A RELAÇÃO ENTRE O CARSTE E O CONGADO: O EXEMPLO DA LAPA DE SÃO BENTO EM PARAOPEBA, MINAS GERAIS

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO

A RELAÇÃO ENTRE O CARSTE E O CONGADO: O EXEMPLO DA LAPA DE SÃO BENTO EM PARAOPEBA, MINAS GERAIS Isabela Fernanda Gomes Oliveira1 Luiz Eduardo Panisset Travassos2

Resumo Este trabalho pretende abordar a importância cultural do carste e os conceitos geográficos que permeiam este assunto, bem como analisar as características das manifestações culturais em uma caverna por grupos de tradição popular católica. Objetiva-se dessa forma, expor a importância de determinadas paisagens e lugares e a necessidade de conservação do carste, do patrimônio espeleológico e do patrimônio cultural imaterial como o Congado. Utilizou-se da Geografia HumanistaCultural que tem como base metodológica a fenomenologia. Acredita-se que o uso cultural e religioso de ambientes naturais pode favorecer a preservação destes e salvaguardar tradições e culturas populares como patrimônio cultural imaterial. Palavras-chave: Carste; Cavernas; Congado; Espaço; Lugar. Abstract This study addresses the cultural importance of karst and geographical concepts linked to this subject. It is also the authors’ intention to analyze the characteristics of cultural events in caves by popular Catholic traditional groups. The purpose is therefore to expose the importance of certain landscapes and places and the need for conservation of karst, speleological heritage, and also the intangible cultural heritage, especially the Congado. The authors based on Humanist-Cultural Geography, whose methodological basis, phenomenology. It is believed that the cultural and religious use of natural environments may favor the preservation of these, and to safeguard popular traditions and cultures as intangible cultural heritage. Keywords: Karst; Caves; Congado; Space; Place.

1- Introdução O uso das cavernas está diretamente ligado à evolução da humanidade, pois, em conjunto com as paisagens onde estão inseridas, acabaram por tornar possível o desenvolvimento das primeiras civilizações. As cavernas serviam de abrigo e, quase

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Bolsista CAPES, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da PUC Minas. E-mail de contato: [email protected] 2

Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da PUC Minas. E-mail de contato: [email protected]

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sempre, estavam localizadas próximas às áreas onde havia disponibilidade de água. Além disso, a experiência tem mostrado que as cavernas guardam heranças culturais e religiosas que as fazem serem percebidas como lugares sagrados. Inúmeras comunidades tradicionais relacionam o subterrâneo aos mitos de criação, bem como às religiões, pois buscam no imaginário coletivo e na tradição oral, explicações para os fenômenos “inexplicáveis” (TRAVASSOS, 2010) Neste contexto surge a Lapa de São Bento, em Paraopeba, Minas Gerais. Na caverna ocorre uma manifestação cultural singular, conhecida como Congado. Toda história e valores socioculturais da tradição do congado fizeram com que esta manifestação fosse considerada Patrimônio Imaterial brasileiro e mineiro. Por esse motivo, os registros e ações de salvaguarda também são considerados extremamente importantes neste artigo. Do ponto de vista do ineditismo, a pesquisa torna-se relevante devido ao fato de, provavelmente, serem poucos os casos conhecidos de guardas de congado que utilizam os subterrâneos e o carste de Minas Gerais para expressão de sua cultura. Além disso, conforme Silva (2010) ainda que o congado tenha importância histórica considerável, constata-se que essa tradição despertou e ainda desperta pouco interesse no meio acadêmico. O que existe divulgado sobre o assunto são trabalhos, em sua maioria, descritivos. Portanto, até o momento não se tem notícia de outros registros como o que é apresentado neste trabalho. Como parte de uma dissertação de mestrado em andamento busca-se, nesta primeira abordagem, investigar as relações entre os patrimônios espeleológico e cultural imaterial e suas relações com os processos de reconhecimento por parte da população local. Uma vez identificadas as relações e os processos, objetiva-se alertar os órgãos públicos envolvidos sobre ações de preservação e salvaguarda dos patrimônios em destaque. Devem-se considerar seus valores ambiental, histórico, social e cultural. 2- Aspectos metodológicos Acredita-se que a Geografia Humanista-Cultural ou a Geografia da Percepção sejam as correntes geográficas que melhor explicam os fenômenos e as relações entre o ser humano e a natureza. De acordo com Amorim Filho (1982), as pesquisas

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na geografia da percepção desenvolvem-se com o objetivo de analisar a percepção ambiental de lugares e dos componentes espaciais como as formas, as distâncias e as preferências espaciais, ou seja, o comportamento espacial dos indivíduos ou dos grupos sociais. Ainda para o autor, o suporte teórico e filosófico dos criadores e seguidores dessa corrente geográfica está na fenomenologia, no existencialismo e em outras escolas de filosofia crítica que têm como base os valores e representações mentais da humanidade, seja do ponto de vista do indivíduo ou dos grupos sociais. Assim, de acordo com Gil Filho (2008), a fenomenologia parte da descrição dos fenômenos que são apresentados à consciência (após serem colocados em suspensão os veredictos filosóficos e as proposições científicas), bem como o senso natural de crer em um mundo de coisas. Esse processo tem a capacidade de chegar ao resíduo fenomenológico evidente, descrevendo os modos típicos de como as coisas aparecem para a consciência, permitindo lembrar experiências vividas com um nível de detalhe quase perfeito. Uma abordagem da percepção ambiental dos sentimentos e emoções existentes na relação do ser humano com as cavernas ganha novos significados. Destaca-se que a observação participante com base fenomenológica é muito útil. Tal procedimento metodológico, para Silva (2010), é rigoroso e propõe desafios, pois exige do pesquisador passar um período (o mais prolongado possível) no campo, permanecendo aberto à interação social e a convivência em meio à comunidade que decidiu investigar. Assim sendo, os autores realizaram trabalhos de campo com o objetivo de reconhecer a área de estudo e as manifestações ocorridas na caverna, contatando as lideranças comunitárias e governamentais dos municípios de Paraopeba e Caetanópolis para identificação dos principais atores sociais relacionados ao Congado na Lapa de São Bento. Uma vez identificados e contatados, foram realizadas entrevistas a fim de identificar a história da manifestação cultural na caverna, bem como a percepção destes em relação ao ambiente natural. Foram aplicados questionários informais, semiestruturados, que proporcionaram reconhecer histórias de milagres e lendas relacionadas à Lapa por meio da tradição oral. A fala, nesse aspecto, tornou-se fundamental para tentativa de compreender os sistemas simbólico e cultural existentes na caverna.

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Além das visitas para fins de entrevistas, foram realizadas outras quatro missões de campo na caverna para reconhecimento de aspectos geomorfológicos e processos cársticos atuantes que influenciaram sua gênese. As pesquisas de gabinete foram necessárias antes e após as visitas de campo para melhorar a compreensão da manifestação cultural. Os principais assuntos foram aqueles relacionados ao carste, ao uso cultural e religioso de cavernas e a tradição católica do Congado em Minas Gerais. 3 - Discussão e resultados As cavernas são espaços coletivos onde normalmente a tradição permanece ao longo dos anos. Muitas foram os primeiros locais onde o ser humano habitou e deram origem aos primeiros assentamentos. De acordo com Travassos (2007), por todo o mundo é possível verificar populações inteiras que são abastecidas por mananciais cársticos e, em várias culturas, as cavernas ainda são utilizadas como locais para a prática de rituais religiosos e para outras formas de uso. Talvez os registros mais conhecidos que provam a presença ancestral humana nas cavernas sejam as pinturas rupestres que permitem inferir como tais grupos viviam e se relacionavam com o ambiente. Acredita-se que as interações com o subterrâneo podem ser positivas ou negativas. Entretanto, a apropriação das cavernas por comunidades tradicionais pode, paradoxalmente, promover a preservação do patrimônio espeleológico e cultural por um lado, mas pode causar impactos no meio abiótico e biótico, por outro lado. Além disso, as cavernas despertam sentimentos topofílicos e topofóbicos. No caso do uso religioso, sentimentos topofílicos são mais comuns. Para Tuan (1980), quando o espaço passa a ser intimamente conhecido, com a atribuição de valores e significados, torna-se um lugar. Cria-se, portanto, um sentimento de pertencimento com o meio atribuindo-lhe um valor afetivo, ou seja, uma topofilia. Os indivíduos passam a cuidar do lugar, pois, agora, é algo especial. As práticas culturais e tradicionais relacionadas às cavernas podem ser de vários tipos, entretanto, a interação das comunidades com as cavernas e o meio, geralmente acontece por meio de práticas religiosas. Gil Filho (2008) afirma que o

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espaço sagrado é produto da consciência religiosa concreta e, nesse contexto, o conteúdo do espaço parte de uma consciência do vivido plenamente sensível. Ainda conforme Gil Filho (2008), o ser humano produz símbolos que o fazem ter consciência de que não vivem somente em um universo físico, mas, sobretudo, em um universo simbólico. Sendo assim, a religião é parte desse universo pleno de significados, parte indissociável da experiência humana. Claval (2007) afirma que é o símbolo que reúne e favorece o esquecimento das diferenças que existem entre os membros de um grupo ou de uma mesma cultura; é o símbolo que realça aquilo que os grupos compartilham. Dessa forma, congrega e prescreve. Grupos religiosos promovem encontros e festividades relacionados à sua crença tradicional. Por sua vez, tais encontros promovem uma intensa relação social com mistura de sentimentos e emoções entre os indivíduos. Para Moreira (2014), essas práticas criam espaços e lugares onde são projetadas emoções, sensações e percepções. Nas comunidades tradicionais as relações sociais, o manejo do ambiente, as crenças e os saberes são ainda muito vivos e intensos. Isso faz com que exista de fato uma vida em comum onde os indivíduos realizam as atividades de forma coletiva, com respeito entre os pares e com o ambiente natural. O espaço é social e culturalmente produzido, com riqueza de valores e costumes, permeando os modos de vida. Pode-se falar aqui em um espaço de representação que, de acordo com Gil Filho (2008), é um espaço vivido com ligações afetivas, lócus da ação e das situações vivenciadas no cotidiano. A resistência da tradição das comunidades tradicionais implica em um processo de construção de identidade que, para Castells (2006, p. 23) citado por Andrade (2008), vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Nota-se que a construção da identidade passa por várias esferas, podendo ser temporal, espacial e mutável. Portanto, deve ser constantemente reconstruída, valorizada e renovada. Para compreender o processo de construção de identidade de determinado grupo e sua cultura, é necessário o estudo de sua tradição oral. De acordo com Cervantes (2006; 2007) citado por Travassos (2010), trata-se, principalmente, de

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ouvir as pessoas, ouvir como dizem, quando dizem e porque dizem. As lendas ou histórias fabulosas de milagres e aparições criam um ambiente enigmático e fascinante; a atmosfera da narrativa torna-se misteriosa e, muitas vezes, o sentimento de respeito é experimentado na voz do narrador. A tradição oral transmitida de geração em geração nas comunidades tradicionais, faz com que os valores agregados aos lugares de determinada cultura não se percam no tempo. Os valores são apenas renovados. Assim sendo, a estrutura social de uma comunidade tradicional, com todos os valores que carrega, pode favorecer a conservação dos ambientes cavernícolas. Os membros da comunidade ou de determinado grupo perceberão a caverna como um lugar sagrado que deve ser cuidado e respeitado, pois sempre haverá a preocupação de se manter o lugar sagrado. Consequentemente, os recursos naturais ali presentes e que compõe a paisagem, são mantidos por serem considerados fundamentais para a sobrevivência da própria comunidade.

3.1-

A Lapa de São Bento e o Congado A Lapa de São Bento está localizada na região sul do município de

Paraopeba, Minas Gerais (Figura 1). O nome “Lapa de São Bento” é relacionado ao distrito de São Bento (município de Caetanópolis) e que fica próximo à caverna. Geologicamente, a região se desenvolve sobre os carbonatos do Grupo Bambuí sendo comum, portanto, as formas características do relevo cárstico que geralmente apresenta grande beleza cênica, aliada a uma fragilidade ambiental notável (e.g.: afloramentos, depressões fechadas, lapiás, cavernas, etc.). As formações naturais características do sistema cárstico dentro da caverna, são utilizadas pelos fiéis como altares para as imagens de devoção (Figuras 2). Do ponto de vista físico, a caverna tem seu conduto principal linear, com aproximadamente 35 m de projeção horizontal. Possui quatro pequenos salões acessíveis e a altura dos salões varia entre 4 a 9 m e largura entre 2 a 10 m. Em um salão mais amplo, ocorre o Congado, após ter se iniciado fora da caverna (Figura 3).

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Figura 1 – Mapa de Localização da Lapa de São Bento, Paraopeba, Minas Gerais Organização: Elaborado pelos autores.

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Figura 2 - Imagens dos santos de devoção sobre as formações (espeleotemas) dentro da caverna – verdadeiros “altares” transformados pela fé. Fotos: A) I. F. G. Oliveira e B) L.E.P. Travassos.

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Figura 3 – A) Entrada da Lapa de São Bento na base do afloramento e parcialmente escondida pela vegetação. B) A partir da entrada é possível perceber como a população se apropriou do lugar. Imagens são depositadas ao longo de um bloco abatido Fotos: L.E.P. Travassos

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Travassos (2007; 2010) destaca que o ambiente cavernícola é facilmente influenciado por fatores naturais e antrópicos, dada sua fragilidade. Na maioria das vezes, os impactos naturais não podem ser evitados, pois resultam da evolução normal do sistema. No entanto, os impactos antrópicos podem ser mantidos a níveis aceitáveis, sempre levando em conta aspectos históricos, sociais e econômicos. Percebe-se que as atividades religiosas praticadas em qualquer caverna de uso religioso provocam impactos no ambiente, porém, a importância simbólica atribuída ao espaço agrega outros tipos de valores que o transforma em um lugar sagrado. De certa forma, é justamente essa sacralidade que permite que a comunidade cuide do ambiente e o proteja da supressão pela atividade minerária, por exemplo. Para os fiéis que frequentam cavernas sagradas, nesse caso a Lapa de São Bento, ela é um lugar de milagres e promessas e, por isso, tornou-se um lugar sagrado. Com uma hierofania, o espaço desprovido de valor, passa a ser valorizado como sagrado. Para Gil Filho (2008), a institucionalização dos lugares sagrados e de peregrinação reconhecidos pela religiosidade popular é uma característica peculiar da territorialidade católica. A manifestação cultural tradicional e religiosa que ocorre na Lapa de São Bento é praticada por guardas de congado, que é uma tradição popular católica. Apesar de ser considerada uma tradição popular católica, o congado nasceu a partir da junção da tradição religiosa de matriz africana com o catolicismo e, assim, configura-se em um sincretismo religioso. A tradição do congado guarda riqueza de saberes que datam do período de exploração dos escravos negros no Brasil, retratando o seu sofrimento neste período. Os escravos já possuíam tradição religiosa africana, porém, foram catequizados ao chegarem ao Brasil. Portanto, ainda existe um forte preconceito com o congado desde sua instituição como manifestação religiosa católica. De acordo com Soares (2002), o preconceito que ronda as discussões sobre o sincretismo religioso afro-católico é um dos flancos de uma luta secular. Além disso, Soares (2002) ainda afirma que um catolicismo não popular inexiste; e o que conhecemos é, inevitavelmente, sincrético. Há referências às confrarias ou irmandades religiosas de negros no Brasil, a partir do século XVII, que representaram um contínuo de sua devoção a Nossa Senhora do Rosário e outros santos na África portuguesa, aqui reforçados como

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instrumentos de defesa contra o regime de escravidão. No final do século XVII os padres já coroavam reis e rainhas escolhidos entre os escravos mais categorizados da comunidade. Sob a dominação de reis do Congo, impulsionavam a cultura sagrada e profana da história colonial. A devoção a Nossa Senhora do Rosário, e posteriormente a de São Benedito, tiveram ampla divulgação no século XVIII: Igrejas, capelas e irmandades afloravam onde os escravos constituíam parcela significativa da população, os quais eram imediatamente alcançados por um processo de aculturação religiosa. Por isso, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são considerados protetores dos negros e daí persevera a tradição do congado (INTRODUÇÃO, 1974). É a manifestação da fé católica de devoção, principalmente à Nossa Senhora do Rosário, aliada a resquícios das religiões de matriz africana dos escravos, que se fazem presentes nas danças e no toque dos tambores. A transmissão dos saberes do congado se dá de forma oral e, por isso, é considerada Patrimônio Imaterial tanto nacional quanto estadual, por ser relevante na história e cultura do Brasil e do Estado de Minas Gerais. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Patrimônio Cultural Imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. É apropriado por indivíduos e grupos sociais como importantes elementos de sua identidade. A tradição oral regional afirma que o uso religioso na Lapa por outros fiéis e grupos religiosos que não fazem parte do congado, ocorre aproximadamente há mais de 250 anos, segundo relatos de populares que frequentam a caverna e manifestam sua fé no ambiente, sendo registrada com mais detalhe na dissertação de mestrado da autora. Os fiéis, por meio da força de sua fé, acreditam que a Lapa é um lugar de milagres e, por isso, um lugar sagrado. Os indivíduos que possuem esse tipo de sentimento com o lugar passam a cuidar dele como algo especial, confirmando a topofilia. Conforme Tuan (1980), o ambiente pode não ser a causa direta da topofilia,

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mas é o que fornece o estímulo sensorial necessário ao agir como imagem percebida. Assim, dá forma às alegrias e ideais. No caso da Lapa de Bento, percebe-se um forte sentimento de pertencimento da comunidade, diretamente ligado à religião e ao congado. A

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Figura 7 – A) Integrantes da Guarda de Congo de Caetanópolis-MG em oração no crucifixo existente na área externa à Lapa. B) Integrantes da Guarda de Congo de Caetanópolis-MG dentro da Lapa de São Bento. C) Aspecto geral da litologia e as camadas da rocha sedimentar que compõe a lapa de São Bento. Fotos A e B) I.F.G. Oliveira; Foto C) L.E.P. Travassos.

Tendo em vista a antiguidade do uso religioso dessa caverna e considerando o seu estado de conservação geral, é possível inferir que o espaço está sendo preservado pela sua sacralidade percebida. Neste contexto, rompe-se parcialmente com a ideia conservacionista extrema que coloca a natureza como algo distante da população que nela vive e que dela depende. De acordo com Gomes e Pereira (1995) nessas formas de emergência do sagrado, o corpo, o espírito e a natureza, integrados, são a base da cosmologia e do equilíbrio. O uso religioso da caverna, além de romper parcialmente com o conservacionismo extremo, promove a valorização do patrimônio imaterial representado pelo congado, além de incluir o atributo de destacada relevância histórico-cultural ou religiosa existente na legislação protetiva das cavidades naturais subterrâneas no Brasil. O congado na Lapa de São Bento tende a preservar o ambiente natural de outras ameaças, pois sendo considerado um lugar sagrado, é

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impregnado de valores, símbolos e crenças que não permitem que o ambiente seja explorado de outra forma que não seja a religiosa e/ou cultural.

4- Breves conclusões Da interação entre o homem e o meio natural resulta um espaço social e culturalmente produzido como a Lapa de São Bento. A apropriação dessa caverna pelo congado e outros grupos religiosos promove a preservação do patrimônio espeleológico e do patrimônio cultural imaterial. A relação entre os dois patrimônios pode ser percebida, também, como potencial para a preservação de uma identidade social, cultural e histórica que pode, eventualmente, se perder no tempo e no espaço. Isso pode ocorrer tendo em vista as constantes transformações do mundo contemporâneo a que esses grupos estão expostos e a pouca valorização e falta de reconhecimento de tais práticas culturais no país. Ainda que exista uma legislação que reconheça a tradição do congado como patrimônio imaterial e uma legislação que estabeleça a relevância das cavidades naturais subterrâneas, os patrimônios aqui tratados podem sofrer diversas ameaças. Assim sendo, a valorização e o reconhecimento tanto da caverna, quanto do congado, são necessários e benéficos para que a população local também passe a reconhecer a importância do lugar, da sua cultura popular, de seus saberes e suas tradições particulares. Além disso, perceber o carste como parte de sua cultura é algo importante se for lembrado o fato de que são áreas frágeis e de extrema importância para a recarga hídrica. Com o reconhecimento da Lapa e do Congado como patrimônios espeleológico e imaterial por parte da população e dos órgãos governamentais competentes, acredita-se ser possível a promoção de ações de preservação e salvaguarda, extremamente necessárias e importantes como forma de incentivo para a continuidade e resgate da tradição.

Agradecimentos À Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES), pela bolsa concedida para pesquisa no curso de Mestrado. Aos integrantes da guarda de Congado de Caetanópolis pela disponibilidade e fornecimento de informações importantes à esta pesquisa e permissão da observação participante. Ao gerente da

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FLONA de Paraopeba, Renato Diniz Dumont (ICMBio) e ao Analista Ambiental do CECAV, Mauro Gomes (ICMBio) pelo apoio nas missões de campo.

Referências AMORIM FILHO, O. B. A evolução do pensamento geográfico e suas consequências sobre o ensino da geografia. Revista Geografia e Ensino, Belo Horizonte, Ano 1, n.1, p.5-18, mar. 1982. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Cultural. Patrimônio Imaterial. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2015 CLAVAL, P. A geografia cultural. (1995) Florianópolis: Ed. UFSC, 2007. Tradução de Luiz Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Pimenta. GIL FILHO, S. F. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: IBPEX. 2008 GOMES, N. P. de M.; PEREIRA, E. de A. Do Presépio à Balança: representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza Edições. 1995. INTRODUÇÃO ao estudo do Congado. Belo Horizonte: PUC Minas, 1974. 104p. MOREIRA, J. F. R.; O sagrado e o profano no lugar Kalunga: as tradições do catolicismo popular e o festar no Engenho II em Cavalcante, Goiás. In: V NEER, As Representações Culturais no Espaço: Perspectivas Contemporâneas em Geografia. UFMT, 2014. SILVA, R. A. da. Negros Católicos ou Catolicismo Negro? Um estudo sobre a construção da identidade negra no Congado mineiro. Belo Horizonte: Nandyala. 2010. SOARES, L. M. A. Sincretismo afro-católico no Brasil: lições de um povo em exílio. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 3, p. 45-75. 2002. TRAVASSOS, L.E.P. Caracterização do carste da região de Cordisburgo, Minas Gerais. 2007. 90f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. TRAVASSOS, L.E.P. A importância cultural do carste e das cavernas, Minas Gerais. 2010. 372f. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. TUAN, Y.F. Topofilia: um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores de Meio Ambiente (1974). São Paulo: Difel/Difusão Editorial, 1980. Tradução de Lívia de Oliveira. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência (1977). São Paulo: Difel/Difusão Editorial, 1983. Tradução Lívia de Oliveira.

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