A Religiosidade do Ilhéu

August 31, 2017 | Autor: Leonor Reis | Categoria: Cultura Popular, Madeira, Religiosidade
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Leonor Neves da Costa Luis dos Reis

A RELIGIOSIDADE DO ILHÉU (Ilha da Madeira)

PORTO 2011

UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA Centro Regional do Porto Escola das Artes Licenciatura em Som e Imagem

A RELIGIOSIDADE DO ILHÉU (Ilha da Madeira)

POR Leonor Neves da Costa Luís dos Reis

Trabalho para a cadeira “Épocas da Cultura e Mundividência Cristã II” Orientador: Prof. José Rui Teixeira

PORTO 2011

SUMÁRIO Introdução ....................................................................................................................... 3 1 – A Condição de Ilha .............................................................................................. 4 2 – As Manifestações de religiosidade....................................................................... 6 2.1 – O Natal madeirense ....................................................................................... 7 2.2 – A Festa do Espírito Santo .............................................................................. 9 2.3 – A Procissão do voto..................................................................................... 12 Conclusão ...................................................................................................................... 14 Fontes e Bibliografia...................................................................................................... 16

INTRODUÇÃO Portugal é um país, marcadamente, Católico, onde a religião ocupou desde sempre, e continua a ocupar, um lugar de grande destaque. Encontramos, naturalmente, diferenças a nível da sua intensidade e expressão em diferentes partes do território continental; mas é nas ilhas, e em particular na da Madeira, onde estas diferenças se acentuam e evidenciam. O objectivo deste trabalho é, acima de tudo, tentar encontrar razões para a existência de uma religiosidade tão intensa e intrínseca na Ilha da Madeira e na sociedade madeirense. O título, A religiosidade do ilhéu, remete-nos, então, para essa vivência religiosa tão distinta e particular desta ilha e deste povo que através de inúmeros ritos e tradições mantém, desde os tempos da sua descoberta até aos nossos dias, tão grande fé e devoção ao Catolicismo. A escolha do tema para este trabalho, devo-a, em parte à influência do professor José Rui Teixeira que me suscitou a curiosidade para tal assunto, sobre o qual admito, nunca ter reflectido, pese embora o mesmo me diga directamente respeito, atendendo à minha naturalidade madeirense. Ao desenvolver este tema, deparei-me com algumas dificuldades, entre as quais destaco, a definição de uma problemática. Compreendi, no entanto, que esta estava, na verdade, de certa forma, implícita no próprio título do trabalho, A religiosidade do ilhéu. A problemática que proponho explorar nas páginas seguintes é, então, a condição de ilhéu da Madeira, e as repercussões e implicações que essa condição provoca na identidade e na vivência religiosa do povo madeirense.

CAPÍTULO I

A CONDIÇÃO DE ILHA Os territórios insulares sofrem sempre as consequências de um certo isolamento em relação aos países de território continental. No caso da Madeira, a esse isolamento junta-se a sua posição de dependência e de perificidade em relação ao território nacional que, principalmente no passado, antes de a ilha atingir a autonomia, consumia os seus produtos e a abastecia dos que necessitava. Não é, obviamente, exclusiva à Ilha da Madeira esta condição de território insular nem tão pouco o são, as implicações e dificuldades que dela decorrem. Ela é, no entanto, agravada, no caso da Madeira, pela sua morfologia acidentada e piramidal que contribui, ainda hoje, para uma sensação, real, de “dupla insularidade”, principalmente na zona norte da ilha. Interessa salientar dois aspectos determinantes da orografia da ilha: as montanhas, que se estendem desde a ponta de São Lourenço, a sudeste, até ao Porto Moniz e à Ponta do Pargo, a noroeste, atravessando, assim, toda a ilha, e as altitudes que variam dos 1000 aos 1900 metros. Foram estas, duas das condicionantes que determinaram um povoamento em pequenos núcleos dispersos, com povoações pequenas e pouco numerosas, cujo sustento passava pelo cultivo das poucas superfícies naturais com condições para este fim, a que se juntava um desequilíbrio, entre as vertentes norte e sul, na partição dos abundantes recursos aquíferos necessários ao abastecimento da população e à exploração agrícola. A estas particularidades geográficas da ilha, junta-se, então, uma condicionante que só terminou, totalmente, com a instauração da autonomia – o regime de colonia. Obrigava este regime ao pagamento da terça e das obras de beneficiação aos morgados, muitas vezes, despóticos. A vida destas pequenas populações, dispersas pelos vales e montanhas da ilha, era, e continua a ser, em muitos casos, uma de enormes dificuldades e limitações. Augusto Roa Bastos, conhecido escritor paraguaio, refere-se ao Paraguai, como “uma ilha rodeada por terra”, atendendo ao facto de fazer fronteira com três países

distintos; da mesma forma, podemos comparar a Madeira a várias ilhas rodeadas por escarpas. A sensação, essa, é a mesma; a de uma realidade fechada e pouco acessível. E apesar de todas as infra-estruturas que nos últimos anos têm “povoado” a ilha, ligando zonas até então, inacessíveis, esta sensação de isolamento persiste, preservando uma ruralidade oclusa, com a qual poderemos, quiçá, fundamentar, em certa medida, a problemática proposta neste trabalho.

CAPÍTULO II

MANIFESTAÇÕES DE RELIGIOSIDADE Chegamos, agora, às manifestações religiosas há tanto típicas e intrínsecas da sociedade e ao povo madeirense, que desde os primórdios da sua colonização até aos nossos dias, as vive com enorme fervor e respeito pela tradição. Em ano de celebração do quinto centenário da criação da Diocese do Funchal, interessa aqui lembrar, para mais dado o tema que estamos a tratar, que esta diocese, criada a 12 de Junho de 1514, pela pena do Papa Leão X, foi, não só a primeira criada fora do continente europeu, como também, durante muito tempo, a mais extensa do mundo, dado incluir os territórios descobertos pelos navegadores portugueses, indo-se ampliando ao ritmo das conquistas destes. Referiu-se a ela o arcebispo D. Rino Passigato, como “ (…) uma ‘base estratégica’ para a evangelização de novas terras”, classificando-a de “histórica e gloriosa”. Constitui esta, mais uma prova da tal importância imensa que a Igreja representou, desde sempre, na cultura madeirense. A ida à Igreja representava, e representa, ainda hoje para muitas pessoas, o único contacto com o “mundo exterior”, por pouco exterior que ele seja. Mais do que esse contacto com outras pessoas, interessa, talvez ressalvar o contacto com o mundo espiritual e a devoção prestada, principalmente, a Nossa Senhora. Esta ocupa na cultura religiosa madeirense, uma posição de enorme proeminência, mais até que o próprio Cristo. Este facto que pode ser comprovado pela totalidade das capelas e pela quase totalidade das igrejas da ilha lhe serem dedicadas, através de diferentes evocações. Este “favoritismo”, chamemos-lhe assim, deve-se, provavelmente ao próprio carácter maternal desta figura, vista como uma protectora e padroeira, por um povo tão carente e vulnerável. As longas horas de trabalho extenuante revelavam-se muitas vezes insuficientes para garantir a subsistência familiar, servindo, principalmente, para cumprir as obrigações perante os morgados, prática que só terminou em termos legais com a autonomia, e que, juntamente, com o tal isolamento da maioria das povoações, contribuiu para que fosse dada

à religião uma importância extraordinária. Não só à religião, como prática, mas às próprias celebrações religiosas, nomeadamente o Natal, que como veremos, seguidamente, constituía, e continua a constituir, para muitas populações rurais, mais do que um momento humano, de união e confraternização, como para a maioria de nós, o único momento de algum desafogo, para o qual trabalhavam arduamente todo o ano, e quiçá, o único de alguma felicidade.

2.1 O NATAL MADEIRENSE Falemos então da principal festa da tradição madeirense - o Natal. Embora esta celebração seja de enorme e reconhecida importância em todo o mundo, na Madeira, o Natal tem, para o madeirense, um atractivo especial e talvez único, de tal forma que ainda é habitual ser referido como A Festa, fruto talvez daquilo que há pouco falámos em relação à dureza da vida rural, e assim, à importância que esta quadra representava na vida dessas populações. Mas, a verdade, é que o Natal é vivido de forma bastante intensa em toda a região. O Natal madeirense não se limita à celebração do dia 25 de Dezembro, nem mesmo aos dias que o antecedem e que se lhe sucedem. O mês de Dezembro ou, pelo menos, grande parte dele, baseia-se numa constante demonstração de fé e liturgia, onde o religioso alimenta o profano e vice-versa, sendo, por isso, seguramente, o mês mais aguardado do ano. Inicia-se então, esta quadra, com as famosas “Missas do Parto”, no dia 161 de Dezembro, que se estendem até à véspera de Natal. Embora estas missas sejam uma tradição secular, e profundamente, associada à Madeira, a verdade é que, se trata de uma tradição nascida no Norte de Portugal, que remonta aos séculos XVIII e XIX. Aí, celebravam-se sob o nome de “Novenas ao Menino Jesus”, precisamente entre os dias 16 e 24 de Dezembro. Esta tradição que foi então trazida para a Madeira, mantém-se tão viva como nunca, mas, curiosamente, perdeu-se onde nasceu, sendo agora uma das muitas 1

É também neste dia que, segundo a sabedoria popular, se devem plantar as searinhas (searas de trigo) para serem colocadas na lapinha (presépio), e que segundo reza a tradição “dão sorte e pão” o ano inteiro”.

singularidades culturais desta região. O nome “Missas do Parto”, esse, foi invenção do povo insular que associou o “Ó” das antífonas de Vésperas do Ofício Divino, entoadas nas novenas originais, ao estado avançado de gravidez da Virgem Maria. Interessa ainda apontar a tal espiritualidade que temos vindo a realçar ao longo deste trabalho, tão presente no povo madeirense, que se evidencia até nas horas a que são celebradas estas missas – antes do amanhecer. Porquê? Porque a Virgem Maria é vista como a “Aurora” da Redenção que vai dar à luz, aquele que ilumina toda a humanidade. As novenas do Natal, como também são denominadas, (são nove missas que representam os nove meses de gravidez da Virgem), iniciam-se com a chamada da população através do toque de campainhas e cantos de estrofes populares, sendo constituídas por, Invitatório, invocação ao Espírito Santo, Retrato de Nossa Senhora, Ladainha, Antífona e a Salve-Rainha, após a qual, se inicia à missa. No primeiro capítulo falámos da condição de ilha, da Madeira, e, derivado disso, falámos, obviamente, do seu isolamento. Ora, este isolamento pode bem ser a razão da preservação de tradições como, precisamente, a Missa do Parto, ou, dentro desta, os cânticos entoados nestas missas que, segundo o Dr. Rufino Silva, no livro “Cânticos Religiosos do Natal Madeirense”, são já centenários, tendo chegado à ilha através dos primeiros colonos, provenientes do Norte e das Beiras de pais; tendo sofrido ainda influências de outros povos, como os flamengos ou os italianos, a verdade é que chegaram até nós – “não serão por certo os da época do povoamento, mas terão as suas raízes numa vivência cultural de mais de quatro séculos”, disse aquele autor. Na véspera do dia 24, dia em que terminam as Missas do Parto, outro grande momento de celebração, este já de carácter profano, a ida ao Mercado, ou a noite do Mercado, cuja finalidade seria, originalmente, o reforço de artigos alimentares para a Ceia de Natal, que acontece após da Missa do Galo, essa, sim, já comum um pouco por todo o país. Na sequência daquilo que tínhamos dito em relação ao Natal na Madeira não se limitar à véspera e ao dia da Festa, interessa salientar o facto de a terminologia católica popular ter sempre orientado o “natal madeirense”. E tal é visível através do emprego dos vocábulos: “primeira oitava”, “segunda oitava”, ou “oitavas de Natal”, e mesmo, “oitavas de Jesus” e “oitavas de Reis”. Esta tradição com raízes na liturgia judaica, muito em voga

na Idade Média, é assinalada na Madeira com alguns costumes, entre os quais se destacam, as visitas às lapinhas2 dos vizinhos e até da freguesia, o jogar e rezar o terço, também diante da lapinha; estas tradições que se prolongaram no tempo, como aliás quase toda a ambiência natalícia, mantêm-se ainda hoje em dia, valorizando de tal forma as “oitavas de natal” que foi instituído um feriado regional (Decreto Legislativo Regional N.º 18/2002/M de 8 de Novembro) assinalando o dia 26 de Dezembro como “a primeira oitava”. Não finda aqui A Festa, que se mantém viva, após outro grande acontecimento, a passagem de ano, e mesmo após o Dia de Reis, só terminando no dia 15 de Janeiro, com o Varrer dos Armários ou o Dia de Santo Amaro, altura em que se guardam as decorações e se desmontam as lapinhas; e só aqui, são dadas por findas “as manifestações de regozijo do Natal, tanto do agrado do bom povo madeirense.”3

2.2 A FESTA DO ESPÍRITO SANTO

Falemos agora de uma das principais devoções dos madeirenses, cujo culto se mantém vivo entre esta gente, desde os primórdios da colonia – A Festa do Espírito Santo. Esta Festa, celebrada um pouco por toda a ilha, destaca-se pelo seu carácter único, que alia à religião, o mágico e o ritual, ao que se junta, a tradição e a própria noção de festa e de diversão. Curiosamente, este seu carácter de diversão e de folgança, valeram-lhe a condenação eclesiástica, de um modo geral, e de um modo particular, na Fajã da Ovelha, onde a sua proibição acabou por se tornar uma realidade. Mas é este carácter, no fundo, humano, que me proponho expor em seguida e, quem sabe, dele tirar importantes ilações que permitam conhecer um pouco melhor a religiosidade deste povo, que é, na verdade, o tema deste trabalho. 2

Na Madeira chama-se lapinhas aos tradicionais presépios; “as «lapinhas» madeirenses são armadas sobre uma mesa, tendo como centro uma pequena escada de poucos decímetros de altura, de três lanços contíguos, e no topo da qual se coloca a imagem do Menino Jesus. Em todos os degraus da escada e em torno dela estão dispostos os «pastores» e vários objectos de ornato (…) ”, exemplo das searinhas e das peças de fruta, “Em obediência às condições do meio, terão algumas características próprias, como sejam as ornamentações com os ramos do arbusto «alegra-campo» e dos fetos «cabrinhas», que lhes imprimem uma feição pitoresca e alegre”, retirado de Elucidário Madeirense II Volume 3 Vd., AZEVEDO, Carlos, SILVA, Fernando Augusto – Elucidário Madeirense, Volume II, 3ª edição. 1966

Tendo já feito referência ao carácter diverso desta devoção, interessa agora referir e diferenciar os dois momentos, distintos, em que ela acontece, e em que se expressa, de forma, também, distinta, o culto ao Espírito Santo. Temos, então, um primeiro momento, interior, de solenidade e tradição – a adoração, e um segundo momento exterior, de manifestação colectiva – a festa. Embora, à primeira vista estes dois momentos pareçam opostos e até mesmo, incompatíveis, eles são, na verdade, complementares, ao ponto de sem um não poder existir o outro. O momento interior tem lugar no lar de cada família, que aguarda com toda a solenidade, de janelas abertas e arranjos florais, a visita do Espírito Santo que agradece com uma esmola; e é, precisamente, esta esmola que servirá como ponto de união entre a adoração e a festa. Mas antes ainda de fazermos esta ligação interessa explorar um pouco melhor este primeiro momento. Como já tinha dito, as famílias aguardam a visita do Espírito Santo, que chega “sob a forma” de um pequeno grupo, liderado pelo “Imperador”, que envergando uma opa de seda vermelha sobre um fato preto, carrega no seu ceptro, uma bandeira vermelha com uma pomba branca ao centro – o Espírito Santo. Representação de pureza, simplicidade e paz, este símbolo assume uma importância e uma presença verdadeiramente universais; dos poucos símbolos, talvez, que qualquer um é, ainda hoje, capaz de reconhecer, num mundo cada vez mais desligado e ignorante de um simbolismo, neste caso, o religioso, que tem, desde o seu aparecimento, sido parte intrínseca e vital na vida e na cultura de toda uma humanidade. Os “Imperadores” têm a função de receber as esmolas das famílias, funcionando no fundo, como a representação do Espírito Santo, como veremos mais à frente. Fazem-se acompanhar nas visitas por dois mordomos e por um pequeno número de raparigas, com idades entre os 10 e os 12 anos de idade, cada uma vestida com uma saia e uma blusa brancas, cobertas por um colete e uma capa vermelhas. As “saloias”, como são chamadas, tocam os sinos à porta das casas como forma de avisar para as famílias para a visita do Espírito Santo, entoando cânticos antes, durante e após essa mesma visita; aqui, cada membro da família deposita o seu beijo na pomba branca, representativa, como já vimos, do Espírito Santo; a isto segue-se a tal esmola, sempre entregue pelo chefe de família, ou, na sua ausência pelo filho mais velho. Alguns cânticos mais, e a visita termina.

Fig. 2 - Os "Imperadores" e as saloias. Arquivo VICENTES (Extraído de A Festa do Espírito Santo de VERÍSSIMO, João Nelson em Revista Atlântico)

Falemos então, agora, das esmolas, razão de ser desta celebração; entregues ao “Imperador” pelas famílias como dádiva ao Espírito Santo, as esmolas, que podem ser em forma de dinheiro ou de bens alimentares servem para unir a comunidade e apagar as desigualdades. No Domingo do Espírito Santo, Dia de Pentecostes, são escolhidos, após a missa, 12 pobres – tal como os Apóstolos – que após um almoço em casa do “Imperador”, regressam à festa, onde, numa mesa de copa estão dispostas as oferendas da população. Num acto simbólico, a fazer lembrar a Última Ceia, os 12 pobres sentam-se à mesa e dá-se a bênção do pão, após a qual se divide a esmola pelos pobres, que a levam para casa. No dia seguinte, segunda-feira, o pão benzido é distribuído pelas famílias que contribuíram com as esmolas; repartido irmãmente pela família, deve sobrar sempre um pedaço, que por possuir poderes miraculosos, não cria bolor, e aqui entra o carácter místico e ritual da festa, pois quando uma tempestade se lança sobre a família, o pão é lançado à Natureza, que se acredita, acalmará os ventos e de novo unirá o Homem e a Natureza. Tal como afirmei no inicio deste subcapítulo, é verdade que esta devoção se mantém viva, eu mesma o confirmo, pois ano após ano, nas semanas que se seguem à Páscoa, recebo em casa a visita do Espírito Santo, com os seus sinos e cânticos. Mas a

verdade é que parte de toda a mística que envolvia esta devoção deixou de se fazer sentir, de forma tão intensa, pelo menos. E se é verdade que não podemos comparar a expressão das devoções no campo e na cidade (a descrição que fiz era do campo, e a minha experiência é da cidade), não é menos verdade, que as próprias populações rurais admitem a descaracterização de muitas devoções - descaracterização, não extinção. Resultado dos tempos e de uma maior e natural abertura da Madeira ao exterior, e de um menor isolamento interior, na relação entre o campo e a cidade, as devoções e as festas parecem, assim, ter perdido um pouco do seu carácter religioso e alguns traços da sua tradição; mas não desaparecerem, nem desapareceram, segundo creio, pois embora descaracterizadas, continuam muito presentes na cultura e no espírito de todo o madeirense.

2.3 A PROCISSÃO DO VOTO

São muitas as procissões na Madeira, e muitas as que têm enorme relevância e dimensão; irei, contudo, limitar-me a uma só, uma cuja origem tem, julgo, mais significado e valor para este povo, do que qualquer outra – a Procissão do Voto. No século XVI, a Madeira foi devastada por uma epidemia de peste que causou grande sofrimento e numerosos mortos entre a população dessa época; numa atitude de fé e confiança, depositaram o povo e as autoridades, a esperança de um milagre no seu Padroeiro, Santiago Menor. Entregaram, então, as autoridades camarárias, a guarda da Saúde ao Santo, como podemos ler na seguinte passagem de Alma Instruída do Padre Manuel Fernandes: “E logo reconhecerão a protecção do Santo (…) no anno de 1538 quando então grassava huma peste terrível: na ocasião da procissão, o Guarda-mor da Saude (…) diz em alta voz: “Senhor, até aqui guardei esta cidade com pude; não posso mais aqui tendes a vara, sêde vós o guarda da Saude” e largou imediatamente a vara, e se deo por desobrigado de guardar a Cidade: e desde este momento, todos os feridos melhoraram e não se deu mais caso algum de peste.” Então, em gesto de eterna gratidão pelo milagre, prometeram os Vereadores da cidade do Funchal, no “Auto do Voto”, a construção de uma igreja dedicada ao seu culto

(Igreja de S. Tiago Menor, agora Igreja do Socorro), e uma procissão solene anual em sua honra. Inicialmente a procissão saía da Sé Catedral e dirigia-se à Igreja Do Socorro, primitivamente de S. Tiago Menor, onde se realizava a cerimónia de entrega das varas e um sermão alusivo ao milagre de 1538; mas com o passar do tempo, certos detalhes e características desta procissão foram-se alterando, nomeadamente o próprio itinerário, que hoje em dia percorre as ruas da zona velha da cidade até à Igreja do Socorro; também a sua direcção, que estaria inicialmente a cargo da Câmara, está agora a cargo da Igreja. Há inclusive o relato de um presidente da Câmara que convidava quase toda a gente a assistir à Procissão, por se tratar, segundo o próprio, “dum voto de nossos antepassados muito respeitado pela municipalidade”, curiosamente, e sem qualquer justificação, a sua comparência passava sempre despercebida. Tal acto seria, no entanto, certamente punido com uma multa ou até mesmo com alguns dias de prisão nos tempos do Governo Absoluto, para o qual seria uma prova de pouco respeito pelo Padroeiro e pelo voto que lhe foi feito. Mas apesar destas alterações, que como em tudo, acontecem e são resultado, não de má vontade, mas do tempo e da natural mudança de mentalidades e de circunstâncias, a Procissão votiva do 1º de Maio nunca deixou de se realizar, nem mesmo no Verão Quente de 1975. Actualmente a procissão realiza-se com toda a solenidade e a participação das autoridades civis e culturais, sendo até os bastões de prata dos vereadores colocados junto à Imagem de Santiago. Uma outra curiosidade relativa a esta procissão é a tradição, que continua tão viva como nunca, de os participantes e assistentes levam ao pescoço um colar de flores - maias (pequenas flores amarelas que nascem, precisamente, em Maio), a que chamam os “maios”.

CONCLUSÃO Chegamos, enfim, à conclusão deste trabalho e às desejadas ilações que, com a sua elaboração, tirei e que irei agora partilhar. Começo por fazer uma breve revisão dos temas que tratamos: falámos da condição de ilha da Madeira, e do isolamento que dela decorre, um isolamento, não só, como referi, em relação ao exterior mas também em relação às suas zonas mais recônditas, que são muitas, principalmente nas zonas mais altas, no norte da ilha; introduzi, em seguida, alguns traços da religiosidade madeirense, que ilustrei com alguns exemplos de manifestações religiosas, de enorme relevância e significado na cultura madeirense, nomeadamente, o Natal, a Festa do Espírito Santo e, finalmente, A Procissão do Voto. Relembro o tema deste trabalho – A Religiosidade do Ilhéu. Foi essa, então, a problemática que me propus explorar, e que, julgo poder agora, dela tirar certas ilações. A religiosidade na Madeira está, como vimos, muito ligada à vida rural, e principalmente à dureza dessa vida e dessas populações, que no seu isolamento, que explorámos também, encontraram na religião a sua única fonte de consolo; a única forma de “fugirem”, momentaneamente, a uma realidade de constante pobreza, dificuldades e limitações. Agarraram-se, então, de uma forma, diga-se, intuitiva, inata, a uma fé de reciprocidade de protecção e devoção; uma fé de favores. Quando, no decorrer do trabalho, me apercebi do carácter desta religiosidade, da noção de fé destas pessoas, não consegui deixar de questionar a sua legitimidade; perguntei-me, então, não será a religião mais do que mero instrumento de trocas de favores? Não será mais que uma garantia de protecção, à qual se recorre quando se precisa? Tenho plena consciência de que esta discussão ultrapassa os limites da minha problemática, contudo achei particularmente interessante tentar explorá-la um pouco, ainda que baseada, unicamente, na minha opinião e na minha visão em relação à religiosidade. Não posso dizer que tenha chegado a uma conclusão definitiva ou que manterei, eternamente, este ponto de vista, mas creio que, sendo ela, em grande parte, uma questão de abertura e de bom senso, é pertinente nesta discussão. Aquilo que conclui foi que, na verdade, a legitimidade de uma determinada fé, ou de um certo modo de ver a religião e aquilo que ela representa, não está dependente do seu

carácter, mas da fidelidade com que é vivida. Compreendi também, ou melhor, confirmei a ideia de que a fé é realmente algo muito pessoal, e que está dependente das circunstâncias da sua existência e da sua expressão, logo, nunca poderíamos exigir, por assim, dizer, a uma população com as características que já por várias vezes referi, uma noção de fé e de religiosidade mais culta ou mais pensada, com um carácter menos mendicante e mais intelectualizado; logo, conclui, que esta fé, tão própria das pessoas rurais, se adequa às suas circunstâncias, e julgo, se intensifica, com a tal condição de ilha, e com a tal “dupla insularidade”. Quero deixar bem claro que não me oponho, de forma alguma, a este “tipo” de fé, nem teria qualquer legitimidade ou autoridade para fazê-lo, assim como não a vejo como inferior ou superior a qualquer outra. Reconheço-lhe, ainda, uma qualidade que me parece ser importante referir, o facto de atendendo, mais uma vez às particularidades da ilha, e às circunstâncias de vida da população, esta ter conseguido manter de forma mais viva as tradições e as devoções que caracterizam a sua religiosidade. Podemos então concluir que a insularidade ou um maior isolamento de uma determinada zona ou região tem, na verdade, uma vertente positiva, que de certa forma, não digo equilibra, mas atenua a sua vertente negativa, desempenhando um importante papel na preservação da cultura e da tradição de um povo.

FONTES E BIBLIOGRAFIA Webografia: 

http://www.sir-madeira.org/WebRoot/Sir/Shops/sir madeira/MediaGallery/infraestruturacao-exploracaoXVeXVI.pdf



http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=86115



http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=53981



http://madeira-gentes-lugares.blogspot.com/2010/12/o-natal-madeirense-asoitavas.html

Bibliografia 

VERÍSSIMO, João Nelson, A Festa do Espírito Santo, Revista Atlântico, n.º 1, Primavera 1985



AZEVEDO, Carlos, SILVA, Fernando Augusto – Elucidário Madeirense, Volumes I-III, 3ª edição. 1966

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