A relevância da arbitragem na Baixa Idade Média

July 14, 2017 | Autor: Frederico Bonaldo | Categoria: History of Law
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26/03/2015

A relevância da arbitragem na Baixa Idade Média ­ Jus Navigandi

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A relevância da arbitragem na Baixa Idade Média Frederico Bonaldo

Publicado em 03/2015. Elaborado em 03/2015.

Trata da importância da arbitragem no período da Baixa Idade Média, quando este instituto se estendeu  prodigiosamente  pela  Europa,  introduzindo­se  de  maneira  sólida  no  universo mercantil e até mesmo possibilitando o surgimento da diplomacia estatal. 1. INTRODUÇÃO A  prática  da  arbitragem,  apesar  de  milenar,  tem,  nos  dias  de  hoje,  uma  importância  crescente,  uma  vez  que  o  seu aperfeiçoamento como instituto jurídico e a sua aplicação a situações cada vez mais numerosas são uma constante em muitos países. Por exemplo, é chamativo o fato de a American Bar Association – o órgão de classe dos advogados norte­americanos – estar, há mais de uma década, concentrando esforços na direção do alargamento da utilização da arbitragem como meio alternativo ou complementar para diminuir ao máximo os efeitos nocivos produzidos pelos vagorosos tribunais locais [1]. No Brasil, após a promulgação da Lei n.º 9.307/96, os caracteres deste instituto têm sido intensamente esmiuçados pela doutrina,  posto  que  os  obstáculos  para  a  sua  implementação  já  não  possuem  mais  a  força  de  antes,  e  também  porque  o conteúdo  da  famigerada  Lei  Marco  Maciel  “coaduna­se,  perfeitamente,  com  os  princípios  fundamentais  do  Estado Democrático brasileiro, conforme acentua o preâmbulo da Constituição Federal de 1988” [2]. As vantagens do processo arbitral frente ao processo judiciário estatal – celeridade, informalidade e confidencialidade – são notórias  e  frequentemente  veiculadas.  Porém,  talvez  não  seja  suficiente  para  a  defesa  e  promoção  deste  instituto  o  seu tratamento exclusivo nos termos em que hoje se apresenta ou, no limite, nos contornos que assumiu no passado recente. Enxerga­se  haver  a  necessidade  de  adentrar  as  suas  raízes  históricas,  especialmente  daqueles  períodos  em  que  seus elementos constitutivos começaram a solidificar­se e em que a sua utilização alcançou grande expansão. Não raramente, a história do Direito e do pensamento jurídico é negligenciada por quem o concebe como o objeto de uma disciplina cientificamente neutra, despida de lastro cronológico e valorativo. Mas, a bem da verdade, é preciso reconhecer que “é natural que as diversas fases do pensamento humano acabem por influenciar a visão que os juristas têm do mundo jurídico e seus elementos, levando a que uma postura determinada seja predominante em certa época” [3]. Ao abordar a arbitragem – e qualquer outro instituto jurídico – pelo seu viés histórico, pode­se fornecer­lhe “a compreensão de sua retrospectiva, esclarecendo as dúvidas e levantando, passo a passo, […] suas bases de fundo e suas características de forma,  até  chegar  à  razão  de  ser  de  seu  significado  e  conteúdo”  [4].  Por  isso,  neste  estudo,  procura­se  trazer  à  tona  a relevância do instituto da arbitragem no período da Baixa Idade Média (época compreendida entre os séculos XIII a XV d.C.),  quando  se  estendeu  prodigiosamente  pela  Europa,  introduzindo­se  de  maneira  sólida  no  universo  mercantil  e  até mesmo possibilitando o surgimento da diplomacia estatal. Contudo, convém antes descrever em breves linhas o contexto social e jurídico em que a arbitragem ao tempo da sua gênese. 2. CONTEXTO SOCIAL EUROPEU NA BAIXA IDADE MÉDIA Como é sabido, “no século XIII, verifica­se uma mudança considerável na estrutura da sociedade medieval. Já iniciada no século XII, essa mudança prossegue até o fim da Idade Média” [5]. Precisamente, este é o arco temporal denominado Baixa Idade Média. A mudança referida foi marcada por duas peculiaridades dignas de nota: (1) o enfraquecimento do sistema feudal e (2) o surgimento das comunas ou cidades. No século XIII, a vida política européia estava associada a  um  certo  otimismo  reinante  nas  cidades  que  renascem  e  que  renascem  através  de  um  esforço  coletivo.  Este  esforço  é, geralmente, uma guerra empreendida contra o senhor feudal, leigo ou bispo: e o fim da guerra é selado pela capitulação do senhor que concede à cidade a sua Carta, seu estatuto, seu foral. Algumas vezes esta carta de liberdade urbana é concedida

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com  menos  violência  e  guerra,  mas  é  sempre  uma  forma  de  pacto.  E  os  cidadãos  não  são  cidadãos  isolados:  são  as corporações e guildas, que fazem entre si um pacto de defesa mútua, uma conjuração pela paz […]. A própria comuna ou cidade é uma corporação formada por alguns cidadãos capazes e posta sob a tutela de um grupo de autoridades que deve zelar para que ela cumpra seus fins corporativos (ou fim comum) [6]. Mesmo persistindo em algumas regiões do continente europeu até o final do Antigo Regime, o poder dos senhores feudais sobre os seus vassalos foi suplantado pelo fortalecimento dos reis e de outras figuras da nobreza. Com isso, a ideia moderna de Estado  começou  a  formar­se,  especialmente  por  meio  da  estruturação  jurídica  dos  corpos  políticos  e  dos  seus  corpos representativos (os Estados Gerais franceses, o Parlamento inglês, as Cortes espanholas etc.) [7]. Por  outro  lado,  a  restrição  da  hierarquia  feudal  propiciou  o  surgimento  das  comunas  dentro  de  um  novo  marco administrativo. Nelas, a atividade industrial passou a desenvolver­se de maneira pujante, e uma economia ágil substituiu a economia fechada que antes prevalecia, possibilitando, assim, uma vida comercial de grande intensidade e alcance que interconectava muitas localidades, principalmente da Europa ocidental [8]. 3. A ESCOLA DOS COMENTADORES E A FORMAÇÃO DE UM NOVO CENÁRIO JURÍDICO A reestruturação da sociedade medieval entre os séculos XIII e XV encontra as suas causas no resgate da cultura clássica greco­latina  um  ou  dois  séculos  antes,  período  em  que  foram  fundadas  as  primeiras  universidades.  Nestas,  o  estudo  do Direito – que buscou a reabilitação do espírito jurídico dos jurisconsultos romanos – constituía uma das disciplinas centrais, sendo a escola de Bolonha a que maior prestígio alcançou. Em Bolonha, no final do século XIII e início do XIV, aparecem os comentadores (ou pós­glosadores), estudiosos do Direito romano – ao qual imprimiram um certo grau de erudição, passando a denominá­lo ius commune, – que, ao contrário dos seus predecessores – os glosadores – “influenciaram na aplicação prática do direito de sua época” [9]. Eles foram os grandes conselheiros  dos  príncipes,  das  comunas  e  dos  particulares  por  meio  das  opiniões  e  pareceres  que  emitiam,  o  que representou  um  forte  auxílio  na  harmonização  dos  Direitos  locais  disseminados  pela  geografia  europeia  [10].  Entre  os comentadores,  a  maior  figura  foi  Bártolo  de  Sassoferrato,  seguido  de  Baldo  de  Ubaldis.  Enfim,  os  glosadores  tornaram possível “uma convivência da tradição feudal com as novas tendências da vida européia: o comércio e a monetarização da vida e das obrigações, uma certa flexibilização nas transferências de terras e sucessões” [11]. Dada  essa  recuperação  do  Direito  romano  adaptado  à  conjuntura  político­social  medieval,  podem­se  ressaltar  algumas características do novo cenário jurídico que então se formou: (1) a reaparição da lei como fonte do Direito, principalmente nas searas administrativa e econômica; (2) a redução a escrito dos costumes locais e regionais, em virtude da necessidade de segurança jurídica; (3) o apogeu do Direito canônico em decorrência das sistematizações de Graciano e do papa Gregório IX; (4) a supressão dos meios probatórios irracionais, tal como ordálios e duelos judiciários, por influência do processo jurídico­ canônico;  (5)  a  consideração  da  justiça  e  da  equidade  como  fundamentos  do  Direito;  e  (6)  os  primeiros  esforços  de formulação de um Direito objetivo aplicável a todos os habitantes de um território ou a todos os membros de um grupo social determinado [12]. 4. FATORES DO ÊXITO DA ARBITRAGEM NA BAIXA IDADE MÉDIA No  número  10  do  seu  extenso  e  rico  verbete  “Arbitragem  internacional  (introdução  histórica)”,  Guido  Soares  expõe, primeiramente, a conjuntura medieval que propiciava o alargamento da arbitragem operada por papas e bispos em questões políticas das comunas. Posteriormente, o mencionado autor reporta­se ao trabalho de um autor europeu a fim de explicitar três razões do sucesso da arbitragem na Idade Média, agregando, ao final, uma quarta referente às corporações de ofício [13]. Neste  tópico,  desenvolvem­se  estes  dois  destaques  de  maneira  que  o  primeiro  sirva  de  suporte  para  o  segundo  –  o  mais importante para os fins deste estudo. Preliminarmente,  cabe  enfatizar  que  “a  partir  do  século  XII,  a  Idade  Média  está  repleta  de  casos  de  arbitragem,  entre cavaleiros, entre barões, entre proprietários feudais e entre soberanos distintos” [14]. Nesse período, houve conflitos de suma importância para o futuro desenrolar da história ocidental que foram resolvidos através da arbitragem. A solução dos litígios entre o imperador Frederico II e o papa Inocêncio IV, por intermédio do parlamento da cidade de Paris, e o Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, orquestrado por uma bula do papa Alexandre VI, são exemplos emblemáticos [15]. O  período  final  da  Idade  Média  tem  como  característica  marcante  a  cristianização  praticamente  integral  do  continente europeu.  Com  efeito,  a  Europa  de  então  era  a  chamada  cristandade,  situação  esta  que  levou  muitos  historiadores  a denominarem pax christiana a esse fortíssimo influxo da religião cristã – em clara semelhança formal e oposição de conteúdo com a pax romana pagã do século I d.C. De acordo com este estado de coisas, a arbitragem operada pelo papa – nessa época, estreitamente unido ao imperador, figura máxima da ordem temporal – representava o julgamento da autoridade maior do âmbito  espiritual.  Com  este  amplo  espaço  jurisdicional,  era  mais  comum  que  a  arbitragem  papal  fosse  acionada  na ocorrência de disputas públicas; porém, também era muito frequente a interferência papal na esfera privada, através dos seus emissários, que funcionavam como mediadores e conciliadores para assuntos não só das ordens religiosas como também das comunas. Conforme  cita  o  Guido  Soares,  o  jurista  francês  Michel  de  Taube  –  no  seu  artigo  intitulado  “Les  origines  de  l’arbitrage international;  antiquité  et  Moyen  Âge”  –  aponta  três  fatores  que  determinaram  o  grande  êxito  da  arbitragem  na  época medieval: (1) a prática frequente da arbitragem no âmbito da Igreja católica romana; (2) o recurso à arbitragem nas questões intercomunais; e (3) o sistema de direitos recíprocos presente na estrutura feudal.

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Quanto ao primeiro fator, na Idade Média – tal como ainda hoje acontece, se bem que de um modo menos perceptível para o comum dos cidadãos – coexistiam as jurisdições civil e eclesiástica. Como os clérigos estavam sujeitos a esta última e muitos deles  eram  proprietários  de  extensas  áreas  de  terra  onde  se  formavam  comunidades  várias,  o  recurso  às  instâncias eclesiásticas  –  em  casos  de  litígios  que  ocorriam  no  interior  dessas  comunidades  –  era  mais  frequente  que  o  recurso  aos tribunais judiciais civis. Como indica Guido Soares, esta prática se intensificara em virtude da proibição estabelecida por Paulo de Tarso de que os cristãos recorressem à justiça profana nos casos de conflitos entre si (isto consta da sua primeira carta aos habitantes de Corinto, concretamente no seu capítulo VI, versículos 1 e seguintes). De maneira parecida ao que ocorria entre as poléi gregas na Idade Antiga, as comunas do Baixo Medievo passaram a resolver suas  questões  de  limites  territoriais  por  meio  da  escolha  de  um  árbitro,  em  detrimento  do  aparelho  judiciário  do  Sacro Império Romano Germânico. A reabilitação do Direito romano foi um forte impulso para esta alternativa, uma vez que o seu ius civile possuía um caráter eminentemente privado, inclusive no tratamento de assuntos que, na Modernidade, viriam a ser iluminados pelas disposições do Direito público. Também  o  feudalismo  –  estrutura  em  que  se  organizavam  amplos  setores  da  sociedade  europeia  –  implicou  o  uso incontornável da arbitragem. O proprietário de um determinado feudo reunia na sua pessoa a totalidade do poder político daquele território. No entanto, ocupava um determinado lugar na hierarquia composta por outros senhores feudais e pelos reis.  Quando  se  davam  litígios  privados  no  âmbito  daquele  feudo,  era  praxe  que  os  particulares  recorressem  –  quando insatisfeitos com a decisão local – à arbitragem do superior hierárquico do seu senhor feudal – o proprietário de um outro feudo  ou  um  rei  –,  a  fim  de  obterem  a  solução  mais  ao  seu  gosto  para  aqueles  litígios,  prática  esta  que,  nos  dias  atuais, corresponderia ao campo do Direito internacional público. Por fim, é importante mencionar a prática da arbitragem nas corporações de ofício e de profissões liberais – embriões dos contemporâneos sindicatos de classe – que surgiram em número vertiginoso no ocaso da era medieval. Neles, existia uma sólida e intransigente hierarquia, que tornava mais favorável o uso da arbitragem para a resolução de conflitos internos do que o recurso aos tribunais oficiais. 5. ASPECTOS DA ARBITRAGEM COMERCIAL NOS SÉCULOS XIII, XIV E XV A  vida  comercial  nos  três  últimos  séculos  da  Idade  Média  desenvolvia­se  em  feiras  espalhadas  por  diversos  pontos  da Europa. Estas recebiam comerciantes e produtos procedentes de localidades diversas e as mais longínquas, o que acarretava uma  série  de  percalços  à  atividade  negocial,  tais  como  a  grande  quantidade  de  tributos  sobre  o  transporte  e  a  venda  de mercadorias, entraves para a entrada de produtos nos portos e para o tráfego dos mesmos sobre estradas e pontes [16]. A isto se uniam as características do sistema jurídico vigente à época, em que “imperava a extrema personificação da lei e a mais ampla extraterritorialidade dos estatutos pessoais” [17], cujo efeito era a necessidade de os tribunais judiciários locais aplicarem  leis  estranhas  ao  foro.  Assim,  os  juízes  desses  tribunais  tinham  de  lidar  com  dois  fenômenos  capciosos:  a complexidade intrínseca às práticas mercantis e o adequado conhecimento de múltiplas legislações a eles alheias. Como contraponto, desde muito cedo foram surgindo nessas feiras tribunais arbitrais, cujo procedimento era muito mais célere que os dos tribunais judiciais, já que estavam providos de julgadores cientes da dinâmica comercial e que recorriam “à eqüidade e à aplicação de usos e costumes vigentes para as partes” [18]. Desse modo, a Idade Média tornou­se o berço da arbitragem comercial. Dois acontecimentos de relevo demonstram a boa adequação das práticas comerciais à arbitragem: (1) consta de um decreto de Luís IX, rei da França, de 1250, a ordem de que fosse feito um elenco de comerciantes envolvidos em diversas atividades mercantis, com vistas à constituição de tribunais arbitrais; (2) em 1637 – portanto, não mais na Idade Média, contudo sob o seu influxo –, uma lei francesa determinou que os tribunais judiciários considerassem ex officio – quando inexistissem nos contratos  de  sociedade  ou  de  seguro  marítimo  –  cláusulas  compromissórias  para  determinadas  matérias  e  indicação  de árbitro, nos casos de revelia e não cooperação [19]. Ressalte­se uma característica da Europa medieval que, provavelmente, também estaria presente na arbitragem comercial: a  mediação  nos  negócios  entre  particulares.  Michel  de  Taube  transcreve  um  trecho  de  uma  obra  de  Boutillier  –  jurista francês do século XIV – que, ao repetir as definições de leis a ele anteriores, indica a existência da figura do mediador: [Á]rbitro não pode e não deve, na causa a ele submetida, proceder senão por ordem do direito vigente, segundo o alegado – ou provado perante ele – mas fazer tudo segundo a regra de direito; arbitrador, se é aquele que da causa é encarregado pela sua consciência, segundo o direito ou não; mediador ou apaziguador, se é aquele que, com o consentimento das partes, as coloca em acordo [20]. Assim, três figuras distintas existiram na Idade Média: o árbitro, o arbitrador e o mediador. Guido Soares dá­lhes as seguintes definições: [C]onceituamos árbitro como aquele que julga uma causa, segundo a lei da sede do tribunal ou segundo a eqüidade (se as partes assim dispuseram e se aquela lei o permitir), num processo instituído pelas partes, segundo um ritual definitivamente caracterizado; arbitrador, aquele que exerce a peritagem técnica, a pedido de uma das partes, de ambas ou de um terceiro na  relação  contratual  (o  juiz,  p.  ex.),  sem  necessidade  de  ritos  definitivos;  mediador  ou  apaziguador,  ou  ainda  amigável compositor, aquele que decide, por permissivo das partes, mas cuja decisão não é obrigatória para as partes, nem se acha restrito a decidir segundo algum rito [21]. 6. ARBITRAGEM MEDIEVAL E A ORIGEM DA POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS MODERNOS

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A relevância da arbitragem na Baixa Idade Média ­ Jus Navigandi

Além de ter sido uma época em que os casos de arbitragem se multiplicaram e em que se originou a arbitragem comercial, a Idade Média presenciou o assentamento das bases para aquilo que depois seriam os fundamentos da política externa do Estado moderno. Essas bases só puderam ser estabelecidas graças à flexibilidade que a arbitragem imprimiu às soluções pacíficas de litígios entre comerciantes. Ora, a política externa do Estado moderno tem como fundamentos a diplomacia institucional e os exércitos permanentes [22]. Em período anterior ao Estado moderno, estes já existiam, porém vinculados ao monarca. No entanto, a gênese de ambos encontra­se na atividade comercial desenvolvida nas cidades italianas setentrionais, cuja dinâmica interna fugia dos padrões do feudalismo, sistema ainda presente na Baixa Idade Média [23]. Os comerciantes de Gênova, Veneza e Florença, dentre outras cidades, passaram a ocupar­se da formação de prepostos aptos a negociar com êxito os seus produtos com estrangeiros – quer na Itália, quer no exterior –, dada a rivalidade que nutriam entre  si.  Dessa  forma,  aos  poucos,  foram  surgindo  nessas  localidades  corporações  de  especialistas  em  negociação,  que ofereciam os seus serviços àqueles que pretendessem estabelecer relações mercantis ou de outra natureza com estrangeiros. No limiar da Idade Moderna, quando as monarquias europeias recuperaram o seu vigor, tais especialistas vincularam­se aos reis e passaram a exercer o papel de enviados seus nas negociações com líderes de outros reinos. Com o surgimento do Estado moderno,  esses  negociadores  começaram  a  compor  o  corpo  diplomático,  que  continuou  a  ter  a  mesma  função.  Dessa maneira, surgiu a diplomacia que hoje conhecemos. Quanto aos exércitos permanentes, a sua origem está aliada à atividade daqueles prepostos dos comerciantes do norte da Itália que deviam perambular pela geografia do continente a fim de estabelecer relações comerciais com estrangeiros. Como faz  notar  Souto  Maior,  “os  salteadores  de  estradas,  e  às  vezes  os  próprios  senhores  feudais,  roubavam  mercadorias  à  mão armada e de vez em quando prendiam um mercador para obter resgate. Daí, o uso de ‘caravanas comerciais’ escoltadas por grupos  armados”  [24].  Esta  ligação  entre  mercadores  e  grupos  armados  acompanhou  a  evolução  das  monarquias  e  dos Estados modernos até assumir a configuração atual. Enfim – como se indicou no início deste tópico –, estas bases só puderam ser assentadas, em grande medida, em virtude da arbitragem,  que,  ao  liberar  as  atividades  comerciais  medievais  dos  óbices  jurídicos  próprios  daquele  período  histórico, proporcionou­lhes uma formidável expansão a vários lugares da Europa. 7. CONCLUSÃO A perspectiva histórica parece demonstrar a admirável força de transformação das esferas jurídica, econômica e política que o  instituto  da  arbitragem  tem  o  condão  de  operar.  Verifica­se  que,  quando  bem  teorizada  e  aplicada,  a  arbitragem  pode facilitar sobremaneira a dinâmica do tecido social, a partir do mundo do Direito. Pensa­se que – em meio ao hodierno fenômeno de globalização, que vem enlaçando com os seus tentáculos as mais variadas esferas  sociais  –  a  arbitragem  poderá  ser  um  dos  trunfos  para  a  realização  daquilo  que  Mauro  Cappelletti  denominou  “a terceira onda do acesso à justiça”, isto é, a resolução das barreiras processuais. De  acordo  com  Pedro  Batista  Martins,  “há  necessidade  premente  de  se  emprestar  espírito  prático  e  menos  formal  aos procedimentos  de  solução  de  conflitos,  revitalizando­se  a  arbitragem,  de  modo  a  facilitar  o  acesso  à  justiça,  agilizar  o resultado final da pendência e a viabilizar a própria Justiça com a redução do contencioso judicial” [25]. Espera­se que a explicitação da importância deste instituto pelo prisma da história do Direito possa contribuir à sua bem sucedida consolidação no Brasil e em outros países carecedores de uma iurisdictio real e eficaz. 8. BIBLIOGRAFIA FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem,  jurisdição  e  execução: análise crítica da Lei n.º 9.307 de 23/09/1996. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 2.ª edi. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. MARTINS, Pedro A. Batista. O acesso à justiça. Informativo Consulex, Ano IX, nº 35, de 28.08.95. MORAES, Renato José de. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001. SOARES,  Guido  Fernandes  Silva.  Arbitragem  internacional.  Introdução  histórica.  In:  LIMONGI  FRANÇA,  R.  (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7. São Paulo: Saraiva, 1979. SOUTO MAIOR, A. História Geral, 14.ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

[1] Martins, Pedro A. Batista. O acesso à justiça. Informativo Consulex, ano IX, nº 35, de 28.08.95, p. 9. [2] Idem, p. 10. [3] Moraes, Renato José de. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1.

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[4]  Tucci,  Rogério  Cruz  e;  Azevedo,  Luiz  Carlos  de.  Lições  de  história  do  processo  civil  romano  apud  Figueira Júnior,  Joel  Dias.  Arbitragem,  jurisdição  e  execução:  análise  crítica  da  Lei  n.º  9.307  de  23/09/1996.  São  Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 23­24. [5] Gilissen, John. Introdução histórica ao direito. 2.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d, p. 239. [6] Lopes, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 146. [7] Cf. Gilissen, John, ob. cit., p. 239. [8] Cf. idem, p. 240. [9] Moraes, Renato José de, ob. cit., p. 50. [10] Cf. Lopes, José Reinaldo de Lima, ob. cit., p. 134. [11] Lopes, José Reinaldo de Lima, ob. cit., p. 134. [12] Cf. Gilissen, John, ob. cit., pp. 240­41. [13] Cf. Soares, Guido Fernandes Silva. Arbitragem internacional. Introdução histórica. In: LIMONGI FRANÇA, R. (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7. São Paulo: Saraiva, 1979, pp. 379­380. [14] Soares, Guido Fernandes Silva, ob. cit., p. 379. [15] Cf. idem, ibidem. [16] Cf. Souto Maior, A. História Geral. 14.ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 245. [17] Soares, Guido Fernandes Silva, ob. cit., p. 380. [18] Idem, ibidem. [19] Cf. idem, p. 381. [20] Apud Soares, Guido Fernandes Silva, ob. cit., p. 381. A ênfase foi acrescentada. [21] Soares, Guido Fernandes Silva, ob. cit., p. 381. [22] Cf. idem, p. 382. [23] Cf. idem, p. 381 [24] Souto Maior, A., ob. cit., p. 245. [25] Martins, Pedro A. Batista, ob. cit., p. 10.

Autor Frederico Bonaldo Doutorando em Direito na PUC­SP. Mestre em Direito pela UERJ. Bacharel em Direito pela Universidade  Presbiteriana  Mackenzie.  Professor  Assistente  de  Metodologia  e  Lógica Jurídica na Faculdade de Direito da PUC­SP.

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