A religião em Lopes-Graça

June 19, 2017 | Autor: Alexandre Weffort | Categoria: Music, Portugal, Fernando Lopes-Graça
Share Embed


Descrição do Produto

A Religião em Fernando Lopes-Graça Alexandre Branco Weffort*

Introdução Fernando Lopes-Graça foi certamente um dos mais importantes compositores portugueses e uma das personalidades mais marcantes da vida cultural portuguesa do século XX. Cidadão plenamente empenhado no processo social e político do seu tempo, Lopes-Graça assumiu sempre com clareza e frontalidade as suas convicções e crenças. Embora ateu, a religião não deixou de marcar presença na sua produção intelectual tanto musical como literária, sendo sua a frase expressiva sobre a música: “além de uma Arte a considero uma Religião, a minha única religião”1. E o seu engajamento político como militante comunista não impediu que a sua única obra coral-sinfónica de grande dimensão seja baseada no texto da missa defunctorum. Aliás, aquele engajamento reflecte-se directamente no título da obra: Requiem para as Vítimas do Fascismo em Portugal. Cruzam-se assim, em Lopes-Graça, diversos níveis de crença e de discurso sobre o ideológico e o religioso. O perscrutar sobre a questão da religião em Lopes-Graça abre também a possibilidade de, através de um caso concreto e numa perspectiva fenomenológica, indagar sobre as correlações observáveis entre o universo dos comportamentos religiosos e o dos comportamentos políticos.

1. Trajecto de vida 1.1. Contexto familiar e histórico-social. O contexto familiar de Fernando Lopes-Graça é-nos relatado por António de Sousa em A Construção de uma Identidade; Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça.2 E o primeiro dado relevante nos é dado pela genealogia conhecida do compositor e espelhada no seu nome. Segundo António de Sousa, a mãe do compositor é filha de uma “exposta”3 e de pai incógnito, enquanto o seu pai fora ele próprio um “exposto”4. E é da “Roda dos Expostos” – a Roda do Hospital de Nossa Senhora da Graça – que virá o apelido “Graça” do compositor. E também o “Lopes”, que seu pai, Silvério da Graça, fez questão de juntar à sua * Texto adaptado de um trabalho realizado no âmbito do mestrado em Ciência das Religiões realizado na Universidade Lusófona, na cadeira de Fenómeno Religioso no Mundo Contemporâneo, orientada pelo Prof. Dr. José Eduardo Franco. 1 Fernando Lopes-Graça, Reflexões sobre a música, in Seara Nova, Lisboa, 1941. 2 O autor do livro referido privou com Lopes-Graça nas últimas duas décadas da vida do compositor tomarense, objecto do nosso estudo. Embora não seja essa a fase da vida de Fernando Lopes-Graça em que, para o nosso propósito, utilizaremos a fonte referida, não deixa de revelar-se uma situação de permeabilidade entre uma reconstrução documental e um certo grau de projecção retrospectiva das ideia formadas acerca de Lopes-Graça pelo próprio e comunicadas ao autor. Segundo informa António de Sousa, o “processo de investigação partiu de uma base empírica, através de depoimentos e entrevistas ao próprio compositor, confirmadas por outras entrevistas e depoimentos de pessoas próximas do Fernando Lopes da Graça ...”. Não deixa de se notar ainda uma certa sobrevalorização da importância de referências locais para a identidade psicológica do compositor, na construção de um imaginário novo, mais humanizado que o que lhe é vulgarmente conhecido (onde a figura do criador musical e do cidadão sobressaem). Veja-se, nas conclusões, a importância dada a uma obra coral de Lopes-Graça (o Díptico), obra dedicada ao Coro Canto-Firme de Tomar, coro esse dirigido pelo próprio António de Sousa, que dificilmente “prova” algo acerca da “importância que Lopes-Graça atribuiu ao seu relacionamento com Tomar”. 3 Sobre a Problemática da “Roda dos Expostos”, cf. o capítulo correspondente na obra já referida. 4 António Sousa, A Construção de uma Identidade, Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Edições Cosmos, Tomar, 2006.

descendência, nome de referência do homem que o adoptou e criou, marido da ama que o recolheu à nascença.5 Fica assim delimitada a genealogia e explicada a razão pela qual Lopes-Graça dizia não ser costume em sua casa falar “dos feitos dos avós” ou lançar “miradas saudosas ao passado”.6 Pode também adiantar sobre a presença, ou não, do elemento religioso na sua educação materna. Lopes-Graça7 nasce a 17 de Dezembro de 1906, tendo sido registado e baptizado dois anos depois de ter nascido e, segundo o próprio, terá tido alguns ensinamentos religiosos através de uma tia.8 Lopes-Graça não casou nem dele se conhecem quaisquer outros eventos pessoais de âmbito religioso. A sua formação escolar completou-se em Lisboa, frequentando o Conservatório Nacional e o Liceu Passos Manuel e, ainda, o curso de Letras da Universidade de Lisboa, no Curso de Ciências Históricas e Filosóficas.

1.2. Contexto político-partidário. Se o elemento religioso não teve presença preponderante na sua formação, o mesmo não aconteceu com o elemento político. Os ideais republicanos tiveram presença forte no seu universo familiar e marcaram fortemente o desenvolvimento da sua personalidade. A instauração da República em 1910 encontra o nosso autor em plena meninice, enquanto o golpe militar de 1926 o encontra já como músico formado e nas vésperas de se assumir como compositor e, também, como jornalista e oposicionista à situação, como testemunha o aparecimento, em 1928, do jornal A Acção, do qual Lopes-Graça foi redactor e director. Será nesse jornal que encontraremos alguns dos escritos do nosso compositor acerca da religião, que adiante analisaremos (entre os títulos posteriormente integrados nas suas Obras Literárias, encontramos Aos Ateus, A Paixão, Cristo, etc.). Em 1931, é já assinalada a Lopes-Graça a “suspeita comunista”,9 sendo esse o título do processo que lhe é aberto pela PIDE/DGS. Acusado de ter pintado legendas numas paredes, é constituído arguido e preso. Encarcerado no Aljube em Novembro desse ano, onde fica recluso até final de Janeiro de 1932, foi-lhe fixada residência em Alpiarça, situação de desterro que tem o seu termo em Maio do mesmo ano. A prisão de Lopes-Graça é realizada no final do exame que presta para professor no Conservatório Nacional, concurso que ganha mas, com a prisão e subsequente pena, é impedido de assumir o posto. A esta prisão sucede-se uma segunda, em 1936. Ao longo da sua vida, Lopes-Graça foi objectivamente perseguido pelo Estado Novo, impedido de realizar a sua profissão (em 1954, já compositor consagrado, é-lhe cassado o diploma de professor do ensino particular). A nível político, há ainda a assinalar a sua militância no Partido Comunista Português (PCP), situação que se terá observado ininterruptamente10 até ao final da vida do compositor. 5

António Sousa, A Construção de uma Identidade, Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Edições Cosmos, Tomar, 2006. 6 Fernando Lopes-Graça, Recordações em Dó Maior, in Disto e Daquilo, Lisboa, Edições Cosmos, 1973. 7 O nome tem também a sua história: já em adulto, acabou por adoptar só o Lopes Graça e, mais tarde o hífen em LopesGraça, não só para poder utilizar os dois nomes de família no estrangeiro como para enterrar, definitivamente, o estigma que transportou na infância e juventude por ser mais um, conhecido como “da Graça” (cf. António Sousa, op. cit.). 8 António Sousa, op. cit. 9 Processo nº 1184/36 da PIDE/DGS, apud. SOUSA, António, A Construção de uma Identidade, Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Edições Cosmos, Tomar: 2006. 10 Sobre esta matéria há discrepância nos dados fornecidos pelos estudiosos que publicaram sobre Lopes-Graça (entre eles

No funeral de Fernando Lopes-Graça, Álvaro Cunhal profere um discurso onde sublinha, a par da dimensão enquanto cidadão politicamente empenhado, as características daquele enquanto compositor e artista, nomeando, da sua vasta criação musical as obras que mais relevante relação trazem à perspectiva político-ideológica que os aproxima. Assim, são referidas pelo dirigente partidário as célebres Canções Heróicas, o Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal e a obra sinfónica Em louvor da Paz. Há naquele discurso um parágrafo interessante sobre a personalidade de Lopes-Graça. Depois de sublinhar a atenção de Lopes-Graça às questões sociais, diz Cunhal: Errado seria entretanto concluir que Lopes-Graça, o compositor, o artista, concebia ou aceitava a criação artística como um instrumento submetido a interesses políticos de conjuntura. Muito justamente, Lopes-Graça, o artista, o compositor, tinha convicções estéticas muito próprias e defendia e praticava com coerência e coragem a liberdade de criação artística que por natureza é liberdade, é audácia, é insatisfação, é mesmo por vezes inconformismo, irreverência e rebeldia. 11

Podemos vislumbrar aqui uma alusão às polémicas de meados da década de 1950? Não o podemos afirmar com segurança. Mas reteremos, desta citação o que releva para o entendimento da definição pessoal de Lopes-Graça acerca da música ser, para ele, uma arte e uma religião.

2. Discursos sobre o fenómeno religioso na obra literária Nas obras literárias de Fernando Lopes-Graça encontramos alguns artigos onde o compositor escreve sobre religião. Dos mais elucidativos do seu posicionamento seleccionamos os intitulados Aos Ateus e A Paixão, datados de 1929, e Cristo, de 1930, publicados na já referida revista A Acção, de Tomar. Nestes textos jornalísticos, a veia republicana é plena e a escrita acutilante. Invectiva contra a igreja católica, procurando sublinhar a diferença entre religião e catolicismo (que o autor coloca em analogia coma questão do “fundo” e da “forma”). O seu alvo não é a crença. Diz Lopes-Graça: Não, deixemos-lhe as suas crenças; mas mostremos-lhes que catolicismo e 12 religião não são uma e a mesma coisa . Em A Paixão, revelando possuir um conhecimento alargado sobre religiões comparadas, com pleno cabimento por exemplo, no pensamento de Durkheim, diz Lopes-Graça: Sem tomarmos em conta os elementos primeiros, os velhos fundos comuns a todas as religiões, como o animismo, o totemismo, o tabuísmo, a crença na imortalidade, etc., o Cristianismo apresenta-se-nos como a menor original de todas as religiões. Isto é perfeitamente natural se atendermos ao carácter sociomórfico de

António de Sousa, Mário Vieira de Carvalho, Teresa Cascudo, por exemplo, que afirmam ter havido uma interrupção) e o PCP, que, numa exposição publicada por ocasião do centenário do nascimento compositor afirma o oposto. O dado em si não será especialmente relevante para a nossa pesquisa, excepto no que importa para a elucidação do significado que a militância política terá tido na vida de Lopes-Graça. No entanto, a ausência de dados objectivos sobre a circunstância em que se terá dado a interrupção referida, as razões que terão conduzido a esse rompimento e as que terão contribuído para o reatar a militância alegadamente interrompida, apenas permitem estabelecer uma noção de consistência das premissas individuais de Lopes-Graça face à sua opção política após um isolamento de quase duas décadas (1956 a 1974) segundo alguns, um par de anos, segundo outros (cf. Mário Vieira de Carvalho, Pensar a Música Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça, Campo das Letras, Porto, 2006). Os politólogos tendem a concordar em situar essa rotura no âmbito das polémicas acerca da colaboração na revista Ler, de polémicas ideológicas acerca de forma e conteúdo na arte, etc. havidas, à época, no sector intelectual do PCP. Há, todavia, pouca informação consistente. Foca-se com alguma insistência uma polémica com António Vale (pseudónimo atribuído a Álvaro Cunhal onde Lopes-Graça é directamente contraditado), embora os documentos partidários existentes coloquem como protagonista, a nível partidário o então secretário-geral Júlio Fogaça. 11 Álvaro Cunhal, Discurso no Funeral de Fernando Lopes-Graça em 29 de Novembro de 1994, in Discursos Políticos, s.d. 12 LOPES-GRAÇA, Fernando, Aos Ateus, in Um Artista Intervém; Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974.

todas as religiões ...13

No terceiro texto referido, que se intitula “Cristo”, o nosso compositor começa por afirmar: Ficção ou realidade, lendário ou histórico, o Cristo de Nazaré continua sendo um dos grandes símbolos da Humanidade. Continuando adiante: Como todos os grandes renovadores do Espírito, foi um incompreendido, um perseguido. E, surge neste texto talvez a única expressão explícita de crença: Devemos ver, nós, os que cremos na divindade do Espírito e para os quais Cristo foi um dos seus mais altos sacerdotes, um dos momentos mais sublimes da luta desse Espírito contra as forças demoníacas, que na Natureza e no homem se manifestam sob os nomes de Desconhecido, Terror, Tirania, Opressão, Violência e Ódio, procurando transformá-los em Luz, Amor e Liberdade14 . Posição análoga à de Lopes-Graça acerca da distinção entre religião e igreja católica, encontrámos em Álvaro Cunhal. Em dois textos datados de meados da década de 1940 (A mão estendida aos católicos e A unidade com os católicos) pode observar-se uma certa sintonia de posições com as que Lopes-Graça havia manifestado mais de uma década antes15, embora com uma formulação diversa, mais adequada à natureza política do texto. Há uma frase curiosa de Álvaro Cunhal, depois de lembrar (o texto data de meados da década de 1940) que os comunistas portugueses sempre foram e continuam sendo ateus consequentes, defendendo que a vida material dos homens encaminha a sua vida espiritual, que as religiões têm as suas raízes nas forças produtivas materiais, adiante acrescenta: Nós encaramos as religiões como reflexos celestiais da vida dos homens na terra 16 . Uma última citação de Lopes-Graça torna-se necessária ao encerrar o quadro conceptual que delineamos para a análise da questão da religião em Lopes-Graça: Poderia dizer-lhes, enfim, como além de uma Arte a considero [à Música] uma Religião, a minha única religião (parece-me estar fazendo profissão de fé romântica; mas é bom que de vez em quando tenhamos a coragem das atitudes e das afirmações que passam por usadas), e como a visiono a única Religião do Futuro, a única Religião da Humanidade Livre, Justa e Sábia (mais romantismo, riam embora os positivos e os cépticos ...) 17.

13

LOPES-GRAÇA, Fernando, A Paixão, in Um Artista Intervém; Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974. 14 LOPES-GRAÇA, Fernando, Cristo, in Um Artista Intervém; Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974. 15 Diz Álvaro Cunhal: De há muito o nosso Partido proclama a necessidade de união com os católicos (...) Lutámos contra o sectarismo e incompreensão de muitos dos nossos militantes e da generalidade dos antifascistas republicanos. Houve erros de intolerância em 1910 que não devem tornar a repetir-se... [in Obras Escolhidas, vol. I (1935-1947), p. 479. Edições Avante!, Lisboa: 2007]. 16 CUNHAL, Álvaro, Obras Escolhidas, vol. I (1935-1947), p. 204. Edições Avante!, Lisboa: 2007. 17 LOPES-GRAÇA, Fernando, Reflexões sobre a música, in Seara Nova, Lisboa: 1941. Cabe assinalar que, aquando a inserção deste texto no livro intitulado Páginas Escolhidas de Critica e Estética Musical, o autor indica: hoje, verdadeiramente, já não penso nada disto, ou penso-o de uma maneira diferente .... Todavia, não sabemos a que parcela das “reflexões” se destinava esta nota.

3. A presença da religião na obra musical Ao cotejar o catálogo da obra musical de Fernando Lopes-Graça encontramos uma grande quantidade de obras de conteúdo religioso. Podemos dividir essas obras em três grupos: obras de fonte sacra (em texto latino), obras de fonte erudita referentes à questão religiosa e obras de fonte tradicional. Um primeiro levantamento, que agora completamos, foi feito por José Maria Pedrosa Cardoso18, em comunicação datada de 2006 intitulada O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes-Graça. Assinala Cardoso nesse trabalho: Com largas dezenas de peças para piano ou canto e piano, [Lopes-Graça] não tem uma só para órgão ou voz e órgão. Compositores do seu tempo, como Igor Stravinsky, Paul Hindemith, Benjamin Britten, etc. não passaram ao lado dos interesses estéticos da sociedade religiosa ocidental.

E Pedrosa Cardoso encontra resposta à indagação acerca da produção do nosso compositor: Ante a parca produção original de obras de referência religiosa, pode perguntar-se pelos motivos que o levaram a compor este repertório. A verdade é que não se conhece qualquer encomenda por parte de entidades religiosas, o que facilmente se entende. De facto, se o Requiem foi resultado de uma encomenda por parte de entidade oficial, já as restantes obras «religiosas» parece terem surgido espontaneamente: no caso da música de Natal, naturalmente devido ao conhecimento por parte do compositor do rico património de música tradicional a esse respeito: de facto muitas destas composições são arranjos corais ou instrumentais de melodias tradicionais.

Vejamos então o levantamento do catálogo:

3.1. Obras de fonte sacra (texto latino). São quatro as obras de música composta por Lopes-Graça sobre texto latino: Jubilate Deo (Salmo 99), datada de 1956; Concordiae fratrum jucunditas (Salmo 132), de1972; Dois coros do Cântico dos Cânticos de Salomão (texto bíblico), de 1976; e, Requiem para as Vítimas do fascismo em Portugal, datado de 1979.A estas quatro obras juntam-se algumas transcrições: Quaeramus cum pastoribus eAve Maria (de D. Pedro de Cristo) e Gloria (de Duarte Lobo).

3.2. Temas tradicionais portugueses Música coral “a capella”: Primeira Cantata do Natal (1945-50); Onze encomendações das almas (1950-53); Segunda Cantata do Natal (1960-61). Alem destas colectâneas dedicadas explicitamente à temática religiosa há a considerar, no âmbito da música coral “a capella”, os Três cantos dos Reis para coro infantil (1971); devendo--se acrescentar à lista os muitos cantos de romaria e santos populares (como os dedicados a São João), inclusos nos cadernos de canções corais populares. Música para piano: Natais portugueses 1º caderno (1954) e 2º caderno (1967); Para vozes e orquestra: Pequeno cancioneiro do Menino Jesus (1934-36); Cantos do Natal (1958); Para coro e piano: Quatro cantos de Natal (1955); Presente de Natal para as crianças (1978). A este conjunto de obras poderíamos ainda acrescentar algumas das peças compostas sobre folclore de outros países, como por exemplo, Dos cantos religiosos tradicionales de Galicia; algumas das canções tradicionais brasileiras, etc., e, ainda, os Cantos Sefardins.

18

Na apreciação quantitativa da obra de Lopes-Graça, adoptamos um critério diverso ao apresentado por este musicólogo: a contabilização por entrada de catálogo nos dá uma perspectiva nem sempre acurada das proporções a considerar (por exemplo, as duas cantatas de natas contabilizam, só por si, trinta e quatro peças musicais autónomas). Por outro lado, Pedrosa não considerou as Onze encomendações das almas, compostas em 1950 para coro “a capella”, baseadas em cantos tradicionais do mais profundo senso religioso. É certo que Pedrosa faz o levantamento com vista a enquadrar, na produção geral de Lopes-Graça, o Requiem e, em função deste, abordar a questão da Profissão de Fé.

4. Conclusões A nossa proposta inicial percorria um terreno que se sabia ser árido. A obra musical de LopesGraça guia-se sobretudo por critérios estéticos, pelo que não vemos condição para estabelecer uma correlação entre a sua criação enquanto compositor e a sua posição perante a questão religiosa. Se há no repertório de Lopes-Graça uma tal presença de temas religiosos extraídos do repositório tradicional português tal deve-se, antes de mais, à intenção do compositor em construir uma linguagem composicional de expressão nacional19. As obras sobre texto latino são, sem excepção, determinadas por razões conjunturais (uma encomenda, no caso do Requiem, o corresponder a uma ou outra solicitação pontual, no caso dos Salmos, ou a adaptação de repertório para o Festival dos Três Coros, no caso das transcrições das obras de D. Pedro de Cristo e Duarte Lobo). E, como diz Pedrosa Cardoso, é natural que Lopes-Graça não recebesse solicitações dos meios eclesiásticos portugueses para a composição musical. No que respeita aos dados fornecidos pelo catálogo, fica ainda em aberto a questão do Requiem. Pergunta Pedrosa Cardoso: Não estaria Lopes-Graça a ceder a uma ideia religiosa? Não estaria até a alimentar a ilusão dos que gostariam de ver no artista ao fim da viagem da existência um desejado “regresso” à causa da fé tradicional da Igreja?20

O musicólogo Mário Vieira de Carvalho havia já questionado Lopes-Graça e respeito do Requiem e a resposta do compositor: Que poderá haver de religião mo meu Requiem? Pergunta você. Eu não faço grande distinção entre música «religiosa» e música «profana», como a não fizeram tantos dos compositores mais ilustres da História da Música. Eu não sou religioso (em que medida o eram um Monteverdi, um Mozart, um Beethoven, um Berlioz, um Verdi?), mas posso aceitar um texto religioso (e, sobretudo, religioso dramático, como é o Requiem) desde que ele estimule as minhas capacidades criadoras (grandes ou pequenas, não importa agora). Não sou religioso (repito), mas posso situar-me, como artista, numa posição religiosa (“o poeta é fingidor”), logo que ela me não vincule a um determinado credo, a uma determinada ortodoxia, a uma determinada Igreja. Profana ou religiosa, a música do meu Requiem foi escrita com a sinceridade que ponho em tudo o que me sai da mão – e do espírito – e tanto mais quanto a obra é dedicada às “vítimas do fascismo em Portugal”, coisa que não briga, ao que julgo, com a minha militância comunista.21

Pedrosa Cardoso procura estabelecer paralelos entre as ideias formuladas por Lopes-Graça e a religião; procura uma dimensão escatológica no ideário expresso pelo compositor: E a sua visão da vida fortemente personalizada, assume contornos escatológicos, muito próximos da mensagem bíblica neo-testamentária: «São estas ideias de supremacia física, de superioridade material, de força, de domínio dum povo sobre outro [...] que é preciso mais obstinadamente combater, porque são elas as maiores inimigas da verdadeira Civilização, que é a do Espírito, são as que mais fortemente impedem a construção da Cidade Futura, que é o estabelecimento do verdadeiro Reino de Deus na Terra.» 22

A busca parece-nos algo psicologista. Cremos que a conclusão que Pedrosa Cardoso apresenta à sua indagação é suficiente, embora, para nós, algo rebuscada: 19

Para Lopes-Graça, toda a arte tem de ser em primeiro lugar nacional, só depois do que, ou só mediante o que, poderá aspirar à ambicionada, e nem sempre alcançada, categoria de universal, (cf. LOPES-GRAÇA, Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas, apud. WEFFORT, Alexandre Branco, A Canção Popular Portuguesa em Fernando LopesGraça, Lisboa, Editorial Caminho, 2006). 20 CARDOSO, José Maria Pedrosa, O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes-Graça, Texto adaptado da conferência proferida no dia 29 de Abril de 2006. 21 CARVALHO, Mário Vieira, «Fernando Lopes-Graça une biographie marquée para la tension entre l’art et la politique», apud. CARDOSO, José Maria Pedrosa, O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes-Graça, Texto adaptado da conferência proferida no dia 29 de Abril de 2006. 22 CARDOSO, José Maria Pedrosa, Op. cit. A análise exegética dos textos de Lopes-Graça, como propõe Pedrosa Cardoso, poderá revelar outros paralelos com a imagética religiosa.

Aqui está, por outro lado, a sua alma, a sua devotação ao povo, ao povo esperançado na utopia necessária, religiosa ou simplesmente libertadora dos males que o vitimaram e mediante os quais se transcendeu. 23

Em rigor, podemos considerar que a dimensão escatológica detectada por Pedrosa Cardoso integra os referenciais ideológicos de Lopes-Graça. O que não significa dizer que há, em Lopes-Graça uma qualquer manifestação objectiva de crença teísta que o distinga, no plano ideológico, face aos seus correligionários. Em boa verdade, os referenciais cristãos são parte integrante das formulações ideológicas às quais adere Lopes-Graça, presentes desde logo num dos escritos fundadores do marxismo (patente, por exemplo, no título da versão inicial do Manifesto Comunista).

4.1. Nível de coerência observável entre o discurso e a acção. Lopes-Graça é um compositor que nos fornece uma panóplia de dados sobre si próprio surpreendente. Um dos traços mais interessantes e constantes a este nível reside na sua coerência. Há uma consistência forte entre o que afirma (e que nos disponibiliza através da sua vasta obra literária) e o que procura praticar como compositor. E, como pudemos referir neste trabalho, quando muda de opinião, não deixa de o noticiar. Há, no entanto, que procurar uma sintonia básica com o que o compositor nos diz, isto é, há que fazer o esforço de nos colocarmos na sua circunstância e procurar compreender o seu discurso sem preconceitos, o que obriga a procurar discernir acerca do seu credo em particular. E não parece possível (ou será muito difícil) fazê-lo numa base de negação ou de cepticismo. A história de vida de Lopes-Graça apresenta os ingredientes necessários à construção da sua identidade e do seu modo de pensar, embora em circunstância análoga outros compositores tenham seguido ou mantido uma postura de fé inquestionável (ver, por exemplo, o caso de Olivier Messiaen). Não há uma relação de causalidade. O caminho seguido por Lopes-Graça não se determina por questões de conjuntura24. Sobretudo, não será através das circunstâncias de vida que encontraremos justificação ou razão para o seu comportamento religioso ou a-religioso. Talvez a questão seja menos transcendente que o que aparenta e o nosso compositor tenha, de facto, fornecido já os dados necessários.

4.2. Alcance da afirmação de Lopes-Graça acerca da Música: “além de uma Arte a considero uma Religião, a minha única religião”. Fernando Lopes-Graça manteve, a respeito da música, uma atitude de absoluta entrega sem a menor complacência. Na oitava das suas Cartas com alguma moral, datada de 1944 e dirigida pelo compositor A um amigo e antigo companheiro que traiu a sua fé artística, o compositor partilha as suas saudades dos tempos de estudante no Conservatório e do grupo de companheiros que selaram “um pacto de amizade camaradagem numa luta sem tréguas contra a mentira artística”. Diz Lopes-Graça: Eu tenho saudades desses tempos – porque não confessá-lo? A experiência que a vida me ensinou (...) não me convenceram da inutilidade do sonhar generoso da mocidade (...) e não me esqueço nem me arrependo daquilo 23

CARDOSO, José Maria Pedrosa, Op. cit. Cabe relembrar o excerto do discurso fúnebre proferido por A. Cunhal no funeral de Lopes-Graça, já referido anteriormente. 24

que para nós lhe dava um valor de plenitude e exaltação – aquela plenitude e aquela exaltação que, não fosse o duvidoso e o ambíguo da expressão, eu poderia classificar de momento místico da mocidade. As nossas santas iras contra tudo o que na vida musical portuguesa era para nós um feio espectáculo de interesses mesquinhos, de vaidades, abominandas, de corrupção, de mentira e de imoralidade! As nossas vergastadas aos vendilhões da arte (...) Eu comecei, com a pena e com a acção, uma campanha de desmascaramento de todas as nossas misérias musicais (...) eu agora certamente parecerei a teus olhos um “puritano” fora do tempo e do espaço, agarrado a princípios rígidos e que não sabe ver nem escolher o momento de “adaptar” o seu credo às circunstâncias. Pactuaste com o inimigo – o inimigo que nos belos tempos da nossa cruzada musical se chamava o Oportunismo, a Intriga, o Academismo, a Futilidade, a Estupidez, a Rotina, o Favoritismo, a Maldade, a Semonia. Deverei lamentar-te? Deverei lamentar-me? Não o sei (...) Fomos companheiros de jornada: hoje não podemos deixar de ser dois estranhos. Nem a Música sequer já nos une: ela nos fez encontrar, ela nos faz separar (...) Eu, por mim, continuo a amá-la. Continuo a amá-la e a defendê-la. Faço-o com a mesma fé e com a mesma coragem de outrora. Só o que me dói é ter agora de defendê-la também contra ti e a tua acção dentro dela (...) Por mim, a minha norma de fidelidade foi sempre esta: ou tudo ou nada. O homem ou é ou se dá inteiro, ou, posta uma vez à prova e quebrada a sua fé, a sua inteireza, nenhum pacto é já possível com o passado, ainda que o coração sangre e um pedaço da vida nos fique nas asperezas e emboscadas do caminho.25

Mais do que as definições acerca da religião, ou da música como religião, dos textos prospectivos acerca do devir ou de síntese do caminho percorrido, esta carta exprime uma dimensão mística de comportamento onde confluem, num discurso que pode ser visto como de pendor religioso, a ética e a estética. Tomando esta missiva em todo o seu alcance (colocando-nos para isso na perspectiva tanto do emissor como do receptor), surge coerente a afirmação de Lopes-Graça acerca da Música: além de uma Arte a considero uma Religião, a minha única religião. Encontrámos um certo grau de concordância na posição de Lopes-Graça acerca da religião e a dos seus correligionários políticos, mas estas não autorizam ainda a concluir algo mais que isso. E encontrámos também, seguindo Pedrosa Cardoso, diversos paralelos, na escrita de Lopes-Graça, com as fórmulas de pensamento religioso neo-testamentário. Mas, diferentemente deste musicólogo, não cremos terem outra significação que uma adopção consciente de um estilo expositivo, havendo mesmo uma ligeira ironia na apropriação das fórmulas habituais da linguagem religiosa, em textos de tão acutilante crítica à igreja católica. A aproximação à matéria religiosa é, ao nível da composição musical, consentânea com o gesto habitual do compositor, submetendo a música ao critério de “qualidade estética”26 que Lopes-Graça define como o único que releva para selecção dos materiais com que trabalha a arte dos sons. Se considerarmos os elementos de ética contidos no discurso de Lopes-Graça, o seu modo particularmente intenso de vivenciar a questão estética, e nos aproximarmos à questão da espiritualidade através da fruição estética da música, ao seu nível contemplativo, teremos encontrado, à excepção das concepções teológicas, os ingredientes de uma crença, de uma convicção, quiçá de uma fé.

25

LOPES-GRAÇA, Fernando, Um Artista Intervém; Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974. Cf. LOPES-GRAÇA, Fernando, Valor Estético e Significação Nacional da Canção Popular Portuguesa, apud. WEFFORT, Alexandre Branco, A Canção Popular Portuguesa em Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Editorial Caminho, 2006. 26

Bibliografia: BRANCO, João de Freitas A estreia do “Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal”, de Fernando LopesGraça, in revista Vértice, Coimbra, Vol. XLI, números 444/445, 1981.Notas inclusas no LP Lopes-Graça, REQUIEM Pelas Vítimas do Fascismo em Portugal, Lisboa, Portugalsom, 1983. CARDOSO, José Maria Pedrosa O Requiem e a Profissão de Fé de Lopes-Graça, Texto adaptado da conferência proferida no dia 29 de Abril de 2006, no Grande Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra integrada no Congresso Internacional: «O artista como intelectual. No centenário de Fernando Lopes-Graça». Coimbra: 26-29 de Abril de 2006. Inédito. CARVALHO, Mário Vieira Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça, Porto, Campo das Letras, 2006. CASCUDO, Teresa Fernando Lopes-Graça, Catálogo do Espólio Musical, Cascais, Edição Casa Museu Verdades de Faria, Museu da Música Portuguesa, CMC, 1997. CUNHAL, Álvaro Obras Escolhidas, I, Lisboa, Editorial Avante, 2007. Discurso no Funeral de Fernando Lopes-Graça em 29 de Novembro de 1994, in Discursos Políticos, ?, s.d. LOPES-GRAÇA, Fernando Disto e Daquilo, Lisboa, Edições Cosmos, 1973. A Música Portuguesa e os seus Problemas; Lisboa, Edições Cosmos, 1974. Um Artista Intervém; Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974. Reflexões sobre a Música, Lisboa, Edições Cosmos, 1978. Páginas Escolhidas de Crítica e Estética Musical, Lisboa, Prelo, s.d. SOUSA, António A Construção de uma Identidade; Tomar na Vida e Obra de Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Edições Cosmos, 2006. WEFFORT, Alexandre Branco A Canção Popular Portuguesa em Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Editorial Caminho, 2006.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.