A representação da memória na Era da Globalização

May 28, 2017 | Autor: Silvana Fontanelli | Categoria: Working Memory, Social and Collective Memory, Collective Memory, Politics of Memory
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SILVANA APARECIDA FONTANELLI

A representação da memória na Era da Globalização

SILVANA APARECIDA FONTANELLI

A representação da memória na Era da Globalização

Trabalho final apresentado na disciplina Sociedade, Informação & Conhecimento do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Docentes responsáveis: Prof.ª. Drª. Giulia Crippa Prof. Dr. Marco Antônio de Almeida

1º. Semestre, 2016

“O que triunfa é o dever de memória [...] Memórias lavadas no espelho dos monumentos polidos.” Henri-Pierre Jeudy

“Definimo-nos a partir do que lembramos e esquecemos juntos.” Aleida Assmann

A reflexão sobre instituições-memória na Era da Globalização exige discussões conceituais e metodológicas sobre seu papel na sociedade, seus objetivos, sua política de gestão e sua política com a memória. Há tempos, desde o surgimento da Escola dos Annales, os estudiosos utilizam, além de documentos

convencionais,

depoimentos

orais,

obras

de

arte,

monumentos,

testemunhos, enfim, outros lugares de memória, criados com o objetivo de perpetuar eventos, homenagear personagens, preservar categorias de patrimônio eleito para tal ou mesmo criticar ou justificar fatos históricos. O estudo da memória é antigo. Já no fim do século XIX, conforme Pinto (1998), surgiram trabalhos sobre o tema em vários campos de reflexão, em virtude, das alterações nas relações humanas advindas da urbanização, que tentava dissipar as lembranças individuais e designar um presente absoluto, rompendo com o passado. Tais reflexões estão presentes, a título de exemplo, nos trabalhos de Henri Bergson, Sigmund Freud e Marcel Proust. Para a análise proposta serão utilizados principalmente os trabalhos realizados por Maurice Halbwachs1 e Walter Benjamin2 que, desde os anos de 1920, se preocupavam com este assunto tão caro a toda a sociedade, pois os seres humanos possuem e preservam, das mais variadas formas, memórias e lembranças que

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Principal estudioso das relações entre memória e história pública, segundo Bosi (1994, p. 53). Pensador da Escola de Frankfurt que se suicidou durante a II Guerra Mundial. Um de seus principais trabalhos é Sobre o Conceito de História no qual diz que há duas formas de memória: o monumento, feito para durar e significar, e o documento, aquilo que fica aos pedaços. Ao historiador cabe juntar os pedaços, atribuir-lhes significados e escrever a história, a partir de sua experiência presente (MATTOS, 1992, p. 151-4). Em outro trabalho exalta o fim da narração, demonstrando que as péssimas relações entre os homens prejudicam a realização da narração, e que com isso a troca de informações entre gerações tornase quase que inexistente, atrapalhando a transmissão da memória, da experiência. Benjamin acreditava que narrar e ouvir são fundamentais para possibilitar a reflexão sobre o passado e sobre a transformação do presente. (GAGNEBIN, 2004 p. 85-91). 2

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permitem o processo de representação do passado e lhes dão a possibilidade de perceber a própria existência e se reconhecer como indivíduos (WORCMAN, 1999). São muitos os estudos sobre a memória. Por exemplo, os filósofos, psicólogos e psiquiatras que a estudam de forma isolada. Enquanto que autores como Halbwachs relacionam a memória com as instituições sociais, considerando-a como fenômeno social. Maurice Halbwachs salienta a importância da existência da memória individual, mas deixa claro que é comum prevalecer a memória coletiva, pois todos estamos inseridos em grupos sociais, pelo quais somos influenciados e os quais influenciamos. Sempre que lembramos, na verdade, estamos refazendo, reconstruindo, repensando “com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado”. (BOSI, 1994, p. 55). Para entender melhor esta questão, Halbwachs (1990, p. 21 e 23) cita Durkheim, [...] não podemos pensar nada, não podemos pensar em nós mesmos, senão pelos outros e para os outros, e sob a condição desse acordo substancial, que através do coletivo, persegue o universal e distingue o sonho da realidade, a loucura individual da razão comum. [e acrescenta] que, apesar de algum equívoco de expressão, ele nos faz compreender profundamente que não é o indivíduo em si nem nenhuma entidade social que se recorda; mas que ninguém pode lembrar-se efetivamente, senão da sociedade, pela presença ou a evocação e, portanto, pela assistência dos outros ou de suas obras; [...] Um homem que se lembra sozinho daquilo que os outros não se lembram assemelha-se a alguém que vê o que os outros não veem.

Halbwachs (1990, p. 51) ressalta que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, a qual muda conforme o local, o contexto, as pessoas e as relações mantidas com o meio. Para Bosi (1994, p. 65), considerando um estudo de Bartlett3, “a nitidez da memória não deve ser avaliada isoladamente, mas posta em relação com toda a experiência social do grupo”. Halbwachs (1990, p. 51) novamente nos auxilia com relação à construção da memória ao dizer que a sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte e em seu conjunto.

O que significa que a relação com o grupo é fundamental para a representação de memória. A falta de convívio e de troca é um dos elementos que podem levar ao esquecimento. 3

Frederic Charles Bartlett, autor do clássico Remembering, primeiro livro de Psicologia Social que trata da memória e suas relações com o contexto. Bartlett foi fortemente influenciado por Halbwachs.

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Com base na afirmação da filósofa Marilena Chauí, na apresentação do livro de Ecléa Bosi (1994), as pessoas recordam aquilo que para elas é significativo e ao recordar sofrem a influência do tempo, de suas vivências e experiências e até mesmo da história oficial que, muitas vezes, privilegia pessoas e acontecimentos em detrimento de outros, com o intuito de “construir” uma memória. Chauí afirma que o tempo da memória é social, pois influencia na forma de lembrar. O historiador Jacques Le Goff (2004, p. 469), nos apresenta o valor e a importância da memória coletiva, pois exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante, enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todas, pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção [...] A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder.

Avaliada também como instrumento de poder, a memória está relacionada à história das sociedades. Walter Benjamin4, nos anos 1930, afirmava a importância da memória e dizia que sua transmissão devia se dar por meio da narração, “que remete a uma distância no tempo ou no espaço”, sendo fruto “de uma forte relação pessoal, entre o narrador e suas histórias [memórias] e com a audiência, que passa necessariamente pelo corpo”. O que mais importa neste processo é a assimilação da narração pelo ouvinte, a partir do momento que deixa de pensar em si e se projeta no que está ouvindo por meio da fala e da expressão corporal do narrador, resultando num “intercâmbio de experiências” (GONÇALVES, 2009, p. 172-173). Huyssen (2012) também ressalta a importância da narrativa e conclui que “sempre contaremos histórias”, mas que não se pode esquecer que as memórias são frágeis e sempre que possível devem ser confrontadas a outros tipos de registros, preferencialmente evidências documentais, por meio das quais se vislumbre a busca da verdade, mesmo que não seja obtida por completo. Seligmann-Silva (2008, p. 66 e 77), ao analisar obras literárias que relatam traumas e tragédias, sinaliza a importância da narrativa do sobrevivente, para quem o que mais

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As reflexões de Walter Benjamin analisadas aqui foram retiradas do texto de Olgária Mattos (1992, p. 153-154) e de Gonçalves (2009, p. 173-174).

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importa é compartilhar suas memórias (ser ouvido), reconhecendo o “desafio de estabelecer uma ponte com ‘os outros’, de romper os muros” e reinserir-se na sociedade. Ou seja, a memória individual busca integrar-se à memória coletiva. Num primeiro momento, narrar o trauma para o sobrevivente significa renascer. A narrativa do trauma, por meio da imaginação5 do sobrevivente, dá-se sempre no presente a partir de um passado que não passa, em espaço e tempo redimensionados, proporcionando nova dimensão aos fatos narrados. O testemunho, seja ele repleto ou não de elementos da imaginação, só será pertinente se houver uma via de mão-dupla onde haja desejo por parte do ouvinte de escutar e se apropriar. O que interessa são os testemunhos e como são apropriados e disseminados, principalmente pelas instituições-memória, com o intuito de evitar o negacionismo preconizado pelos revisionistas, por exemplo, com relação ao Holocausto (PIRALIAN 2000, apud SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75). LaCapra (2008, apud LEWGOY, 2012, p. 53) diferencia o trauma da narrativa, ao considerar que o trauma remete à repetição de uma “lembrança congelada como eterno presente”, enquanto que a narrativa liberta o sobrevivente de suas lembranças permitindo-lhe dar continuidade a sua vida no presente. Jeudy (2003) salienta que as memórias coletivas não devem ser “tratadas como objetos ou territórios”, e Lewgoy (2012) acredita que devemos compreender que tais memórias não estão totalmente incólumes ao erro e que devem ser analisadas com acuidade. Jeudy (2005, p.15-16), ao analisar os lugares de memória e sua relação com o patrimônio urbano, ressalta a questão da memória como narrativa, representação, atualização ao considerar que vivenciamos há tempos uma ênfase ao culto do “dever da memória”, da luta contra o esquecimento e da “retroação perpétua”. O autor critica a forma como se dá esta representação/atualização, por considerá-la excessivamente teatral e atemporal, “as diferenças temporais entre o passado, o presente e o futuro são aniquiladas graças aos simulacros dessa atualização”. Esta apropriação catártica da memória e do patrimônio estabelece valor estético àquilo que na sua primeira existência nada tinha de

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Seligman-Silva (2008, p. 70-72) esclarece, por meio do reconhecimento dos próprios sobreviventes em seus relatos, que muitas vezes foi necessária a imaginação para ajudar na narração do trauma, o que serviu como elemento de crítica da veracidade de tais testemunhos, levando à rejeição por parte de alguns historiadores e questionamento por parte de juristas e mesmo para justificar a análise dos revisionistas. Mas o próprio autor salienta que a partir do século XX “todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhal”. Para Suleiman (2008, LEWGOY, 2012) o testemunho é sempre individual enquanto o trauma é coletivo. O testemunho por ser individual carrega grande ônus relativo à ética da memória, afinal está representando a memória de todas as vítimas do fato ao qual sobreviveu, não lhe sendo permitido falhas.

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estético, muito pelo contrário. Segundo Jeudy (Ibid., p. 30), “[...] a visão retrospectiva da ‘vida operária’ tornou-se tão estética que as lembranças de exploração e dominação terminam constituindo quadros de um ‘outro’ mundo que nunca será o nosso”. A atualização da memória, por meio do patrimônio, monumento, ruína, decorre da ausência de temporalidade e espacialidade no processo de reflexividade patrimonial. Para entender melhor o processo de reflexividade, Jeudy (2005) explica que a sociedade deve ver sua história e sua cultura refletida em seu patrimônio (locais, monumentos, objetos) de forma que “a identidade bem-preservada continua sendo o signo futuro de uma alteridade inalterável [...]. O que está em via de desaparecer deve ser magnificado [...]” (Ibid., p. 27). Huyssen (2012) alerta para o perigo que é o processo de instrumentalização da memória coletiva, passível de ser transformada em produto da indústria cultural por meio de manipulação, que ressalta suas características positivas para atender objetivos específicos, para estar a serviço de ideologias mais radicais ou sujeita a abusos políticos e econômicos. Para o filósofo, “a cultura da memória triunfou sobre o presente e bloqueia qualquer imaginação de futuros alternativos”. O autor questiona se “as memórias nos ajudarão a recuperar o passado e levar à reconciliação, ou levarão à continuação de novos conflitos?”. O que não o impede de ser totalmente favorável ao enfrentamento do passado, desde que reflexivo e democrático, atentando à maneira como as memórias são apropriadas e representadas, não esquecendo que são instrumentos de poder, como salientou Le Goff (2004). As memórias são representadas pelo patrimônio, nas suas variadas categorias (material, imaterial, arquitetônico, artísticos, etc.), García Canclini (2012, p., 73) ressalta a forma como a escolha do que será preservado está inserida num jogo de poder que resulta numa patrimonialização que privilegia determinadas classes sociais [...] no início do século XXI tanto a lista patrimonial da Unesco como as agendas de museus e bienais evidenciaram que, na geopolítica da cultura, as classes populares e as sociedades periféricas têm menor possibilidade de realizar operações indispensáveis para transformar seus bens em patrimônio mundializado [...]”

Assmann (2011) salienta que cabe aos Estados Democráticos conservarem os bensculturais, mas que a seleção destes deve ser feita a partir de discussões públicas que considerem o caráter multicultural da sociedade.

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Os trabalhos a partir da memória, dependendo como são realizados, auxiliam na construção de identidades pessoais, de grupos e de nações, afirmam o direito à cidadania e advertem para determinados eventos que não foram benéficos e devem ser a todo custo evitados. Entretanto, como salientam alguns estudos (ASSMANN, GARCÍA CANCLINI, JEUDY, HUYSSEN e LEWGOY) na Era da Globalização, do processo de mundialização, de virtualização e uniformização patrimonial, e da ânsia pela preservação do passado, as políticas de memória devem ser planejadas considerando a questão da identidade e seu novo contexto, além de questões como: ·

Quais estratégias geopolíticas considerar na gestão das memórias e dos patrimônios?

·

Quais os critérios de seleção para que tais políticas possibilitem a inclusão em detrimento da segregação, e sinalizem a negatividade do que é representado, tratando-se da representação de traumas?

·

Como trabalhar com a memória representando o passado sem resultar na negação ou “morte” do presente?

·

Como representar a memória de forma crítica, promovendo a nostalgia reflexiva6 neste cenário dominado pela cultura do imediato e do consumo?

·

Como alinhar as políticas de memória à luta por direitos humanos, vislumbrando um futuro mais justo, igualitário, mas não homogeneizado, onde as singularidades históricas e sociais sejam respeitadas?

·

Como desenvolver políticas de memória que permitam controlar os abusos políticos, econômicos e sociais neste “ambiente intelectual pós-moderno, fragmentado e contraditório”? (LEWGOY, 2012, p. 52).

·

Como realizar uma pedagogia preventiva de novas catástrofes que resulte na tolerância e no diálogo entre os diferentes?

·

Como transformar as ausências em presenças, o invisível em legível?

São questões como estas que inquietam os autores que estudam os lugares de memórias, nos quais, de forma explícita ou velada, predominam a segregação social, a apropriação

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“A nostalgia reflexiva preza fragmentos estilhaçados da memória e temporaliza o espaço [...] Revela que saudade e o pensamento crítico não se opõem, pois as lembranças afetivas não livram o indivíduo da compaixão, do julgamento ou da reflexão crítica” (BOYM, 2001, apud Huyssen, 2014a, p. 93).

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simplista ou desvirtuada de determinados fatos históricos, o abuso da memória e a transtemporalidade (sic)7. Um dos mais significativos exemplos da questão de perpetuação ou não da memória, foi citado por Seixas (2004) e relaciona-se às discussões sobre a construção do memorial às vítimas do holocausto no centro da “nova Berlim”. Segundo Seixas, o escritor Martin Walser considerou inoportuna a ideia da construção, por acreditar que as novas gerações têm o direito de esquecer episódio tão medonho da história nacional. Entretanto, muitos acreditam que a memória deve ser mantida e que devemos aprender com ela, pois, segundo Chauí (1992, p. 43), uma política cultural que idolatre a memória enquanto memória ou que oculte as memórias sob uma única memória oficial está irremediavelmente comprometida com as formas presentes de dominação, herdadas de um passado ignorado. Fadada à repetição e impedida de inovação, tal política cultural é cúmplice do status quo.

Lewgoy (2012, p. 52) ao analisar especificamente a representação do Holocausto salienta que para que a ideia de Holocausto possa recobrar sua memória – para que o genocídio dos judeus europeus sirva como um alerta com finalidades de prevenção de novas tragédias, é preciso descontruir a aliança do revisionismo com o anti-israelismo, assim como urge ampliar o escopo da memória judaica para além do evento traumático fundador da recente consciência trágica judaica, sem descaracterizar seu significado.

Huyssen (2014b) também enaltece a importância dos trabalhos realizados com relação ao Holocausto, mas esclarece que não se trata de valorizar um evento histórico em detrimento de outro ou compará-los. A experiência advinda com a representação da memória a partir do Holocausto fornece signos que caracterizam abusos, violências, crimes de Estado os quais são apropriados para os estudos de representação de diferentes eventos traumáticos. Lewgoy (2012, p. 55) segue o mesmo raciocínio ao afirmar que a dinâmica entre expiação do ofensor e luto liga-se à discussão sobre o papel educativo de rituais, memoriais e museus apenas na medida em que estes possam abrir novas janelas de diálogo entre o sofrimento dos judeus e os sofrimentos de outras vítimas de traumas históricos para além do papel catártico que o reconhecimento do Holocausto teve nas últimas décadas [...] Trata-se, neste caso, de discutir, numa perspectiva cosmopolita de prevenção de novos Holocausto, as condições de simetrização (no sentido de Latour, 1992) de sofrimentos comparáveis de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias sem diluir a especificidade da experiência de cada um ou menosprezar os aspectos incomensuráveis da dor do outro. Talvez a 7

Jeudy (2003) ao refletir sobre a organização do Musée des Arts Premiers destaca que neste museu “há uma tentativa de gerir os efeitos da atualização” e que isto resulta na trans-temporalidade (sic), não havendo mais passado, presente ou futuro.

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instituição de memoriais multiculturais possa servir de um começo utópico para o necessário diálogo e reconhecimento dos diferentes sujeitos, sem banalização.

Assmann (2011) cita duas obras de arte que trabalham com a representação da memória traumática: Boltanski, na obra “Casa Ausente”, fixou placas8 com nomes de antigos moradores, suas profissões e outras informações biográficas num espaço vazio entre duas casas situadas numa rua de Berlim. Pessoas que não existem mais, que foram vítimas do Holocausto, são rememoradas e passam a ser visíveis para aqueles que se apropriam da obra artística. Já no trabalho fotográfico “Evidências”, de Naomi Tereza Salmon, são expostas imagens de alguns dos muitos objetos recolhidos nos Campos de Concentração. Uma das imagens mais contundentes é o registro dos inúmeros sapatos amontoados, sendo que “cada sapato denuncia um destino único e inconfundível, aponta para um viver e morrer singular dentro da fábrica gigante da morte” (Ibid., p. 405). Deste trabalho destaca-se também o fato de, naqueles Campos de Concentração onde as vidas humanas eram simplesmente eliminadas, objetos terem sido preservados e posteriormente devidamente organizados. Tais objetos versus as vidas humanas eliminadas representam “duas facetas de uma lógica pervertida” (Ibid., p. 406). São variadas as formas de representar a memória, seja nos lugares de memória, seja nas artes visuais, na literatura. O que deve importar nestes trabalhos de representação é a ciência de que tal representação não deve ter o objetivo de congelar o passado. Ao trabalhar a memória o estudioso deve sempre questionar seu papel. Como fez Aleksiévitch (2015) que, ao escrever sobre Tchernóbil a partir das vozes dos sobreviventes, pergunta se ela é testemunha do passado ou do futuro e por que deve recordar aquele trágico episódio de nossa história, onde a questão espacial ganha outro significado. Tanto quanto na representação dos objetos encontrados nos Campos de Concentração, os objetos, as paisagens e os depoimentos relacionados a Tchernóbil testemunham a ausência e o desconhecido, afinal não se sabe o que ainda está por vir. Mesmo assim, novas tragédias podem ocorrer, vide o evento em Fukushima e suas futuras consequências também desconhecidas. O mundo deveria estar em constante alerta com relação às catástrofes. A sociedade deveria refletir e evitar, por exemplo, o uso pacífico da energia nuclear, após Tchernóbil 8

As informações biográficas dos antigos moradores foram obtidas nos arquivos, outro lugar de memória, sem o qual a obra artística não teria sido realizada.

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e Fukushima, mas isso não condiz com a realidade. No geral, interesses econômicos e políticos prevalecem, inclusive ou principalmente quando relacionados a questões ambientais, apesar dos alertas nos trabalhos com memória de catástrofes. Então, qual a importância de preservar e disseminar a memória das catástrofes? Respondendo ao questionamento de Huyssen9 (2012), no geral a memória, como tem sido representada, não contribui para evitar novos conflitos, novas catástrofes, nem mesmo para promover reconciliações. Assmann (2013) alerta para o fato de que “lembranças negativas de traumas históricos podem estimular sempre novos conflitos ou se deitarem como uma sombra paralisante sobre o presente e tirar a força vital e a perseverança das pessoas”, dependendo da forma como forem trabalhadas. Entretanto, isto não significa que basta viver o presente, simplesmente esquecendo o passado. Huyssen (2014a, p. 16 e 25) ao analisar as questões culturais considera que “não pode haver cultura puramente global que se separe por completo das tradições locais. Também já não pode haver uma cultura puramente local, isolada dos efeitos do global”, e que a memória, apesar de suas complexidades históricas e geográficas, representa papel fundamental nas reflexões sobre “de onde viemos e para onde podemos estar indo”. Sendo assim, para definir as políticas de memória deve-se ir além dos fatos, deve-se entender seus significados, deve-se contextualizá-los no espaço e no tempo, buscando incluir todos os envolvidos, independente de raça, credo, classe social e opção sexual; deve-se ainda promover diálogos entre todos os atores para que superem o passado, usufruem do presente e vislumbre o futuro. Não se deve esquecer que o processamento da memória requer escolhas, feitas de preferência com a participação da sociedade, e que resulta num processo longo. Tal distanciamento temporal não deve representar a ideia de que o evento tratado “se dissolva por si só” (ASSMAN, 2013). A representação da memória pode e deve ser realizada nos lugares de memória, apesar das inúmeras críticas por suas políticas não abarcarem todos os envolvidos nos eventos expostos, por não valorizarem a imparcialidade e objetividade e, mais recentemente, por estimularem o consumo e o imediatismo. Apesar disso, tais lugares são, inegavelmente, essenciais nos trabalhos de representação da memória coletiva, desde que apresentem mudanças substanciais em suas políticas de gestão. 9

Citado na página 6 “as memórias nos ajudarão a recuperar o passado e levar à reconciliação, ou levarão à continuação de novos conflitos?”.

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Os lugares de memória devem refletir sobre o papel a desempenhar neste novo cenário, considerando os usos sociais; as constantes e significativas mudanças advindas da globalização e do uso e inserção das tecnologias na vida em sociedade; os interesses econômicos e políticos; a cultura do consumo; a necessidade do “trabalho multidisciplinar” (DAFLON, 2016); a busca do equilíbrio entre preservação, representação e revitalização; por fim, mas não menos importante, a preservação do meio ambiente. Os trabalhos com a memória, seja ela traumática ou não, devem ser definidos e apropriados pela sociedade de forma crítica e inclusiva, a partir da atuação dos lugares de memória nos quais se estabeleça diálogo que privilegie “a escuta, a participação e a co-gestão (sic)” (POSSAMAI, 2010, p. 37). As políticas de memória, definidas conjuntamente entre os gestores e membros da sociedade, deverão reconhecer e valorizar identidade, diversidade, alteridade, inclusão e interculturalidade, considerando o local, mas sempre inserido e relacionado ao global (GARCÍA CANCLINI, 2005).

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REFERÊNCIAS

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