua vez, afirma que é possível argumentar que Paradise Lost adota o heliocentrismo, enquanto que a versão satânica da dança cósmica 82, ao contrário, é geocêntrica pelos seguintes versos: Céu terrestre, p’ra dança de outros céus Que brilham, mas p’ra ti tochas solícitas Luz sobre luz, carregam só, parece, Concentrando em ti seus preciosos raios De sacros sopros: como Deus que é centro No Céu, e a tudo estende, assim tu centro Recebes desses orbes; [...]83; (PL IX.103-109) “La terra non è mai descrita explicitamente come al centro del sistema: in Libro III, 722, è detto che è «downward» rispetto al sole. Nel Libro VII (372-3) sembra che il sole circondi la terra.” 82 “Derivada, em última análise, do Timeu de Platão e elaborada ao longo dos séculos, a noção de dança cósmica prevê as estrelas e os planetas se movendo harmonicamente em torno do sol.” (EDWARDS, 2014, tradução nossa) 83 “Terrestrial heaven, danced round by other heavens That shine, yet bear their bright officious lamps, Light above light, for thee alone, as seems, In thee concentring all their precious beams Of sacred influence: as God in heaven Is centre, yet extends to all, so thou Centring receiv’st from all those orbs; […]” (MILTON, 2015, p. 590-594) 81

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O último elemento da narrativa no capítulo sobre história é a focalização. “Referir-meei às relações entre os elementos apresentados e a visão através da qual eles são apresentados com o termo focalização84.” (BAL, 1997, p. 142, tradução nossa). Assim, sobre a mesma personagem Satã, pode-se listar pontos de vista como os do narrador, do Pai Eterno, de anjos como Rafael e Abdiel, de Adão e Eva, e também do próprio Satã. Em todas essas focalizações, que ocorrem no nível da história, há uma qualificação negativa de Satã. O narrador denomina Satã de “arqui-inimigo” (PL I.81), “adversário de Deus e do homem” (PL II.629), “Inimigo da humanidade” (PL IX.494). O Pai Eterno ordena que Rafael converse com Adão para contar-lhe o perigo, o que o inimigo está tramando (PL V.230240). Rafael chama Satã de falso arcanjo (PL V.694). Abdiel o chamou de ingrato pelos argumentos blasfemos, falsos e orgulhosos (PL V.809-811), como também de soberbo (PL VI.131). Adão tem ciência da má intenção de Satã, por exemplo quando diz a Eva que ambos foram avisados de que o inimigo malicioso, invejando sua felicidade, procura causar-lhes infortúnio e vergonha por assalto astuto (PL IX.253-256). E Eva também tem ciência de que eles têm um inimigo que procura sua ruína (PL IX.274-275). Por fim, Satã diz ser o próprio inferno (PL IV.75), ainda que logo em seguida afirme que o inferno que sofre pareça um céu (PL IV.78). No entanto, segundo o narrador (PL IX.463-473), quando Satã viu Eva, permaneceu “estupidamente bom”, ficou abstraído de seu próprio mal, desarmado de inimizade, de malícia, de ódio, de inveja, de vingança, mas o inferno quente que arde em si logo terminou seu deleite e então o torturou quanto mais ele via o prazer não ordenado para si. Esse ponto de vista do narrador sobre Satã é confirmado por uma fala do próprio Satã, em que dialoga consigo mesmo sobre dever ser movido pelo ódio e não pelo amor, sobre a destruição do prazer, sobre a perda do júbilo (PL IX.473-479). Um caso especial de focalização é a memória.

“I shall refer to the relations between the elements presented and the vision through which they are presented with the term focalization.” 84

59 A memória é um ato de “visão” do passado, mas, como um ato, situada no presente da memória. É frequentemente um ato narrativo: elementos soltos vêm a aderir à história, de sorte que eles podem ser lembrados e finalmente contados. Mas como é bem sabido, as memórias não são confiáveis – em relação à fábula – e quando posta em palavras, elas são retoricamente trabalhadas excessivamente de modo que elas possam se conectar a um público, por exemplo, um terapeuta. Portanto, a “história” de que a pessoa se lembra não é idêntica àquela que ela experimentou85. (BAL, 1997, p. 147, tradução nossa)

Pode-se aplicar essa explicação de Bal (1997) ao relato que Rafael faz a Adão sobre a revolta de Satã no Céu. No Livro V, Rafael relata quem é o inimigo e como veio a se tornar assim, começando pela sua primeira revolta no Céu incitando suas legiões a se rebelarem com ele contra o Eterno. No Livro VI, continua o relato de como Miguel e Gabriel foram enviados para batalhar contra Satã e seus anjos. Rafael é ordenado pelo Pai Eterno a fazer Adão saber que o inimigo caído do Céu está tramando a queda de outros em estado semelhante de bem-aventurança não por violência, mas por enganos e mentiras (PL V.239-243). O relato de Rafael sobre as proezas invisíveis aos sentidos humanos (PL V.565) advém de sua memória. Pela colocação de Bal (1997) a respeito da memória, a fala de Rafael pode estar sendo infiel à fábula, no entanto pode-se assumir que seu relato é fidedigno à fábula, porque Rafael foi enviado a Adão pelo Pai e porque a história (queda e intenção de Satã) se mostra coerente a esse respeito. Finalmente para Bal (1997, p. 160, tradução nossa), o suspense é um processo psicológico, “os resultados dos procedimentos pelos quais faz-se o leitor ou a personagem fazer perguntas que são respondidas somente mais tarde86 [...]”. É possível que nem o leitor nem a personagem possa responder às perguntas. Com relação a Paradise Lost enquanto épica, o suspense sobre o leitor não se mantém durante a leitura dos versos de um Livro, pois logo antes de cada primeiro verso Milton expõe o assunto (argument) do Livro de modo que o leitor leia em poucas linhas um resumo da sucessão dos eventos no respectivo Livro. Relativamente à trama inteira, pode-se considerar a existência de suspense durante a leitura dos resumos introduzidos no início de cada Livro. Contudo, com base nesses fatos, deduz-se que a manutenção do suspense não é o objetivo do autor durante a leitura da obra completa.

“Memory is an act of ‘vision’ of the past but, as an act, situated in the present of the memory. It is often a narrative act: loose elements come to cohere into a story, so that they can be remembered and eventually told. But as is well known, memories are unreliable – in relation to the fabula – and when put into words, they are rhetorically overworked so that they can connect to an audience, for example, a therapist. Hence, the ‘story’ the person remembers is not identical to the one she experienced.” 86 “[...] the results of the procedures by which the reader or the character is made to ask questions which are only answered later, [...]” 85

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Sob a hipótese da exclusão da leitura dos resumos no início de cada Livro para que assim houvesse suspense ao longo da leitura de todos os versos de Paradise Lost, Milton inicia um suspense no Livro I. Em diálogo com Belzebu no Inferno, Livro I, Satã afirma que – após terem sido expulsos do Céu – não está tudo perdido (PL I.106), que Belzebu esteja certo de que fazer qualquer coisa boa nunca será sua tarefa, mas que sempre fazer mal é seu único deleite; que, se a Providência procurar gerar o bem, seu trabalho deve ser perverter esse fim (PL I.158-164). Demônios (Moloque, Astarte dentre outros) se reuniram com Satã no Inferno e ele diz que o espaço pode produzir novos mundos, que havia um rumor (fame) no Céu de que há muito tempo o Monarca no Céu pretendia criar e lá introduzir uma geração que escolheu favorecer como os filhos do Céu. Lá será talvez seu primeiro ataque (PL I.650-656). Faz-se assim no Livro I o início do suspense: a intenção de Satã vingar-se do Céu. Esse primeiro suspense se mantém até que o leitor saiba se Eva come ou não a maçã proibida – o clímax – no Livro IX.

3.3.3 Fábula

Bal (1997) apresenta três critérios para o evento: mudança (change), escolha (choice) e confrontação (confrontation). O trimorfismo de Satã, como já exposto, é uma mudança significativa de Satã. Mudamse: seu nome, de Lúcifer (Lucifer) para Satã (Satan); sua posição social, de arcanjo (dos primeiros, se não o primeiro – PL V.659-660) para chefe dos demônios; seu lugar, de Céu para Inferno; sua forma, quando entra na serpente que dormia; etc. Com relação à escolha, distinguem-se eventos funcionais e não funcionais. “Eventos funcionais abrem uma escolha entre duas possibilidades, realizam essa escolha ou revelam os resultados de tal escolha. Uma vez que uma escolha é feita, ela determina o curso subsequente de eventos nos desenvolvimentos da fábula87.” (BAL, 1997, p. 184, tradução nossa). Um exemplo de evento funcional é quando Satã escuta Adão dizer que o Poder que os criou exigia deles que, dentre todas as árvores no Paraíso que carregam vários frutos deliciosos, não provassem a única Árvore do Conhecimento, plantada junto à Árvore da Vida (PL IV.412-424). Assim sendo, porque soube dessa proibição – evento funcional –, o Tentador subiu pelo tronco

“Functional events open a choice between two possibilities, realize this choice, or reveal the results of such a choice. Once a choice is made, it determines the subsequente course of events in the developments of the fabula.” 87

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musgoso da árvore (que outros animais não podiam alcançar88 e que exigiria o máximo alcance de Eva ou Adão) para tentar Eva (PL IX.589-593). A confrontação ocorre quando se contrapõem dois atores ou grupos de atores. “Toda fase da fábula – todo evento funcional – consiste em três componentes: dois atores e uma ação; [...] numa outra formulação, dois objetos e um processo89. [...]” (BAL, 1997, p. 186, tradução nossa). Pode-se selecionar a fala da serpente a Eva (PL IX.679-732) como um exemplo de confrontação, pois há dois atores, a serpente e Eva, e uma ação, a fala da serpente para convencer Eva de comer o fruto proibido, incluindo-se o intertexto de Gênesis 3:4, “vós não morrereis”. O resultado dessa confrontação é o sucesso da serpente criminosa, que voltou à mata furtivamente (PL IX.784-785). Bal (1997) trata também do ciclo narrativo:

Uma fábula pode ser considerada como um agrupamento específico de séries de eventos. A fábula como um todo constitui um processo, enquanto cada evento também pode ser chamado de um processo ou, pelo menos, parte de um processo. [...] De acordo com Aristóteles bem como com Bremond, três fases podem ser distinguidas em toda fábula: a possibilidade (ou virtualidade), o evento (ou realização) e o resultado (ou conclusão) do processo90. (BAL, 1997, p. 189, tradução nossa)

Quanto a Satã, pode-se identificar estas três fases:

1. Possibilidade: Satã poderá atacar o novo mundo (PL I.654-655); 2. Realização: Satã tenta Eva (PL IX.473-781); 3. Resultado: a Terra sentiu a ferida e a Natureza deu sinais de angústia; tudo estava perdido (PL IX.782-784);

Assim, constata-se esse ciclo narrativo em Paradise Lost.

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Obs.: aves ou esquilos poderiam ter alcançado a maçã na árvore, o que evidencia que a serpente tentadora estava mentindo e Eva não percebeu a fraude. (THE JOHN MILTON READING ROOM: Paradise Lost. Disponível em: < https://www.dartmouth.edu/~milton/reading_room/pl/intro/text.shtml >, acessado em 9 de outubro de 2015.) “Every phase of the fabula – every functional event – consists of three components: two actors and one action; [...] in yet another formulation, two objects and one process.” 90 “A fabula may be considered as a specific grouping of series of events. The fabula as a whole constitutes a process, while every event can also be called a process or, at least, part of a process. [...] According to Aristotle as well as Bremond, three phases can be distinguished in every fabula: the possibility (or virtuality), the event (or realization), and the result (or conclusion) of the process.” 89

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“Atores são agentes que realizam ações91.”, define Bal (1997, p. 5, tradução nossa) em sua introdução. No capítulo sobre fábula, a autora afirma: “Em algumas fábulas, há atores que não têm parte funcional nas estruturas daquela fábula porque não causam ou passam por eventos funcionais92.” (BAL, 1997, p. 195, tradução nossa). Cita como exemplo porteiros e empregadas que abrem portas da frente em muitos romances do século XIX, pois se enquadram na definição de atores por realizar a ação de abrir a porta, no entanto sua ação não pertence à categoria de eventos funcionais. Posto isso, pretende-se analisar Satã como ator funcional. Pressupõe-se que há uma relação teleológica entre os elementos da história: que os atores têm uma intenção, aspiram em direção a um objetivo. No caso de Satã, como já dito, sabe-se que sua intenção é perverter o bem gerado pela Providência (PL I.158-164) como também enganar Eva, pelo seu longo diálogo no Livro IX, para que coma o fruto proibido. Entrando em classes de atores, Bal (1997) explica o que admite como sujeito e objeto:

A primeira e mais importante relação é entre o ator que segue um objetivo e aquele objetivo mesmo. [...] As duas primeiras classes de atores a serem distinguidas, portanto, são sujeito e objeto: o ator X aspira em direção à meta Y. X é um sujeito-actante, Y é um objeto-actante93. (BAL, 1997, p. 197, tradução nossa)

A autora acrescenta que o sujeito geralmente é uma pessoa ou um animal personificado (em fábulas de animais), não um objeto. Seguem alguns exemplos de sujeito e objeto:

João quer casar com Maria. “João” é sujeito, “Maria” é objeto e “querer casar”, a função.

Anna Wulf quer se tornar uma mulher independente “Anna Wulf” é sujeito, “uma mulher independente” é objeto e “querer tornar-se”, função.

“Actors are agents that perform actions.” “In some fabulas there are actors who have no functional part in the structures of that fabula because they do not cause or undergo functional events. 93 “The first and most importante relation is between the actor who follows an aim and that aim itself. [...] The first two classes of actors to be distinguished, therefore, are subject and object: actor x aspires towards goal y. x is a subject-actant, y an object-actant.” 91 92

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Assim, a relação entre Satã e Eva, que culminará no clímax da narrativa, pode ser expressa por:

Satã quer causar a morte de Eva. “Satã” é sujeito, “a morte de Eva” é objeto e “querer causar”, a função.

Essa estrutura se justifica na medida em que: 

Eva disse à serpente: “Não do fruto das árvores, mas desta / Tão bela que é no centro do jardim; / Do fruto, disse Deus, Não comerás / Nem nela tocarás, p’ra não morreres.”94.’” (MILTON, 2015, p. 633). Portanto, Eva tinha consciência da morte como consequência do ato de comer a maçã.



A serpente respondeu: “Não morrerás95.” (MILTON, 2015, p. 635), contradizendo assim a afirmação de Eva.

Como Eva comeu a morte – não sabia que estava comendo a morte (PL IX.792) – depreende-se que a serpente mentiu para Eva com o fim de lhe causar a morte. A intenção do sujeito não é suficiente para atingir o objeto, daí Bal (1997) definir o poder (power) e o receptor (receiver): [...] Nós podemos, consequentemente, distinguir uma classe de atores – consistindo naqueles que apoiam o sujeito na realização de sua intenção, que fornecem o objeto ou que permitem que ele seja fornecido ou dado – a quem chamaremos de poder. A pessoa a quem o objeto é dado é o receptor96. (BAL, 1997, p. 198, tradução nossa)

A autora acrescenta que em muitos casos o poder não é uma pessoa, mas uma abstração como a sociedade, o destino, o tempo, a esperteza. No caso de Satã, como Adão e Eva estavam cientes de que tinham um inimigo que procurava sua ruína (PL IX.275), Satã não poderia apresentar-se-lhes como tal, caso contrário “[…] Of the fruit Of each tree in the garden we may eat, But of the fruit of this fair tree amidst The garden, God hath said, Ye shall not eat Thereof, nor shall ye touch it, lest ye die.” (PL IX.659-663) 95 “ye shall not die” (PL IX.685) 96 “[...] we can, consequently, distinguish a class of actors – consisting of those who support the subject in the realization of its intention, supply the object, or allow it to be supplied or given – whom we shall call the power. The person to whom the object is ‘given’ is the receiver.” 94

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logo o identificariam. Para dissimular-se, entrou na serpente dormente para esconder-se com sua intenção maligna (PL IX.162). Assim, a capacidade de entrar num animal é um poder necessário a Satã para enganar Eva, assim como a capacidade de fala da serpente que impressionou Eva (PL IX.554). Satã é o receptor desses poderes, como frequentemente coincidem o receptor e o sujeito (BAL, 1997, p. 199). Em continuidade, Bal (1997) introduz mais dois conceitos: ajudante (helper) e oponente (opponent). “À primeira vista, eles não parecem necessários à ação. Na prática, no entanto, eles são frequentemente numerosos. Eles determinam as várias aventuras do sujeito, que às vezes deve superar grande oposição antes que possa atingir sua meta97.” (BAL, 1997, p. 201, tradução nossa) Devido à dificuldade de se diferenciar poder de ajudante, a tabela abaixo (adaptada de Bal, 1997) pode ajudar a resolver a dificuldade:

Poder

Ajudante

Tem poder sobre o empreendimento

Pode dar somente auxílio acidental

inteiro Geralmente é abstrato

Geralmente é concreto

Geralmente permanece no fundo

Geralmente vem para a frente

Geralmente somente um

Geralmente múltiplos

No Inferno, Satã decidiu ir sozinho à viagem temerosa ao novo mundo (PL II.426), isto é, não aceitou a companhia de demônios como ajudantes. Aproximando-se da Terra, encontra um claro oponente, o arcanjo Uriel, que não permitiria que ele entrasse no Éden, por isso disfarçou-se de querubim (PL III.636) para que pudesse entrar na Terra. Depois que Satã entrou no Éden, anjos como Gabriel, no Livro IV, e Rafael, no Livro V, funcionaram como oponentes seus, haja vista que visavam a proteger Adão e Eva. Enfim, é preciso analisar se a serpente pode ser considerada ajudante de Satã. Como Satã entrou em seu corpo para melhor seduzir Eva, a serpente funcionou como ajudante, ainda que sua função no episódio do Éden não tenha sido deliberada por não ter livre-arbítrio: é animal bruto (PL IX.560). O auxílio prestado pela serpente a Satã não cobriu toda a trama na qual Satã participou, mas apenas ao segmento da trama correspondente ao Éden. A serpente é um animal “At first sight they do not appear necessary to the action. In practice, however, they are often rather numerous. They determine the various adventures of the subject, who must sometimes overcome great opposition before s/he can reach his or her goal.” 97

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concreto, não abstrato como a capacidade de fala demonstrada por Satã posteriormente. A serpente, por fim, é visível na medida em que participa do diálogo com Eva, em particular no clímax da narrativa. Portanto, com base na tabela acima, pode-se afirmar que a serpente, enquanto animal, é bem classificada como ajudante de Satã para tentar Eva. “Quando o sujeito parece antipático ao leitor, o ajudante, muito provavelmente, também será; e a simpatia do leitor irá em direção ao oponente do sujeito98.” (BAL, 1997, p. 202, tradução nossa). Assim sendo, se o leitor provavelmente sente simpatia por Satã, sentirá pela serpente, e vice-versa. Outro conceito é a competência, que é a possibilidade de um sujeito agir. Bal (1997) informa que Greimas subdivide a competência em “determinação ou vontade do sujeito de proceder à ação, o poder ou possibilidade, e o conhecimento ou habilidade necessário para executar o objetivo99.” (BAL, 1997, p. 204, tradução nossa). Posto isso, Satã tem a competência necessária para realizar seu objetivo de fazer Eva pecar ou desobedecer a Deus:

1. Teve vontade de perverter o bem gerado pela Providência (PL I.158-164); 2. Teve o poder de fazê-lo, como a capacidade de entrar na serpente e falar por sua boca (PL IX.554); 3. Teve o conhecimento de como fazer Adão e Eva pecarem quando escutou Adão falar sobre o fruto proibido da Árvore do Conhecimento (PL IV.412-424);

Portanto, pode-se afirmar que Satã foi uma personagem competente para executar seu objetivo, pois cumpriu todos os três requisitos: vontade, poder e conhecimento. “Por valor de verdade, quero dizer a ‘realidade’ dos actantes dentro da estrutura actancial100.” (BAL, 1997, p. 205, tradução nossa)

“When the subject seems unsympathetic to the reader, the helper will, most likely, be so too; and the sympathy of the reader will go towards the opponent of the subject.” 99 “[...] determination or will of the subject to proceed to action, the power or possibility, and the knowledge or skill necessary to execute the aim.” 100 “By truth value I mean the ‘reality’ of the actants within the actantial structure.” 98

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No esquema acima, Bal (1997, p. 206) ilustra as posições possíveis dos atores com respeito à “verdade”:

Quando um ator é o que ele parece, ele é verdadeiro. Quando ele não coloca uma aparência, ou, em outras palavras, esconde quem ele é, essa identidade é secreta. Quando ele nem é nem coloca uma aparência, ele não pode existir como um ator. Quando ele parece ser o que ele não é, essa identidade é uma mentira101. (BAL, 1997, p. 206, tradução nossa)

Dado o esquema de valor de verdade, pode-se afirmar de Satã que, como arcanjo no Céu, parecia ser o que era, portanto Lúcifer era verdadeiro. Do mesmo modo, como chefe dos demônios no Inferno, parecia ser o que era, pois eram sabidos seus novos traços de identidade. Logo, Satã era verdadeiro. Como serpente tentadora, visto que é um anjo de intenção perversa, mas não parece ser, sua identidade é secreta, ou ainda, parece ser uma serpente boa, mas não é, logo sua identidade é uma mentira. Finalmente, o tempo da fábula de Paradise Lost durante o qual a serpente dialoga com Eva pode ser comparado com seu correspondente bíblico, o Gênesis, ambos expressos linguisticamente. Em Gênesis 3 (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 37), o diálogo entre a serpente e Eva não dura mais que 7 versículos, enquanto que no Livro IX de Paradise Lost o diálogo entre a serpente e Eva se estende do verso 532 ao 779 (MILTON, 2015, p. 625-641). Disso pode-se inferir – considerando-se o texto do Gênesis enquanto literatura, isto é,

“When an actor is what s/he appears, s/he is true. When s/he does not put up an appearance, or, in other words hides who s/he is, this identity is secret. When s/he neither is nor puts up an appearance, s/he cannot exist as an actor; when s/he appears to be what s/he is not, this identity is a lie.” 101

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independentemente de sua sacralidade ou expressão da Palavra de Deus – que o tempo desse segmento da fábula de Paradise Lost é mais longo que seu correspondente bíblico.

3.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE SATÃ

Neste capítulo 2, foi possível não só apontar o trimorfismo de Satã e sua degeneração de acordo com a crítica antissatanista como também aplicar conceitos da teoria da narrativa de Mieke Bal (1997) à mesma personagem de modo que, com as seções divididas em "texto", "história" e "fábula", pôde-se analisar a personagem Satã em si mesma e em relação a outros elementos da narrativa de Paradise Lost. No próximo capítulo, o simbolismo da protagonista sob a forma de serpente será analisado com base nas características da serpente conforme Charlesworth (2010).

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4. A SERPENTE E SATÃ

Ye shall not die (PL IX.856)

Charlesworth (2010), professor de Novo Testamento no Princeton Theological Seminary, relata no prefácio de seu livro The good and evil serpent: how a universal symbol became Christianized que teve um encontro incomum com uma serpente gigante. Esse momento congelado deu forma à sua fascinação por cobras muito além do que poderia imaginar. Olhando para trás, em 1953, quando eu tinha treze anos, eu me lembro de uma figura de cúpula dourada se erguendo perante mim. Ela era massiva em tamanho e peso. A criatura refletia o sol que caía da direita sobre nós. Eu me lembro de que seus olhos estavam ao nível dos meus próprios e eu tinha então aproximadamente 5 pés, 5 polegadas (1,65 metros). Ela balançava perante mim. Eu estava simultaneamente assustado e boquiaberto com essa maravilha da criação. Ela permaneceu ereta e o sol a transformou em ouro cegante. Por anos eu repudiei da memória a altura desse monstro e como o tempo e a eternidade pararam conforme olhávamos profundamente dentro dos olhos um do outro102 [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Como o próprio título do livro diz, Charlesworth (2010) apresenta um estudo acerca do simbolismo da serpente, que, tomada como um símbolo, pode ter tanto um significado positivo quanto negativo. O autor inicia sua introdução com uma passagem bíblica, Jo 3:14-15, que é o ponto de partida sobre o qual discorrerá seu primeiro capítulo inteiro: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 1848) Charlesworth (2010) questiona por que o autor mencionou a serpente. Também questiona se o quarto evangelista ou alguns membros de sua comunidade imaginavam que Jesus pudesse ser simbolizado como uma serpente. Ele afirma que o bem conhecido verbo central grego “levantar” alcança um novo significado neste trecho: significa que a crucificação de Jesus não foi um fracasso, mas uma exaltação. Contudo, o autor do quarto evangelho não pode estar “Thinking back to 1953, when I was thirteen, I remember a golden-domed figure rising before me. He was massive in size and weight. The creature reflected the sun that poured down on us from the right. I remember that his eyes were on the level of my own, and I was then roughly 5 feet, 5 inches (1.65 meters) tal. He swayed before me. I was simultaneously frightened and awestruck at this wonder of creation. He stood erect, and the sun transformed him into blinding gold. For years I dismissed from memory the height of this monster, and how time and eternity stopped as we looked deep into each other’s eyes. [...]” 102

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afirmando que Jesus seja uma serpente, visto que a cobra é uma imagem negativa nas culturas ocidentais. A cobra se tornou um símbolo negativo em nossa cultura ocidental por causa do intertexto de Paradise Lost, Gênesis 3: a cobra que enganou Adão e Eva e introduziu o pecado e a morte no mundo. Por outro lado, segundo Charlesworth (2010), a serpente às vezes é um símbolo bom em culturas do mundo. Outra questão feita é: “Por que os especialistas no Novo Testamento exploraram os simbolismos profundos no Quarto Evangelho, mas mostraram pouco ou nenhum interesse na história da simbologia em geral e no estudo do simbolismo ofídico especificamente103?” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Ele solicita que o leitor observe como comentadores (Godet, Lagrange, Dodd, Bultmann, Schnackenburg, Brown, Cook, Haenchen, Sloyan, Carson, Morris) se preocupam com o verbo “levantar” e evitam qualquer discussão sobre o uso tipológico do símbolo da serpente para Jesus. Segundo Charlesworth (2010), com muita frequência os especialistas bíblicos assumem o pressuposto de que a serpente simbolizava somente o mal na Antiguidade e esse pressuposto continua sem exame.

Deveria ser sugerido mais sobre por que especialistas no Novo Testamento perdem o significado profundo de símbolos. Por um lado, esses estudiosos raramente foram instruídos em simbolismo; e, diferente de muitos de seus colegas do Antigo Testamento, eles não têm estado intimamente envolvidos com a arqueologia e iconografia do Oriente Próximo. Por outro lado – e de fato mais importante – sua exegese bíblica talvez seja influenciada demais pela hermenêutica e pela teologia acopladas, talvez, com medos de condenações de líderes de igreja, teólogos dogmáticos e administradores que emitem holerites e controlam aumentos e promoções. Nenhum estudioso do Novo Testamento gostaria de ser marcado como alguém que pensou Jesus como uma cobra104 [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Nos capítulos seguintes, Charlesworth (2010) trata da fisiologia da serpente, da serpente no Antigo Oriente Próximo, da serpente na literatura grega e romana, da serpente no Crescente Fértil, da serpente na Bíblia hebraica (Antigo Testamento), da serpente no Evangelho de João.

“Why have New Testament experts explored the deep symbolisms in the Fourth Gospel but shown little or no interest in the history of symbology generally and the study of ophidian symbolism specifically?” 104 “More should be suggested on why New Testament experts miss the in-depth meaning of symbols. On the one hand, these scholars have seldom been trained in symbolism; and, unlike many of their Old Testament colleagues, they have not been intimately involved in the archaeology and iconography of the Near East. On the other hand – and indeed more important – their biblical exegesis is perhaps too influenced by hemeneutics and theology, coupled, perhaps, with fears of condemnation from church leaders, dogmatic theologians, and administrators who issue salary checks and control raises and promotions. No New Testament scholar would want to be branded as one who thought of Jesus as a snake. [...]” 103

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Para a finalidade desta dissertação, neste capítulo, usa-se o capítulo 2 de Charlesworth (2010), Physiology Undergirds Symbology: Thirty-Two Virtually Unique Characteristics of a Snake, onde o autor lista “trinta e duas características virtualmente únicas de uma cobra”, das quais uma parte é associada a passagens de Paradise Lost. Este capítulo 4, onde se relacionam a serpente e Satã em Paradise Lost, está dividido em três tópicos: no tópico 4.1, relacionam-se citações de Charlesworth (2010) e Milton (2015) de modo que sejam associadas características da serpente com passagens de Paradise Lost; no tópico 4.2, consta um texto onde se analisa semanticamente a relação entre a serpente e Satã, expondo-se essencialmente as informações da seção anterior; por fim, no tópico 4.3, apresentase uma tabela sintética das mesmas informações.

4.1 A SERPENTE

O motivo de Satã ter escolhido a serpente105 para tentar Eva se encontra em PL IX.8296: [...] assim o orbe106 Cruzou e examinou, e com minúcia Considerou os seres, e qual deles Mais útil fosse aos seus ardis, e achou Ser a serpente a mais sutil das bestas. Após longo debate, e em pensamentos De errante turbilhão, firmou a escolha Seu vaso conveniente e receptáculo P’ra fraude, onde esconder sugestões negras Da mais fina visão: pois na serpente De ardis nenhuns ninguém suspeitaria, Como se naturais, de sutil berço Procedendo, o que em outros levaria À suspeição de forças diabólicas Ativas nos sentidos do que é bruto.107 (MILTON, 2015, p. 591) “A descrição da serpente [de Milton] evoca mas não nomeia o basilisco, a serpente da Antiguidade mais lendária.” (EDWARDS, 2009, p. 101, tradução nossa) 106 “Orbe” é uma palavra ambígua: às vezes significa corpo de um planeta, às vezes significa a órbita de seu curso. Milton frequentemente usa o primeiro sentido (PEARCE, 1733). Conforme a nota de https://www.dartmouth.edu/~milton/reading_room/pl/book_9/text.shtml, este orbe é o globo da Terra. 107 “[...] thus the orb he roamed With narrow search; and with inspection deep Considered every creature, which of all Most opportune might serve his wiles, and found The serpent subtlest beast of all the field. Him after long debate, irresolute Of thoughts revolved, his final sentence chose 105

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Milton responde no verso 86 do mesmo Livro por que Satã escolheu a serpente: “Ser a serpente a mais sutil das bestas.” (MILTON, 2015, p. 591). Por sua astúcia, ninguém suspeitoso distinguiria a partir de sua [da serpente] perspicácia e de seu proceder de astúcia nata que Satã pretendeu esconder nela suas sugestões sombrias. Dado que a serpente foi o animal escolhido por Satã, pergunta-se: “De que maneira os traços da serpente refletem Satã?”. Com exceção da sua capacidade de fala, pode-se admitir que a serpente de Milton seja semelhante à serpente real. Portanto, o conjunto de traços assimiláveis da personagem serpente baseado nas 32 características de Charlesworth (2010) serve para mostrar como, em Paradise Lost, a serpente se harmoniza simbolicamente com a identidade de Satã. Charlesworth (2010, tradução nossa) afirma: “Trinta e duas características108 tendem a fazer a cobra distinta ou única, comparada a outras criaturas que os antigos conheceram tais Fit vessel, fittest imp of fraud, in whom To enter, and his dark suggestions hide From sharpest sight: for in the wily snake, Whatever sleights none would suspicious mark, As from his wit and native subtlety Proceeding, which in other beasts observed Doubt might beget of diabolic power Active within beyond the sense of brute.” (PL IX.82-96) 108 Segue a lista: 1. Ausência de braços e pernas / movimento (quase) circular; 2. Ausência de ouvido; 3. Ausência de voz; 4. Ausência de pálpebras e de visão em algumas; 5. Corpo alongado; 6. Movimento rápido e sem som; 7. Dois pênis / muitos descendentes; 8. Língua bífida; 9. Carnívora; 10. Meses sem comer; 11. Socialmente independente; 12. Sangue frio; 13. Quase invisível; 14. Possibilidade de se esconder em vários lugares; 15. Não demonstração de medo; 16. Anfíbio; 17. Troca de pele; 18. Desaparecimento na terra; 19. Possibilidade de beleza surpreendente; 20. Veneno mortal; 21. Ausência de emoção facial; 22. Posição de pé / falo; 23. Fisiologicamente diferente de humanos; 24. Hibernação; 25. Aparência de lamacenta e fria; 26. Penetração no jardim; 27. Matança de animais perigosos a humanos; 28. Grandeza e majestade; 29. Inodora;

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como o leão, o urso, o tigre, o cachorro, o camelo, o burro e os gatos 109.”. Dessas, 22 serão analisadas neste capítulo.

4.1.1 Ausência de braços e pernas / movimento (quase) circular

[...] a cobra não tem nem braços nem pernas. [...] permanece na terra quando se move. [...] O movimento da cobra também é incomum. Sua locomoção é variada, mas frequentemente deixa uma trilha serpentina nas areias do deserto, isto é, move-se para frente movendo-se da esquerda para a direita e frequentemente movendo-se para trás para mover-se para frente. Há um ritmo quase circular no movimento. Esse movimento serpentino pode facilmente ser visto como simbólico do tempo110, [...]. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Sobre sua cauda, base circular de dobras ascendentes, a serpente tentadora dirigiu-se a Eva:

Assim falou dos homens o inimigo, Em serpente hospedado, e rumou Ao alvo, não em ondas coleantes, De borco no chão, como desde então, Mas p’la base anelar de pregas, prega A prega em espirais subindo, [...]111 (PL IX.494-499)

A circunferência pode ser simbólica do tempo como afirma Charlesworth (2010), entretanto, mais que o tempo, pode simbolizar a eternidade, pois esta não começa nem termina. Assim, o movimento da a serpente tentadora simboliza a mensagem de eternidade prometida a Eva por Satã: “não morrerás112.” (PL IX.685)

30. Aparência de duas cabeças; 31. Misteriosa e desconhecida; 32. Antissocial / sem comunicação com o homem; 109 “Thirty-two features tend to make the snake distinct or unique, compared to other creatures the ancients met, such as the lion, bear, tiger, dog, camel, donkey, and cat.” 110 “[...] the snake has neither arms nor legs. [...] it remains on the earth when it moves. [...] The movement of the snake i salso unusual. Its locomotion is varied, but it often leaves a ‘serpentine’ trail in the sands of the desert; that is, it moves forward by moving left to right and often moving backward to move forward. There is a quasi-circular rhythm to the movement. This serpentine movement can easily be seen as symbolic of time.” 111 “So spake the enemy of mankind, enclosed In serpent, inmate bed, and toward Eve Addressed his way, not with indented wave, Prone on the ground, as since, but on his rear, Circular base of rising folds, that towered Fold above fold a surging maze; […]” (MILTON, 2015, p. 622) 112 “ye shall not die.” (MILTON, 2015, p. 635)

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4.1.2 Ausência de ouvido

“[...] a cobra não tem ouvidos. Ela perdeu o tímpano, os ouvidos médio e externo, e também a trompa de Eustáquio113.” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa), o que simboliza a recusa de Satã de ouvir a ordem pronunciada pelo Pai no Céu: a de que Seu único Filho é nomeado chefe dos anjos, que todos os joelhos no Céu se inclinarão a Ele e O confessarão seu Senhor.

Hoje concebi quem meu unigênito Declaro, e aqui neste sacro monte O ungi, a quem agora à minha destra Contemplais; por cabeça vos decreto; E todo o joelho o Céu há-de dobrar Ante ele, confessando-o Senhor114. (PL V.603-608)

Por isso, Satã sentiu-se prejudicado (PL V.665). Nas palavras de Christopher (1999, tradução nossa), “É a recusa de Satã de aceitar a promessa sacramental, sua recusa a ‘ouvir’ as palavras de Deus, que constitui o pecado original115.”

4.1.3 Ausência de voz

[...] a cobra é muda. Ela pode sibilar, mas não pode latir como um cachorro, cantar como um pássaro, ronronar como um gato ou relinchar como um cavalo. Desta maneira, a cobra não tem meio vocal para se comunicar com humanos. Isso poderia implicar que ela viva no mundo do silêncio116 [...]. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa).

“[...] the snake has no ears. It has lost the eardrum (tympanum), outer and middle ears, and also the Eustachian tube.” 114 “This day I have begot whom I declare My only Son, and on this holy hill Him have anointed, whom ye now behold At my right hand; your head I him appoint; And by myself have sworn to him shall bow All knees in heaven, and shall confess him Lord:” (MILTON, 2015, p. 380) 115 “[...] It is Satan’s refusal to accept the sacramental promise, his refusal to ‘hear’ God’s words, that constitutes the primal sin. [...]” 116 “[...] the snake is voiceless. It can hiss, but it cannot bark like a dog, sing like a bird, purr like a cat, or whinny like a horse. Thus, the snake has no vocal way of communicating with humans. That could imply that it lives in the world of silence [...]” 113

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A ausência de voz da serpente foi um recurso necessário para que Satã persuadisse Eva a comer a maçã117. Inicialmente, Eva estranhou a fala da serpente:

Que é isto? Linguagem de homem dita Em língua bruta, senso humano expresso? P’lo menos deste uma achei vedada A bestas, a quem Deus na criação Fez afonas em sons articulados. Quanto ao resto vacilo, que há razão Nos olhos, e em ações amiúde vê-se. A ti, serpente, astuta entre todos Conhecia, mas não com voz humana118; (PL IX.553-561)

Diante do fruto tão saboroso, Eva fez uma pausa e refletindo considerou que o fruto dava elocução aos mudos e ensinava a língua da serpente (não feita para a fala) a falar o louvor ao fruto.

Grandes virtudes tens, melhor dos frutos, Embora à parte de homens, e admiráveis, Cuja prova, adiada há muito, deu Voz à primeira aos mudos, e ensinou À infacunda língua teu louvor.119. (PL IX.745-749)

A ausência de voz da serpente remete o leitor à proibição a Satã de não se comunicar com os seres humanos. Por isso, não somente os portões do Inferno deviam estar fechados para

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Em Paradise Lost, Milton, assim como na tradição popular, particulariza o fruto proibido como maçã. “O fruto da árvore nesta passagem [do Gênesis] tem sido por quase 2.000 anos pintado, esculpido e descrito como uma maçã. Mas o texto fala somente de um ‘fruto’ indefinido. Como chegamos à maçã, de todas as coisas, que era desconhecida no Oriente Próximo até um século atrás? Na tradução latina da Bíblia do séc. V de Jerônimo, conhecida como Vulgata, a palavra para ‘mal’, com a qual a fala da cobra termina (Gênesis 3:5), é malum. Malum pode também significar maçã, e assim essa falsa maçã foi projetada de volta três linhas, para terminar finalmente nas mãos de Eva, onde nunca esteve em primeiro lugar.” (KISSLING, 2004, p. 193, tradução nossa) 118 “What may this mean? Language of man pronounced By tongue of brute, and human sense expressed? The first at least of these I thought denied To beasts, whom God on their creation-day Created mute to all articulate sound; The latter I demur, for in their looks Much reason, and in their actions oft appears. Thee, serpent, subtlest beast of all the field I knew, but not with human voice endued;” (MILTON, 2015, p. 626) 119 “Great are thy virtues, doubtless, best of fruits, Though kept from man, and worthy to be admired, Whose taste, too long forborne, at first assay Gave elocution to the mute, and taught The tongue not made for speech to speak thy praise:” (MILTON, 2015, p. 638)

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sempre por Pecado como também Satã não deveria entrar no Paraíso, por cujo portão Gabriel era responsável.

[...] e foi então que a chave forte Na minha mão foi posta, a perpetuar As trancas destas portas, sem trespasse Consentido por mim120. [...] (PL II.774-777) […] Gabriel, a cargo da porta do Paraíso121 [...] (PL IV.epígrafe) Gabriel, deu-te o curso à sorte encargo E vigia tenaz da feliz zona A fim de que nenhum mal tente a entrada122. (PL IV.561-563)

4.1.4 Ausência de pálpebras e de visão em algumas

[...] se possui um olho redondo ou fendido, a cobra não tem pálpebras; somente uma camada, brille, cobre os olhos da maioria das cobras. E algumas cobras não têm visão. Isso poderia denotar a qualidade de olhos abertos da cobra. Ela pode ver e não é cegada por piscadelas e visão perturbada123. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa).

Os olhos abertos sem interferências na visão simbolizam a sabedoria ou a astúcia da serpente, haja vista que sem interferências se vê com mais perfeição. Em seu comentário literal ao Gênesis onde trata da sabedoria da serpente, Santo Agostinho (2012, p. 388) afirma que “na língua latina são denominados sábios com propriedade e pelo uso geral quando merecem louvor, mas por astutos se entendem os de mau caráter.”. Admitindo-se essa distinção, convém considerar que a ausência de pálpebras da serpente em Paradise Lost simboliza a astúcia de Satã.

“[...] at which time this powerful key Into my hand was given, with charge to keep These gates for ever shut, which none can pass Without my opening. […]” (MILTON, 2015, p. 164) 121 “[…] Gabriel, who had in charge the gate of Paradise, […]” (MILTON, 2015, p. 250) 122 “Gabriel, to thee thy course by lot hath given Charge and strict watch that to this happy place No evil thing approach or enter in;” (MILTON, 2015, p. 296) 123 “[...] whether possessing a round or slit eye, the snake has no eyelids; only a scale, the brille, covers the eyes of most snakes. And some snakes have no vision. That could denote the open-eyed quality of the snake. It can see and is not blinded by blinks and disrupted vision.” 120

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Se ainda se considerar a serpente tentadora sem visão enquanto animal, sua ausência de visão simboliza a recusa de Satã de ver o bem da criação de Deus124 como a beleza de Eva, que por um tempo o deixou estupidamente bom, desarmado da inimizade. Mas, em seguida, o inferno quente que queima em si terminou o seu deleite.

Encantou-se a serpente assim por ver Esta porção florida, o escaninho De Eva tão cedo, a sós: a forma angélica, Celestial, mas gentil mais, e femínea, A garbosa inocência, os seus modos, E jeitos, gestos mínimos, tolheram-lhe A maldade, e cortês levou o corso À crueldade os seus cruéis propósitos. Quedou-se absorto o mau por uns momentos No próprio mal, e sem inimizades, Estupidamente bom, ficou, despido De manhas, ódio, inveja, represália. Mas o inferno que nele eterno arde, Mesmo quando no Céu, extinguiu-lhe o gozo, E agora mais o aflige, quanto mais Arredado se vê do prazer. Logo Recobre ódio feroz125, [...] (PL IX.455-471)

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Essa situação se confronta com a situação de felicidade (representativa do Éden) na qual se encontra o casal: “não faltava o propósito gentil (conversa), nem sorrisos cativantes, nem o namoro juvenil como convém ao casal justo, vinculado numa aliança nupcial feliz, sozinhos como eles.” (PL IV.337-340, tradução nossa). 125 “Such pleasure took the serpent to behold This flowery plat, the sweet recess of Eve Thus early, thus alone; her heavenly form Angelic, but more soft, and feminine, Her graceful innocence, her every air Of gesture or least action overawed His malice, and with rapine sweet bereaved His fierceness of the fierce intent it brought: That space the evil one abstracted stood From his own evil, and for the time remained Stupidly good, of enmity disarmed, Of guile, of hate, of envy, of revenge; But the hot hell that always in him burns, Though in mid-heaven, soon ended his delight, And tortures him now more, the more he sees Of pleasure not for him ordained: then soon Fierce hate he recollects, […]” (MILTON, 2015, p. 616-618)

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4.1.5 Movimento rápido e sem som

“[...] a cobra se move rapidamente e sem fazer um som. Esse atributo poderia simbolizar agilidade e destreza. Também pode conotar esquivamento hábil, que é uma característica de divindades imaginadas ou experimentadas126.” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Dado que o movimento rápido e sem som da serpente simboliza a destreza de Satã, pode-se observá-la quando ele considerou cada criatura no globo da Terra para que servisse as suas artimanhas.

[...] assim o orbe Cruzou e examinou, e com minúcia Considerou os seres, e qual deles Mais útil fosse aos seus ardis, e achou Ser a serpente a mais sutil das bestas127. (PL IX.82-86)

4.1.6 Dois pênis / muitos descendentes

[...] a cobra macha tem dois “pênis” (o termo é “hemipênis”) que são usados somente para a cópula, e qualquer um deles pode ser assim utilizado. Essa qualidade somática única poderia permitir que a cobra simbolizasse não somente o erótico, mas também a fertilidade. A fêmea também deveria ser inclusa agora; ela produz tantos descendentes que um observador poderia imaginar que a criatura seja um símbolo ideal para a fertilidade128. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Em PL IX.93 (“As from his wit and native subtlety”), Milton caracteriza a serpente como macha pelo pronome “his”. Em princípio, de acordo com Huddleston e Pullum (2005), segundo a gramática inglesa, aplica-se aos animais machos ou fêmeos (especialmente animais inferiores e criaturas não fofinhas) o pronome neutro “it”.

“[...] the snake moves rapidly and without making a sound. That attribute could symbolize swiftness and dexterity. It can also connote elusiveness, which is a characteristic of deities imagined or experienced.” 127 “[...] thus the orb he roamed With narrow search; and with inspection deep Considered every creature, which of all Most opportune might serve his wiles, and found The serpent subtlest beast of all the field. (MILTON, 2015, p. 591) 128 “[...] the male snake has two ‘penises’ (the term is ‘hemipenes’) that are solely used for copulation, and either may be so utilized. That unique somatic quality could enable the snake to symbolize not only the erotic but also fertility. The female also should be included now; she produced so many offspring that an observer would imagine that the creature was an ideal symbol for fertility.” 126

78 O pronome de gênero masculino he é usado para machos – humanos ou animais que têm características sexuais salientes o bastante para que pensemos neles como diferenciados (certamente para gorilas, geralmente para patos, provavelmente não para ratos, certamente não para baratas)129. (HUDDLESTON, PULLUM; 2005; p. 103, tradução nossa).

Assim sendo, pode-se interpretar que Milton usou o pronome “his” para a serpente por causa de ela estar ligada a Satã, que é tratado pelo pronome “he”. Enfim, a fertilidade da serpente130, ou ainda, sua capacidade de produzir vários semelhantes seus, simboliza a capacidade de Satã de persuadir a terça parte dos anjos do Céu – quantidade não pequena, fértil – para se rebelar contra o Altíssimo, tornando-se assim semelhantes a ele.

Juntou a terça parte dos celestes A maquinar conjuras131, [...] (PL II.692-693)

4.1.7 Língua bífida

[...] a cobra tem uma língua dividida que pode sair de sua boca através de um buraco; isto é, a cobra não tem que abrir sua boca para colocar sua língua adiante. A língua bífida, junto com os dois pênis, podem simbolizar dualidade. Também pode denotar duplicidade e a habilidade de dizer duas coisas ao mesmo tempo. Desta forma, a cobra pode simbolizar a mentira132. [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

A língua bífida da serpente simboliza a mentira – que se compõe em parte de verdade, em parte de falsidade – dita pela serpente tentadora. A mentira é comprovada pela fala de Adão, que reconhece o mau fruto do conhecimento, portanto diferente do que a serpente tentadora prometeu:

“The masculine gender pronoun he is used for males – humans or animals that have saliente enough sexual characteristics for us to think of them as differentiated (certainly for gorillas, usually for ducks, probably not for rats, certainly not for cockroaches).” 130 Obs.: Independentemente de a serpente de Milton ser macha ou fêmea, o simbolismo da fertilidade da serpente, com base em Charlesworth (2010), aplica-se igualmente aos anjos atraídos por Satã no Céu. 131 “Drew after him the third part of heaven’s sons Conjured against the highest, [...]” (MILTON, 2015, p. 158) 132 “[...] the snake has a split tongue that can exit its mouth through a hole; that is, the snake does not have to open its mouth to send forth its tongue. The bifid tongue, along with two penises, can symbolize duality. It can also denote duplicity and the ability to say two things at the same time. Thus, snake can symbolize lying. [...]” 129

79 Ó Eva, em má hora deste ouvidos Ao falso verme, aluno de quem quer Que imite voz humana. Veraz é Na queda, na ascensão falso. Abertos Os olhos confirmamos, e sabemos O bem e o mal, perdido o bem, achado O mal, do saber mau fruto133, [...] (PL IX.1067-1073)

4.1.8 Carnívora

“[...] a cobra come de uma maneira malvada, e todas as cobras são carnívoras. Esse ‘quadrúpede degenerado’ pode ingerir um animal que supere o seu peso. [...] Todas as cobras engolem animais inteiros134.” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa) Essa capacidade de ingerir um animal que supere o seu peso e assim causar sua morte por ter sido comido simboliza que Satã conseguiu de certo modo trazer para si, ou ao Inferno, a raça inteira dos homens. Por causa de Adão e Eva terem desobedecido a Deus, Satã causoulhes sua destinação à morte. Mesmo o primeiro casal se arrependendo e recebendo a promessa da redenção, Satã tem essa capacidade de corromper a humanidade. Segue essa intenção de Satã predita em forma de interrogação pelo Filho ao Pai:

Ou há-de obter agora o adversário Seu fim, frustrando o teu, há-de cumprir Seu rancor, e o teu bem levar a nada, Ou ufano voltar ao fundo exício, Com vingança cumprida e ao inferno Arrastar co’ele toda a raça humana Por ele peitada135? [...] (PL III.156-162) “O Eve, in evil hour thou didst give ear To that false worm, of whomsoever taught To counterfeit man’s voice, true in our fall, False in our promised rising; since our eyes Opened we find indeed, and find we know Both good and evil, good lost and evil got, Bad fruit of knowledge, […]” (MILTON, 2015, p. 660) 134 “[...] the snake eats in a vicious manner, and all snakes are carnivores. This ‘degenerate quadruped’ can ingest an animal that overweighs it. [...] All snakes swallow animals whole, [...]” 135 “Or shall the adversary thus obtain His end, and frustrate thine, shall he fulfil His malice, and thy goodness bring to naught, Or proud return though to his heavier doom, Yet with revenge accomplished and to hell Draw after him the whole race of mankind, By him corrupted? […]” (MILTON, 2015, p. 200) 133

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4.1.9 Socialmente independente [...] a cobra é socialmente independente. Geralmente ela é vista em grupos somente no nascimento ou na culminação da hibernação. Não é gregária como são os cachorros, e não vive em grupos como os leões. Ela não caça em bandos como lobos e hienas; ela caça sozinha136. [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

A serpente estar em grupos no nascimento remete o leitor a Lúcifer quando se encontrava entre os anjos no Céu, seu local de origem:

[...] se não primeiro Entre arcanjos primeiros, não menor Em favor e eminência137; [...] (PL V.659-661)

O período de hibernação da serpente, durante o qual ela não caça, corresponde ao período em que Satã esteve ausente da Terra. Até que descobrisse se era verdadeiro o antigo e profético rumor no Céu sobre um outro mundo (PL II.346-347), Satã não representava perigo à humanidade. Apesar de estar em grupo no Céu ou no Inferno, Satã, assim como a serpente, é socialmente independente, “caça sozinho”, como se observa quando anunciou aos demônios no Inferno que nenhum dos demônios tomaria parte com ele do empreendimento de fugir do Inferno.

[...] e esta aventura Não a divido138. [...] (PL II.465-466)

Ademais, Satã assumiu asas velozes e em direção aos portões do Inferno explorou seu voo solitário (PL II.629-632), que é uma forma de agir de modo independente.

“[...] the snake is socially independent. It is usually seen in groups only at birth or at the culmination of hibernation. It is not gregarious as are dogs, and does not live in groups like lions. It does not hunt in packs, like wolves and hyenas; it hunts alone. [...]” 137 “[...] he of the first, If not the first archangel, great in power, In favour and pre-eminence, […]” (MILTON, 2015, p. 384) 138 “[...] this enterprise None shall partake with me. […]” (MILTON, 2015, p. 138) 136

81 Entretanto o adversário de Deus e homem, Satã, ateando intuitos de alto traço, Asas folgadas põe, e até às portas Do inferno testa o voo solitário139; [...] (PL II.629-632)

4.1.10 Sangue frio

“[...] a cobra tem sangue frio e necessita obter seu calor do seu ambiente140.” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa) Embora Satã irrompa lágrimas assim como os anjos choram, a serpente ter sangue frio remete o leitor à insensibilidade de Satã ao gênero humano. Mesmo tendo ficado estupidamente bom ao ver Eva, Recobre ódio feroz, e os pensamentos De ofensa, jubilando, assim desperta141. (PL IX.471-472)

4.1.11 Quase invisível [...] a cobra é quase invisível quando está descansando porque sua cor geralmente é semelhante ao seu ambiente. Esse atributo da cobra pode ser adicionado à sua elusividade e invisibilidade. Isso pode significar o ser que está lá, mas não pode ser percebido. Desta forma, a cobra pode simbolizar a elusividade misteriosa de um deus142. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Essa característica da serpente simboliza a habilidade de Satã de se esconder como se escondeu na serpente dormente. Desta forma, poderia esconder suas intenções escuras porque entrou no corpo da serpente de modo que não fosse percebido por Eva.

“Meanwhile the adversary of God and man, Satan with thought inflamed of highest design, Puts on swift wings, and toward the gates of hell Explores his solitary flight; […]” (MILTON, 2015, p. 150) 140 “[...] the snake is cold blooded and needs to obtain its warmth from its surroundings.” 141 “Fierce hate he recollects, and all his thoughts Of mischief, gratulating, thus excites.” (MILTON, 2015, p. 620) 142 “[...] the snake is almost invisible when it is resting because its color is usually similar to its surroundings. This attribute of the snake might add to its elusiveness and invisibility. It can signify the being that is there, but cannot be perceived. Thus, the snake may symbolize the mysterious elusiveness of a god.” 139

82 [...] destes a guarda Temo, e p’ra fugir, assim em névoa De gás da meia-noite passo obscuro, E habito o bosque e a moita onde acaso Dê co’a serpente em sono, em cujas pregas Dedáleas me esconder e aos negros planos.143 (PL IX.157-162)

4.1.12 Não demonstração de medo

“[...] a cobra não mostra medo, como os cachorros e mesmo os leões. Quando confrontada pelo perigo, ela não foge ou abaixa seu pescoço, em obediência e submissão144. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). A não demonstração de medo da serpente corresponde à coragem de Satã de nunca se submeter às ordens no Céu.

E a insubmissa coragem se perderam?145: (PL I.108)

Satã não pôde suportar confessar o Filho de Deus como Senhor pelo orgulho daquela visão.

E todo o joelho o Céu há-de dobrar Ante ele, confessando-o Senhor146. (PL V.607-608)

Então Satã considerou-se prejudicado e resolveu se deslocar com todas as suas legiões de demônios e deixar o trono supremo não adorado, não obedecido, o que lhe requereu coragem.

“[…] of these the vigilance I dread, and to elude thus wrapped in mist Of midnight vapour glide obscure, and pry In every bush and brake, where hap may find The serpent sleeping, in whose mazy folds To hide me, and the dark intent I bring.” (MILTON, 2015, p. 596) 144 “[...] the snake does not show fear, as do dogs and even lions. When confronted by danger it does not slink away or lower its neck, in obedience and submission. [...]” 145 “And courage never to submit or yield:” (MILTON, 2015, p. 40) 146 “And by myself have sworn to him shall bow All knees in heaven, and shall confess him Lord.” (MILTON, 2015, p. 380) 143

83 Rei Messias ungido, não conteve Na altivez tal visão, e achou-se leso. Concebendo desdém e vil malícia, Logo que a meia-noite trouxe as sombras Amigas do descanso, decidiu Destroçar com as tropas, e deixar Por louvar, por cumprir, o trono máximo147, (PL V.664-670)

4.1.13 Troca de pele

“[...] a cobra muda sua pele (chama-se ecdise), [...]. A ecdise simboliza a habilidade de a cobra rejuvenescer a si mesma e de ganhar um corpo novo, melhor e maior e existência148. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa) Essa capacidade de mudança de pele simboliza a troca de formas de Satã, pois ele assumiu diversas formas para que não fosse reconhecido como tal: corvo-marinho, sapo149, serpente.

Voou então, e na árvore da vida, Mais subida e central nenhuma havia, Fez-se corvo-marinho150; [...] (PL IV.194-196) […] pois ei-lo De cócoras qual sapo, rente ao tímpano De Eva151, [...] (PL IV.799-800)

“Messiah king anointed, could not bear Through pride that sight, and thought himself impaired. Deep malice thence conceiving and disdain, Soon as midnight brought on the dusky hour Friendliest to sleep and silence, he resolved With all his legions to dislodge, and leave Unworshiped, unobeyed the throne supreme” (MILTON, 2015, p. 384) 148 “[...] the snake sheds its skin (called ecdysis), [...]. Ecdysis would symbolize the snake’s ability to rejuvenate itself and to gain a new, better, and larger body and existence.” 149 “Satã ‘sentou-se como um cormorão’ não é uma comparação. Significa, ao contrário, como nas passagens gregas, que ele se sentou no disfarce daquela ave rapinante. O limiar entre comparação e descrição e a passagem do símile em transformação são clarificados por uma série de observações. ‘Para baixo ele pousa’ (396) dá a Satã um verbo apropriado a aves assim como seu sentar-se ‘agachado como um sapo, próximo do ouvido de Eva’ (800) e, tocado pela lança de Ituriel ele ‘se tornou em seu próprio formato’ (819).” (MINER, MOECK, JABLONSKI; 2010, p. 173, tradução nossa) 150 “Thence up he flew, and on the tree of life, The middle tree and highest there that grew, Sat like a cormorant; [...]” (MILTON, 2015, p. 268) 151 “[…] him there they found Squat like a toad, close at the ear of Eve;” (MILTON, 2015, p. 314) 147

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4.1.14 Desaparecimento na terra

“[...] a cobra pode desaparecer na terra. Desta maneira, é ctônica, isto é, ela entra no mundo inferior que é desconhecido aos humanos152. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Posto que o mundo inferior seja o Inferno, o desaparecimento da serpente na terra se refere à presença de Satã no Inferno, onde realizou-se o conselho solene, desconhecido por Adão e Eva.

Nisto, os arautos de asas, por comando Soberano, com negra cerimônia E trombetas por toda a hoste avisam Do grão-concílio a ser levado a cabo Em Pandemônio, grande capital De Satã e seus pares:153 [...] (PL I.752-757)

4.1.15 Possibilidade de beleza surpreendente

“[...] a cobra pode ser surpreendentemente bonita. Ela não precisa de adornos. [...] A beleza pode ser considerada demoniacamente atrativa154. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). A serpente tentadora é descrita como agradável e amável.

[...] grata a forma, E formosa155, [...] (PL IX.503-504)

“[...] the snake can disappear into the earth. Thus, it is chthonic; that is, it enters into the lower world that is unknown to humans. [...]” 153 “Meanwhile the winged heralds by command Of sovereign power, with awful ceremony And trumpet’s sound, throughout the host proclaim A solemn council forthwith to be held At Pandemonium, the high capital Of Satan and his peers: […]” (MILTON, 2015, p. 96, 98) 154 “[...] the snake can be astonishingly beautiful. It needs no cosmetics. [...] The beauty may be considered demonically attractive. [...]” 155 “[...] Pleasing was his shape, And lovely, [...]” (MILTON, 2015, p. 622) 152

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A beleza da serpente foi um atrativo, uma estratégia de sedução, para a mulher conversar com ela. Simboliza a grandiosidade em poder de Lúcifer – dos primeiros, se não o primeiro arcanjo –, sua glória antes de sua queda, assim como eram perfeitos e gloriosos os anjos enquanto estavam na obediência. [...] se não primeiro Entre arcanjos primeiros, não menor Em favor e eminência156, (PL V.659-661) Caí, p’ra ti alturas de vertigens157, (PL IV.39) [...] como ser frio Ante a ruína de tantos tão gloriosos E perfeitos um dia158, [...] (PL V.566-568)

4.1.16 Veneno mortal

“[…] a cobra frequentemente possui veneno mortal. Isso a faz a causadora da morte159. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Considerando que a serpente tentadora possua veneno mortal como é frequente, ele simboliza o discurso que a serpente tentadora fez a Eva no Livro IX, cujo propósito era o de que Eva morresse, iniciando-se pela tentação fraudulenta e encerrando-se em sua retirada furtiva.

Não te admires, rainha160, [...] (PL IX.532) [...] Voltou esquiva Ao bosque a serpe má, e bem podia, Que entregue Eva ao sabor161, [...] (PL IX.784-786)

“[...] he of the first, If not the first archangel, great in power, In favour and pre-eminence, […]” (MILTON, 2015, p. 384) 157 “I fell, how glorious once above thy sphere;” (MILTON, 2015, p. 254) 158 “[...] how without remorse The ruin of so many glorious once And perfect while they stood; […]” (MILTON, 2015, p. 378) 159 “[...] the snake often possesses deadly venom. That makes it the giver of death. [...]” 160 “Wonder not, sovereign mistress, […]” (MILTON, 2015, p. 624) 161 “[…] Back to the thicket slunk The guilty serpent, and well might, for Eve Intent now wholly on her taste, […]” (MILTON, 2015, p. 640) 156

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4.1.17 Ausência de emoção facial [...] a cobra não mostra emoção facial. Ela não sorri ou faz careta; ela somente abre a sua boca parcial ou completamente. Qualquer sorriso putativo geralmente se torna percebido como uma careta. É uma ameaça ou promessa mortal, conforme as presas horríveis se tornam visíveis. A falta de expressão da cobra poderia simbolizar sua superioridade. Está acima das emoções. É de um outro reino ou mundo. Não age como criaturas terrenas162. [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Segundo o autor, a falta de expressão facial da serpente pode remeter o leitor a um outro reino ou mundo. Assim, esse traço da serpente simboliza a morada de Satã, o Inferno, descrito da seguinte forma no Livro I: ‘Té onde vai dos anjos a visão Vê o mórbido estado seco e bravo, Um cárcere horrível, curvo de cantos Como inflamado forno, porém chamas Sem luz, senão visível cerração Revelando paisagens de lamento, Regiões de dor, sombrias, onde paz E descanso não restam, nem esperança Que a todos no fim resta; mas tortura Sem fim, e ígneo dilúvio, atiçado Com sempre ardente enxofre inconsumido: Tal lugar a justiça eterna deu Aos rebeldes, [...]163 (PL I.59-71)

“[...] the snake can show no facial emotion. It cannot smile or grimace; it can only open its mouth partly or fully. Any putative smile usually becomes perceived as a grimace. It is a deadly threat or promise, as the horrific fangs become visible. The expressionlessness of the snake could symbolize its superiority. It is above emotions. It is from another realm or world. It does not act like earthly creatures. [...]” 163 “At once as far as angels’ ken he views The dismal situation waste and wild A dungeon horrible, on all sides round As one great furnace flamed, yet from those flames No light, but rather darkness visible Served only to discover sights of woe, Regions of sorrow, doleful shades, where peace And rest can never dwell, hope never comes That comes to all; but torture without end Still urges, and a fiery deluge, fed With ever-burning sulphur unconsumed: Such place eternal justice had prepared For those rebellious […]” (MILTON, 2015, p. 36) 162

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4.1.18 Posição de pé / falo [...] a cobra levantada pode se assemelhar a um falo ingurgitado. Isso poderia significar seus poderes sexuais. Apesar do fato de que as cobras às vezes copulam somente após a hibernação, esse fator junto com seus dois pênis seriam acrescentados à sua habilidade de simbolizar o falo, o erotismo, a sexualidade e a fertilidade164. [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

O formato de falo ou pênis que a serpente assume simboliza o incesto realizado entre Satã e sua filha, Pecado, que gerou Morte. […] Absorta estava Só, mas por pouco foi, ‘té que o meu ventre Prenhe de ti, e então exagerado Sentiu pontapés, vascas assombrosas. Por fim, a torpe raça que aqui vês, Casta tua, rompeu caminho à força Pelas minhas entranhas, que com dores E medo distorcidas novas formas Me deram aos quadris. Investiu mais Meu ínsito rival, brandindo o dardo Do massacre: fugi, e gritei ‘Morte’; Tremeu o inferno ao nome, com suspiros Das grutas, retumbando ‘Morte’ ‘Morte’165. (PL II.777-789)

4.1.19 Penetração no jardim

“[...] a cobra cava em e em torno de um jardim166, [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Cavar no jardim simboliza a entrada de Satã no Paraíso terrestre (Éden) e em torno do jardim, o percurso de Satã em torno do globo terrestre.

“[...] the raised snake can resemble an engorged phallus. That could signify its sexual powers. Despite the fact that snakes sometimes copulate only after hibernation, this factor along with its two penises would add to its ability to symbolize the phallus, eroticism, sexuality, and fertility. [...]” 165 “[...] Pensive here I sat Along, but long I sat not, till my womb, Pregnant by thee, and now excessive grown Prodigious motion felt and rueful throes. At last this odious offspring whom thou seest, Thine own begotten, breaking violent way, Tore through my entrails, that with fear and pain Distorted, all my nether shape thus grew Transformed: but he my inbred enemy Forth issued, brandishing his fatal dart Made to destroy: I fled, and cried out Death; Hell trembled at the hideous name, and sighed From all her caves, and back resounded Death.” (MILTON, 2015, p. 164, 166) 166 “[...] the snake digs in and around a Garden, [...]” 164

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Assim prossegue, e assim chega às fronteiras Do Éden, onde o doce Paraíso167, (PL IV.131-132) [...] assim o orbe Cruzou e examinou, [...]168 (PL IX.82-83)

4.1.20 Grandeza e majestade [...] a cobra pode ilustrar grandeza e majestade. Nenhuma criatura pode ser tão impressionantemente régia como a cobra erguida com sua capa estendida. Perante tal poder majestoso sente-se admiração. Talvez ela possa ser categorizada parcialmente como divindade e parcialmente como realeza169. [...] (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa).

A grandeza e majestade, comumente associadas a títulos nobres como rei ou príncipe, relativas à serpente citadas por Charlesworth (2010) simbolizam a poderosa estatura do chefe do Inferno, Satã.

Com prontidão a prumo iça do lago A rija compleição170; [...] (PL I.221-222)

4.1.21 Misteriosa e desconhecida

“[…] a cobra é misteriosa e desconhecida. Ainda hoje, muito é ainda desconhecido. [...] a cobra é bem escolhida para simbolizar o mistério que circunda e acompanha vidas humanas171. [...]” (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa). Que a serpente seja misteriosa pode-se observar quando ela coloca Eva em dúvida a respeito de sua língua:

“So on he fares, and to the border comes Of Eden, where delicious Paradise,” (MILTON, 2015, p. 262) 168 “[...] Thus the orb he roamed With narrow search; […]” (MILTON, 2015, p. 590) 169 “[...] the snake can illustrate grandeur and majesty. No creature can be so awesomely regal as the upraised cobra with its hood extended. Before such majestic power one feels total awe. Perhaps it can be categorized partly as divinity and partly as royalty. [...]” 170 “Forthwith upright he rears from off the pool His mighty stature; […]” (MILTON, 2015, p. 48) 171 “[...] the snake is mysterious and unknown. Even today, much is still unknown. [...] the snake is well chosen to symbolize the mystery that surrounds and accompanies human lives. [...]” 167

89 Que é isto? Linguagem de homem dita Em língua bruta, senso humano expresso172? (PL IX.553-554)

O atributo “misteriosa” da serpente corresponde ao mistério que Satã significa para Adão e Eva, pois o Pai Eterno ordena que Rafael converse com Adão como amigos sobre Satã, sobretudo a respeito do perigo no Éden devido a Satã. Além disso, Adão deve ser informado de que Satã não planeja a sua queda por violência, mas por enganos e mentiras, que são ações que veiculam de algum modo conteúdo misterioso e desconhecido pelo primeiro casal.

Vai pois, e a tarde tira p’ra um amigo, Adão, onde quer que em sombra ou refúgio Evite ao meio-dia a brasa ardente, E dê pausa ao labor com um repasto Ou repouso; e aflora este assunto, Que o lembre da feliz condição dele, E dele a felicidade é seu arbítrio, Ao livre arbítrio seu deixada, livre Mas mutável; daí diz-lhe à cautela Que em si não ponha tanta fé. Mais conta-lhe Do risco, e de quem se arrisca, qual O rival que do Céu caído trama De igual felicidade a queda de outros; Não por violência, tal se impugnará, Mas por fraude e mentira173; [...] (PL V.229-243)

“What may this mean? Language of man pronounced By tongue of brute, and human sense expressed?” (MILTON, 2015, p. 626) 173 “Go therefore, half this day as friend with friend Converse with Adam, in what bower or shade Thou findst him from the heat of noon retired, To respite his day-labor with repast, Or with repose; and such discourse bring on As may advise him of his happy state, Happiness in his power left free to will, Left to his own free will, his will though free Yet mutable; whence warn him to beware He swerve not, too secure. Tell him withal His danger, and from whom, what enemy, Late fallen himself from heaven, is plotting now The fall of others from like state of bliss; By violence, no, for that shall be withstood, But by deceit and lies; […]” (MILTON, 2015, p. 352) 172

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4.1.22 Antissocial / sem comunicação com o homem

[...] a cobra é antissocial, no sentido de que um ser humano não pode se comunicar com ela e desenvolver uma relação com ela. Não se pode viver junto com uma cobra, mas ela é uma companhia estranha quer numa caverna pré-histórica quer num jardim moderno. [...] Não há maneira de se comunicar ou desenvolver algo como “amor” ou “respeito” com uma cobra. Não se pode apreciar um relacionamento com uma cobra como se pode com um cachorro174. (CHARLESWORTH, 2010, tradução nossa)

Essa característica serve para a serpente tentadora convencer Eva de que ela comeu a maçã proibida e lhe deu uma capacidade superior – a fala humana – por isso podem conversar (PL IX), diferentemente se a serpente estivesse em seu estado natural. Subentenda-se que o qualificativo “boa” deva acompanhar o termo “relação” na citação acima quando o autor afirma que não se pode desenvolver uma relação com a cobra. No período seguinte, afirma-se a razão por que a cobra é “antissocial”: ela é uma companhia estranha. A rigor, Satã não é antissocial com Adão e Eva, mas sociável na medida em que se comunica com eles. Assim sendo, assuma-se que “antissocial” nos termos de Charlesworth (2010) signifique oferecer uma companhia estranha como a de Satã, uma vez que com ele não há o prazer de se ter uma vida em comum ou em companhia como tinham Adão e Eva em seu amor conubial de pureza e inocência.

[...] nem p’ra si Eva, Como p’ra ritos sacros de amor fria: O que quer que solene fale o hipócrita De pureza, lugar e inocência, Difamando o que Deus declarou puro175 (PL IV.742-747)

“[...] the snake is antissocial in the sense that a human cannot communicate with it and develop a relation with it. One can live together with a snake, but it is an odd companion whether in a prehistoric cave setting or in a modern garden. [...] There is no way to communicate with or develop something ‘love’ or ‘respect’ with a snake. One cannot enjoy a relationship with snake as one can with a dog.” 175 “[...] nor Eve the rites Mysterious of connubial love refused; Whatever hypocrites austerely talk Of purity and place and innocence, Defaming as impure what God declares Pure, […]” (MILTON, 2015, p. 310) 174

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4.2 ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ

Nesta seção, ainda com base em Paradise Lost e Charlesworth (2010), analisa-se a relação entre a serpente e o Satã de Milton em três momentos: primeiro, enquanto Lúcifer no Céu; segundo, enquanto o príncipe dos demônios no Inferno; terceiro, enquanto serpente tentadora no Éden.

4.2.1 No Céu

No Céu, Lúcifer, dos primeiros se não o primeiro arcanjo, foi grandioso em poder, perfeição e glória, enquanto esteve na obediência a Deus. A serpente pode ser surpreendentemente bonita, e de fato a serpente tentadora era agradável e amável (de tal modo que pôde seduzir Eva), da mesma forma como Lúcifer era belo por estar nesse estado no Céu. No entanto, Lúcifer recusou a ordem pronunciada pelo Pai de que os anjos deveriam confessar o Filho como o Senhor. A recusa de ouvi-la é bem representada pela ausência de ouvido na serpente: ela não tem tímpano, ouvido médio e externo, e a trompa de Eustáquio. Assim como a serpente, quando confrontada pelo perigo, não foge ou abaixa seu pescoço, Lúcifer tomou uma atitude corajosa: a de deixar o trono supremo não adorado, não obedecido. Lúcifer teve a coragem de nunca se submeter às ordens no Céu. Demonstradas sua recusa e insubmissão à ordem do Pai, Lúcifer conseguiu persuadir um terço dos anjos do Céu a se rebelar contra o Altíssimo. Isso significa que um terço dos anjos do Céu se assemelharam a Lúcifer. Essa capacidade de produzir vários semelhantes seus corresponde à fertilidade da serpente. Quer macha, quer fêmea, a serpente, segundo Charlesworth (2010), simboliza a fertilidade. Em vez de aplicar o pronome it da língua inglesa à serpente tentadora, Milton aplica o pronome he, possivelmente por ela estar ligada a Satã, que é tratado pelo pronome he.

4.2.2 No Inferno

A serpente não mostrar emoção facial, como o sorriso ou a careta, aponta para um outro reino ou mundo. A serpente tentadora remete o leitor ao reino do Inferno, onde Satã é chefe, o lugar que a justiça eterna preparou para os rebeldes, descrito em PL I.59-71. No Inferno, a protagonista de Paradise Lost passa a ser chamada de “Satã”, haja vista que o nome “Lúcifer” não se pronunciou mais no Céu devido à sua revolta. Neste mesmo espaço

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ainda, Satã tinha poderosa estatura de chefe da mesma forma como a serpente ilustra grandeza e majestade. Satã é chamado de príncipe dos demônios. Ainda que exercesse tal função no Inferno, Satã estava privado de se comunicar com os humanos porque os portões do Inferno estavam fechados para sempre por Pecado. Desse modo, Satã não poderia entrar no Paraíso, por cujos portões Gabriel era responsável. Essa privação de Satã de se comunicar com os humanos é representada pela ausência de voz da serpente, que é muda, não tem meio vocal para se comunicar com os humanos. Ademais, a ausência de voz da serpente foi uma característica do animal que serviu para que Satã, fingindo que a serpente tentadora tivesse ganhado a fala humana, persuadisse Eva a comer a maçã proibida. A serpente é um animal que desaparece na terra. Simbolicamente entra no mundo inferior, desconhecido pelos humanos. Assim, a presença da serpente embaixo da terra representa a presença de Satã no Inferno, onde realizou o conselho solene (desconhecido por Adão e Eva) no Pandemônio. Após debate no conselho, propôs-se que fosse verificada a profecia no Céu sobre a existência de criatura semelhante a eles mesmos ou não muito inferior. Em Paradise Lost, Pecado é uma personagem feminina, gerou Morte (personagem masculina), guardava os portões do Inferno, era filha de Satã e com ela Satã praticou incesto. Dado que a serpente em posição de pé se assemelha a um falo e isso pode significar seus poderes sexuais, o erotismo ou a sexualidade representados por esse formato remetem o leitor ao evento do incesto entre Satã e Pecado. Finalmente, Satã voou sozinho em direção aos portões do Inferno sem que nenhum demônio tomasse parte desse empreendimento. Isso mostra como ele age de maneira socialmente independente. Por outro lado, ele estava em grupo no seu local de origem, o Céu, junto aos anjos, bem como no Inferno em posição elevada como chefe dos demônios. De maneira semelhante, a serpente não vive em grupos, mas caça sozinha. Ela é vista em grupos somente no nascimento, que corresponde a Lúcifer no Céu, ou na culminação da hibernação, que corresponde ao período em que Satã não representava perigo à humanidade assim como a serpente não representa enquanto dorme.

4.2.3 Na Terra

As serpentes são carnívoras e podem engolir animais inteiros que superem o seu próprio peso. Da mesma forma que a serpente pode comer suas presas maiores que si mesma, e assim causar a sua morte, Satã tem a capacidade de corromper a raça humana inteira, que é em quantidade maior que ele mesmo, e assim provocar sua morte, isto é, destiná-la ao Inferno.

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Mesmo que o primeiro casal tenha se arrependido e recebido a promessa de redenção, Satã tem essa capacidade de corromper a humanidade. A serpente se move rapidamente e sem som, o que simboliza agilidade e destreza. A destreza é uma qualidade de Satã que se observa quando examinou minuciosamente cada criatura do globo da Terra para que servisse suas artimanhas e então encontrou a serpente, a mais sutil das bestas. Além disso, a penetração em jardim é uma característica da serpente que simboliza a entrada de Satã no Paraíso terrestre. A serpente é um animal que não possui pálpebras. Ter os olhos abertos sem interferências na visão (portanto, uma visão mais perfeita) simboliza sabedoria ou astúcia. Conforme Santo Agostinho (2012, p. 388), “na língua latina são denominados sábios com propriedade e pelo uso geral quando merecem louvor, mas por astutos se entendem os de mau caráter.”. Assim, pode-se afirmar que a ausência de pálpebras da serpente tentadora simboliza a astúcia de Satã. Como ainda há serpentes deficientes de visão, se se admite a serpente tentadora como tal, sua ausência de visão se refere à recusa de Satã de ver o bem da criação de Deus como a beleza de Eva, que por um tempo o deixou estupidamente bom, mas em seguida o inferno tornou a queimar dentro de si. Apesar disso, recobrou o ódio feroz e despertaram-se todos os seus pensamentos de ofensa. A serpente ser de sangue frio remete o leitor a essa insensibilidade de Satã ao gênero humano. Em Paradise Lost, Satã é uma personagem que assume formas diferentes ao longo da trama. No espaço do Éden, assumiu a forma de corvo-marinho, de sapo e de serpente. A ecdise (mudança de pele) da serpente aponta para a mudança de formas pelas quais passou Satã. Quanto à serpente, ser elusiva e quase invisível são características suas que indicam a habilidade de Satã de se esconder na serpente dormente para que Eva não percebesse as suas intenções sombrias por estar naquele corpo. A serpente é um animal misterioso, assim simboliza bem os mistérios que circundam as vidas humanas. Da mesma forma, Satã também é misterioso para Adão e Eva, pois planeja causar sua queda não por violência, mas por enganos e mentiras, conforme Rafael conversou amigavelmente com Adão, alertando-o do perigo no Éden devido a Satã. Foi uma ação misteriosa a serpente tentadora colocar Eva em dúvida a respeito da língua utilizada para persuadi-la a comer a maçã, haja vista que os animais não têm a língua dos homens. Ainda que a serpente se comunique de algum modo com os homens, supor que a serpente tentadora tenha ganhado a fala humana é uma estratégia para que Eva fosse persuadida pela serpente tentadora. A serpente é um animal antissocial – usando esse termo de Charlesworth (2010) – no sentido de que não desenvolve uma relação boa com os homens, ou

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ainda, lhes é uma companhia estranha. De modo semelhante, não há o prazer de se ter uma vida em companhia de Satã, como tinham Adão e Eva em seu amor conubial de pureza e inocência. A serpente não tem braços e pernas e seu movimento serpentino de ritmo quase circular pode ser visto como simbólico do tempo. A serpente tentadora, quando se dirigiu a Eva, moveuse em base circular. Considerando que o círculo não tem começo e fim, ele simboliza a eternidade, que não tem começo e fim. Assim sendo, a base circular de dobras ascendentes da serpente tentadora sinaliza a mensagem de eternidade levada por Satã e prometida a Eva: “não morrerás.” (PL IX.685) Frequentemente a serpente possui veneno mortal, o que a torna um ser que causa a morte. Admitindo-se a serpente como peçonhenta, o veneno mortal da serpente se refere ao discurso realizado a Eva pela serpente tentadora no Livro IX, cujo propósito foi provocar a queda do homem, desde a tentação fraudulenta até sua retirada furtiva. Por fim, a serpente possui língua bífida, que simboliza a mentira – que se compõe em parte de verdade, em parte de falsidade. A mentira dita pela serpente tentadora se comprova pela fala de Adão: que em má hora Eva deu ouvidos ao falso verme, e, por causa do mau fruto do conhecimento, perderam o bem e ganharam o mal.

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4.3 SÍNTESE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ

A tabela abaixo sintetiza a relação entre traços da serpente real e do Satã miltoniano.

FISIOLOGIA QUE EMBASA A SIMBOLOGIA (CAP. 2) EM

PASSAGENS DE PARADISE LOST

CHARLESWORTH (2010) 1. Ausência de braços e pernas / Mensagem de eternidade prometida a Eva (PL IX.685). movimento (quase) circular 2. Ausência de ouvido

Recusa de Satã de ouvir a ordem pronunciada do Pai (PL V.607-608).

3. Ausência de voz

Privação de Satã de se comunicar com humanos (PL II.774-777; PL IV.epígrafe; PL IV.561-563).

4. Ausência de pálpebras e de visão Recusa de ver o bem da criação de Deus como a beleza em algumas

de Eva (PL IX.455-471).

5. Movimento rápido e sem som

Destreza de Satã quando considerou cada criatura do globo da Terra (PL IX.82-86).

6. Dois pênis / muitos descendentes

A quantidade de um terço dos anjos do Céu persuadidos a se rebelar contra o Altíssimo (PL II.692-693).

7. Língua bífida

A mentira de Satã que se comprova pela fala de Adão (PL IX.1067-1072).

8. Carnívora

Capacidade de Satã de corromper a raça inteira dos homens, causando-lhes a morte (PL III.156-162).

9. Socialmente independente

O voo solitário de Satã em direção aos portões do Inferno sem que nenhum demônio tomasse parte com ele desse empreendimento (PL II.631-632; PL II.465466).

10. Sangue frio

O ódio de Satã aos raios do Sol que lhe trazem à lembrança o estado de que caiu (PL IV.37-41).

11. Quase invisível

A escondedura de Satã na serpente dormente (PL IX.157-162).

12. Não demonstração de medo

A coragem de deixar o trono supremo não adorado, não obedecido (PL V.664-670).

96 13. Troca de pele

A mudança de formas de Satã: corvo-marinho (PL IV.194-196), sapo (PL IV.799-800), serpente.

14. Desaparecimento na terra

A presença de Satã no Inferno, onde realizou-se o conselho solene (PL I.752-757).

15.

Possibilidade

de

beleza A grandiosidade em poder, perfeição e glória de Lúcifer

surpreendente

enquanto estava na obediência (PL V.659-660; PL V.566-568).

16. Veneno mortal

Discurso da serpente tentadora a Eva desde a tentação fraudulenta (PL IX.532) até sua retirada furtiva (PL IX.784-786).

17. Ausência de emoção facial

O reino do Inferno (PL I.59-71).

18. Posição de pé / falo

Incesto entre Satã e sua filha Pecado (PL II.777-789).

19. Penetração no jardim

Entrada de Satã no Paraíso terrestre (PL IV.131-132).

20. Grandeza e majestade

Poderosa estatura do chefe do Inferno, Satã (PL I.221222)

21. Misteriosa e desconhecida

Mistério de Satã a Adão e Eva, porque planeja enganálos por meio de enganos e mentiras (PL V.229-243).

22. Antissocial / sem comunicação Companhia estranha de Satã ao casal Adão e Eva, que com o homem

vivia em amor conubial de pureza e inocência (PL IV.743-745).

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5. CONCLUSÃO

O objetivo geral desta dissertação foi mostrar como traços da personagem serpente tentadora refletem a personagem Satã. Afunilou-se esta análise desde o contexto de produção e recepção literárias de Paradise Lost até as significações simbólicas da serpente tentadora, perpassando pela análise de Satã em si mesmo e em relação a outros elementos da narrativa relacionados. Dado esse trajeto, no primeiro capítulo apresentou-se o contexto histórico da obra literária Paradise Lost, mais particularmente o movimento puritano, haja vista que o autor, John Milton, foi um escritor puritano. Essa obra épica produzida por Milton manteve relações com modelos clássicos da literatura, como por exemplo a Eneida de Virgílio. Assim como em outras épicas, pôde-se identificar a função de “herói” associada a Satã em Paradise Lost – “herói trágico”, segundo Forsyth (2014). Enfim, no tocante aos modelos clássicos, apresentaram-se as considerações de C. S. Lewis (1961) a respeito do gênero literário epopeia. Dentro do contexto de produção e recepção de Paradise Lost, tratou-se, com base em Hill (2003), do papel da Bíblia na sociedade do séc. XVII, livro este a partir do qual Milton realizou seu intertexto Paradise Lost, que possui narrações literárias divergentes do Gênesis. Ainda no primeiro capítulo, considerou-se a influência de Milton, o segundo maior poeta da literatura inglesa após Shakespeare, segundo Carpeaux (2011) e Fletcher (1919). Finalmente, considerou-se como Milton tem sido lido até os tempos recentes. No segundo capítulo, especializou-se mais o objeto de estudo, ou melhor dizendo, uma vez visto o contexto de produção e recepção da obra, focalizou-se Satã e as suas relações com outros elementos da narrativa. Para a análise dessa personagem, apresentaram-se alguns conceitos fundamentais de uma teoria da narrativa, a de Mieke Bal (1997); recorreu-se à fortuna crítica de Paradise Lost, em particular ao conceito de trimorfismo de Satã segundo Carey (1999) para mostrar como a personagem se transforma ao longo da trama: de arcanjo no Céu a príncipe dos demônios no Inferno, e deste a serpente tentadora no Éden; por fim, aplicaram-se conceitos da narratologia de Bal (1997) a Satã de modo que se tornassem claros recursos de criação literária na narrativa a exemplo da troca de nome de “Lúcifer” para “Satã”, da previsibilidade da personagem, da repetição de traços seus, da localização no espaço, da memória sobre a personagem como focalização, das fases do ciclo narrativo (possibilidade,

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realização, resultado) nas quais a personagem está presente, da sua competência de agir (vontade, poder, conhecimento). Pelos conceitos de “texto”, “história” e “fábula”, na terminologia de Bal (1997), fundamentou-se inicialmente os procedimentos de análise da narrativa. Em seguida, apresentou-se o conceito de “trimorfismo”, que é essencial para a compreensão da personagem em questão. Na próxima seção, Satã foi analisado em si mesmo, por exemplo seus traços e ações, e em relação a outros elementos da narrativa, por exemplo espaço e personagens, segundo a divisão feita por Bal (1997) – texto, história e fábula – em seu livro de Narratologia. Assim sendo, procurou-se apresentar uma análise da protagonista de Paradise Lost, conforme cada uma dessas três camadas da obra literária, de modo que seja melhor conhecida a personagem cujos traços a serpente tentadora simboliza. Finalmente, tida uma visão acerca do contexto histórico de Paradise Lost e do próprio Satã, no terceiro capítulo propôs-se uma interpretação simbólica de traços da serpente tentadora, a terceira forma assumida por Satã, com base em características da serpente listadas por Charlesworth (2010). Primeiramente, explicou-se como Charlesworth (2010) introduziu sua obra The Good and Evil Serpent a respeito da serpente. Das 32 características da serpente listadas pelo autor, tomaram-se 22 para a análise da serpente miltoniana. Em seguida, apresentaram-se citações tanto de Charlesworth (2010) sobre o animal serpente quanto da obra Paradise Lost de modo que se estabelecessem relações entre ambos. Na seção seguinte, consta um texto analítico, que parte das mesmas informações essenciais da seção precedente, onde se analisa a relação entre traços da serpente e de Satã divididos pelos espaços onde Satã esteve: Céu, Inferno e Terra. Por fim, forneceu-se uma tabela que contém uma síntese desses mesmos elementos relacionados nesta dissertação: características da serpente e passagens de Paradise Lost. Assim sendo, pôde-se analisar a serpente e Satã em Paradise Lost com base em 22 características da serpente extraídas de Charlesworth (2010) com o objetivo de apresentar uma interpretação que se pode realizar de traços da serpente refletindo traços de Satã.

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