A renovação do pensamento político de Hannah Arendt por Judith Butler. In Revista CULT n. 208, Dezembro de 2015

June 5, 2017 | Autor: André Duarte | Categoria: Gender Studies, Political Philosophy, Judith Butler, Hannah Arendt
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A renovação do pensamento político de Hannah Arendt por Judith Butler André Duarte A prova de vitalidade de um pensamento não reside apenas na avaliação dos efeitos que foi capaz de produzir enquanto o pensador se encontrava vivo, mas se confirma em vista de sua capacidade de continuar a produzir efeitos no pensamento de outros, muito tempo depois da morte do pensador em questão. Hannah Arendt faleceu a quarenta anos atrás e desde então seu pensamento vem recebendo claras provas consagração, prosseguindo vivo, forte e vibrante tanto no Brasil como em diversos outros países, como o atesta a crescente literatura dedicada à exploração e explicação de aspectos importantes da obra arendtiana. O pensamento que perdura é aquele cuja riqueza conceitual permite que outros pensadores possam dele se apropriar até o ponto de renová-lo e revigorá-lo. Ora, é justamente isto o que vem acontecendo com a reflexão arendtiana, sobre a qual Judith Butler tem manifestado claro interesse em livros recentes, como Notes toward a Performative Theory of Assembly, de 2015. De fato, desde já há algum tempo ela tem ressaltado e valorizado duas ideias centrais do pensamento arendtiano: a noção de pluralidade, da qual Butler deriva sua concepção da co-habitação e sua crítica às políticas estatais de caráter genocida, bem como a ideia arendtiana acerca do caráter performativo do agir e discursar coletivos, os quais instauram novos espaços e novas realidades políticas entre os agentes para além das fronteiras institucionais da esfera pública formalmente constituída nos limites da representação. Assim, em reflexão de 2011 sobre o movimento Occupy Wall Street, Butler afirmava que a reflexão de Arendt seria dotada de forte potencial performativo, especialmente em função de sua concepção de que “ao agir trazemos o espaço da política ao ser, entendido como o espaço da aparência”, ideia introduzida em A condição humana, de 1958. Valendo-se dessa noção arendtiana Butler discute o processo político pelo qual ruas e praças se transformam em lugares privilegiados de ação e discussão, ganhando outro relevo no centro das grandes cidades ao atrair a atenção da mídia e de pessoas que até então jamais haviam se interessado ou mesmo sequer participado de reuniões políticas. Neste contexto Butler reflete sobre a dimensão performativa das manifestações políticas coletivas e alarga sua concepção a respeito dos atos de linguagem, assim como, movendo-se agora para além do pensamento arendtiano, reflete ainda sobre o lugar e a importância do corpo nas dinâmicas políticas dos mais recentes movimentos sociais. Neles, boa parte do que realmente importa politicamente diz respeito à experiência de compartilhamento de um espaço público ‘ocupado’, no qual os agentes vivem coletivamente durante certo tempo. Por certo, já desde Who sings the nation (2007) Arendt fornecia a Butler uma ideia central quanto às potencialidades performativas e inovadoras do agir político em concerto, a noção do “direito a ter direitos”, introduzida em Origens do Totalitarismo, de 1951. Butler formula sua noção de performatividade política em diálogo com a noção arendtiana do “direito a ter direitos”, entendendo-a, a meu ver corretamente, não como enunciado metafísico ou princípio normativo relativo a um conceito abstrato de Humanidade, como o faz Seyla Benhabib em The rights of others, nem como instituto jurídico pertencente ao indivíduo isolado enquanto tal. Pelo contrário,

Butler pensa o direito a ter direitos arendtiano como princípio político performativo, cuja ação própria seria a de promover efeitos surpreendentes e imprevistos na cena pública, produzindo instantaneamente aquilo que as regras formais da cidadania tão frequentemente negam a milhões de seres humanos, isto é, igualdade política e cidadania enquanto capacidade de ação política coletiva. Butler relê Arendt por ocasião das manifestações de imigrantes ilegais de origem latina na Califórnia, ocorridas em meados dos anos 2000, cujo ápice performático residia em cantar o hino nacional norte-americano em espanhol, demonstrando assim a complexidade da relação entre a comunidade latina e os Estados-Unidos. Nestas manifestações a comunidade latina reivindicava publicamente direitos dos quais se encontrava legalmente privada, gerando assim efeitos políticos inesperados e mesmo paradoxais, pois a ação política concertada e pública daqueles agentes instaurava em ato e instantaneamente justamente a cidadania e a liberdade política de que eles formalmente careciam. Ao manifestarem-se à luz do dia, expondo-se ao perigo da deportação, tais imigrantes ilegais mostravam simultaneamente os limites da cidadania formal e a potencialidade política implicada no agir coletivo fundado em bases de igualdade: “Exercer a liberdade e afirmar a igualdade precisamente em relação a uma autoridade que as obstrui é mostrar como a liberdade e a igualdade podem e devem mover-se para além de suas articulações positivas. (...) O chamado para este exercício da liberdade que vem com a cidadania é o exercício daquela liberdade numa forma incipiente: ela começa por exercer aquilo que reivindica.” Com o auxílio de Arendt, pois, Butler transpôs sua concepção de performatividade de gênero para o campo da política, suprindo assim o que poderia ser pensado como uma lacuna de seu pensamento inicial, no qual a noção de performatividade de gênero oferecia-se mais como instância de diagnóstico crítico sobre a produção das identidades de gênero do que como referencial para pensar os movimentos políticos de resistência. Afinal, o aspecto importante aqui é a consideração dos efeitos políticos performativos derivados do agir e do reivindicar discursivamente direitos por parte justamente daqueles que deles se encontram privados. Arendt também auxiliou Butler a formular suas críticas às políticas estatais contemporâneas de caráter genocida, as quais pretendem definir o que ninguém pode definir, isto é, com quem queremos dividir a vida na Terra, negando-se assim a pluralidade como condição inescapável da vida política, tal como se nota em Parting ways. Jewishness and the Critique of Zionism, de 2012. Butler constrói esse argumento dialogando com Eichmann em Jerusalém, obra de 1963 em que Arendt discute o processo e condenação de Adolf Eichmann, o responsável pela engenharia de transportes e deportações que tornou possível a solução final nos campos de morte do nazismo. Para Arendt, a conduta de Eichmann ilustra o absurdo do genocídio enquanto decisão sobre aquilo que ninguém pode decidir, isto é, com quem queremos compartilhar a vida na Terra, definindo-se assim qual porção da humanidade pode viver e qual deve perecer. O genocídio rompe o princípio ético-político e existencial da pluralidade, em vista do qual não podemos escolher com quem queremos compartilhar a Terra na qual vivemos junto a outros que são diferentes de nós mesmos e com os quais estamos obrigados a viver: “o caráter não-escolhido da coabitação é para Arendt a condição de nossa própria existência ético-política.”

A partir do preceito normativo ético-político da co-habitação, Butler sugere que devamos extrair um programa político visando orientar a ação em nosso tempo: “devemos conceber instituições e políticas que afirmem e preservem o caráter nãoescolhido da coabitação plural e sem fim. Não apenas vivemos com aqueles que nunca teremos escolhido e para com os quais não temos um sentido imediato de pertencimento social, mas também estamos obrigados a preservar aquelas vidas e a pluralidade aberta que é a população global.” Na reflexão de Butler sobre as relações entre vida, política e filosofia, portanto, as demandas ético-políticas brotam da “própria vida corporal, a qual nem sempre é humana de maneira clara e não ambígua. Afinal, a vida que se deve preservar e resguardar, que deve ser protegida do assassinato (Levinas) e do genocídio (Arendt), conecta-se com e é dependente da vida não-humana segundo modos essenciais.” Como se nota, é no âmbito de um diálogo com o pensamento arendtiano que Butler aprofunda sua reflexão sobre a viabilidade da vida, cuja vulnerabilidade e precariedade constituem marcos ontológicos e normativos a partir dos quais se impõe a tarefa de repensar a ética e a política. Por certo, Butler também critica Arendt por entender que a autora não teria articulado as dimensões da liberdade e da necessidade, do público e do privado. De fato, por vezes Arendt parece traçar distinções rígidas entre os planos político e prépolítico. No entanto, uma leitura atenta de sua obra também nos permite questionar tais limites a partir de indicações da própria autora. Assim, certa vez Arendt afirmou que “a vida muda constantemente e sempre há constantemente coisas sobre as quais se quer falar. Em todas as épocas as pessoas que vivem coletivamente terão assuntos que pertencem ao espaço público – coisas ‘que são dignas de ser discutidas em público’. O que são esses assuntos em cada momento histórico é provavelmente totalmente diferente. (...) Então o que se torna público em cada período dado parece ser para mim totalmente diferente.” Essas considerações permitem pensar que distinguir questões sociais e privadas de questões público-políticas não é o mesmo que ignorar ou recusar o fato de que questões que anteriormente foram vistas como privadas ou sociais venham a se tornar problemas políticos de primeira relevância: basta que sejam trazidas à esfera pública por um conjunto plural de atores políticos. Seja como for, uma política aberta à novidade, como pensada por Arendt, é aquela que se origina do livre agir coletivo, que se exerce por meio da capacidade de discordar, de dizer não e de agir para interromper um determinado estado de coisas. André Duarte é Professor do Departamento de Filosofia da UFPR, pesquisador do CNPq e autor de Vidas em risco: crítica do presente em Arendt, Heidegger e Foucault (GEN/Forense Universitária 2010) e de O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia no pensamento de Hannah Arendt. (Paz e Terra, 2000)

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