A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação do budismo aos europeus

Share Embed


Descrição do Produto

Edição revista e ligeiramente modificada. Publicado inicialmente em: João Carlos Carvalho (coordenador), A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da Literatura de Viagens, CLEPUL, Lisboa, 2015, pp. 191-206.

A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação do budismo aos europeus Bruno Miguel Gouveia Antunes, PhD Humboldt-Universität zu Berlin Kultur-, Sozial- und Bildungswissenschaftliche Fakultät

Resumo: No capítulo CCXIII de Peregrinação, Fernão Mendes Pinto faz uma apresentação da doutrina budista, por intermédio da personagem de um «bonzo», um monge zen budista japonês. Se bem que sucinta e fragmentária esta apresentação é a primeira no género, na Europa. No contexto da grande literatura de viagem europeia é a primeira vez que a doutrina budista é assim apresentada a um público geral. Certos aspetos da doutrina budista passam por este meio a ser comunicados a um público alargado, a partir de 1614 com a publicação de Peregrinação, e o universo dos leitores que primeiro recebem esta informação é, logicamente, o universo dos leitores de língua portuguesa. Pode-se assim afirmar que, pelo menos desde a publicação de Peregrinação, o público literário europeu, em geral, passa a ter uma notificação do que seja a doutrina budista. Palavras-chave: Peregrinação; Budismo; Zen; Jingjiao; Igreja do Oriente.

1. Introdução: A Igreja Cristã do Oriente e o Budismo Esta apresentação foca-se numa passagem do capítulo CCXIII de Peregrinação, mas em primeiro lugar será necessário contextualizar esta obra no âmbito das relações entre o Ocidente e o Oriente; e também no âmbito das relações entre cristãos e budistas. Nesse contexto, uma passagem que se encontra logo no início, no capítulo terceiro de Peregrinação, reveste-se de particular relevância. CAP. III. Como de Diu me embarquei para o estreito de Meca, e do que passei nesta viagem. Partidas ambas estas fustas desta fortaleza de Diu, e navegando juntas em uma conserva com tempo assaz forte, na despedida do inverno, com grandes chuveiros, e contra monção, houvemos vistas das ilhas de Curia, Muria e Abedalcuria, nas quais estivemos de todo perdidos, sem nenhuma esperança de vida; e tornando-nos, por não haver outro remédio, na volta do sudoeste, prouve a nosso Senhor que ferramos a ponta da ilha Çacotorà, uma légua abaixo donde esteve a nossa fortaleza que dom Francisco d’Almeida, primeiro Vice-rei da Índia fez, quando no ano de 1507 foi deste reino, e ali fizemos nossa aguada, e houvemos algum refresco, que por nosso resgate comprámos aos Cristãos da terra que descendem daqueles que antigamente o Apostolo São Tomé converteu nas partes da Índia, e Choromandel. (Pinto, 1614, p. 279)

Nesta passagem, Fernão Mendes Pinto apresenta um dado intercultural assaz interessante, o facto de haver cristãos na Índia, anteriores à chegada dos portugueses e, segundo o autor, descendentes dos discípulos de São Tomé, que como se sabe é um dos apóstolos, o que faria recuar a presença Cristã na Índia ao século primeiro1, ou seja, possivelmente antes mesmo até de haver uma presença significativa de cristãos na Europa. 1

Cf. Baum & Winkler, 2003, pp. 51-52: «According to Indian tradition, in the year 52 the apostle Thomas landed on the Malabar coast, where he founded seven churches at Palayur, Cranganore, Parur, Kokkamangalam, Niramun, Chayal, and

Havendo cristãos no subcontinente indiano já desde o século primeiro, a história do contacto entre adeptos da doutrina de Cristo e adeptos da doutrina de Buda remontaria assim aos primórdios do cristianismo, ao próprio século em que Jesus viveu, e seria de resto anterior mesmo à cristianização da Europa. Assim, para nos podermos debruçar sobre o tema da introdução do budismo na Europa, temos também de tecer algumas considerações acerca da introdução do próprio cristianismo na Europa, já que os dois temas estão interligados. Não há a certeza, não há evidência empírica de S. Tomé ter estado na Índia. O túmulo de S. Tomé está em Edessa, na atual Turquia, e consta que o seu corpo tenha sido trasladado desde a Índia, o que pode porventura não passar de uma suposição lendária. Em contrapartida, mesmo que S. Tomé nunca tenha estado «nas partes da Índia», como escreve Mendes Pinto, e que a comunidade cristã da costa do Malabar não tenha sido fundada pessoalmente pela presença do Apóstolo, há efetivamente vestígios históricos do estabelecimento de comunidades cristãs na Índia anteriores ao século terceiro (Thekeparampil, 2006, pp. 485-497). Pode-se, pois, afirmar com rigor e propriedade que mesmo antes sequer de existir a Igreja Católica Romana, antes mesmo do Imperador Constantino se ter convertido ao cristianismo (a si e ao seu Império) já algumas regiões da Índia tinham sido cristianizadas. Neste sentido pode-se afirmar que a cristianização de certas regiões da Índia precede a conversão da própria Europa ao cristianismo. Dizer que o cristianismo chegou à Índia antes do século terceiro, não é a mesma coisa que dizer que o cristianismo chegou à Ásia antes do século terceiro o que seria redundante. O cristianismo não precisou de chegar à Ásia, visto que o cristianismo nasceu na Ásia, pela simples razão de Jesus ser asiático. Jesus nasceu e viveu toda a sua vida, tanto quanto se sabe, no extremo ocidental do continente asiático e, por isso, o cristianismo é à partida uma religião da Ásia, uma religião que nasceu na Ásia e logo se propagou, na Ásia, a outras províncias do Império Romano (e para lá dos seus confins), bem como a outras províncias romanas da África e da Europa. Gostaria aqui de frisar que apesar de S. Paulo e de S. Pedro terem vindo diretamente para a Europa, estes apóstolos constituem a exceção e não a regra. Grande parte dos apóstolos dirigiram-se a regiões da África e da Ásia, algumas, exteriores mesmo aos confins do Império Romano. Além disso, o ramo da cristandade que chega à Europa e se instala em Roma é, por assim dizer, uma haste do ramo africano. Padres da Igreja, como Santo Antão, que viveu no deserto do Egipto, ou Santo Agostinho que viveu em Hipona, na atual Tunísia, preparam os fundamentos do que viria ser a Igreja Católica, e inclusivamente os preceitos segundo os quais se viria a pautar a vida conventual e a organização das ordens monásticas. A estrutura monástica do catolicismo tem as suas raízes no Egipto. Os teólogos fundadores do que virá a ser o catolicismo, os chamados Padres da Igreja, viveram em grande maioria em regiões da Ásia ou da África e apenas uma pequena minoria residiu na Europa. Não obstante, com a cristianização de Roma, e com a romanização da Igreja, irá frutificar um discurso eurocêntrico que vai passar a ser o discurso estruturante da narrativa segundo a qual a História do Cristianismo irá ser contada (até aos nossos dias) no Ocidente e que elide, ou marginaliza, a evidência de que o Cristianismo é uma religião da Ásia, que aí se estabeleceu e floresceu até que foi dissipada pela ascensão do Império Islâmico, a partir do século oitavo, o qual se chegou a estender então desde a Índia até à Península Ibérica (por exemplo, Al Gharb – em Árabe, o Ocidente – é a raiz etimológica do nome Algarve). Quilon. Then he is said to have arrived on the Coromandel coast, at Mylapore near Madras, where he suffered martyrdom in ad 68. [. . . ] Thomas was first described as Apostle to the Indians in 378 by Ephrem the Syrian, then in 389 by Gregory of Nazianz, and again in 410 by Gaudentius, in 420 by Jerome, and in 431 by Paulinus of Nola. The Thomas tradition came to be rooted in Edessa, where the bones of Thomas – brought from India – were an early object of veneration. In the seventh century Pseudo-Sophronius referred to the grave of the apostle Thomas in “Calamina” in India, and Isidore of Seville adopted this in his etymology. The age of the shrine of St Thomas at Mylapore near Madras is unknown. Gregory of Tours reported that Thomas’s corpse was transported from India to Edessa».

Assim, ainda por volta do século oitavo a Igreja Cristã do Oriente era provavelmente o maior grupo religioso do mundo, tanto em extensão geográfica quanto em número de praticantes. Desta forma, no universo da cristandade, as Igrejas do Ocidente eram minoritárias. Igrejas que, entretanto, com a queda do Império Romano do Ocidente, se tinham cindido em Igreja Católica, com sede em Roma e culto em latim, e Igreja Ortodoxa com sede em Constantinopla e culto em grego. A narrativa católica da História do cristianismo, que foi a narrativa que herdámos, elide assim a História daquele que foi de longe o maior grupo da cristandade, estendendo-se desde a Arábia até à China e à Índia, com culto em Siríaco, em Aramaico, ou seja, no idioma que Jesus falou. O cristianismo do Ocidente (portanto, tanto o cristianismo Católico quanto o cristianismo Ortodoxo) é um cristianismo traduzido, o culto que conserva a língua original dos primeiros cristãos é, até aos nossos dias, o culto da Igreja do Oriente. Ora apesar do culto da Igreja do Oriente conservar até aos nossos dias a língua original de Jesus e dos primeiros cristãos, ou pelo menos o mesmo grupo linguístico, o Siríaco, a doutrina cristã, para ser mais facilmente comunicada foi sendo traduzida, também no Oriente, para os idiomas das comunidades locais2. Assim, já desde o século quarto existem traduções de passagens da Bíblia e de outros textos doutrinários, por exemplo para chinês3. Outro exemplo é a existência de inscrições cristãs em diversas partes da Ásia Central4. Até mesmo nos remotos planaltos do Tibete se encontram inscrições cristãs datadas do século nono5. Tal como nas traduções da doutrina cristã para as línguas europeias se teve de proceder à conversão da terminologia originária, que o idioma aramaico continha, para a terminologia disponível, antes de mais, no grego ou no latim, também a oriente se teve de encontrar termos equivalentes nas línguas locais. Assim, «há textos,» – afirma o historiador Wilhelm Baum – «por exemplo, em que Jesus é retratado enquanto Buda; um fragmento afirma, que após a sua crucificação Jesus entrou no Nirvana»6. Os textos a que Wilhelm Baum alude são textos cristãos, não são textos budistas. A terminologia utilizada foi a terminologia que os cristãos da China (nesse caso particular, e da Ásia, em geral) consideraram a mais apropriada para traduzir os termos originais que assim se deslocam de forma nómada de um universo linguístico para outros, do siríaco para o chinês, tal como na Europa também migraram do siríaco para a terminologia grega ou para a terminologia latina. Além disso, há a evidência de colaboração entre tradutores cristãos e tradutores budistas na China desde pelo menos o século oitavo7. A interação entre cristãos e budistas é, pois, muito anterior à chegada dos portugueses, e à chegada de Fernão Mendes Pinto, ao Extremo Oriente.

2

Cf. Huaiyu, 2006, p. 94: «. . . the article by Japanese Buddhologist Takakusu Junjiro published in 1894 confirmed that there was a cooperation in the translation [of the Jingjiao East Christian texts] between Jingjing and the Buddhist monk Prajña [. . . ] Takakutsu found a passage in a Buddhist catalogue edited by Yuanzhao (8th century) which says that Jingjing helped Prajña translate the Liu polumi jing (Skt. Satpâparamitâsûtra) into Chinese from a Central Asian language in 788». 3 Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 49: «By the turn of the millennium, more than 500 writings, including the entire New Testament and a few books of the Old Testament, had been translated from Syriac into Chinese». 4 Cf. Rott, 2006, pp. 395-401; Klein & Rott, 2006, pp. 403-423; Esbroek, 2006, pp. 425-444; Baumer, 2006, pp. 445-474. 5 Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 50: «In the meantime, Christianity also made strides in the kingdom of Tibet. On the route from Kashgar to Lhasa, early ninth-century inscriptions relating to the Christianity of the Transoxus region were found south of the oasis of Chotan – where there were three Christian churches – in the vicinity of Drangtse (east of Leh on the upper Indus). In 841/2 the monk Nösh-farn was sent to the khan of Tibet. This expedition was documented by a Sogdian inscription in Tankse with ‘Nestorian crosses’ (eighth century) ». Além de inscrições em pedra, encontraram-se também livros cristãos da mesma época. Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 49: «A Tibetan book from Tun-huang, dating from the period from the eighth to the tenth centuries, is entitled Jesus the Messiah, and Syriac grave inscriptions have been found as far away as the harbor of Hang-tschou». 6 Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 75: «. . . there are texts, for instance, in which Jesus is portrayed as Buddha; one fragment states that after his crucifixion, Jesus entered nirvana». 7 Cf. Huaiyu, 2006, p. 94: «. . . the article by Japanese Buddhologist Takakusu Junjiro published in 1894 confirmed that there was a cooperation in the translation [of the Jingjiao East Christian texts] between Jingjing and the Buddhist monk Prajña [. . . ] Takakutsu found a passage in a Buddhist catalogue edited by Yuanzhao (8th century) which says that Jingjing helped Prajña translate the Liu polumi jing (Skt. Satpâparamitâsûtra) into Chinese from a Central Asian language in 788».

Inegavelmente, um dos propósitos da realização das viagens de exploração marítima portuguesas era o de localizar as comunidades cristãs do oriente, como já se evidencia, por exemplo, na Crónica do descobrimento e conquista de Guiné de Gomes Eanes de Zurara (Azurara, 1811). Pois, se por um lado o discurso historiográfico do catolicismo marginaliza a Igreja Cristã do Oriente, designando-a depreciativamente e erroneamente por Igreja Nestoriana8, isso não quer dizer, que os cristãos do ocidente se tenham completamente esquecido da existência dos cristãos do oriente, tal como evidencia, por excelência, a figura lendária do Preste João das Índias e as inúmeras expedições terrestres e marítimas que a busca por este fabuloso dignatário suscitou. Também na Peregrinação, Fernão Mendes alude a essa figura, e logo no capítulo quarto, intitulado: «Como daqui fomos para Massuaa e daí por terra à mãe do Preste João, à fortaleza de Gileytor». Nesta fase histórica, a figura do Preste João tinha sido assimilada ao título dos Reis (e mesmo das Rainhas) da Etiópia (Ramos, 1999), que não só haviam enviado embaixadas a Roma e a diversas cortes Europeias, entre as quais à corte portuguesa, bem como a corte portuguesa havia enviado emissários (ainda por via terrestre) em busca do Preste João (à Índia e à Etiópia) nomeadamente, entre outros, Pero da Covilhã (Beckingham, 1961) que na Etiópia ficou residente até ao fim da sua vida, cimentando uma aliança luso-etíope que irá durar cerca de cento e cinquenta anos. Não espanta, pois, que estivessem «40 portugueses», escreve Mendes Pinto, «em guarda da princesa de Tigremahom, mãe do Preste». Ao longo dos tempos, porém, o Preste João havia sido situado em diversos contextos geográficos e fora assimilado a diversas figuras históricas. Na literatura de viagem europeia dos séculos precedentes, não são raras as referências ao Preste João, situando-o, porém, sobretudo no centro da Ásia. Alusões à pessoa e ao reino do Preste João figuram não só nos relatos de Marco Polo (Polo, 1986), bem como em relatos de diversos frades franciscanos9 que haviam sido enviados para a Ásia a fim de tentar reatar o contacto com os cristãos do oriente. Por estes relatos sabe-se que alguns europeus já tinham tido contacto com asiáticos e nomeadamente com budistas. Marco Polo, por exemplo, esteve na corte do imperador mongol Kubilai Khan, o qual havia sido iniciado ao budismo pelo segundo Karmapa (representante máximo da Ordem Kagyu do Budismo Tibetano). A pedido de Kubilai Khan, numerosos frades católicos foram chamados à sua corte (acompanhando Marco Polo na sua última expedição) com o propósito de debater a doutrina católica com dignatários de outras religiões, nomeadamente budistas. A partir destes exemplos, é possível afirmar, que no final da Idade Média alguns europeus, católicos, tinham notícia do que era a doutrina budista. No entanto, em nenhum dos grandes autores da literatura de viagem europeia que precedem Fernão Mendes Pinto encontramos uma apresentação da doutrina budista tal como a encontramos nos capítulos CCXI a CCXIII de Peregrinação.

8

A designação de Igreja Nestoriana é, não apenas, depreciativa como é também completamente incorreta, tal como demonstram Wilhelm Baum e Dietmar W. Winkler.: «there are those terms which are familiar in the West but are also incorrect or valid only in a very limited sense. Until the present time, the most common designation in theological and churchhistorical literature has been the ‘Nestorian Church.’ In this way, the rest of the Christian world attributed to the Church of the East a heterodoxy dating back to the fifth century. At that time, Christendom was rent by the difficult theological question of whether Jesus Christ can be both true God and true man while remaining a single subject. How should one conceive of the relationship between God the Son made man and God the Father? In this bitter debate, some were of the opinion that the patriarch of Constantinople, Nestorius, supported the doctrine of two sons, two persons, that is, two subjects. Christ is both fully God and fully man, united only morally but not ontologically. According to the position of currently available sources, one can conclude that Nestorius did not support this doctrine, that Nestorius was himself no “Nestorian.” Nevertheless, the term “Nestorian” has found a secure place in theological history, to denote a Christology which understands the one Savior made man as two subjects. Indeed, even up to now scholars have been of the opinion that the Apostolic Church of the East adopted this heterodoxy in the fifth century. As we will see in the following pages, the designation ‘Nestorian Church’ is incorrect in a formal theological sense, although the theologian Nestorius is honored by the Church of the East as a teacher and saint» (Baum & Winkler, 2003, p. 4). 9 Entre os quais: Giovanni Piano Carpini, Willem van Rubroek e Odorico de Pordenone. Cf. Muller, 1944.

2. A apresentação da doutrina budista no capítulo CCXIII da Peregrinação A partir do capítulo CCXI, Mendes Pinto descreve um encontro entre um padre católico e um monge budista no Japão. Durante esse diálogo, vão sendo focados certos temas. Para uma reedição parcial da obra, publicada em 1938, António Sérgio escreveu um breve, mas interessantíssimo prefácio, no qual adverte: «Não devemos, todavia, esquecer em Mendes Pinto o moralista. As críticas aos costumes dos Portugueses, não as faz por via da regra diretamente, mas põe-nas na boca de Orientais» (Sérgio, 1938, p. 11). Seguem-se alguns exemplos, entre os quais, precisamente, uma passagem do capítulo CCXIII. Nessa passagem o autor seiscentista critica práticas de taxação e de extorsão por parte de autoridades religiosas japonesas, budistas. Porém, não há registo histórico rigoroso de ter havido o costume, no contexto do budismo, de proceder à imposição de taxas de forma sistemática à população (se bem que a generosidade e o dom, voluntário, são tidas por virtudes). Pelo contrário, no Ocidente e particularmente em Portugal a prática da taxação (chamada «dízima»), era uma prática corrente da Igreja Católica. É por isso plausível a insinuação de António Sérgio, que Mendes Pinto estaria tecendo um comentário crítico «Sobre os costumes de certas seitas. . . orientais» (Sérgio, 1938, p. 14). O uso das reticências é sintomático: em 1938 António Sérgio precisava de ter tanto cuidado com a censura política, quanto no século XVI Fernão Mendes Pinto teve de ter cuidado com a censura religiosa, em Portugal. Se, contudo, fizermos como António Sérgio nos recomenda, ou seja, se atentarmos ao que está implícito e não explícito, ao que está insinuado, mas não declarado, então poderemos interpretar diferentemente estas passagens, de acordo, eventualmente, com o que ambos autores pretenderiam verdadeiramente expressar. O segundo tema a ser focado, nesse diálogo inter-religioso, incide sobre a noção de paraíso e da possível existência de um paraíso terrestre além de um paraíso celeste. Também aí há discrepância, pois o fito da iluminação búdica é o de transcender todos os estágios da existência, por mais paradisíacos ou por mais infernais que eles sejam. Todavia, se admitirmos que a via budista visa atingir a iluminação (ou seja: experimentar e desvelar a natureza profunda e intrínseca da mente) no decurso de um dos estágios de existência (e não num «além») então poderíamos admitir que a interpretação e a reprodução do discurso do “bonzo”10, pelo autor, poderia consistir num esforço de tradução, num esforço de transmigração intercultural para um universo conceptual europeu e cristão, da apresentação da doutrina budista feita pelo monge zen japonês. O terceiro tema a ser focado é o da reencarnação: Dirtoey, disse o bonzo, & verâs quanto mais sabemos das cousas passadas que tu das presentes. Has de saber, pois não o sabes, que o mundo nunca teve principio nem os homens que nelle nasceraõ, poderão ter fim, mais que somente acabarem estes corpos em que andamos, no derradeyro bocejo, para nelles a natureza nos passar de novo a outros milhores, como se ve claro quando tornamos a nascer de nossas mays ora em machos, ora em femeas, segundo a conjunção da lua em que nos parem, & despois que somos cà nacidos no mundo, fazemos por vários sucessos, estas mudanças, a que a morte nos té sojeitos por parte da natureza fraca de que somos compostos, & quem té boa memoria, sempre lhe fica lembrado o que fez & passou nos espaços da vida primeyra. (Pinto, 1614, p. 279)

Aqui é apresentada uma versão muito resumida da doutrina da reencarnação, a qual, do ponto de vista do budismo, não consiste numa teoria mas sim na experiência, ou na pretensa experiência, nas recordações, ou pretensas recordações, de vidas passadas a que os praticantes budistas acedem, ou pretensamente acedem, sendo que a ciência contemporânea não acompanha, ou ainda não 10

Cf. Losso, 2008: 6: «Bonzo vem do japonês “bózu”, e a letra -o- foi nasalada no aportuguesamento com o decorrer do tempo, processo esse que se deu ao longo do século XVI. Esse é justamente o período em que viveu Fernão Mendes Pinto (1509-1583). A palavra significa em primeiro lugar “monge budista, esp. das ordens religiosas budistas do Japão e da China” (Houaiss, 2001) e em segundo “pessoa medíocre, ignorante, que se dá ares de superioridade”».

acompanha, esta perspetiva. Neste parágrafo há também outro ponto de interesse, é a afirmação arrojada, da parte do bonzo ao dizer ao padre: «verâs quanto mais sabemos das cousas passadas que tu das presentes». Podemos ler nisso um sinal de simpatia, da parte de Fernão Mendes Pinto em relação ao Budismo e uma vez mais uma crítica à doutrina e às práticas dos missionários cristãos no oriente? Estes capítulos sobre os quais me tenho focado não passaram despercebidos àquele que foi um dos maiores escritores de língua portuguesa do século XIX, o brasileiro, Machado de Assis. Em Papéis Avulsos, um livro de 1882, Machado de Assis publicou um conto, chamado «O segredo do Bonzo» o qual é um capítulo fictício a ser intercalado entre os capítulos CCXII e CCXIII de Peregrinação (Assis, 1882). Segundo o investigador brasileiro contemporâneo, Eduardo Losso, «o conto produz uma crítica ao fundamentalismo religioso e à filosofia metafísica, sem deixar de estar ligado ao pessimismo de Schopenhauer, leitura dileta de Machado» (Losso, 2008, p. 1). Schopenhauer, como se sabe, é um filósofo que se debruçou atentamente sobre as doutrinas orientais, em particular o hinduísmo e o budismo, fazendo uma leitura destas fontes que desemboca num impasse niilista – interpretação pessoal, do filósofo alemão (Schopenhauer, 1884), que não corresponde fielmente às perspetivas propostas por essas doutrinas. Nesse seu artigo, Eduardo Losso defende que: o narrador expõe a argumentação duvidando da doutrina cristã feita pelo bonzo, sempre julgando-a astuciosa e falsa, dizendo em seguida que o padre foi magnífico na resposta, não a reproduzindo, de modo que a exposição é sempre a da palavra do bonzo, e não do padre. O juízo a favor do padre contrasta com a atenção ao discurso do bonzo. Logo quando [o bonzo] se apresenta ao padre, diz o conhecer há muito tempo, e escarnece de o padre não o reconhecer. Diz que se conheceram há 1500 anos atrás. O padre pergunta quantos anos ele tem, o bonzo responde, 52 anos. Nesse momento de disparate o bonzo explica sua doutrina da reencarnação, no cap. CCXI, (Pinto, 1614, p. 278-9). No cap. CCXII e CCXIII o bonzo duvida da reencarnação de Cristo, da contradição entre um deus bom onipotente e a existência do mal, etc. O narrador não cessa de maldizer do bonzo e elogiar o discurso elidido do padre, alegando não poder reproduzir sua perfeição douta e inspirada. Não vejo por que duvidar da grande probabilidade, a ser pesquisada por filólogos, do fato de que o segundo sentido da palavra bonzo derivou justamente, entre outras coisas, da influência literária da obra Peregrinação na língua portuguesa. De qualquer modo, o sentido pejorativo veio da visão cristã e ocidental preconceituosa. Contudo, leituras recentes procuram apontar que há uma ironia autocrítica de fundo feita por Fernão Mendes Pinto aos portugueses e especialmente ao padre. Elas ressaltam que a experiência de embate com a alteridade de Fernão Mendes Pinto produz ironias veladas no texto, e exames históricoantropológicos mostraram que suas narrativas não são tão mentirosas assim (Duarte, 1999, pp. 264267).11

A verdade é que seria muito arriscado, no contexto político-religioso do Portugal seiscentista, demonstrar simpatia abertamente por uma outra religião que não a religião católica, seria quase suicidário tecer abertamente um discurso apologético em relação a uma religião «oriental». Fosse essa ou não a intenção de Fernão Mendes Pinto, uma coisa é certa: por meio do subterfúgio da palavra interposta, do discurso que é posto na boca do bonzo, e não da boca do autor, o autor contorna o perigo de censura e de perseguição por parte das autoridades políticas e religiosas e assim oferece uma apresentação sucinta de alguns aspetos da doutrina budista, divulgando mesmo um novo vocábulo, de origem japonesa, a palavra «bonzo». A questão da reencarnação, ou melhor dizendo, do continuum de consciência e do ciclo das existências, é uma questão fundamental no Budismo, por duas razões. Por um lado, porque o fito das práticas budistas é libertar-se a si mesmo, e em algumas tradições, libertar também todos os outros seres vivos, da roda da vida, do ciclo «vicioso» de sucessivas existências. Por outro lado, há que realçar que esse momento de libertação que o budismo almeja, não é forçosamente atingido num «além», mas sim no decurso de um dos estágios do ciclo das existências. Porém, certas escolas do budismo insistem especialmente em cultivar uma «visão pura», a partir da qual até os estados de existência 11

Losso, 2002, p. 7.

mais infernais aparecem como paradisíacos e, sem a qual, até os estados de existência mais paradisíacos podem eventualmente aparecer como infernais.12

3. Conclusão Entre os géneros literários do universo da literatura budista existe um género, os contos de Jataka, que consistem em relatos das inúmeras vidas anteriores do Buda. Essas histórias ilustram as inúmeras situações de vida, as inúmeras conjugações kármicas em que o futuro Buda se manifestou e através das quais o seu Karma foi amadurecendo até atingir a perfeita budeidade. Existem dezenas, se não centenas dessas histórias virtuosas e exemplares. Admitir que Fernão Mendes Pinto considere a sua vida como um exemplo de virtude parece-me fora de propósito. Independentemente de considerar, como Aquilino Ribeiro (Ribeiro, 2008), que Fernão Mendes e o pirata António de Faria são a mesma pessoa, ou não, o próprio autor confessa repetidas vezes as faltas e os «pecados» em que incorre e em momento algum apresenta como fito atingir algo como a iluminação búdica. Não obstante, porém, Peregrinação surte como um poderoso e profundo ensinamento acerca da impermanência, tema esse, que está sim no cerne de toda a doutrina budista. São uma esplendorosa ilustração da fragilidade e da imprevisibilidade da vida, os constantes altos e baixos que o herói continuamente atravessa, a sucessão das variadíssimas situações kármicas desde a plenitude ao infortúnio e de novo do infortúnio à glória: «os trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macassar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago. . .». Quanto às histórias de Jataka, além de ilustrarem a inesgotável variedade de contextos em que foi possível ao futuro Buda manifestar uma profunda compaixão pelos inúmeros seres vivos com que se relacionou, estas ilustram também a inesgotável variedade das situações kármicas, que vida após vida o futuro Buda foi atravessando. Em Peregrinação, o protagonista nem sempre age em benefício dos seres com que interage, repetidas vezes mata, rouba, faz mostra de ganância e de egoísmo. Um traço, porém, se assemelha às histórias de Jataka: o desprendimento com que evolui. Tal como o futuro Buda foi atravessando os diversos reinos da existência sem se deixar prender ou cristalizar numa situação fechada, vida após vida; assim também Fernão Mendes, mas este no decurso de uma única vida, ou (como ele próprio escreve) «no decurso de vinte e um anos», condensa uma miríade de contextos e de condições de existência, como se de uma sucessão de inúmeras vidas se tratasse. A impermanência manifesta, a contínua territorialização e desterritorialização13, como se o chão lhe fugisse de debaixo dos pés, como água fluída, sobre a qual os navios «voam», mais que navegam, faz refletir acerca do diametral contraste entre a movimentada vida do autor, a excecionalmente movimentada vida do autor, por oposição à eventual estabilidade de uma vida dita sedentária, abrindo assim as vistas para outras possibilidades de existir, para além da esfera do habitual e do quotidiano; mas faz também refletir acerca da fragilidade e mesmo da artificialidade das situações que tomamos por estáveis, se não mesmo por definitivas, e que, por fim, repentinamente se esboroam e se dissolvem e saudamos: dissolvendo a vida a cada situação e a dada situação dissolvendo a vida.

12

Cf. Dorje & Kapstein, 1991, pp. 20-21: «As such, the five components of mundane cyclical existence find their true natural expression in the Teachers of the Five Enlightened Families (. . . ) This pure vision, it is emphasised, lies within the perceptual range of the buddhas’ pristine cognition alone, and remains invisible even to bodhisattvas of the highest level who are not liberated from all obscurations. It is maintained that all these elements of mundane cyclical existence are transmuted into the pure, divine nature through experiential cultivation of the Buddhist teachings. As the Extensive Magical Net says: If there is no understanding of intrinsic awareness or genuine perception, / The field of SukhavatI is even seen as a state of evil existence. / If the truth which is equivalent to the supreme of vehicles is realised, / Even states of evil existence are Akanistha and Tusita». 13 Cf. Deleuze & Guattari, 1980.

Referências bibliográficas AZURARA, Gomes Eannes (1811), Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné. Paris: J. P. Aillaud (Edição Digital, Biblioteca Nacional de Portugal – http://purl.pt/216) ASSIS, Machado de (1989), Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Garnier. BAUM, Wilhelm & WINKLER, Dietmar W. (2003), The Church of the East. A Concise History. Londres/Nova Iorque: Routledge. BAUMER, Christoph (2006), «Survey of Nestorianism and of Ancient Nestorian Architectural Relics in the Iraninan Realm» in MALEK, Roman (Ed.), Jingjiao. The Church of the East in China and Central Asia. Sankt Augustin: Institut Monumenta Serica/Steyler Verlag, pp. 463-473. BECKINGHAM, Charles F. (1961), «The travels of Pero da Covilhã and their significance», in Actas do Congresso internacional de História dos Descobrimentos, vol. 3, Lisboa. Reimpressão in: Charles F. Beckingham, Between Islam and Christendom. Travelers, Facts and Legends in the Middle Ages and the Renaissance. Londres: Variorum, 1983. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix (1980), Capitalisme et Schizophrénie 2. Mille Plateaux. Paris: Seuil. DORJE, Gyurme & KAPSTEIN, Matthew (1991), «Translator’s Introduction» in RINPOCHE, Dudjom, The Nyingma School of Tibetan Buddhism. It’s Fundamentals & History. Boston: Wisdom Publications. DUARTE, Lélia Parreira (1999), «Os Lusíadas, de Camões, e a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto: perspectivas das viagens portuguesas». In: via atlântica n.o 3, pp. 263-268. ESBROECK, Michel van (2006), «Caucasian Parallels to Chinese Cross Representations» in MALEK, Roman (Ed.), Jingjiao. The Church of the East in China and Central Asia. Sankt Augustin: Institut Monumenta Serica/Steyler Verlag, pp. 425-444. HOUAISS, A. (2001), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.

HUAIYU, Chen (2006), «The connection between Jingjiao and Buddhist texts in late Tang China», in MALEK, Roman (ed.), Jingjiao. The Church of the East in China and Central Asia. Sankt Augustin: Institut Monumenta Serica/Steyler Verlag, pp. 93-113. LOSSO, Eduardo (2008), «Nariz metafísico em ‘O segredo do Bonzo’», in, Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte. Rio de Janeiro: Editora da UERJ. MULLER, H. C. A. (1944), Voorloopers en navolgers van Marco Polo: Johannes de Plano Carpini, Willem van Rubroek, Ibn Battuta, Odoric van Pordenone. Leiden: A. W. Steijhoff. PINTO, Fernão Mendes (1614), Peregrinaçam. Lisboa: Ed. Pedro Crasbeeck. (Edição Digital: Biblioteca Nacional de Portugal – http://purl. pt/82) POLO, Marco (1986), Il milione. Florença: L. S. Olschki. RAMOS, Manuel João (1999), «O destino do Preste João. A Etiópia nas representações cosmográficas europeias» in Centro de Literatura de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa (org.), Condicionantes Culturais da literatura de viagens. Estudos e Biografias. Lisboa: Edições Cosmos.

RIBEIRO, Aquilino (2008), Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Lisboa: Edições Sá da Costa. ROTT, Philipp G. (2006), «Christian Crosses from Central Asia» in MALEK, Roman (ed.), Jingjiao. The Church of the East in China and Central Asia. Sankt Augustin: Institut Monumenta Serica/Steyler Verlag, pp. 395-401. KLEIN, Wassilios & ROTT, Philipp G. (2006), «Einige problematische Funde von der Seidenstraße: Novopokrovka IV und V, Issyk-Kul‘-Gebiet, Chotan». SÉRGIO, António (1938), «Prefácio» in PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação. Episódio da busca do corsário Coja Acem. Lisboa: Seara Nova. SCHOPENHAUER, Arthur (1884), Die Welt als Wille und Vorstellung. Leipzig: Brodhaus. THEKEPARAMPIL, Jacob (2006), «Vestiges of East Syriac Christianity in India» in MALEK, Roman (ed.), Jingjiao. The Church of the East in China and Central Asia. Sankt Augustin: Institut Monumenta Serica/Steyler Verlag, pp. 485-497.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.