A Representação numa Democracia: anotações sobre aristocracia, mediação e discurso

May 23, 2017 | Autor: Mateus Fernandes | Categoria: Bernard Manin, Nadia Urbinati, Teoria da democracia, Representação Política, Hanna Pitkin
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A Representação numa Democracia: anotações sobre aristocracia, mediação e discurso

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA – FA/IPOL TEORIA E ANÁLISE POLÍTICA 1 PROFESSORES: FLÁVIA BIROLI / LUIS FELIPE MIGUEL

ALUNO: MATEUS BRAGA FERNANDES MATRÍCULA: 09/0015461 CURSO: MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA POLÍTICA SEMESTRE: 1º/2009

INTRODUÇÃO “Quiconque est maître ne peut être libre”1. Rousseau.

É possível que boa parte das idéias que tratam dos princípios representativos acrescente, de fato, pouca substância ao debate político – seja ele travado no interior das academias, seja realizado em outros espaços públicos e políticos. Não por que a “crise de representação” impeça o surgimento de propostas criativas e alternativas; pelo contrário, há pelo menos três autores que têm norteado as discussões sobre o tema, pela inventividade de suas formulações. Mas porque as crises parecem servir de ponto tanto de ruptura quanto de remodelagem; tanto de mutação quanto de adaptação. E, em democracias representativas ainda frágeis e jovens, sempre à sombra da ruptura, pode ser prudente aprofundar e remodelar, adaptar e mesclar o que já foi proposto. As propostas apresentadas por Hanna Pitkin, Bernard Manin e Nadia Urbinati poderiam ser tomadas, cada uma à sua maneira, como tentativas de descrever, diagnosticar e resignificar a representação política. Ainda sim, a proposta de cada uma e de cada um destes autores transita mais no campo conceitual, por não poder “ser devidamente compreendida no campo das alternativas para organizar a representação”2. Trata-se, pois, tanto de afirmar o caráter representativo das democracias atuais quanto de buscar um entendimento comum para o fundamento da representação política. Ainda mais, parece ser o caso de se confirmar o aspecto positivo – e desejável – da representação à luz da mescla conceitual entre representação e participação, entre o igual direito de consentir3 e o igual poder de decidir. A cisão fundamental entre a participação e a representação política pode não ser tão profunda assim, embora se mantenha como um paradoxo e se reflita, por exemplo, na insuficiência de mecanismos eleitorais como garantidores de “expressão da soberania

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Apud PATEMAN, 1992. p. 41. “Quem quer que seja senhor não pode ser livre”. ARAUJO, 2009. p. 47. grifo do autor. 3 Bernard Manin aborda, especificamente, a distinção entre o “igual direito de consentir” e a “igual chance de exercer funções de governo”. Cf. ARAUJO, 2009. p. 49. 2

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popular, de responsividade e de representatividade dos governantes”4. Logo, é válido observar que as remodelagens da idéia de representação têm atraído a idéia de participação, diminuindo a tensão entre elas, embora mantenham sua distinção5. Para reforçar essa observação, pode-se retomar o dilema enfrentado muitas vezes por teóricos da democracia, como Carole Pateman: É claro que, quando a participação direta é possível, a definição [de participação] é relevante, mas não fica claro até que ponto o paradigma da participação direta pode se repetir em condições onde a representação está se tornando amplamente necessária, embora o indivíduo tivesse mais oportunidades de participação política numa sociedade participativa.6

Assim, mantendo-nos no campo conceitual e apontando algumas anotações sobre revisões de literatura destes três autores mencionados, feitas por pesquisadores brasileiros, pretendemos tão-somente realçar aspectos que consideramos relevantes na tensão e para a distinção entre participação e representação política, quais sejam: a aristocracia, a mediação e o discurso. Notamos que, em cada um destes temas, há distintos problemas e possibilidades de superação que podem efetivamente contribuir para aperfeiçoar o ideal de democracia. Aliás, poderíamos dizer que, em particular, abordaremos a idéia de representação numa democracia representativa, que é substantivamente diferente de encararmos a representação como forma de governo ou como realização das democracias atuais. Nas anotações finais espera-se justificar melhor esta escolha. Em resumo, portanto, este texto está articulado sobre quatro partes que podem ou não apresentar conexões umas com as outras, já que podem ser consideradas separadamente e não fazem parte, necessariamente, do argumento de um só ou do mesmo autor ou autora. Na primeira parte, são apresentadas algumas anotações sobre os problemas em se compatibilizar a natureza aristocrática embutida na prática eletiva com a democracia igualitária, além de algumas discussões laterais sobre a conceituação, feita por Manin, de aristocracia. Na segunda parte, procura-se compreender melhor como é apresentada, de maneira próxima, embora distinta, a caracterização da representação como mediação: mediação entre participação direta e não-participação, mediação entre governantes e governados e mediação entre governo e sociedade. Subsidiariamente, nos valeremos de discussões filosóficas feitas por Kant acerca da faculdade do juízo, já que esta seria, para 4

LOUREIRO, 2009. p. 63. Maria Rita Loureiro afirma que “os estudos recentes apontam novas perspectivas analíticas que superam a oposição entre representação e participação”. Cf. LOUREIRO, 2009. p. 64. 6 PATEMAN, 1992. p. 63. 5

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ele, a atividade fundamentalmente política e essencialmente mediadora e, para nós, o elo entre a prática e a teoria representativa fundada no discurso. Assim, na terceira parte, apresentamos a tentativa de Urbinati de preencher seu conceito de representação política com as noções de discurso e de julgamento. A quarta parte é dedicada às anotações finais, na tentativa de retomar a distinção entre democracia representativa e governo representativo, fazendo coro com autores que acreditam que a crise da representação pode ser, finalmente, uma crise de uma forma de governo representativo7 – o que nos abriria novos espaços para buscar alternativas práticas fundadas em teorias criativas de representação.

ANOTAÇÕES SOBRE O TEMA DA ARISTOCRACIA NA REPRESENTAÇÃO “Quando perguntado sobre ‘Quem são os aristoi que deveriam governar?’, o democrata volta-se para o povo e deixa que este decida”. Bernard Manin.

Um governo de pessoas por pessoas, adote a forma que adotar, pode sempre nos remeter a dois temas políticos de destacada importância, se nos questionarmos sobre quem serão as pessoas a governarem, quem serão as pessoas governados e qual será a distinção entre elas: a legitimidade e a autoridade. É dessa maneira que a discussão que Manin faz sobre a aristocracia – ou melhor, sobre o caráter essencialmente aristocrático da eleição de representantes – nos lança à observação do governo representativo. Quando o princípio da igualdade política entre todos aqueles capazes de governar não se iguala ao princípio de igualdade subjacente àqueles que são governados, têm-se uma diferenciação na idéia (ateniense) de igualdade8. Ou seja, se todos são iguais por princípio, todos devem estar igualmente sujeitos ao governo – seja como governadores, seja como governados. A confiança na plena capacidade de exercício do governo (por todos e por qualquer um) era condição para o feito ateniense de escolher o sorteio como método 7

Maria Rita Loureiro é explicita em seu artigo a esse respeito. Cf. LOUREIRO, 2009. p. 73. A questão da igualdade democrática pode ser percebida e definida de diversas maneiras, seja histórica ou analiticamente. Aqui, pelo menos duas são possíveis: i) a igualdade diz respeito à partilha de poder e à equivalente possibilidade de decidir; ii) a igualdade diz respeito à distribuição de oportunidades e à equivalente justiça. Contemporaneamente, a discussão sobre a igualdade (e a diferença), ao mencionar e optar pelo aspecto da justiça, poderia se realizar mais no reconhecimento (da igualdade e da diferença) que na mera redistribuição (de poder). Fraser e Young são duas autoras que traçam estes caminhos. Também pode ser relevante observar a discussão, feita a partir de Estlund, sobre “justiça” (justice) e “justeza” (fairness). Restaria saber, entretanto, se efetivamente ainda resta alguma conexão entre a distinção (provocada pelo reconhecimento da diferença) e a aristocracia (fundada no governo dos “melhores diferentes”) ao se incluir critérios de justiça (ou “justeza”) nos processos democráticos. Cf. FRASER, 2001. e ESTLUND, 2008. 8

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privilegiado para a composição dos magistrados e dos colegiados. Dessa maneira, os atenienses conferiam legitimidade ao governo escolhido por sorteio, pois consentiam com a autoridade daqueles que governavam – e, talvez, até mesmo porquanto soubessem que esse momento seria provisório. A discordância a um determinado governo, ainda que possível, não deveria indicar um descrédito da autoridade – o que implicaria em carência de legitimidade. Um não-consentimento à autoridade de um governo escolhido democraticamente (ou seja, por sorteio) poderia ser visto como não-razoável ou desqualificado (para empregar termos atuais de Estlund9). Cícero Araujo nos explica, então, que Manin atenta para o fato de que o sorteio, mesmo sem ter deixado de ser possível, não é mais visto como desejável10. Historicamente, as “três grandes revoluções ocidentais” pareciam estar mais preocupadas em resgatar “o poder dos governados de escolher quem os governará”11 do que, efetivamente, em discutir formas alternativas de governo popular. A luta era, antes, contra o governo hereditário. Dessa forma, se os aristoi na Grécia antiga eram os melhores em suas ações12 e em seus discursos, nos governos hereditários os aristoi passaram a ser somente “os filhos”. A posterior insurgência permitiu garantir “o igual direito de consentir a quem governa, em vez da igual chance de exercer funções de governo”13. No fim, tornar-se-iam indistintos os conceitos de aristocracia (“governo de poucos homens, mas superiores”) e de oligarquia (“forma degenerada da primeira”)14. Entretanto, como alerta Loureiro, “Manin não diferencia, como os clássicos da antiguidade o fizeram, as duas formas de governo”15. Isso torna o argumento particularmente frágil, embora acreditemos que a distinção entre sorteio e eleição pode nos auxiliar na recomposição do princípio da igualdade e na descoberta das alterações que ele sofreu ao longo do tempo. 9

ESTLUND, 2008. passim. Literalmente, o autor afirma: “Descartando o argumento da impossibilidade técnica do sorteio em governos de Estados nacionais, [Manin] desloca a questão para o âmbito das crenças compartilhadas e da inovação das práticas políticas”. Cf. ARAUJO, 2009. p. 48. 11 MANIN apud ARAUJO, 2009. p. 49. 12 Embora, neste contexto, seja irrelevante a distinção grega entre ações (praxis) e obras (ergon), vale destacar que tal distinção se une novamente diante da idéia de “função” (ergon) do homem, que Aristóteles denominava ser a felicidade (eudaimonia), alcançada pelo exercício ativo (energéia) da virtude ou da excelência (areté), que pode ser notada tanto pelos feitos quanto pelos discursos imortalizados (athanatizoi). A esse respeito, poderíamos tomar o exemplo de Homero, ao falar de Aquiles como “autor de grandes feitos e pronunciador de grandes palavras”. Vale ainda lembrar que, neste caso, os discursos imortalizados são tanto aqueles pronunciados pelo agente quanto aqueles pronunciados sobre o agente, por outros. Dessa maneira, como veremos, o discurso favorece a presença tanto pela percepção (da existência e da ação) quanto pela memória (dos feitos e obras). Cf. ARENDT, 2001. p. 34. 13 ARAUJO, 2009. p. 49. grifo do autor. 14 LOUREIRO, 2009. p. 79. 15 IDEM. Ibidem. nota 15. 10

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Ao que nos parece, a principal alteração sofrida pela noção de igualdade entre os homens, do ponto de vista da eleição, é aquela que permite haver distinção entre os mais destacados para a função de governar, quando esta distinção poderia ser “somente” a de perspectivas, ações, discursos e juízos: Para Manin, o governo representativo relaciona-se a uma aristocracia eletiva porque supõe dois tipos de superioridade dos governantes sobre os governados: 1) superioridade como aptidão para governar, pois os governados só são aptos a escolher; 2) superioridade no sentido de que os governantes teriam uma excelência objetiva ou real, isto é, eles teriam a capacidade de exercer um governo de forma excelente.16

No momento em que “governar” passa a se aproximar mais das funções de “legislar” e de “administrar” um Estado, o ato de ser um representante tem menos relação com a redistribuição do poder político – fundada em princípios como a “identidade” e a “rotatividade” – e passa a ser uma função específica e técnica, para a qual o sujeito deve ter aptidão ou habilidade. Restará ao ideal de liberdade – transfigurado no ideal liberal – o mero controle da autoridade dos governantes, e não mais o exercício da autonomia. Restará ao cidadão livre a escolha daqueles mais adequados aos seus interesses – e não necessariamente o reconhecimento17 daqueles que constante e distintamente “provam ser os melhores” (aristeuein18). Neste ponto, notamos que tudo aquilo que poderia haver de positivo na idéia de “distinção” do ideal aristocrático19 é convertido negativamente em “adequação”. A eleição, como é feita atualmente, levaria então ao caráter eminentemente

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LOUREIRO, 2009. p. 74. Maria Rita Loureiro enfatiza que Manin não crê neste último tipo de superioridade e que identifica “quatro fatores que determinam o caráter não igualitário contido na eleição”. Apesar de parecer ingênua ou inócua a tentativa de acreditar que a distinção pode não ser convertida em hierarquização, temos de aceitar a possibilidade de que toda diferença, para ser apreendida por categorias do entendimento, pode depender de algum tipo de classificação, comparação e, até mesmo, hierarquização. 17 É notável a distinção apresentada por Nancy Fraser para os termos “redistribuição” e “reconhecimento”. Sabendo-se das dificuldades em adaptar tais termos para o uso que hora se faz, opta-se por arriscar usá-lo como convite à reflexão futura. Cf. FRASER, 2001. 18 Apesar deste verbo grego não ter tradução literal para nenhuma outra língua, é possível compreendê-lo, de modo localizado, como “o exercício ativo da excelência”, tal como exposto na nota 12 desta seção. 19 A distinção que poderia nos remeter à idéia de aristocracia não é a do tipo que posiciona os diferentes (representantes e representados) em posição de desvantagem de um com relação ao outro. Tal relação acarretaria na diminuição de sua autonomia, fato que não desejamos. Ao contrário, vemos que o reconhecimento desta diferença poderia permitir a identificação da necessidade da presença desta “nova” (reconhecida) perspectiva, muito embora a tensão entre as opções políticas que articulam esse reconhecimento seja mantida e possa permanecer irredutível. Novamente, uma teoria política da diferença poderia nos ajudar a analisar estes aspectos com mais atenção. Cf. FRASER, 2001.

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pessoal (ou privado) da representação política, como ressalta Novaro20, o que a distanciaria do caráter exemplar (ao modo kantiano) que poderia ter tido na Grécia antiga21. Se a idéia de representação política como “a escolha de um representante” traz, em si mesma, a possível oposição entre igualdade democrática e distinção aristocrática, notamos que, ao ser encarada como “tornar os governantes mais representativos”, os problemas parecem variar. Quando “a representação política passa a ser vista não como um atributo pessoal, mas uma atividade social”22, como pretende Pitkin, então seria possível novamente observar o tema da aristocracia (como “melhores atividades”) na representação política23. Para Pitkin, tal como Maria Rita Loureiro a descreve, devemos compreender também “o que ocorre durante a representação”, dando mais substância ao processo de representar, atentando para “o que o representante faz (acting for) e o que o representante é (standig for)”24. Ela afirma ser necessário atentarmos para a ação (que é relacional) e para a presença25 (que é discurso) do representante, mostrando “que a representação é uma relação recíproca, na qual ação e julgamento são características tanto do representante quanto do representado”26. E é exatamente neste ponto que poderíamos retomar a discussão sobre o tema da aristocracia na representação política, comparando o exercício de governar27 dos aristoi gregos (com sua característica exemplar) com as melhores ações e os melhores discursos esperados dos representantes. Seguindo esta comparação, não 20

ARAUJO, 2009. p. 52. Embora saibamos que pode não fazer sentido falar em “representação política”, tal como utilizada pelos autores citados, na Grécia antiga, pretendemos forçar a comparação entre o aspecto exemplar e o aspecto particular da representação para destacar suas diferenças e distâncias. Araujo, por exemplo, destaca que “é muito discutível que os gregos conhecessem sequer a idéias de soberania”, da qual irá derivar, modernamente, o conceito de representação. Por reconhecermos, com Pitkin, que a representação tem relação direta com a ação e o julgamento – e, portanto, com a participação, mantemos como possível a proposta de comparação da representação moderna com a idéia de uma representação na antiguidade. 22 LOUREIRO, 2009. pp. 66-67. 23 Não pretendemos, entretanto, forçar a entrada da idéia de aristocracia nas formulações de Pitkin (e nem dos outros autores), já que a conexão entre esta idéia e a teoria das elites é, ainda, demasiado forte. Loureiro, por exemplo, relembra que Manin liga etimologicamente a origem de “eleição” e de “elites”. 24 LOUREIRO, 2009. p. 67. 25 Quando tratamos, aqui, da idéia de “presença”, nos remetemos mais à “política de presença”, tal como proposta por Anne Phillips, do que à “idéia fundacionista de ser preciso existir antes para que algo seja representado” (Cf. LOUREIRO, 2009. p. 70). Neste sentido, preferimos adotar a postura kantiana que valoriza o papel mediador da imaginação, a partir da ampliação do pensamento, entre aquilo que existe e entre aquilo que é possível existir. 26 LOUREIRO, 2009. p. 70. 27 E não somente o de escolher e consentir com a autoridade governadora. Como já dissemos, não se deve reduzir o “governar” nem ao legislar nem ao administrar. Tampouco parece ser possível restringir o “ser governado” ao consentir, embora possamos admitir que o exercício do consentimento à autoridade pode ser ampliado de tal modo que contemple a ação e o juízo, como parece pretender Estlund. Cf. ESTLUND, 2008. pp. 136-158. 21

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estariam distantes as idéias de que “o interesse nasce ou é resultado da própria representação”28 assim como “exemplos são os apoios [Gängelband] do juízo”29. Assim, o interesse poderia surgir com os exemplos, ao passo que os exemplos facilitariam o surgimento do interesse. Na próxima parte, sobre o tema da mediação na representação política, poderemos observar de que modo a mediação feita pelo juízo poderia promover tal interesse (dos homens pelas coisas humanas). Valeria mencionar ainda que Pitkin, ao dar demasiado peso aos interesses dos representados, pode retomar o risco de “privatizar” o caráter da representação política – justamente o que sua teoria buscava desmontar – e aumentar o ceticismo diante de um tipo de representação que “em substância” se mantenha indiferenciado para representantes e representados: a distinção seria funcional, tal como a distinção que há entre um ator e um espectador que se encontram ambos na mesma cena, por exemplo. Para Loureiro, Pitkin “acaba definindo representação como responsividade do representante às preferências dos representados”30, o que nos parece ser um enfraquecimento da potência de sua idéia original.

ANOTAÇÕES SOBRE O TEMA DA MEDIAÇÃO NA REPRESENTAÇÃO “O propósito da Natureza é produzir uma harmonia entre os homens contra sua vontade e, de fato, através da discórdia”. Kant.

Na tentativa de não deslocar o problema da representação para a mera democratização (ou elitização) da escolha dos governantes, Novaro procura incluir no debate a função de mediação da representação. Num primeiro momento, poderíamos encarar essa mediação como um “termo médio” entre as posições extremas de pleno exercício de decisão (autônoma) por parte de cada indivíduo e de pleno consentimento a uma autoridade representativa (soberana). A representação, dessa forma, se cumpriria como posição intermediária entre a participação direta e a ausência de participação: uma espécie de participação indireta31.

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LOUREIRO, 2009. p. 70. KANT, 1987. B 173 30 LOUREIRO, 2009. p. 71. 31 Não detalharemos aqui essa possibilidade, já que nos interessa, particularmente, observar a democracia representativa como uma forma desejável – e não meramente possível – de governo. Como Urbinati, questionamos “os pressupostos de que a democracia direta é a forma política mais democrática e que a representativa é um mero expediente prático, um second best”. (LOUREIRO, 2009. p. 80) 29

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De outro modo, a mediação surge como tema ao nos depararmos com o necessário resgate da idéia transcendente de unidade, frente ao “estado imediato ou ‘empírico’ de coisas”32. Poderíamos resgatar a idéia hobbesiana33 de representação como a forma do Estado, e não como algum tipo particular de forma de governo. Em termos atuais, veríamos como diferentes a noção de representatividade (que é o conceito do soberano representante – o Estado hobbesiano) e de representante (pessoa eleita para tratar de assuntos específicos). Eis como a soberania se vincula internamente ao ponto aqui discutido: o soberano, tal como a representação em geral, torna presente o ausente, ou visível o invisível (a idéia), projetando-se como imagem da unidade. Toda política representativa é na verdade uma política que visa à construção dessa imagem.34

Como nos explica Araujo, a idéia seminal é a de que o Estado, por ser a imagem da unidade do povo sob sua proteção, seja o locus de mediação entre as distintas idéias. Mediação, neste caso, significaria mais a união que o conflito, mais a unificação que a distinção. Assim, não parece estranha a opção hobbesiana pela forma absolutista de governo, já que esta seria a melhor maneira de explorar o caráter unitário da política. Entretanto, na tentativa de explorar o caráter conflitivo, Novaro propõe que o Estado representativo seja a condição de possibilidade para alguma forma de governo representativo. Assim, “a representação é o princípio formal que faz existir a unidade política..., já não como idéia, mas como realidade concreta; e, a partir disso, poder dar lugar a distintos regimes de governo”35. Resta saber, entretanto, se há realmente alguma “unidade política” que subjaza à representação e se tal idéia concorreria (por desdobramento autoritário) com o aspecto agonístico da democracia – em prejuízo deste. Por fim, se a caracterização da representação como mediação pode ser tanto de participação indireta quanto de relação entre governantes e governados, ainda nos falta saber como ela poderia operar em termos de mediação entre governo e sociedade. Araujo nos mostra que Urbinati, em sua elaboração da idéia de representação política, “opera uma cisão no espaço social, abrindo dentro dela dois subespaços, o Estado e a Sociedade” de modo que “a representação traz consigo ao mesmo tempo o problema da

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ARAUJO, 2009. p. 52. Cícero Araujo faz uma breve exposição dessas idéias em seu texto. Cf. ARAUJO, 2009. pp. 51-53. 34 ARAUJO, 2009. p. 52. 35 NOVARO apud ARAUJO, 2009. p. 53. 33

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mediação entre eles”36 e a própria redefinição das “fronteiras móveis” dessa cisão. A impossibilidade de compatibilizar a democracia com a representação – que vimos em Manin – deveria ser encarada como, na verdade, a necessária articulação e complementaridade entre, “por um lado, a soberania popular e o governo democrático, e, por outro, o governo representativo e a democracia”37. Assim, ao mesmo tempo em que o distanciamento entre Sociedade e Estado faz aumentar a tensão entre eles – favorecendo a “natureza conflitiva da política democrática, que a representação pretende tornar produtiva” – cria também a possibilidade de se redesenhar os conflitos sociais, “desnaturalizando [tais conflitos], (...) através de agências de representação (como os partidos) que ofereçam narrativas, sempre parciais, de reunificação social”38. Essa parcialidade, ao contrário de demandar algum processo de reunificação ou alguma entidade universalmente representativa da vontade, permite justamente deslocar “o papel da vontade em favor do papel do juízo na constituição da soberania”39. O caráter transitório e parcial da vontade, aliado à descrença na unificação, universalização ou reificação de interesses40, dá lugar à formação e justificação dos juízos: trata-se menos de saber qual é a vontade ou quem a representa do que saber como e por quais razões chegamos à opinião que sustentamos41. Urbinati passa a operar com as categorias kantianas do juízo e nota que a representação, pensada dessa maneira, não pode se dar passivamente, pela mera troca de “autorizações”e consentimentos, senão que por

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ARAUJO, 2009. p. 55. IDEM. Ibidem. Vale relembrar que Araujo afirma que Urbinati “evita confundir sua defesa com a defesa das práticas atuais da democracia, que ela tenderia a remeter ao que chama de ‘democracia eleitoral’”. 38 ARAUJO, 2009. p. 56. 39 IDEM. Ibidem. 40 Araujo expõe claramente que “o que Urbinati quer criticar em Rousseau (reivindicando Kant) é: 1. o uso do próprio conceito de ‘vontade’ para expressar a forma da lei; e 2. a remissão da vontade a um sujeito coletivo substancializado, ‘reificado’. Tais idéias poderiam facilmente nos remeter às críticas atuais sobre a ficção do “consenso”, do “bem comum”, da “vontade geral”, no que preferem adotar a idéia de “mediação entre diferentes perspectivas”. A esse respeito, ver Fraser (2001). 41 A utilização do verbo na 3ª pessoa do plural não é casuística, pois optamos por enfatizar o aspecto plural – comunitário até – da emissão dos juízos e das opiniões. Tal como nos aponta Kant, esta comunidade se criaria pelo envolvimento dos indivíduos com seus companheiros, durante o exercício da faculdade, partilhada por todos e por cada um, de juízo. Abordagens que resgatam o aspecto de discurso (lexis) e de ação (praxis) na política talvez nos permitam concluir que tanto a faculdade de juízo, se fundada no discurso e na opinião (doxa) pública, quanto a possibilidade (ou necessidade) de agir são efetivamente partilhadas por todos. Esta seria, então, outra forma de notar como se formam estas comunidades (enfatizando seu caráter original político): se formam pelo princípio da igualdade, qual seja, a de emitir livremente seu juízo e a de exercitar a excelência de suas obras, ou seja, de agir. Tais abordagens podem ser encontradas em Arendt e, ao que nos parece, em Urbinati. Considerações ainda deveriam ser feitas sobre a efetividade concreta de tal “liberdade de ação e de discurso”, embora não as façamos aqui. 37

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“uma relação ativa entre governantes e governados”42. Na tentativa de resgatar a necessidade de que os seres autônomos mantenham a soberania sobre seus próprios destinos – que é a própria capacidade de julgar e decidir por si mesmo –, sem descartar a vinculação que cada um deles mantém com o outro na formação de um Estado e na manutenção de sua soberania coletiva, Urbinati recorre à “voz” e à visibilidade – que é a possibilidade de imaginar e de considerar os variados juízos possíveis, trazendo-os à memória e refletindo sobre eles, tornando-os presentes: “A voz é a visibilidade dinâmica do discurso e da opinião, enquanto a imagem, no sentido de uma visibilidade plástica, pode ser o veículo de um corpo silencioso”43. Discorreremos um pouco mais sobre a opinião e o discurso, como conectores da diversidade, e sobre a voz, como “órgão fundamental da representação”44, na próxima seção. Ainda cabe observar de que modo a representação poderia tornar mais produtivos os conflitos inerentes a essa visão de política. Seria justamente pela cisão entre sociedade e governo, tal como mencionamos acima, que se acrescentaria um elemento dinâmico à política e que se daria ênfase a sua natureza conflitiva. Isso faz que os discursos se desloquem constantemente entre os pólos do governo – que é o local da unidade e da soberania nacional – e da sociedade – que é o espaço da diversidade, da pluralidade e da fragmentação. O exercício da faculdade de juízo, transformado e expandido pela representação política como mediação, permitira manter um fluxo de idéias – visibilizadas no discurso – que tanto são irredutivelmente parciais45 quanto necessariamente “questões de alianças e programas políticos”46. Entretanto, ao pensar com Kant, Urbinati não faz menção à exigência do desinteresse para que possamos julgar algo em seu próprio valor. Urbinati vai dizer que:

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Araujo aponta que Urbinati “pensa a coletividade que constitui a soberania popular como uma rede, a esfera pública, composta de inúmeros pontos unidos por uma linha invisível de comunicação”. (ARAUJO, 2009. p. 57.) A incomensurabilidade da experiência e a opacidade dos discursos (que impediria o pleno acesso aos significados comunicados) poderia dificultar tal abordagem. Por sua vez, tentativas de dinamizar os fluxos entre experiência e discurso e de multiplicar as linhas de comunicação (e as “esferas públicas”) podem diminuir a rejeição a esse tipo de abordagem comunicativa da política. 43 IDEM. Ibidem. Poder-se-ia argumentar, de outro modo, que a vacuidade dos discursos se contraporia ao poder visual da representação de um corpo – que prescindiria de qualquer enunciado. Em “Corpos que importam”, Judith Butler expõe algumas considerações que nos fazem pensar neste tipo de contraargumentação. 44 ARAUJO, 2009. p. 57. 45 Araujo nota que são “parciais porque seu ponto de partida, embora não necessariamente o ponto de chegada, é a parte e não o todo social”. ARAUJO, 2009. p. 56. 46 URBINATI apud ARAUJO, 2009. p. 56.

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é a autonomia de julgamento que torna legítimo o caráter indireto, o fato de que o governante e o governado podem fazer um julgamento de tipo ‘como se’ e imaginar-se no lugar do outro. 47

O problema é que essa autonomia exigiria a postura do observador desinteressado, quando sabemos que a escolha do representante pode ser “interessada” e movida por “interesses”. Novamente o Estado, como ponto de referência comum para representantes e representados, pode ser a plataforma para articular e mediar (e não para resolver) os conflitos sobre as “diferentes projeções da unidade social”48, que se fundamentariam na visão de futuro a ser compartilhada. Note-se que Araujo é claro em dizer que “a projeção democrática, nesse sentido, busca seu ponto de solução no futuro. (...) A rigor, a idéia de futuro é antes um ponto de fuga do que um ponto de solução”49. Como veremos, tais projeções criam a distância que permitiria a autonomia de julgamento.

ANOTAÇÕES SOBRE O TEMA DO DISCURSO NA REPRESENTAÇÃO “Não acreditamos que o discurso entrave a ação; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão”. Péricles.

Como vai enfatizar Loureiro, o discurso permite que estejam presentes algumas perspectivas que – espacial ou temporalmente – não estão presentes. Para Urbinati, nem a democracia direta – que exige a presença (no espaço) para a participação –, nem a democracia eleitoral – que reduz a participação ao consentimento e à autorização (no tempo) – dão respostas aos problemas colocados pela democracia representativa. Para ela, “na democracia representativa, o oposto à representação não é a participação, mas a exclusão da representação”. Apesar de sermos críticos sobre a efetividade de uma política que considera as perspectivas embora não crie condições reais para a intervenção direta dos excluídos (embora considerados), vemos que a proposta de Urbinati “abre espaço para a deliberação e encoraja a distinção entre deliberação e voto”50, além de permitir a diferenciação entre regime de governo e forma de sociedade (ou modo de vida). Assim, a escolha do representante, embora central no governo representativo democrático, é um dos passos da representação política, que não se inicia e nem se encerra 47

URBINATI, 2006. p 103. grifo da autora. ARAUJO, 2009. p. 59. 49 IDEM. Ibidem. 50 LOUREIRO, 2009. p. 81 48

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no voto (sendo precedido e sucedido, por exemplo, pelo debate, julgamento e escolha). Além disso, a deliberação não se inicia no conflito e nem se encerra na decisão (ou no consenso), já que a tensão entre governo e sociedade também expõe a tarefa de implementar (a partir da decisão) e de avaliar (a partir de projeções51, projetos e visões de futuro). Diante disso, não é só pela forma de governo que se alcança a democracia, mas também pelo “modo de vida”, como lembrava Dewey. Os discursos, desta feita, são formas de expor esse modo de vida e, principalmente, de aglutinar identidades políticas, como enfatiza Urbinati ao verificar “o papel das agências de representação que produzem diferentes narrativas ideológicas”52 e que favorecem a criação desses centros aglutinadores no longue durée. Para Araújo, essa etapa de eleição, portanto, pode desencadear uma série de transformações que favorecem, sim, a expansão da democracia: A eleição entendida como uma “batalha”, o campo de confirmação ou inflexão das identidades políticas; e como produtora provisória da legitimidade democrática, não por seu sucesso em resolver o problema da unidade social, mas pela capacidade que tenha a ter de deslocar os cidadãos de suas identidades pré-eleitorais, e então reposicioná-los nos diferentes lugares de uma arena propriamente política.53

A eleição, entendida dessa maneira, pode ser o ápice de uma história sobre o passado dos representantes (quem são e a que vieram) e sobre o futuro dos representados (o que querem e como querem): o que gera um distanciamento espacial, temporal e funcional, permitindo algum juízo autônomo. Esta “batalha” é o momento de julgar e de estabelecer as condições que nos farão superar os discursos sobre passou e sobre o que se apresenta, além de alcançar os discursos sobre o que virá e sobre o que se almeja. Como afirma Loureiro, a partir da teoria do consentimento em que se fundamenta Urbinati, a eleição é “expressão do direito de participar em algum nível da produção das leis”54. Assim, o discurso é tanto um dos estímulos quanto um dos critérios de e para as escolhas, ao passo que o juízo é uma das ferramentas tanto para expor os conflitos quanto para transitar entre (e para além de) as diferenças. Esta idéia não parecerá infundada se compreendermos que o caráter deliberativo ativado neste processo de representação “tende

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“Note-se que estamos insistindo aqui no termo projeção e não ilusão, porque não se trata da expressão social distorcida do real/presente, mas de um vir-a-ser, que também aparece como dever-ser; a dimensão normativa da vida democrática”. ARAUJO, 2009. p. 59. 52 ARAUJO, 2009. p. 59. 53 ARAUJO, 2009. p. 60. 54 LOUREIRO, 2009. p. 80.

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a expandir a política para além da estreiteza da decisão e da administração”55 e deve expandi-la para além da votação e da agregação de preferências discretas e individuais. A representação, com isso, cria espaços para a ação e para a observação, para a atuação e para a crítica, além de “ativar uma variedade de formas de controle e de supervisão por parte dos cidadãos”56. E se faz não meramente pela representação dos interesses particulares (considerando que tais interesses pudessem existir ou ser formulados previamente57), mas das vozes possíveis daqueles que durante a representação58 se reconhecem num discurso ou numa ação política. Recordemos, pois, que para Pitkin a exigência é de que “a relação entre representante e representado deve ser recíproca e não unilateral” e, paradoxalmente, de que “a pessoa substituída pelo representante esteja de alguma forma presente”59. Assim, “aprender o que significa representação é condição para aprender como representar”60. Mais ainda, como expõe Pitkin, de maneira inovadora, é tarefa tanto do representante quanto do representado agir e julgar com autonomia e interdependência, o que envolveria accountability e advocacy61, numa relação dupla e recíproca – que “exige o enfrentamento das condições para institucionalizar”62 tal relação. Assim, se o conteúdo do discurso “é o juízo acerca das leis e políticas justas ou injustas”, as condições de institucionalização dessa forma de representação terão de percorrer caminhos que apontem, pelo menos, alguns: 1) critérios de mediação de diferentes perspectivas; 2) critérios de aceitabilidade (de uma autoridade) para o consentimento; 3) critérios de justiça (como redistribuição e como reconhecimento). 55

LOUREIRO, 2009. p. 81. LOUREIRO, 2009. p. 80. 57 Para Pitkin, “o representado não tem uma preferência prévia a ser espelhada adequadamente pelo representante. Este age por um grupo inorgânico que não tem um interesse singular, mesmo que seus membros pudessem ser capazes de formular algum. Na verdade, o interesse nasce ou é resultado da própria representação”. Cf. LOUREIRO, 2009. p. 70. 58 Vemos que é disso que trata a concepção de representação substantiva de Pitkin, conforme nos mostra Loureiro. Cf. LOUREIRO, 2009. pp. 66-73. Não se trata, portanto, de substituir as vozes ou de falar no lugar de alguém, nem de tomar conta de algum interesse ou de ser guiado por ele, como instruções a um subordinado. Finalmente, a concepção de representação descritiva, por ser impossível, também não acrescenta substância à representação. A esse respeito, ver PITKIN, 1967. p. 139. 59 LOUREIRO, 2009. p. 69. Já tratamos sobre os problemas de se tornar presente um ausente na nota 25. Pelos motivos ali apresentados, sustentamos aqui a idéia de “reconhecimento das vozes possíveis”. 60 PITKIN apud LOUREIRO, 2009. p. 64. 61 Não nos parece insensato observar que a idéia de accountability se assemelha ao que afirmamos sobre a “capacidade de dar respostas”, exigida pelo juízo: responder sobre “como e por quais razões chegamos à opinião que sustentamos” (cf. nota 41 deste texto). Da mesma maneira, a idéia de advocacy poderia ser entendida como “falar por outro” ou “falar conforme a voz (de outro)” (ad vocare), embora exclua, a priori, a idéia de que “a nação soberana fala apenas através da voz dos eleitos” (LOUREIRO, 2009. p. 84). Ambos os modos de exercício de representação levam em conta “o representado como um agente com capacidade de juízo autônomo” (IDEM. p. 82. nota 20). 62 LOUREIRO, 2009. p. 70. 56

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Finalmente, o que Urbinati faz para preencher seu conceito de representação política também inclui a idéia de um poder negativo a ser usado em momentos de ruptura da comunicação entre sociedade e Estado, entre representados e representantes. Para ela, este é um dos pontos em que a teoria comunicativa habermasiana apresenta falhas, pois teria dificuldades em lidar com “os momentos de curto circuito que justamente fazem emergir os problemas de representatividade”63. No embate entre a soberania (ideal) unitária do Estado e a soberania (concreta) plural da sociedade, o poder popular negativo garante e “permite ao povo investigar, julgar, influenciar e reprovar seus legisladores” de forma que esse poder não seja “independente nem contrário à representação política, mas um componente essencial dela”64.

ANOTAÇÕES FINAIS Ao retomar, histórica e conceitualmente, a idéia de representação, Manin tende a igualá-la à origem do governo representativo65. São muitos os autores, entretanto, que consideram tal equivalência um erro ou, ao menos, uma simplificação que desconsidera, por exemplo, a complexificação dos governos atuais frente aos governos representativos iniciais; as alterações em conceitos intimamente ligados à idéia de representação, como a autoridade, a soberania e a legitimidade; e os avanços sócio-tecnológicos que permitem melhor distribuição do poder – e do poder de decisão66, que é também parte do poder de governar numa democracia representativa. Afinal, se Manin afirma que “a democracia representativa não é um sistema em que a comunidade governa a si mesma, mas um sistema em que as políticas públicas e a decisões estão sujeitas ao veredicto popular”67, esperamos ter apontado algumas possibilidades para que reconsideremos o fato de que a democracia representativa seja, justamente, um modo de encarar como autônomos os que dela participam.

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LOUREIRO, 2009. p. 87. LOUREIRO, 2009. p. 87. De modo mais específico e concreto, Loureiro irá concluir que “isso requer a institucionalização de arenas de comunicação e controle continuados entre a sociedade e os representantes (como por exemplo, conselhos de gestão e fiscalização de políticas públicas, agências formativas de opinião pública, entre outros) tanto na esfera legislativa como na executiva (e em sua burocracia encarregada de implementar políticas públicas)”. Cf. LOUREIRO, 2009. p. 90. 65 ARAUJO, 2009. p. 48. 66 Como já afirmamos, com diferentes ênfases, não se deve confundir o poder de decisão com eleição e nem simplificar à administração. Cf. LOUREIRO, 2009. p. 81. 67 MANIN apud ARAUJO, 2009. p. 50. 64

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Um dos pontos, portanto, que irá distinguir as democracias é justamente aquele que diz respeito ao locus de deliberação. Para Manin, atualmente os debates não ficam restritos ao Parlamento (como ocorria no modelo parlamentar), nem às comissões consultivas dos partidos (típicas do modelo de partido), mas eles se processam no meio do público, pelos meios de comunicação de massa.68

E serão estes meios, se olharmos para o conjunto destas anotações, que irão efetivamente mediatizar estes três elementos: os aristoi, a mediação e a voz. Ou, em outras palavras, o espaço midiático, em seu sentido lato, pode contribuir para a publicização e mediação das diferenças sociais; das tensões e cisões entre governo e sociedade; dos discursos passados e futuros que levam a ações e avaliações políticas. Não haveria, com isso, uma forma determinada de olhar para cada um destes elementos e, muito menos, uma forma congelada de governo. Assim, talvez seja possível compreender aquilo que Manin afirma com tanta ousadia: “não há crise de representação, como muitos afirmam hoje, mas sim a emergência de uma outra forma de governo representativo”69. Afinal, como aponta Beetham, resta saber, ainda que de modo inconclusivo, “quanto de democracia é desejável ou praticável e como ela pode ser realizada numa forma institucional sustentável”70.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, Cicero. “Representação, soberania e a questão democrática”. In: Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1, jan-jun. Brasília, 2009. pp. 47-61. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. [Trad. Roberto Raposo; Introd. Celso Lafer]. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 (orig. 1981). ESTLUND, David M.. Democratic Authority: a philosophical framework. Princeton: Princeton University Press, 2008.

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LOUREIRO, 2009. p. 77. Embora concordemos com o diagnóstico, não é fato que o remédio apresentado por Manin seja ponto pacífico. Neste sentido, pelo que nos apresenta Loureiro, tenderíamos a concordar com as posições de outros autores referenciados por ela, como Avritzer e Lavalle, qual seja: “crise de representação seria crise de democracia e exigiria reformas democráticas, no sentido de aprofundamento da democracia”. Cf. LOUREIRO, 2009. pp. 77-78. 70 BEETHAM apud MIGUEL, 2005. 69

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FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era ‘póssocialista’”. In: SOUZA, Jessé de (org.). Democracia hoje. Brasília: Editora UnB, 2001. pp. 245-282. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. (Col. Os Pensadores, Kant I e Kant II). [Trad. Valério Rohden, Udo Baldur Moosburger]. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. LOUREIRO, Maria Rita. “Interpretações contemporâneas da representação”. In: Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1, jan-jun. Brasília, 2009. pp. 63-93. MANIN, Bernard. “As metamorfoses do governo representativo”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, 1995. pp. 5-34. MIGUEL, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. In: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59, 2005. pp. 5-42. PATEMAN, Carole. “Teorias recentes da democracia e o ‘mito clássico’” e “Rousseau, John Stuart Mill e G. D. H. Cole: uma teoria participativa da democracia”. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. pp. 9-63. PITKIN, Hanna F. “Political representation”. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967. pp. 209-240. URBINATI, Nadia. “O que torna a representação democrática?”. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, nº 67. São Paulo, 2006. pp. 191-228. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a07n67.pdf. Acesso em: 20 jun. 2009. URBINATI, Nadia. Representative democracy: principles and genealogy. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.

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