A relação fala-escrita e a oralidade: Aplicação no livro \"Corda bamba\"

September 24, 2017 | Autor: Gabriel Machado | Categoria: Literatura Infantil, Literatura Infanto Juvenil, Escrita, Oralidade, Corda bamba, Lygia Bojunga Nunes
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

A relação fala-escrita e a oralidade Aplicação no livro Corda bamba

Aluno: Gabriel Machado Rodrigues da Silva Disciplina: Jogos de Linguagem e Literatura Infantojuvenil (2013) Professora: Patricia Ferreira Neves Ribeiro

No presente trabalho, serão expostos os assuntos convergentes de quatro textos utilizados na disciplina de Jogos de Linguagem e, a partir dos pontos destacados, será analisada a obra infantojuvenil Corda bamba, de Lygia Bojunga Nunes. O capítulo “Fala e escrita”, do livro Ler e escrever, como o próprio título explicita, fala apenas sobre a relação entre fala e escrita e sobre marcas da oralidade, logo ele serviu de parâmetro para o exame dos demais textos. Uma das primeiras ideias apresentadas é a de que existe um contínuo tipológico: de um lado, a escrita formal; do outro, a conversação espontânea, coloquial, e ao longo dessa linha há os diversos gêneros orais e escritos. Logo, não se trata de uma dicotomia com dois polos opostos entre fala e escrita. O ideal da escrita, de algo culto, formal, que teoricamente seria o mais correto, leva à discriminação da fala, que é vista de forma pejorativa, rudimentar, rústica, por ser pouco organizada e descontínua, devido à interação. A escrita típica é uma coprodução porque considera para quem se escreve, apesar de não haver participação direta do receptor na elaboração linguística. É o resultado de um processo, logo estática. Suas características são as seguintes: descontextualizada, explícita, condensada, não fragmentada, completa, elaborada, de modus sintático; com densidade informacional, predominância de frases complexas, subordinação abundante, emprego frequente de passivas, abundância de nominalizações e maior densidade lexical. Já a fala típica é o seu próprio rascunho, um processo de coautoria, portanto dinâmica, sendo localmente planejada, ou seja, o planejamento se dá a cada novo lance do jogo da linguagem. Ela é contextualizada (com dêiticos), implícita, redundante, fragmentada, incompleta, pouco elaborada, de modus pragmático (com uma sintaxe característica, sem deixar de ter como pano de fundo a sintaxe geral da língua); com pouca densidade informacional, predominância de frases curtas, simples ou coordenadas, pequena frequência de passivas, poucas nominalizações, menor densidade lexical. Na fala, não se pode analisar separadamente a produção de cada interlocutor, devido à cooperação. Nela, encontram-se elementos com funções cognitivointeracionais, utilizados para ganhar tempo para o planejamento ou a compreensão (pausas, hesitações, repetições) ou para esclarecimento, exemplificação, atenuação, reforço etc. (inserções, repetições, paráfrases). Quando chega à escola, a criança já domina a língua falada e demora até adequar-se às exigências da escrita, por isso os textos contêm marcas de oralidade,

como referentes não explicitados, pois os interlocutores compartilham conhecimentos relativos às circunstâncias; advérbios e conjunções repetitivos (por exemplo: e, aí, daí, então); enunciados justapostos – sem qualquer marca de conexão explícita – e/ou sem pontuação; discurso direto sem aspas, travessão, verbo dicendi; segmentação ou emenda de palavras. Na seção “Em busca de novas linguagens”, de Literatura infantil brasileira: história & histórias, há alguns aspectos tratados que se relacionam com fala e escrita. Diz-se que a incorporação da oralidade é marca típica dos livros infantis desde 1960, em uma aproximação das propostas dos modernistas de 1922 e da herança lobatiana. Desde então, é trazido um universo heterogêneo, como de crianças marginalizadas, pobres, índigenas: falares regionais, gírias, dialetos sociais. Porém, há o risco de usos anacrônicos e descontextualizados e superposição não significativa de diferentes registros. Ocorre o abandono da onisciência do narrador, que toma o leitor como interlocutor, e a atenuação da assimetria na relação entre a emissão adulta e a recepção infantil. A linguagem não é mais apenas tratada como instrumento de comunicação, mas de atuação na realidade e, inclusive, há uma encenação paródica do antigo discurso tradicional para as crianças. O fluxo de consciência rompe com a linearidade e parece ter a intenção de aproximar-se do modo infantil de perceber e dar significado ao mundo. Em “Adivinha: leitura e escritura de desejo”, fala-se da aparentemente mais amolecida lei das adivinhas e dos enigmas, contrária à lei dura, e da atitude ativa ou passiva diante do desafio, da linguagem. A adivinha é de origem oral (trabalha muito com os sons, com o ouvido), mas, para sua fruição, decodificação, são feitas leituras, com base na memória, que resgata sentidos e experiências de linguagem, contendo metáforas e trocadilhos. É um gênero que se liga à capacidade de ler-escrevendo sobre o texto proposto. Na adivinha-peleja, se exerce o jogo que desmancha uma escrita, ainda que oral, para reescrevê-la. Contudo, a leitura é única, ditatorial, e existe uma dicotomia: é ou não é, não há terceira hipótese. De qualquer modo, em toda fala e escrita somos obrigados a reconhecer que o outro nos leva a silenciar sobre os outros focos. A brincadeira dá-se com ritmos, rimas, jogos de semelhanças formais, polaridades e repetições. Há uma afinidade umbilical do gênero com as narrativas e, consequentemente, com as exigências postas pelo ato de ler e ouvir.

No ensino, sobretudo na fase inicial de letramento, a adivinha pode fornecer ferramentas para ajudar a abrir esse hiato onde o desejo de ler além da lei dura da representação denotativa engendra sua subjetividade. Se a tradição oral acumula e filtra determinados tipos de textos e os mantém como um acervo de todos é porque eles se prestam ao desenvolvimento de algumas estratégias de escrituração, mesmo sem um suporte gráfico. Nas seções 2.1 a 2.12 de Produção textual, análise de gêneros e compreensão, é abordada a impossibilidade de comunicar-se verbalmente sem ser por um gênero textual. Cada um deles se insere, segundo Maingueneau, ou no regime de gêneros instituídos (com caráter de autoria e/ou com papéis fixados a priori e que não mudam muito de uma situação para outra) ou no regime de gêneros conversacionais (de menor estabilidade e sem uma organização temática previsível). Existe um saber comum pelo qual os falantes se orientam em suas decisões acerca do gênero que produzem ou devem produzir. E o contínuo entre fala e escrita também tem seu correlato no contínuo dos gêneros, não permitindo que se situe a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos, logo trata-se de uma visão antidicotômica. A continuidade é observada por meio da verificação de aspectos em comum: seleções morfossintáticas, natureza do léxico, grau de monitoramento da enunciação. Nesse contexto, sociedades tipicamente orais desenvolvem certos gêneros que se perdem em outras tipicamente escritas e penetradas pelo alto desenvolvimento tecnológico. Por fim, o livro Corda bamba trabalha bem com a oralidade e a relação falaescrita. Antes de mais nada, a história tem como protagonista Maria, filha de equilibristas e artista de circo, que resolve viajar para dentro de si mesma em busca de seu próprio equilíbrio, abrindo as portas do passado e recompondo-se dos dramas que marcaram sua infância circense. Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, os livros de Lygia são parentes longínquos das fábulas, mas que recusam os valores tradicionais difundidos por elas, e assim mostram desajustes, frustrações, marginalização social e familiar. As tensões são interiorizadas, há crises de identidade: as personagens ficam divididas entre a imagem que os outros têm delas e a autoimagem, que se manifesta em desejos, sonhos e viagens. Dessa forma, é necessário um percurso em direção à posse plena da individualidade. Maria recusa-se em se adequar ao mundo duro e material da avó, longe do sonho do

circo. Ela precisa lembrar-se do passado para adaptar-se ao presente, para abrir as portas do futuro. A obra situa-se no meio-termo do contínuo tipológico, pois, apesar de ser escrita, aproxima-se bastante do coloquial, inserida no estilo característico de Lygia Bojunga, que é considerada uma das “filhas de Lobato” e sempre escreve, mesmo na narração, com coloquialidade. Seus livros incorporam a oralidade, o que, como já foi dito, tornouse comum após a década de 1960 – e Corda bamba é de 1979. Por meio desse artifício, a autora fica mais perto da linguagem da criança e transpõe o abismo que muitas vezes costuma haver entre o escritor adulto e o leitor infantil. O narrador não é em primeira pessoa, mas carrega todas as inseguranças e jeito de ser de Maria, em um fluxo de consciência não linear, que se relaciona com o modo de a criança enxergar o mundo. Essa fragmentação é própria da fala e transparece não só nos diálogos, mas, em medida igual, na narração. E, devido ao ideal da escrita, ao que se espera em geral de um livro, pode ocorrer muitas vezes preconceito, por conter palavras, usos considerados incorretos, que poderiam desvirtuar o leitor, sem que se perceba que, na verdade, a criança vai se sentir mais próxima da história e dos personagens. Nesse sentido, há diversos termos que marcam a oralidade, como: pra(s), pro(s), tô, tá, tão (redução de “estão”), a gente, e aí?, tinha (no sentido de “havia”), dum(a), pera aí, entre muitos outros. Da mesma forma, a todo momento se mistura tratamento com “tu” e “você”, tanto na conjugação dos verbos quanto nos pronomes. A escrita simula as hesitações, pausas, rascunhos de si mesma que é a fala, como mostram os seguintes trechos: “não sei, não me lembro bem. Nós estivemos separados e... não, não, agora eu estou me lembrando” e “É que, conforme eu expliquei pra senhora no telefone, eu, quer dizer, a Maria, quer dizer, a gente, achou melhor deixar passar um tempo” [p. 11]. Há uma constância de palavras e estruturas repetidas, a exemplo destes fragmentos: Maria não largou o embrulho; nem o arco; nem a mão de Barbuda. E Barbuda então achou que tinha que ficar segurando a sacola. E Foguinho achou que tinha que se encostar bem pro canto. E Barbuda então se encostou em Foguinho. E Maria se encostou em Barbuda. [p. 12] tanto tempo treinando o coelho pra sair da meia, pra ficar na manga, pra encolher orelha, pra isso pra aquilo, e agora o desgraçado foge. [p. 31]

Você não mostrou como você escreve, como você lê, como você desenha, como você equilibra? [p. 32] Choveu. Choveu. Choveu. [p. 110]

O texto também se vale muito de comentários, adendos, de uma espécie de interlocução do narrador com o leitor, marcada por parênteses, travessões ou mesmo nenhum sinal distintivo: ia levando a tiracolo um arco enfeitado com flor de papel, quase do tamanho dela (não era muita vantagem: ela já tinha dez anos mas era do tipo miúdo). [p. 9] Mas a voz não saía. Ficou com medo, „Maria!‟ (a voz não saía porque ele estava com medo, ou por que a gente sonhando a voz não sai?) [p. 42] dançando naquela corda tão fina que – como é que pode? – parecia um calçadão de tão fácil que Maria pisava nela. [p. 17] Todo mundo fez hmm! achando que ela ia cair. Que cair que nada! [p. 16] quiseram saber um monte de geografia, mas quem diz que ela respondia? [p. 109]

Percebe-se a fluidez da narração-fala na grande quantidade de ponto e vírgula em vez de ponto, ou seja, uma pausa menor, que não costuma ser muito usada, ainda mais em livros infantojuvenis. Ao mesmo tempo, a autora utiliza também pontos para marcar quebras, efeitos, como em “Parou. Fascinada. Mal podendo acreditar” [p. 63]. E há a estranha presença de um par de dois-pontos em uma mesma frase: “Acho que a conversa vai longe: a coisa tá meio complicada: é uma menina que não tem onde botar pé” [p. 37]. Ainda na área da pontuação, ocorrem constantemente minúsculas após ponto de interrogação ou exclamação, que também suavizam ou eliminam rupturas: Minha boneca! que saudade. [p. 10] E então eu vou dizer uma coisa que o Foguinho disse, não diz! mas que tá aqui atravessada na garganta [p. 21] A senhora sabe, não é? a gente gosta um bocado da Maria [p. 19]

Abriu o olho: escutar pra quê? se o coração já estava batendo tão chateado. [p. 48]

O pensamento flui livre, muitas vezes sem aspas e passando direto da fala para a narração e vice-versa, e trocando de interlocutor: Quico não tinha entendido: trabalhava de que jeito? [p. 13] Agora ele enfiou um a porção de brinquedos aqui dentro, olha... Parou de falar; viu que Maria não estava prestando atenção. [p. 17] E aí aconteceu uma coisa que o Foguinho tá sempre me perguntando: como é que pode, hem, Barbuda? e eu acordo no meio da noite pensando também: gente, como é que pode? [p. 19] Mas o dono falou: você faz o número bem no alto e sem rede embaixo, tá? Marcelo foi esquecendo de olhar pra Márcia, esquecendo de sorrir. O coração continuava batendo depressa: sem rede embaixo? mas era perigoso! [p. 67] Quando eu escrevi perguntando se a gente podia ir... ah, Foguinho, pera aí, bem, pera aí, deixa eu contar essa história pra Maria. [p. 120]

Há uma profusão de termos, expressões e construções coloquiais, como “chegando no”, “convenço eles”, “m‟embora”, “vai-não-vai”, “passa-não-passa”, “nãonão”, “cabeça joia”, “Pra que que serve?”, “você não se importa dela ter barba?”, entre muitíssimos outros, a exemplo do “Se abaixou” no início de uma frase. Também surgem várias onomatopeias e interjeições na narração: toquetoque, opa!, puxa!, pronto!, zuque!, ai, ui, ih!, ué, hmm!, tlá!, etc. Por fim, destacam-se alguns gêneros textuais ao longo do livro, que por vezes aparecem de forma sutil, de forma não convencional, mas contêm marcas de linguagem distintivas. Há ligações telefônicas na narrativa que imitam as dificuldades de se fazer entender quando ocorrem ruídos na transmissão: a conversa é repleta de repetições e interpelações constantes, com muitos vocativos e “alô”. Também são mencionados gêneros de jornal, com suas peculiaridades linguísticas de objetividade: “E tinha anúncio na vela: „Precisa-se de cozinheira. Trivial simples. Paga-se bem.‟ Tinha notícia horrível também: „Matou a mulher e depois se atirou do Pão de Açúcar‟” [p. 65]. Mais adiante, a propaganda aos berros de um sorveteiro para vender seu produto, utilizando rima:

Manga, chocolate, coco – vai querer? Depressa que vem mais coisa pra gente ver. [p. 86]

Além disso, há um telegrama e sua transcrição com a linguagem truncada, como costuma ser, mas não tão abreviada e sem acentos como é comum: “veio um telegrama para Quico: Chegamos segunda-feira para buscar você beijos mamãe papai” [p. 108]. E, por último, uma carta em meio ao próprio texto da narração, com os ponto e vírgulas e a fluidez típicos da prosa de Lygia, emendando direto na continuação da conversa com a menina: “E o meu irmão escreveu dizendo, vem!! Vem sim, que bom que vai ser a gente junto de novo; eu pintei o „Vou Contigo‟ de vermelho e branco, ele tá lindo de morrer; a gente andou ganhando um dinheiro e deu uma aumentada na casa, caiou ela toda, tá joia, tem um quarto esperando vocês com janela dando pro mar e tudo. Já pensou, Maria?” [p. 121] Cada um desses gêneros tem seus aspectos característicos, pelos quais se é possível distingui-los e associá-los a determinado domínio e comportamento discursivo. Assim como Maria teve que aprender a adaptar-se a cada novo ambiente, bem diferente do circo: casa da avó rígida, escola, aula particular... Um aprendizado, também compartilhado pelo leitor, que vê como se faz literatura infantojuvenil de qualidade, sem desmerecer o público e utilizando amplamente a coloquialidade sem inferiorizar o texto.

Bibliografia

BELINTANE, Claudemir. Adivinha: leitura e escritura de desejo. In: CALIL, Eduardo (Org.). Trilhas da escrita: autoria, leitura e ensino. São Paulo: Cortez, 2007.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São Paulo: Ática, 2006.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

NUNES, Lygia Bojunga. Corda bamba. Rio de Janeiro: Agir, 2002.

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