A relação museológica fora do museu: Possibilidades no contexto urbano e Brecheret

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CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO PÓS-GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA, COLECIONAISMO E CURADORIA

LAURA SENGBERG AMMANN

A RELACÃO MUSEOLÓGICA FORA DO MUSEU: POSSIBILIDADES NO CONTEXTO URBANO E BRECHERET

SÃO PAULO 2015

LAURA SENGBERG AMMANN

A RELACÃO MUSEOLÓGICA FORA DO MUSEU: POSSIBILIDADES NO CONTEXTO URBANO E BRECHERET

Artigo Científico apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Especialista no Curso de PósGraduação (Lato Sensu) em Museologia, Colecionismo e Curadoria do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Orientador: Profa. Dra. Marilúcia Bottallo

SÃO PAULO 2015

 

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FOLHA DE APROVAÇÃO LAURA SENGBERG AMMANN

A RELACÃO MUSEOLÓGICA FORA DO MUSEU: POSSIBILIDADES NO CONTEXTO URBANO E BRECHERET Artigo Científico apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Especialista no Curso de PósGraduação (Lato Sensu) em Museologia, Colecionismo e Curadoria do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Marilúcia Botallo

Profa. Dra. Regina Teixeira de Barros

Data da Defesa: São Paulo,

 

de 2015

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A RELACÃO MUSEOLÓGICA FORA DO MUSEU: POSSIBILIDADES NO CONTEXTO URBANO E BRECHERET LAURA SENGBERG AMMANN

RESUMO: O objeto de análise deste artigo é a relação museológica fora do espaço do museu. Definindo primeiramente conceitos importantes para a reflexão, o artigo se ocupa então dos diversos cenários alternativos ao museu que abrigam objetos, mais especificamente, de arte. Da tríade de elementos do fato museal de Waldisa Rússio, o cenário é o que adquire maior importância nesse trabalho. Por fim, algumas obras do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret em São Paulo são usadas como exemplo para as reflexões anteriores e análises sobre a influência dos diferentes cenários na relação público-homem. PALAVRAS-CHAVE: Museologia, Fato museal, Arte urbana, Victor Brecheret. ABSTRACT: The aim of this article is the museological relation outside the space of the museum. Firstly defining some important concepts for this discussion, the article goes through several alternative environments that contain museal objects, more specifically, works of art. From the triangle of elements from Waldisa Rússio’s museal fact, the environment is the one which has more importance for this work. Finally, some sculptures from the artist Victor Brecheret are taken as example to base the recent thoughts and to analyze the influence of different scenarios in man-object relationship. KEY WORDS: Museology, Museal fact, Urban art, Victor Brecheret.

 

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Índice

A museologia e o fato museal ________________________________ 6 O objeto dentro de uma instituição ___________________________ 9 Cenários alternativos, diferentes relações ____________________ 11 A arte urbana em Brecheret _______________________________ 17 Reflexões finais ___________________________________________ 24 Anexo 1 _________________________________________________ 27 Imagens _________________________________________________ 29

 

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A museologia e o fato museal A museologia como área de formação é estruturada pelo ICOM a partir de 1946 e assegurada com a criação do ICOFOM, em 1977, o que a torna uma ciência ainda recente. Os estudos museológicos encontram grande contribuição em Zbynek Stránsky, que, com um artigo publicado em 1980 na MuWoP (Museological Working Papers) intitulado “Museologia: ciência ou apenas trabalho prático?”, além de iniciar a discussão presente no título, estabelece um roteiro para o pensamento museológico. Sua trilha seria seguida posteriormente no Brasil por Waldisa Rússio Camargo Guarnieri e Tereza Cristina Scheiner; esta chega inclusive a traduzir o mencionado artigo de Stránsky para o português, publicando-o na Revista Museologia e Patrimônio. Nele, o autor critica a forma como fora feito o estudo museológico até então: Uma grande percentagem de trabalhos permanece no âmbito da historiografia de museus; muitos trabalhos se concentram na descrição de atividades individuais em museus (...) Há relativamente poucos trabalhos penetrando mais fundo em sua intenção de descobrir.1 Tal citação lembra uma divertida e similar associação no contexto da ciência médica: da mesma forma que a medicina não foca seus estudos na história dos hospitais, mas na ciência que tem o hospital como seu ambiente de atuação, a museologia não deveria se ocupar da historiografia do museu, mas das relações que acontecem no seu interior. No início do pensamento museológico, alguns pensadores seguiam com a concepção de museologia vinculada às atividades do museu, enquanto um grupo germânico de pensadores, do qual Stránsky fazia parte, tentava entender o conceito de musealização e pensava a museologia de forma mais teórica. Um texto de 1978, de autoria de Tamislav Sola, citado por Suely Cerávolo, defende que a museologia deveria ser “mais ação do que instituição”, afastando a ideia de museologia como

                                                                                                                1

 

SRÁNSKY [1980], 2008

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“ciência dos museus”.2 Do encontro paulatino entre a tradicional museologia e a chamada “nova museologia”, delineada por esses novos pensamentos, surgem alguns questionamentos a respeito da função social do museu. Segundo Dominique Poulot, a construção disciplinar da museologia é uma elaboração internacional e essa nova museologia no decorrer da década de 1970 “se interessa essencialmente pelas dimensões sociais, filosóficas e políticas, até então negligenciadas – contrariamente à museografia, cujo campo continua sendo o das técnicas do museu”.3 A partir desse momento tem-se como objetivo definir a museologia como disciplina científica, pensando igualmente o trabalho que ela envolve: as profissões do museu e a pesquisa em seu âmbito. Waldisa Rússio formularia um conceito de museologia, iniciando uma discussão sob um ponto de vista mais dialético e tratando o museólogo como um trabalhador social. Para ela, o homem, conhecedor de sua realidade e que age sobre o objeto, ganha grande importância na relação do fato museal e passa a ser visto como um elemento que não é passivo, ou seja, não é involuntariamente afetado pela relação museal, mas que escolhe fazer parte dela e que tem o poder de ação reflexiva sobre o objeto com o qual se relaciona. Em 1989 Waldisa Rússio afirma que a museologia é uma “disciplina nascente”, uma “ciência em formação” e um “conhecimento científico que tende a se transformar em ciência”.4 A entrada de Waldisa Rússio no cenário museológico se dá em 1977 – mesmo ano da criação do ICOFOM – com sua dissertação de mestrado, intitulada “Museu: um aspecto das organizações culturais num país em desenvolvimento”, na qual faz um estudo da museologia como campo de estudos da sociedade e não dos objetos ou instituições. Em 1981, Rússio publica um artigo na MuWoP nº2 sob o título de “A interdisciplinaridade em museologia”, em que define como objeto de estudo da museologia o fato museal. O fato museal proposto por Waldisa Rússio trabalha uma relação tríade entre o homem (sujeito conhecedor) e o objeto (parte da realidade que

                                                                                                                2  CERÁVOLO, Suely Moraes. Delineamentos para uma teoria da museologia. Universidade de São Paulo, Museu Paulista, vol.12, 2004.

  3  POULOT,

Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 129.

 

4  GUARNIERI,

Waldisa Rússio. Museu, Museologia, Museólogos e Formação. Revista de Museologia, São Paulo, v. 1, ano 1, n. 1, 1989.

   

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divide com o homem), ambos inseridos dentro de um cenário institucionalizado, o museu: (...) na relação profunda entre o homem – sujeito conhecedor – e o objeto, parte da realidade sobre a qual o homem igualmente atua e pode agir. Essa relação comporta vários níveis de consciência, e o homem pode apreender o objeto por intermédio de seus sentidos: visão, audição, tato, etc.

Essa

relação

supõe,

em

primeiro

lugar

e

etimologicamente falando, que o homem ‘admira o objeto’.5 Em relação aos seus antecessores que pensavam a museologia, Waldisa Rússio tem sua mais distinta colaboração na ideia de “relação”. Para ela, a relação em si mesma era resultado da percepção (emoção, razão), do envolvimento (sensação, imagem, ideia) e da memória (sistematização das ideias e das imagens e suas relações). A figura do homem, por sua vez, deve ser considerada tanto em sua condição individual quanto coletiva, e portanto, de acordo com seus aspectos psicológicos e políticos e sócio-históricos. O objeto de que fala Waldisa Rússio é o objeto musealizado, que passou por um processo de musealização, processo do qual me ocuparei mais adiante. O terceiro ponto de análise do fato museal, o cenário institucionalizado – o museu – será o ponto focal das próximas reflexões desse trabalho.

                                                                                                                5  GUARNIERI apud  GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. Do fato museal ao gesto museológico. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2013, p.21.

   

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O objeto dentro de uma instituição Waldisa Rússio estabelece uma relação necessária entre a instituição museu (o cenário institucionalizado) e o fato museal, uma vez que aquele é o local onde este acontece e só lá poderá acontecer. Tal percepção é dividida com Stránsky e Anna Gregorová, filósofa eslovaca que analisa a linguagem museística. Entre homem e objeto, dentro do recinto do museu, a relação profunda depende não somente da comunicação das evidencias do objeto, mas também do recinto museu como agente da troca museológica. (...) O que caracteriza um museu é a intenção com que foi criado e o reconhecimento público (o mais amplo possível) de que é efetivamente um museu, isto é, uma autêntica instituição. O museu é o local do fato museal; mas para que esse fato se verifique com toda sua força, é necessário “musealizar” o objeto (os objetos que são vestígios, provas da existência do homem e seu ambiente, de seu meio natural ou modificado por ele próprio.6 A instituição museu, portanto, legitima o objeto e dá a ele um estatuto de documento ao retirá-lo de sua função cotidiana e ressignificá-lo como documento. Esse processo recebe o nome de musealização. Segundo Shanks e Tlley, citados no nono caderno de sociomuseologia, a musealização é a elaboração de um sistema estético para criar significados. Nesse universo estão inseridas disciplinas museológicas como a “noção de preservação”, o “gerenciamento da memória” e o “fenômeno da comunicação”. Este último aspecto envolve “construção teórica” e “experimentação prática”, personificados nos departamentos de salvaguarda e comunicação dos museus atuais.7                                                                                                                 6  GUARNIERI, Waldisa Russio Camargo. Textos e contextos de uma trajetória profissional. Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010.

 

7  _____,

Cadernos de sociomuseologia nº9, 1996. Consultado em 26/03/2015. URL: http://recil.ulusofona.pt/bitstream/handle/10437/3617/museologia.pdf?sequence=1, p.16.

   

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Os objetos musealizado adquirem três características, diferentes daquelas que possuem nas suas funções cotidianas, com as quais a museologia se preocupa: a documentalidade, a testemunhalidade e a fidelidade. Quando ocorre a musealização de um determinado objeto, ele é despido de suas funcionalidades cotidianas e a ele é dada a importância de patrimônio - a ser documentado, preservado e comunicado. A documentalidade deriva da qualidade de documento, da palavra docere, que tem sentido de ensinar, ou seja, algo que ensina alguma coisa a alguém. A testemunhalidade do objeto pressupõe a noção de testemunho, o poder de atestar algo, de ser testemunha de uma realidade. E a noção de fidelidade em museologia não pressupõe necessariamente autenticidade no sentido tradicional, mas a veracidade, a fidedignidade do documento ou testemunho. Para muitos pensadores da museologia o museu é peça fundamental para que o corra o processo de musealização, que, por sua vez, é essencial para que ocorra o fato museal. Recentemente, alguns teóricos discutem a relação homem-objeto de forma mais flexível, principalmente no que concerne a instituição do museu. Este, inegavelmente, possui grande importância social e influência em como determinada sociedade recebe e lida com a cultura e a arte. O museu, segundo Poulot, usufrui de uma “autoridade intelectual” e é “uma instituição central e incontestável da cultura ocidental”.8 Entretanto, a redefinição das concepções museais, além de proporcionar novas discussões, modifica as práticas profissionais da área. Como exemplo disso, verifica-se em alguns pensamentos mais recentes a possibilidade de pensar o espaço do museu de forma menos imprescindível e a construção de relações museológicas em outros cenários.

                                                                                                                8  POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.11.    

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Cenários alternativos, diferentes relações O objetivo que se apresenta a partir de agora neste trabalho é verificar a possibilidade de ocorrência de uma relação museológica em um cenário distinto ao do museu, tratando principalmente do espaço público e urbano, ou seja, a própria cidade. Levando-se em conta diversos cenários que serão trazidos para análise, é de interesse pensar como eles influenciam a relação entre público e objeto, cada um à sua maneira. De acordo com a teoria do fato museal, o cenário institucionalizado, ou seja, o museu, é de essencial importância para que ocorra a relação entre objeto e público. A legitimação da obra por parte do museu pressupõe uma autoridade da instituição, que tem o poder de assegurar que um objeto é digno de respeito e admiração, determinando o que entra no museu do que fica de fora dele. Essa institucionalização não implica reconhecimento apenas por quem o cria ou implanta ou pelo sistema e órgãos do poder, mas, sobretudo, reconhecimento público. Pelo simples fato de que temos feito museus para a comunidade e não com a comunidade, temos ‘quistos de coleções’

e

museológicos

não

necessariamente

reconhecidos

pela

estabelecimentos comunidade

pela

comunidade.9 O próprio público é influenciado por essa noção de autoridade legitimadora do museu, ao passo que tem uma relação mais respeitosa com o objeto nele inserido, comparada

à

relação

que

existe

com

obras

em

espaços

públicos

não

institucionalizados. No museu, há diversas regras em relação ao toque, à distância de permanência da obra, às fotografias tiradas, ao silêncio que deve ser mantido. Ao contrário, monumentos, esculturas e objetos artísticos e históricos em ambientes públicos a céu aberto - como parques, avenidas e praças, por exemplo - permitem uma relação muito mais aberta e flexível com o público. O espaço urbano não controla o toque, a reprodução de imagem, e tampouco há legendas que guiam e informam.                                                                                                                 9  GUARNIERI, Waldisa Russio Camargo. Textos e contextos de uma trajetória profissional. Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010.    

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Entretanto obras nesses espaços estão sujeitas à indiferença do cotidiano, justamente por sua grande democratização e presença pública constante. A cidade, diferentemente do museu, não serve a um propósito específico, mas é cenário dos mais variados estilos de vida e sujeita aos mais diferentes olhares. No museu, o conceito de Kunstwollen, de Riegl está presente, ou seja, o visitante se leva ao museu com um desejo que ele tem, como explica Poulot: “Visitar um museu é manifestar o que J.-C. Passeron qualifica como a vontade de usufruir a arte, ao distorcer a Kunstwollen de Riegl”.10 Em contraponto, a cidade simplesmente existe e engloba seus cidadãos em seus diversos cenários. A vontade do indivíduo em ter uma experiência estética na cidade deve vir dele mesmo, sem sugestão alguma de um cenário preparado para recebê-lo; o que pode tornar a experiência mais difícil, mas não necessariamente ser um impeditivo para que ela ocorra. A partir do momento em que o espaço do museu é revisto, pensamentos mais flexíveis com relação ao cenário em que ocorre a relação público-obra se tornam mais frequentes. Scheiner, por exemplo, entende o museu como fenômeno e considera suas múltiplas manifestações: O Museu é pensado, hoje, a partir de sua natureza fenomênica e de sua pluralidade enquanto representação. Não mais como instituição, porém configurado através de relações muito específicas entre o humano e as novas percepções de espaço, tempo, memória e valores culturais; livre, plural, passionário e contraditório, infinito em sua potencia [sic], pode aparecer sob distintas formas, representar todos os modelos culturais e todos os sistemas de

pensamento



de

acordo

com

os

valores

e

representações das diferentes sociedades, no tempo e no espaço.11 Trazendo esse discurso ao ambiente urbano, Vera Pallamin discorre sobre a arte pública em espaços abertos e, em certo ponto, afirma que toda arte pública (arte que                                                                                                                 10  POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.136.   11  DE CARVALHO, Luciana Menezes. Waldisa Rússio e Tereza Scheiner - dois caminhos, um único objetivo: discutir museu e Museologia. Revista de museologia, vol.4, nº2, 2011, p.154.

   

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se faz no espaço público, gesto, intervenção, evento, instalação, espetáculo) “exerce sobre o social preexistente um impacto, em que talvez a hegemonia seja confirmada ou desafiada, mas, mais importante que isso, em que algo do novo desse social passa a ter existência”.12 Pode-se nesse argumento inferir que o próprio social impacta ao mesmo tempo em que é impactado. Cristina Freire, por sua vez, aborda os diversos sentidos da cidade e afirma que ela “não se dá àqueles que a ocupam de forma abstrata ou como instrumento destinado apenas a certos usos técnicos (circular, trabalhar, morar, etc). Ela possui uma realidade espessa de sentidos particulares relacionados às pulsões mais profundas do próprio sujeito”. 13 Aqui, a palavra “pulsões” é empregada com curiosa assertividade, pois exprime bem o ritmo da metrópole urbana e de seus habitantes. Da ideia de museu como “espaço resultante de um lugar praticado pelo gesto museológico”, emitida pelo filósofo e historiador Michel de Certeau, pode-se depreender que, segundo ele, o espaço é o resultado de um “lugar praticado”, assim, “o espaço é produto de um ato social”. Dessa forma, a rua e a cidade dependem de seus ocupantes para ser transformadas em espaço e, do mesmo modo, Certeau define a leitura como o “espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito”. Na cidade como lugar de fruição de obras, lida-se com ambas as definições acima: tanto a cidade é um espaço, pois é transformada nele pelos seus passantes, quanto o é, se seus ocupantes considerarem suas obras dignas de leitura. Essa interpretação dialoga com Loureiro, citando Meyriat, que diz que “o objeto pode ser transformado em documento por aquele que busca informação, ou seja, que lhe reconhece significado”.14 Estaria aí a importância do homem em reconhecer tal objeto como fragmento de sua realidade, dando a ela mais sentido. Pensar a relação do público com a cidade em que vive e as obras nela contidas é pensar o espaço urbano além da sua funcionalidade óbvia, dando atenção aos seus                                                                                                                 12  PALLAMIN, Vera. Arte Urbana, São Paulo: Região Central (1945-1998), Obras de caráter temporário e permanente. São Paulo: Annablume Editora, 2000, p.10.

 

13  FREIRE,

Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume Editora, 1997, p.25.

 

14  LOUREIRO,

Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. «Documento e musealização: entretecendo conceitos», MIDAS [Online], 1 | 2013, consultado em 30/03/2015. URL: http://midas.revues.org/78, p.4.

   

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componentes históricos e estéticos. Cristina Freire, adotando essa linha de pensamento, reflete sobre o que são os monumentos de uma cidade: “eles carregamna de sentido simbólico, testemunham sistemas mentais da época em que foram criados e solicitam uma relação não apenas perceptiva mas também efabuladora, que mistura os tempos presente e passado, as histórias individuais e coletivas”. Dessa forma, ela argumenta que a cidade pode ser vista como museu, uma vez que é dotada de elementos de importância que são, por sua vez, dignos e necessitados de observação. O valor desses monumentos, para Freire, vem de uma construção social e histórica de sentido desses monumentos, e portanto, eles são “referências no espaço e no tempo; são lugares de memória”.15 Esses sentidos, atribuídos aos monumentos, são resultado de seus valores intrínsecos somados à percepção do público, que por sua vez depende tanto dos valores intrínsecos do monumento quanto do repertório do observador. Portanto, quando o monumento é construído, ele se insere em um contexto histórico e social, sendo um testemunho desse momento. Entretanto seu sentido estará completo quando se der a relação entre o objeto e seus valores e o observador e seu repertório. Portanto, a relação entre homem e objeto se dá através de elementos concretos – como o contexto histórico, social, político em que o objeto se insere – e subjetivos – as possibilidades de olhares e análises dos homens, que conhecem a realidade que habitam de formas diferentes entre si. A ação do homem sobre o objeto é indispensável para dar sentido a ele, e, de acordo com Cristina Freire, o valor do objeto vem de uma construção social, e o cenário em que a obra está inserida tem a autonomia de facilitar a relação que o homem constrói sobre o objeto, mas não consegue impedi-la. Desse modo, o museu funciona como forte legitimador, instituição de autonomia intelectual que facilita a relação museal. Entretanto, o cenário urbano não impede essa relação, embora possa dificultá-la. O museu oferece um modo específico de apreensão da realidade, enquanto o ambiente urbano não oferece qualquer tipo de respaldo teórico ou de conduta que venha a favorecer a relação museológica. Fatores culturais e de hábitos cultivados em determinada sociedade entram também como elementos influentes na atitude do homem em relação ao objeto circunscrito em áreas urbanas; mas, o ponto                                                                                                                 15  FREIRE, Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume Editora, 1997, p.55.

   

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de vista puramente museológico não abrange esses fatores, que dependem de uma série de outros, sociais, políticos e econômicos. Deixando esses fatores em segundo plano e atendo-se somente aos aspectos puramente museológicos poder-se-ia olhar para o processo de musealização de um objeto. As teorias iniciais incluem o cenário institucionalizado do museu como elemento importante para que ocorra o processo de musealização, ou seja, o objeto ser retirado de sua função cotidiana e ser ressignificado, adquirindo as características documentais, de fidedignidade e testemunhalidade. Stránsky trabalha com um conceito interessante: a musealidade, que para ele é o objeto de estudo da museologia, definindo-a como “valor documentário específico dos objetos concretos e perceptíveis da natureza e sociedade, o valor de evidência autêntica da realidade”.16 Ao se tratar de valor é necessário assumir a existência de dois tipos de valor, o intrínseco e o atribuído, sendo que o valor intrínseco pode ser passível de atribuição, embora ainda não atribuído. Um conceito que poderia derivar dessas reflexões e que é interessante para ser apontado nesse momento é a passividade de musealização. O objeto que é passível de musealização o é pelas mesmas características pelas quais seria musealizado. Ou seja, se o objeto possui importância documental, é fidedigno e é testemunho de uma época, inserido no museu ele é musealizado, e fora dele, ele seria passível de musealização. Posteriormente, o próprio Stránsky define a musealidade como “o caráter museal das coisas”. A palavra “caráter” dá margem à ideia de possibilidade, ao potencial museal. Até o momento trabalhou-se nesse artigo a ideia de que o objeto em ambiente urbano que detém as características necessárias para se tornar um documento já o é pelo seu potencial de o ser. A partir dessas reflexões, tomando-as como possíveis, a dificuldade se encontra em definir a partir de que momento um objeto se torna – ou pode se tornar – documento. De acordo com Maria Lucia Loureiro e José Mauro Loureiro, se apoiando em Michael Buckland, um objeto se torna documento quando há materialidade, intencionalidade e um atitude fenomenológica, ou seja, o objeto é percebido como documento. Essa terceira característica depende do olhar público, e                                                                                                                 16  STRÁNSKY apud  LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. «Documento e musealização: entretecendo conceitos», MIDAS [Online], 1 | 2013, consultado em 30/03/2015. URL: http://midas.revues.org/78, p.6.

   

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este, por sua vez, pode depender do cenário em que ele estiver inserido. Jen Meyriat trabalha com as ideias de “documento por intenção” e “documento por atribuição”. Definindo o documento como “um objeto que dá suporte à informação, serve para comunicar e é durável”, Meyriat atribui a ele duas características concomitantes: “uma de natureza material (o objeto que serve de suporte)” e outra “conceitual (o conteúdo da comunicação, ou seja, a informação)”.17 Continuando, Meyriat afirma que qualquer objeto pode ser carregado de certa função documental, mas, para ele, tornar o objeto documento depende de uma ação externa e intencional. Em outras palavras, todo objeto pode ser fonte de informação e ser tornado documento, embora não seja possível dizer que todo objeto tem necessariamente a função de documento. Dessa forma, o autor conclui dizendo que o objeto pode ser tornado documento por aquele que busca nele informação. Essa visão evidencia bastante a importância do homem na relação museológica e o seu essencial papel no processo de musealização, que, até o momento, tinha o cenário do museu como um elemento indispensável.

                                                                                                                17  MEYRIAT apud  LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. «Documento e musealização: entretecendo conceitos», MIDAS [Online], 1 | 2013, consultado em 30/03/2015. URL: http://midas.revues.org/78, p.4.  

 

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A arte urbana em Brecheret Neste capítulo voltarei a alguns argumentos abordados até o momento, abordando possíveis relações museológicas no espaço urbano paulistano. Como estudo de caso para exemplificar a reflexão proposta farão parte dessa análise seis obras do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret em São Paulo, inseridas em cenários distintos do museu e distintos entre si. É em cima da possibilidade de uma relação museológica fora do museu que esse artigo trabalha, independentemente da real ocorrência dessa relação público-obra. Nascido em 1894, Brecheret se tornou figura importante do modernismo brasileiro, mesmo como italiano, e recebeu do governo de São Paulo e de particulares diversas encomendas de esculturas, monumentos civis e mausoléus, que ainda são presentes nos cenários urbanos da cidade e podem ser vistos com frequência. Alguns de seus trabalhos podem ser vistos em museus e outros, em ambientes públicos e abertos na cidade de São Paulo. A escolha do artista como estudo para esse artigo se dá justamente pela diversidade de cenários nos quais estão inseridas suas obras. Com peças entre parques, museus, hospitais, ruas, praças e instituições sem apelo museológico, Victor Brecheret é interessante para essa reflexão sobre a relação entre homem e obra, além de ser figura recorrente em estudos sobre modernismo em São Paulo. O cenários públicos e abertos (a própria cidade como cenário) estão sujeitos a uma diferente relação temporal com o público, se comparados às obras em museu. Segundo Cristina Freire, “se no museu o tempo é conservado como estanque, pois está alheio ao ritmo do mundo do lado de fora, na cidade, a velocidade dos fluxos impede a contemplação. O olhar desacelerado só é possível para aquele que vem de fora, para o estrangeiro”.18 É verdade que o museu exige uma série de códigos de conduta que propiciam o momento contemplativo, além do fato dele próprio como instituição ter o poder de assentir a qualidade do que está ali exposto. Dentro do museu o visitante já é direcionado a apreciar as obras e, à parte de seu gosto, ele entende na maioria das vezes que há qualidade e valor no que ele está observando. Esse ritual e código de conduta faz são importantes para garantir ao visitante um espaço em que possa ocorrer a contemplação dos objetos, ao passo que a relação do                                                                                                                 18  FREIRE, Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume Editora, 1997, p.207.    

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homem com os objetos também é ritualizada. Com maior ou menor repertório artístico, o visitante está inserido em uma dinâmica em que o museu tem importante papel em legitimar os objetos como documento. Todas essas características corroboram o processo de musealização pelo qual passam os objetos que são retirados de seus cotidianos e passam a integrar uma coleção de museu. Nas obras a céu aberto, fora de um ambiente institucionalizado, não existe a figura do museu legitimador. Entretanto, o olhar desacelerado, de que fala Cristina Freire, necessário para a contemplação, creio não ser possível somente ao estrangeiro, apesar de ser mais facilmente alcançado por ele, uma vez que esse indivíduo, que não pertence àquele ambiente, é mais sensível a observá-lo. Esse elemento temporal, que permite o olhar desacelerado, é essencial para a contemplação de um objeto, e a percepção temporal da cidade apresenta duas características opostas e concomitantes: o repetitivo cotidiano impede que se preste atenção a monumentos e esculturas durante os trajetos diários, fazendo com que muito passe despercebido; entretanto, esse mesmo cotidiano permite que o indivíduo conheça muito bem seu trajeto e se familiarize com ele de tal forma que se algo muda ele reconhece. Ainda de acordo com Cristina Freire, “em nossos itinerários urbanos deixamos a memória e a imaginação trabalhar e registramos mudanças: a nova pintura de uma fachada, aquele velho letreiro, o andamento daquela construção”.19 Os indivíduos estão, mesmo que de forma não tão consciente, atentos ao seu entorno, enquanto novos elementos adicionados ao cenário urbano são percebidos. Dessa forma, para que o olhar museológico ocorra, bastaria incentivá-lo através do interesse em contemplar de forma mais sensível as obras na cidade. Existe ainda, a fim de analisar a possibilidade de uma relação museológica em ambientes urbanos, um fator que deve ser tomado em consideração, no que concerne ao processo de musealização, já citado neste trabalho. De acordo com essa teoria, o objeto musealizado precisa ter três características essenciais: documentalidade, fidedignidade e testemunhalidade. Tomando como exemplo duas obras distintas do escultor Victor Brecheret, é interessante verificar que em uma delas o processo de musealização ocorre com certeza e de maneira formal, enquanto para a outra esse processo não é claro, apesar de o objeto possuir inquestionável valor histórico, documental e testemunhal, se tornando importante símbolo da cidade de São Paulo e um de seus cartões postais.                                                                                                                 19  FREIRE, Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume Editora, 1997, p.26.    

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A escultura Musa Impassível (fig.1), em exibição permanente na Pinacoteca do Estado de São Paulo desde 2006, era inicialmente o mausoléu da poetisa Francisca Julia por iniciativa de um grupo de modernistas que incluía Oswald de Andrade e Di Cavalcanti. Brecheret a finalizou em 1923 e ela esteve até 2006 no Cemitério do Araçá, quando foi transferida para a Pinacoteca sob a justificativa de que seria injusto manter essa significativa peça longe dos olhos do público. De acordo com Regina Teixeira, curadora da Pinacoteca, em entrevista por e-mail (anexo1), um dos fatores positivos da transferência da obra são os cuidados com preservação, que no cemitério não existiam. E o cemitério não ficou desamparado com a retirada do mausoléu, já que um bronze da escultura substituiu a original. A transferência de local é interessante pois a mudança do cenário em que a obra está inserida altera sensivelmente a forma como ela é percebida pelo público. Na própria justifica do projeto percebe-se o quanto o museu é importante para aumentar o reconhecimento da obra, já que o mausoléu não estava necessariamente longe dos olhos do público no cemitério, mas inserido em um cenário que não é comumente visitado com o objetivo de contemplação artística. Mas, também na mesma justificativa, percebe-se que a obra já havia adquirido determinada importância e reconhecimento perante o museu mesmo antes de estar lá, já que um dos motivos da transferência à Pinacoteca foi a preocupação em preservar a escultura. Ao integrar o acervo da Pinacoteca, a Musa Impassível passa a ser um objeto musealizado, um documento e é olhada pelos visitantes do museu da mesma forma que as outras obras lá contidas, respeitando as premissas já colocadas aqui nos últimos capítulos. Caso diferente é o do Monumento às Bandeiras, grandiosa escultura de Brecheret instalada junto ao parque Ibirapuera, que teve seu projeto apresentado em 1920, embora tenha começado a ser construída em 1936. Bastante improvável que o monumento seja retirado de seu ambiente atual – que é também o original – devido ao seu tamanho e à natureza de sua criação. Monumentos comemorativos, muito comuns no século XX em São Paulo, são na maior parte das vezes fruto de encomendas públicas, para as quais vários projetos de diferentes artistas eram analisados, para enfim escolher-se aquele que iria executá-lo. Mais uma vez o modernista Oswald de Andrade esteve envolvido na escolha de Brecheret para a tarefa, dessa vez igualmente incentivado pelos também modernistas Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo. Por questões políticas e econômicas o processo de construção do monumento foi extremamente lento, levando vinte e sete anos. Construído por partes no Liceu de  

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Artes e Ofícios, foi montado in loco onde se encontra até hoje. Como um monumento público, comemorativo de um fato histórico de importância para a cidade, o Monumento às Bandeiras possui uma relevância clara relacionada à história de São Paulo, mas também é um testemunho histórico por fazer parte de um período e estética ainda modernistas, possuindo ainda valor artístico por representar a técnica de um artista reconhecido como importante integrante da arte modernista brasileira. Analisando todas essas características, poder-se-ia dizer, sob o argumento da musealização, que o Monumento às Bandeiras apresenta elementos que são passíveis de musealização; poderia ser um documento, que testemunha um período e é fidedigno, pois é verdadeiro. A musealidade, conceito muito trabalhado por Zbynek Stránsky, pode ajudar nesse ponto da discussão pois representa de certa forma o potencial museológico de um objeto, analisando os valores nele presentes e sua importância. Para trabalhar com objetos que não são claramente tidos como documentos, que não passaram por uma visível passagem e atingiram a musealização, a ideia de potencial museológico vem em bom momento. Assim, se não se pode falar de musealização, ou objeto musealizado, fala-se de objeto passível de musealização. O próprio Stránsky reviu a definição do conceito de musealidade algumas vezes, buscando definir primeiramente a ocupação e interesse da ciência da museologia como o “reconhecimento do objeto como fonte primária de conhecimento” e, posteriormente, como a percepção e identificação de “documentos que, em diferentes aspectos representem certos valores sociais”.20 O mencionado caráter documental do objeto corresponde, de acordo com Stránsky, à musealidade nele presente. Dessa forma, pode-se ver a musealidade como o potencial museal decorrente do valor documental de um determinado objeto, e ainda nessa linha de pensamento, verifica-se que a musealidade não necessita do museu para ocorrer, mas do homem que se relaciona com um objeto em um determinado cenário. Martin Schärer, professor de museologia suíço, define a museologia como “a busca de tudo que engloba uma atitude específica do homem diante dos objetos ou de seus valores conceituais”.21 E Poulot, corroborando com Schärer e citando-o, afirma                                                                                                                 20  LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. «Documento e musealização: entretecendo conceitos», MIDAS [Online], 1 | 2013, consultado em 30/03/2015. URL: http://midas.revues.org/78, p.5.

  21  SCHÄRER apud POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.130.

 

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que essa atitude “encontra-se sempre e em toda parte” e ainda que “esse campo de estudo pode ser entendido como a ‘musealidade’”. Retomando Stransky, a musealidade seria a análise da “característica dos objetos de museu”, “essa parte da realidade que só podemos conhecer através de uma representação da relação entre homem e a realidade”. 22 Seguindo essa linha de pensamento, os monumentos expostos na cidade, de valor histórico, documental e artístico, tanto são dotados de musealidade, e, portanto, podem ser observados do ponto de vista museológico, quanto estão sujeitos à atitude do homem que busca neles uma relação de valores. Exemplo semelhante à Musa Impassível, que teve seu local cambiado e com isso seu estatuto de obra/documento assegurado, a Via Crucis de Brecheret conta uma história de dois cenários. Trata-se de um conjunto de vinte e seis esculturas de terracota e gesso que retratam os mais importantes episódios da Paixão de Cristo, feito entre 1942 e 1946. Enquanto a versão original da obra se encontra na capela do Hospital das Clínicas, a outra está em exposição permanente no andar térreo da Pinacoteca do Estado de São Paulo (fig.2, 3, 4 e 5). A capela foi inaugurada em 1945 e a sequência de esculturas foi produzida especialmente para ela, fazendo parte do conjunto duas esculturas em bronze. Dentro do museu, a segunda versão da obra se insere em todo o mecanismo museológico discutido até o momento e recebe do público o olhar contemplativo e a atenção que ele depreende às outras manifestações contidas na Pinacoteca. A outra versão, na capela de um hospital importante da cidade de São Paulo, se encontra em um ambiente que já é por si só bastante propício à reflexão, embora seja improvável que esta se dê por motivos artísticos. O espaço religioso já direciona o olhar do indivíduo para um terreno contemplativo diferente daquele do museu. A adoração a objetos e a atenção ao espaço se dá nesse caso por causa de uma pré-disposição de momento em que a pessoa se encontra, geralmente buscando nesse presente algo em que se apegar. De forma semelhante, o túmulo de Olivia Guedes Penteado (fig.6 e 7), no Cemitério da Consolação, em São Paulo, também está situado em um ambiente dado à contemplação. Ambos os ambientes, da capela e do cemitério, impõem sobre os seus passantes uma posição de respeito, que pode ser identificada pelo silêncio, pelas passadas mais lentas, pelos olhares mais atentos. Embora nenhuma dessas manifestações seja fruto de uma reflexão artística,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               22  STRÁNSKY apud POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.130.    

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essa conduta comportamental se assemelham com aquela que é a mais aceitável dentro de um museu, ou pelo menos era até pouco tempo atrás. O que essas duas obras de Brecheret têm em comum é que, em decorrência do local onde estão, trazem à relação homem-objeto elementos além daqueles postos de forma óbvia e daqueles que estariam presentes em um museu: um deles traz o aspecto religioso e o outro, de certa forma, a morte, ou uma sensação contemplativa que poderia estar ligada à questão existencial talvez. Estando-se nesse ponto da discussão, um terceiro exemplo viria em bom momento, pois se trata de uma obra que também traz em si um elemento extra: o místico. A escultura intitulada Fauno, hoje situada no Parque Ten. Siqueira Campos, em São Paulo, passou por vários cenários da cidade desde 1942, quando foi realizada. A peça, que representa a figura mitológica do Fauno, foi inicialmente colocada na Praça Dom José Gaspar, na Consolação. Cristina Feire discorre brevemente sobre a apropriação do público da obra nesse primeiro cenário, que se manifestou de forma curiosa e ritual. A população viu ali um local que poderia “render cultos, acender velas, fazer toda a sorte de rituais a esse deus pagão”.23 Por ordem metropolitana a obra foi retirada do espaço e transferida. Nesse caso pode-se ver um culto à obra de caráter religioso, que ignora a importância artística ou histórica da peça, e olha para o que ela representa, para sua simbologia mística. Nesses três casos, pode-se ver como o público se apropria da obra de forma mais livre e destemida quando ela está em ambientes que não exigem dele o respeito que é necessário ao museu. Além disso, seja pelo cenário ou pelo cunho da obra, quando ela traz elementos além do artístico, que costumam ser mais próximos do cotidiano das pessoas, estas parecem se identificar mais facilmente com as esculturas, configurando um tipo de relação diferente entre homem e objeto. O exemplo do Fauno, onde foi situado primeiramente, mostra também como o cenário em que está contido um determinado objeto não é determinante sobre a relação que o público terá com ele. Nesse caso, foi imprevisível a reação do público, que se apropriou de maneira inesperada da escultura, determinando como seria esse olhar que a obra receberia. É curiosa também a relação que o público tem com as obras de Brecheret que podem ser vistas no Jockey Clube de São Paulo. Sendo o segundo maior acervo de Brecheret, o clube não faz algum trabalho de divulgação ou guia para visitas. O                                                                                                                 23  FREIRE, Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume Editora, 1997, p.253.

   

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Jockey foi fundado em 1941 na atual sede (desde 1875 estava no bairro da Mooca) e Brecheret iniciou as obras especialmente para o local em 1936. As obras consistem em relevos nas paredes internas e externas do local (fig.8, 9 e 10) e a instituição se configura de modo bastante indeterminado no que concerne a guarda desse acervo. As obras lá contidas têm um espaço diferente do museu e também distinto daquele do Monumento às Bandeiras, por exemplo, que está exposto ao mais livre espaço urbano possível. Os relevos no Jockey fazem parte de uma instituição fechada, mas não têm qualquer tipo de tratamento museal, apesar de ser um espaço tombado por razões culturais. A importância que o Jockey detinha na época em que as esculturas foram feitas deixa clara a igual eminência do escultor Victor Brecheret então, entretanto nenhum desses vigores são vistos atualmente no espaço. A falta de conhecimento do público sobre a existência e a possibilidade de visitação desse acervo ajuda a empobrecer ainda mais a situação, uma vez que, conforme argumentos utilizados anteriormente nesse trabalho, o homem é o verdadeiro elemento essencial para que a relação museal ocorra.

 

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Reflexões finais Tendo-se em mente todos os processos que fazem parte da construção e do funcionamento de um museu – a salva-guarda, a reserva técnica, a comunicação, a preocupação com a conservação – nunca seria possível comparar a própria cidade ou o espaço urbano com um museu. Nesse sentido, não seria possível utilizar a expressão “museu a céu aberto” uma vez que o museu existe mediante de uma rede de organizações, processos e doutrinas que visam fins específicos e não são reproduzidas fora dele. Por isso, é importante deixar claro que o que verifica-se aqui é se a relação museológica pode ocorrer sem a estar inserida em um cenário institucionalizado, e por consequência, no espaço urbano. A figura do museu é de inquestionável importância para a legitimação de qualidade e valor do objeto, mas a sua contemplação e o aprendizado decorrente dele podem ser resultado de uma relação dupla entre homem e objeto, independendo, em última análise, do cenário em que se encontram. Dominique Poulot, a respeito da museografia (conjunto de práticas e técnicas do museu), acredita que ela seja “orientada pelo duplo ideal da fruição e da utilidade”.24 Ambos os conceitos estiveram presentes durante esse trabalho: as ideias de contemplação, olhar museológico, fatores temporais e condutas comportamentais estão contidas na palavra fruição; enquanto o aprendizado, a preocupação com conservação, a ideia de valor e o processo de musealização, para dar alguns exemplos, são resultado concreto ou ações resultantes da utilidade da obra em todos os seus aspectos. Observa-se que os conceitos abordados por Poulot, de fruição e utilidade, estão presentes em diversos pensamentos e práticas relacionadas ao museu e à museologia, formando uma junta que pode ser verificada frequentemente e de forma concomitante. Todo museu, por exemplo, opera dentro de uma lógica, a chamada cadeia operatória da museologia. Em uma explicação rápida, essa cadeia determina as ações práticas e técnicas cotidianas do funcionamento do museu, e, de forma simplificada, trabalha para atingir dois objetivos principais: o de comunicar o seu acervo e o de salvaguardá-lo. Fazem parte da comunicação de um acervo as exposições, os guias, materiais de divulgação, ações da equipe educativa, etc. Já a salvaguarda se preocupa com a conservação e a documentação do acervo; ou seja,                                                                                                                 24  POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.128.    

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tudo que for relacionado ao seu estudo, pesquisa e cuidado. Tendo em mente essas duas áreas de trabalho, a de comunicação estaria diretamente relacionada à fruição, enquanto as atividades relacionadas à salvaguarda não existiriam se não houvesse a consciência do valor documental do objeto como fonte conhecimento e a preocupação com seu cuidado, reconhecendo sua utilidade. A expografia, que tanto trabalha a fim de direcionar o olhar, o comportamento e até o fluxo de passagem do visitante de museu, se ampara em regras e códigos de conduta a fim de garantir a preservação dos objetos expostos e afirmar a sua importância documental (utilidade), enquanto também pensa todo o espaço expositivo como um importante cenário de contemplação (fruição), tentando possibilitar a melhor experiência ao visitante. Ambos os conceitos, de fruição e utilidade, são resultado de características tanto do homem que observa, quanto do objeto e intrínsecas a ele, e o sentido dado a esses conceitos é decorrente da relação homem-objeto, frequentemente independendo do cenário em que ocorre essa relação. O museu proporciona de forma única o cenário adequado para que ocorra a relação homem-objeto, para que o homem tenha uma experiência de fruição e conhecimento da própria realidade que habita; entretanto o museu é um facilitador da relação museal, mas não necessariamente um elemento essencial para que ela ocorra. Além de proporcionar um ambiente favorável à contemplação e ao aprendizado, o museu desempenha outras funções, originárias de necessidades do homem com relação ao que ele quer preservar, estudar e documentar, ações que são práticas do museu ainda hoje. Mediante essas necessidades do homem, o museu foi criado, hoje ocupando importante lugar na sociedade, ajudando o homem a preservar sua memória e entender seu tempo, se apoiar em seus conhecimentos para pensar e agir sobre sua realidade. Essas necessidades já eram do homem e por causa delas o museu se tornou um espaço tão eminente em nossas cidades, organizando e esquematizando essas necessidades. Pensando dessa forma o museu e sua importância transcendem seu espaço físico e passa a ter-se a ideia de museu como fenômeno e como processo, que, de acordo com Scheiner, “independe de um espaço e de um tempo específicos” e que “permite-nos aceitar que ele assuma diferentes formas” e possibilita que prestemos atenção às “diferentes ideias de museu, presentes no universo simbólico dos diferentes grupos sociais”. Adotando-se essa linha de pensamento é perceptível o

 

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quanto a influência do museu está além dele mesmo e o quanto ele é cada vez menos o seu espaço físico e cada vez mais parte de um hábito cultural, de uma forma de pensar, de uma simbologia social. Tomando tudo isso como verdade, parece questionável que a relação museológica dependa do espaço do museu para acontecer e não possa se dar fora dele, se justamente a necessidade dessa relação pode ter sido um dos fatores que gerou a própria criação do museu.

 

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ANEXO 1 Entrevista realizada por e-mail com Regina Teixeira, curadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no dia 08 de maio de 2015. Laura Ammann: Sobre a Via Crucis de Brecheret, qual é a importância da obra para a Pinacoteca e como se deu sua aquisição? Regina Teixeira: A obra não foi adquirida pela Pinacoteca. Trata-se de um comodato. Veja a história na foto que vou te encaminhar no próximo email. LA: Quais foram as opções curatoriais para a exposição da Via Crucis no térreo da Pinacoteca? A obra está em exposição permanente? RT: O conjunto está em exposição permanente. Ela foi instalada no térreo porque o corredor tinha paredes disponíveis e o próprio formato de “corredor” colabora com a leitura da obra, uma vez que os Passos da Paixão constituem um percurso, um caminho percorrido. LA: Na sua opinião, como o ambiente da Pinacoteca influencia o relacionamento com a obra Via Crucis, em comparação ao ambiente da capela do Hospital das Clínicas, onde está também uma outra Via Crucis? RT: Me parece que a Via Crucis da Pinacoteca tem muito mais visibilidade do que a da capela do HC. Não saberia te dar os números da visitação da Capela, mas certamente é muito menor do que a visitação da Pinacoteca. LA: Sobre a Musa Impassível de Brecheret, como/quando se deu a retirada da obra do cemitério e porque? Qual é a sua importância para a Pinacoteca? RT: Sobre a incorporação da Musa impassível, veja a história na foto do próximo email. A incorporação se justifica por complementar o conjunto de obras que a Pinacoteca tem do artista. Ao mesmo tempo, a substituição do mármore pelo bronze, no cemitério, garante a preservação da obra, que vinha se deteriorando ao ar livre. LA: Quais foram as opções curatoriais para a exposição da Musa Impassível no térreo da Pinacoteca? A obra está em exposição permanente?

 

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RT: A obra está em exposição permanente. Ela foi exposta no térreo porque havia espaço para a obra ser mostrada de modo adequado; além disso, os dois trabalhos (Via Crucis e a Musa) explicitam a preocupação e a iniciativa da Pinacoteca em relação à conservação do patrimônio. LA: Na sua opinião, como o ambiente da Pinacoteca influencia o relacionamento com a obra Musa Impassível, em comparação ao ambiente do cemitério? RT: Novamente, a obra é mais vista na Pinacoteca e sua história pode ser extrovertida de forma mais explícita.

 

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IMAGENS

figura 1: Victor Brecheret, Musa Impassível (1923)

figura 2: Victor Brecheret, Via Sacra (1942-46)

 

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figura 3: Victor Brecheret, Via Sacra (1942-46)

figura 4: Victor Brecheret, Via Sacra (1942-46)

figura 5: Victor Brecheret, Via Sacra (1942-46)

 

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figura 6: Victor Brecheret, túmulo a Olivia Guedes Penteado (1934)

figura 7: Victor Brecheret, túmulo a Olivia Guedes Penteado (1934)

figura 8: Victor Brecheret, Jockey de São Paulo (1936-41)

 

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figura 9: Victor Brecheret, Jockey de São Paulo (1936-41)

figura 10: Victor Brecheret, Jockey de São Paulo (1936-41)

 

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