A reprodução social da desigualdade

July 12, 2017 | Autor: Joelton Nascimento | Categoria: Sociología, Pobreza e desigualdades sociais, Crítica Do Valor
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A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE

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JOELTON NASCIMENTO

A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE Uma introdução

Primeira Edição São Paulo 2015

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A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE Creative Commons

, 2015, Joelton Nascimento

Fevereiro de 2015 1ª reimpressão: Maio de 2015 Este trabalho foi licenciado com a Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 1.0 Genérica. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc/1.0/

Capa: PerSe Fotografia na capa: Afeganistão (Pixabay) Domínio Público. Revisão: Silvia Ramos Bezerra

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Dedico este livro aos meus alunos, do presente, do passado e do futuro, e especialmente a André Manfrinate (in memoriam)

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Sumário Apresentação ................................................................... 8 O que é a desigualdade? ................................................ 12 As origens da desigualdade ........................................... 20 As desigualdades à porta da modernidade .................... 32 A ascensão dos “moinhos satânicos” ............................ 46 As desigualdades e o espectro do comunismo .............. 54 Desigualdade e bem-estar social ................................... 66 Desigualdade e a saída neoliberal................................. 82 América Latina, século XXI: um passo adiante? ......... 94 A desigualdade no mundo hoje ................................... 104 Excurso sobre as relações sociais de fetiche .............. 112 A civilização ainda é rentável? .................................... 120 Bibliografia .................................................................. 130 Sobre o autor ............................................................... 132

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Apresentação Em 26 de setembro de 2014, o liberiano Thomas Duncan foi ao Pronto-Socorro de Dallas, Texas, para se tratar dos sintomas de uma forte infecção. Ele informou à enfermeira que havia cheg da Libéria havia poucos dias; ela, entretanto, não repassou a informação adiante. Duncan recebeu uma receita de antibióticos e foi enviado para casa. Dois dias depois voltou para o Hospital em uma ambulância por conta da piora aguda dos sintomas. Finalmente, foi diagnosticado com Ebola, o mais mortal dos vírus conhecido pelo homem. Duncan entrou em contato com 80 pessoas desde que o avião que o trazia da Libéria pousou em Dallas. Se qualquer uma destas pessoas contrair o vírus seria o primeiro relato documentado de um ser humano infectado por Ebola fora da África. Em fevereiro de 2014 um surto de Ebola, o maior já registrado em toda a história, começou a causar a morte de homens, mulheres e crianças em Guiné, na África. Em seguida, o surto se espalhou para Serra Leoa, Libéria e Nigéria. Em setembro daquele ano ouviu-se o pronunciamento oficial de Joanne Liu, presidente da Organização Não-Governamental Médicos Sem Fronteiras, de que o surto seguia descontrolado. Em suas palavras, "O anúncio da OMS (Organização Mundial da Saúde) no dia 8 de agosto dizendo que a epidemia era uma 'emergência pública de saúde de preocupação internacional' não levou a nenhuma ação efetiva, e os países se juntaram em uma coalizão global de inércia". Retenha essa expressão, coalizão global de inércia. Em 27 de agosto de 2014, as pessoas mantidas isoladas em quarentena na favela de West Point, na Monróvia, capital da Libéria, se manifestaram contra o isolamento, resistindo aos que o impunham. As mais difíceis condições de vida do mundo, onde falta de tudo, ainda eram acrescidas da terrível condição de sítio e de

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todos os problemas que isto implica. Os pobres estavam agora isolados na presença do mais mortal dos vírus conhecidos, como se a vida que levam já não fosse suficientemente cercada de privações, dores e misérias. Para conter a tentativa dos liberianos isolados de furar o cerco, o exército abriu fogo contra alguns dos que tentavam fugir. Ali estava, portanto, o cume do desespero: favelados de um dos países mais pobres do mundo, isolados e mantidos sem qualquer cuidado médico para morrerem pela ação de um dos microrganismos mais letais que se tem notícia; ao tentar escapar desta morte quase certa são alvejados por tiros de fuzis. Um (a)cúmulo de segregação, crueldade e abandono. As últimas notícias dão conta de que uma cura para o Ebola está próxima de se efetivar, provando que a miséria na África só não é efetivamente combatida com a colaboração dos países desenvolvidos pelo fato de não ser contagiosa. Enquanto se celebra o desenvolvimento econômico e a “nova classe média” na Índia, nas periferias de estados como Delhi, Punjab, Meghalaya e Haryana as pessoas estão literalmente encolhendo em face da desnutrição e das condições sanitárias precárias na qual elas vivem. Entre meados dos anos 80 e meados dos anos 2000 o peso e a altura média de homens e mulheres na faixa dos 20 anos diminuiu nestes estados, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde, como uma evidência biológica da pobreza ali vivida. Segundo dados veiculados pela Oxfam em janeiro de 2015 oriundos de uma pesquisa do Credit Suisse, no ano de 2014 apenas 1% dos mais ricos do mundo açambarcaram 48% de toda riqueza produzida no planeta, enquanto que os outros 99% dos adultos, incluindo os liberianos de West Point, de Delhi, Punjab, Meghalaya e de Haryana dividem o restante dos 52% das riquezas produzidas por todos. Os mesmos pesquisadores concluíram que até 2016 haverá uma assustadora virada e o 1% de super-ricos terão mais renda e patrimônio que os 99% restantes da humanidade.

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Os índices de desigualdade aferidos nos últimos anos são testemunho de que nossas sociedades, banhadas que estão em processos de racionalidade instrumental que governa nossas máquinas automatizadas nas fábricas, nossos aparelhos de comunicação, nossos computadores pessoais e nossos veículos automotores, possuem um forte núcleo socialmente irracional, um vórtice que leva a profundas disparidades e que colocam em contraste os sucessos obtidos nos campos das ciências, da tecnologia e da medicina com os modos de vida e existência social e biológica em regiões cada vez maiores repletas de miséria e de carências. Por que em meio a tantas evidências, permanecemos, e não só em relação ao Ebola, em uma coalizão global de inércia? Este livro é um convite à reflexão sobre este problema. Ele é composto de vários textos inéditos e de alguns textos que escrevi para provocar o debate entre meus alunos ao longo dos meus quase dez anos de ensino na graduação. Eles formam capítulos curtos, de caráter didático, que pretendem ser um convite para uma imersão mais profunda em leituras e reflexões sobre um tema tão urgente de nosso tempo que é a desigualdade social.

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O que é a desigualdade? Como o título deste livro sugere, não faremos um percurso genérico sobre a desigualdade. Nossa intenção é, antes, falar sobre a reprodução social da desigualdade e isto significa perguntar como a desigualdade social se tornou aquilo que ela é; e isso implica também questionar por que ela permanece sendo o que é. Somente pensando sobre isso poderemos discutir mais consequentemente o futuro da desigualdade social em nosso país e no nosso mundo. Ainda que mais adiante nos dediquemos a discutir a criação da desigualdade entre os homens, tema enfrentado por Rousseau em um clássico opúsculo do século XVIII que também teremos a oportunidade de examinar mais à frente, nosso foco se manterá na reprodução social das desigualdades e isso significa que nos concentraremos no modo como estas desigualdades se perpetuaram no tempo e no espaço nas sociedades humanas. Ademais, um enfoque ainda mais preciso é dado à desigualdade da modernidade capitalista, e este enfoque será feito pela razão de que se trata de um tempo histórico onde as desigualdades sociais possuem um peculiar modo de reprodução. Portanto, este livro é um convite à reflexão a partir da seguinte questão: como e por que as desigualdades sociais se reproduzem hoje? Uma questão que se desdobra em outras que podemos nos fazer ao longo de nossa reflexão: como é possível a brutal desigualdade social em um tempo histórico que logrou um avanço tecnológico e médico tão profundos? Como isto é possível? Pensemos um pouco nisso. Hoje um só produtor agrícola norteamericano pode alimentar 126 pessoas com seu trabalho e com a tecnologia disponível, entretanto, o número de pobres e miseráveis aumenta a cada dia nos Estados Unidos1. É um fato conhecido de todos o enorme avanço Segundo o US Census Bureau, em 2012 a pobreza no Estados Unidos atingiu 16% da população, a maior marca desde 1993. Cf. 1

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da medicina nos últimos anos, que, sem sombra de dúvida, tem hoje a possibilidade técnica e científica de curar e salvar mais vidas do que nunca teve, entretanto, a diferença na expectativa média de vida dos países é simplesmente brutal. Vamos aos extremos. A expectativa média de vida no Japão é de 84 anos e em Serra Leoa, 46, uma diferença de 38 anos!2 Nem seria preciso lembrar os números do Brasil, um dos países mais injustos do planeta. Eu lembraria apenas que se trata da sétima economia mais produtiva do mundo3, mas ainda estamos em 79ª em termos de Desenvolvimento Humano das populações4, além de um pouco mais de 10 milhões de pessoas na extrema pobreza5. E aqui seria importante deixar claro as definições a partir das quais faremos o nosso percurso. Em primeiro lugar, precisamos definir o que é a desigualdade social. Parece-nos que o sociólogo sueco Göran Therborn nos deu um bom ponto de partida ao escrever o seguinte:

...a desigualdade é uma violação da dignidade humana; é uma negação da possibilidade de desenvolvimento da capacidade humana de todos. Ela assume diversas formas e tem diversos efeitos: morte prematura, morte por doenças, humilhação, sujeição, discriminação, exclusão do conhecimento ou da vida social geral, pobreza, desapoderamento, stress, insegurança, ansiedade, falta de autoconfiança e orgulho de si mesmo e a exclusão de oportunidades e de chances de vida. Desigualdade, então, não é apenas sobre o tamanho de nossas carteiras. É uma ordem http://goo.gl/wNDDL 2 Cf. os dados no site da Organização Mundial da Saúde. Disponível em: http://goo.gl/amgxn 3 UOL. Brasil é 7ª maior economia, e China deve passar EUA logo, diz Banco Mundial. 30/04/2014. Disponível em: http://goo.gl/c0HpJ2 4 BORGES, Bruna; CALGARO, Fernanda. IDH do Brasil melhora e supera média da AL; país é o 79º em ranking mundial. Uol. 24/07/2014. Disponível: http://goo.gl/yrrpRQ 5 G1. Após 10 anos de queda, número de miseráveis volta a subir no Brasil. 05/11/2014. Disponível em: http://goo.gl/JR7y2Z

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socio-cultural, que (para a maioria de nós) reduz nossas capacidades de funcionarmos como seres humanos, nossa saúde, nossa auto-estima, nosso senso de si, assim como nossos recursos para agir e participar deste mundo.6 Entretanto, tão instrutivo como afirmar o que é a desigualdade, é concentrar esforços em pensar o que a desigualdade não é. Em primeiro lugar, desigualdade não é diferença. As diferenças são naturais, como por exemplo, a etnia, o sexo, a idade, ou escolhidas (estilo de vida, preferências de consumo, etc.) e a desigualdade é socialmente construída e socialmente reproduzida. Rousseau chamava isso de “desigualdades naturais”7, mas para que não haja equívocos, chamaremos, nesse livro, estas distinções entre os indivíduos de diferenças. A desigualdade é uma falta, uma negação social de acesso a três aspectos da sociabilidade: a vida, a existência e os recursos. A vida é negada a uma grande parte da população mundial, o que percebemos sem qualquer dificuldade ao mirarmos na expectativa média de vida dos países do mundo. Como vimos há pouco a diferença entre o Japão e Serra Leoa é de 38 anos; uma desigualdade de 38 anos na expectativa média de vida entre um país e outro não pode de modo algum ser explicado pelas diferenças entre os indivíduos, por sua constituição genética (genotípica ou fenotípica), muito menos por suas escolhas individuais, logo, se trata da resultante de uma construção e reprodução social e, por isso é uma desigualdade. A existência é negada aos discriminados de todo os tipos, quando lhes são fechadas as portas por conta de suas diferenças, como no caso da discriminação racial e de gênero; nestes casos, por exemplo, as diferenças se tornam THERBORN, Göran, The Killing Fields of Inequality. Malden: Polity Press, 2013 (e-book). 7 ROUSSEAU, J. J. A Origem da desigualdade entre os homens. Tradução: Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012. 6

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a base para a desigualdade, a diferença seria a justificativa ideológica para a desigualdade8. A desigualdade de recursos/econômica é a mais comum e que chega mesmo a confundir alguns como sendo a única modalidade de desigualdade; é a desigualdade de renda, de acesso a aparelhos e edificações de saúde, educação e cultura, etc. Estas modalidades de desigualdade constantemente se relacionam entre si. É comum que uma discriminação racial (existencial) seja ligada a uma menor expectativa de vida e, estas, por sua vez, se liguem a um menor acesso a renda e recursos, por exemplo. Continuando a exposição de nossas definições, dizemos que a desigualdade não é idêntica estratificação social. Toda sociedade humana conhecida até hoje foi estratificada de algum modo. Quando alguém diz, em uma situação de emergência, "mulheres e crianças primeiro" já fez uma estratificação, com base em diferenças. Entretanto, para que uma estratificação se transforme em desigualdade é preciso mais, é preciso também uma peculiar construção e reprodução social em que haja uma perda, uma privação, uma falta em determinados estratos em relação a outros. É preciso ficar atento para uma peculiaridade da diferença entre estratificação e desigualdade. Há sociedades estratificadas, mas que são marcadamente

Como bem observou o sociólogo brasileiro José de Souza Martins, as sociedades contemporâneas continuam o longo processo social que consiste na transformação de diferenças em desigualdades. Em suas palavras: “A sociedade contemporânea não só criou novas formas de desigualdade, como manteve, ainda que parcialmente, reformuladas e adaptadas, desigualdades anteriores. Transformou as diferenças em categorias substantivas e meios de discriminação, fazendo delas instrumentos de um sistema de desigualdades, mais do que um sistema de identidades e de direitos. No horizonte dessa desigualdade estrutural firmou-se a legitimidade, oriunda do escravismo colonial, das diferenças sociais como diferenças hierarquizantes e não diferenças de identidade. A diferença tem sido tratada como uma deficiência e como uma privação, no lugar de ser tratada pelos próprios sujeitos como qualidade diferencial positiva e matriz de identidade e de recusa da igualdade meramente ideológica, anuladora das diferenças” MARTINS, José de Souza. A diferença contra a desigualdade: as identidades sociais dinâmicas. IN CAVALCANTI, Josefa S. B.; WEBER, Silke; DWYER, Tom. Desigualdade, diferença e reconhecimento (orgs.). Porto Alegre: Tomo, 2009, p. 50. 8

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igualitárias, o inverso, contudo, não é verdadeiro, toda sociedade marcadamente desigual é também fortemente estratificada. Portanto, nesta definição, a desigualdade é uma injustiça social que é marcadamente distinta tanto da diferença quanto da mera estratificação. Outra distinção entre desigualdade e estratificação é feita pelo sociólogo americano Harold Kerbo. Para ele, a estratificação social é a desigualdade materializada [hardened], institucionalizada, isto é, é a desigualdade tornada uma construção social capaz de se reproduzir no tempo e no espaço. A desigualdade se transforma em estratificação, segundo este autor, quando a maioria dos indivíduos toma esta desigualdade como parte do modo “como as coisas são”, isto é, da realidade social naturalizada9. De mais a mais, há um consenso de que a desigualdade, como diz Therborn, “significa sempre excluir alguém de alguma coisa”10. A igualdade, portanto, em contrapartida, não é apenas enquadrar as pessoas sob uma mesma régua, antes, significa dar a todos as mesmas possibilidades de realização das potencialidades humanas. Esmiuçemos um pouco mais o tríplice aspecto da desigualdade11. Os indivíduos humanos podem se envolver em relações de desigualdade em três dimensões. Isto porque também em cada uma destas três dimensões os indivíduos humanos são seres sociais. Os indivíduos humanos são organismos; os indivíduos humanos são pessoas e os indivíduos humanos são atores. Na condição de organismos, homens e mulheres são mentes e corpos suscetíveis de dor e sofrimento; na condição de pessoas, homens e mulheres possuem auto identidades e vivem suas vidas em contextos de emoção e significado; na condição de atores, os indivíduos humanos são capazes de

KERBO, Harold R. Social Stratification and Inequality. Class conflict in historical, comparative, and global perspective. 4ª ed. Boston: McGraw-Hill, 2000, p. 11. 10 THERBORN, Göran, The Killing Fields of Inequality. op. cit. 11 Sustento-me aqui em THERBORN, Göran, The Killing Fields of Inequality. op. cit. 9

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estabelecer metas e objetivos para si mesmos. Deriva-se destas três dimensões as três modalidades de desigualdade: 1) A desigualdade vital, que é a desigualdade socialmente construída de chances de vida para alguns organismos. Esta desigualdade se mede pelos índices de expectativa média de vida, morbidez, mortalidade infantil, nutrição, fome, crescimento corporal, etc.; 2) A desigualdade existencial, que é a alocação desigual da personalidade, isto é, da autonomia, da dignidade, dos níveis de liberdade e direito ao respeito e ao auto desenvolvimento. Leis e costumes discriminatórios são exemplos claros desta forma de desigualdade; 3) A desigualdade de recursos, que é o provimento desigual de recursos para que os indivíduos humanos possam agir. Em uma sociedade centralmente produtora de mercadorias como as nossas, a baixa renda ou mesmo a renda inexistente implica em todo tipo de privação, mas além do dinheiro, também a educação, o suporte e os recursos dos pais em relação aos seus filhos. Para que fique mais claro a tríplice desigualdade proposta por Therborn, expressamo-la a seguir na forma de uma tabela:

DIMENSÃO DO INDIVÍDUO HUMANO COMO É PRATICADA

EXEMPLO

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DESIGUALDADE VITAL

DESIGUALDADE EXISTENCIAL

DESIGUALDADE DE RECURSOS

Organismo

Pessoa

Ator

Menos chances de qualidade de vida para uns em face de outros A diferença na expectativa de vida entre Japão

Por intermédio de discriminação e preconceito Limitação do voto feminino (existente no Brasil até 1934)

Por diferenças de renda familiar Mais de dez milhões de brasileiros estão abaixo

JOELTON NASCIMENTO e Serra Leoa (38 anos).

da linha da pobreza extrema tendo, por isso, as possibilidades de sua ação rigidamente limitadas

Elaboração própria

A divisão auxilia-nos a entender e explicar melhor a natureza e o modo de reprodução das desigualdades, contudo, contudo, é preciso salientar que estas três dimensões da desigualdade estão constantemente se sobrepondo na dinâmica da realidade social. Ao longo deste livro percorreremos um caminho onde a história social estará bastante presente: pensar a desigualdade social seria impossível sem desenhar ao menos sua fundamental estrutura histórica. Apenas um peculiar desenvolvimento histórico resultaria em nosso presente tal como ele se apresenta. Vamos nos ocupar inicialmente das origens da desigualdade, retomando a discussão que Rousseau havia enfrentado apenas com especulações filosóficas, mas que estudos recentes de Antropologia e Arqueologia puderam esclarecer melhor; discutiremos a seguir o significado histórico-social da modernidade capitalista na reprodução das desigualdades: faremos algumas paradas estratégicas nesta altura. O surgimento da ideia liberal de mercado “autorregulado” e suas consequências sociais ao longo da chamada “revolução industrial” e nos seus primeiros desenvolvimentos é uma destas paradas; a seguir vamos pensar no significado das sete décadas de União Soviética para a reprodução atual das desigualdades sociais, pela razão de que a União Soviética não significou apenas um “Grande Cisma no Poder de Classes”, como bem definiu Guy Debord, mas um dos percursos histórico-sociais definidores das políticas públicas que até hoje conformam as sociedades modernas, mesmo que o próprio “sistema soviético” não mais exista como unidade geopolítica.

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Enquanto a União Soviética se expandia, o Ocidente embarcava no chamado Estado de bem-estar social a partir do entre guerras e sobretudo no pós-guerra. Vamos discutir um pouco o que permanece deste importante período no qual parecia que as relações entre capital e estado estavam ajustadas e equilibradas, produzindo ao mesmo tempo um aumento na qualidade de vida das populações e lucros pujantes ao capital. Veremos como e por que esses anos foram chamados de “anos dourados” do capitalismo e suas consequências para estratificação social. Em seguida veremos de que modo os anos dourados do capitalismo deram lugar aos anos cinzas do neoliberalismo, a partir dos anos 70 e como o neoliberalismo triunfou na ideologia ao mesmo tempo que começou a naufragar na prática a partir dos anos 90 e as consequências disso para a estratificação social global. Trataremos, a seguir, do modo como o período de crises do capitalismo reposiciona as peças do tabuleiro sóciopolítico e como isso afeta a reprodução social da desigualdade em escala global. A seguir, discutiremos os fluxos nacionais, as especificidades da desigualdade social brasileira. Daremos depois uma ampla visada nos fluxos internacionais da desigualdade – para usar uma metáfora, veremos quais são as “correntes termoalinas” da desigualdade social em nosso mundo. E por último, mas não menos importante, buscaremos sugerir uma abordagem teórico-crítica que possa dar conta de uma compreensão radical – isto é, que vai até as raízes – das desigualdades da modernidade capitalista.

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As origens da desigualdade Antes de falar especialmente da reprodução contemporânea das relações sociais de desigualdade, sejam elas desigualdade vitais, existenciais ou de recursos, importa aqui retomarmos um pouco o tema da criação das desigualdades sociais. Ao falarmos em criação de relações sociais de desigualdade, estamos pressupondo que estas relações tiveram uma origem, pressupomos que nem sempre vivemos em sociedades estratificadas e desiguais. Contrariamos, portanto, o senso comum que diz que “desde que o mundo é mundo, existem ricos e pobres”. Veremos que há elementos suficientes nas descobertas das ciências para discordar do senso comum a este respeito. Conforme pesquisas relativamente recentes provaram, nós humanos temos algo em torno de 98,5% de identidade genética com os símios superiores. Ou seja, em apenas 1,5% de nossos genes nos diferenciamos de chimpanzés e bonobos12. Evidentemente, como sabemos, esta pequena diferença genética foi responsável pelas características que tornam nossa espécie mais do que apenas um animal habitando a Terra; antes, somos uma "força geológica" incomparavelmente impactante: o planeta, segundo diversos geólogos, vive um Antropoceno, isto é, uma era geológica que só é como é por conta da ação humana desta espécie de “chimpanzé” que somos nós13. Algo constante nessa porção pequena de diferença genética, foi responsável pelo "cérebro social" que dispomos, segundo o entendimento recente de arqueólogos e antropólogos. Este "cérebro social", por sua vez, foi a causa mais eficiente da sobrevivência dos Homo sapiens

Mais precisamente, o Pan troglodytes e o Pan paniscus. Para uma interessante introdução aos estudos evolutivos sobre o Homo sapiens, cf. DIAMOND, Jared. O Terceiro Chimpanzé. São Paulo: Record, 2010. 13 Para uma visão crítica do “Antropoceno” cf. CUNHA, Daniel. O Antropoceno como alienação. Sinal de Menos, nº 8, 2012. Disponível em: http://migre.me/odb8G 12

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em meio aos últimos anos da última Era Glacial, que extinguiram outra espécie humana: a dos homens de neandertal. Descobertos há algumas décadas em cavernas no Estreito de Gibraltar, os últimos resquícios dos homens de neandertal mostram que eles viviam em grupos extremamente isolados uns dos outros. As ferramentas encontradas nas cavernas – suas sepulturas finais – eram todas daquela mesma região ou de áreas muito próximas. Não possuíam quaisquer artefatos que não fossem os produzidos por eles mesmos, ou seja, nada prova que mantinham trocas de longa distância com outros grupos de neandertais. Na mesma época em que se extinguiam os últimos grupos de homens de neandertal (cerca de 25 mil anos atrás) alguns Homo sapiens conseguiam atravessar estes mesmos dias gelados nas tundras russas. Nos acampamentos humanos encontramos artefatos, como instrumentos e utensílios, além de adornos e instrumentos musicais, cujos materiais foram extraídos de locais que ficavam há mais de 900 quilômetros dos acampamentos onde foram encontrados, o que mostra claramente que os humanos mantinham trocas regulares com outros acampamentos, formando intrincadas redes de cooperação e troca14. É nesse sentido que dizemos que o aparecimento da linguagem falada complexa é um divisor de águas entre o Homo sapiens e o homem de neandertal. Nós só nos tornamos o que somos pois conseguimos estabelecer essa rede complexa de cooperação e trocas sociais que pode ser a diferença entre a vida e a morte, entre a sobrevivência e a extinção, quando se trata de grupos de caçadores e coletores. E fizemos tudo isso apenas porque podemos nos comunicar de modo complexo, criando teias de significação complexas, envolvendo tudo aquilo que nos cerca, teia esta que costumamos chamar de cultura.

Para se ver um interessante resumo audiovisual das descobertas recentes a este respeito, pode-se começar pelo primeiro episódio da série de documentários “O Homem na Terra”, da Discovery Civilization apresentado por Tony Robinson. 14

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Estas primeiras sociedades humanas de caçadores e coletores, entretanto, ao contrário de seus antepassados chimpanzés, não viviam em sociedades verticais e fortemente hierarquizadas. Como os estudiosos de grandes símios bem sabem, os grupos de chimpanzés são liderados por um macho alfa seguido por um gradiente verticalmente hierarquizado de outros membros do bando, segundo a força e as habilidades de combate corpo a corpo de cada um15. Os primeiros grupos de Homo sapiens que se tem registros, contudo, não se organizavam deste modo. As mais arcaicas sociedades humanas que nos legaram materiais de recolhas arqueológicas eram bem mais igualitárias tanto do que os símios quanto das sociedades modernas. No espaço social da família estendida eles compartilhavam igualitariamente alimentos, utensílios e instrumentos. Eram sim estratificadas, em geral as mulheres cuidavam da coleta e os homens da caça, mas igualitárias, não havia grupos privilegiados, não haviam classes sociais, estamentos ou castas, nenhum grupo explorava o produto do trabalho de outros. Evidências genéticas levantadas recentemente mostram que em toda a Ásia, Europa, Austrália e Américas foram encontradas populações que descendiam de apenas um grupo de caçadores/coletores que deixaram a África em torno de 85 mil anos atrás. Os Homo sapiens chegaram ao sul da Ásia e na Austrália há 50 mil anos, e no norte da Ásia e na Europa 40 mil anos antes do presente. Nas Américas só chegaram há cerca de 15 mil anos. Eram grupos pequenos mas bastante coesos e que se ligavam entre si em vastas redes por vínculos de parentesco, trocas e suporte mútuos, como dissemos.

Vemos esse modo hierarquizado e combativo de organização dos chimpanzés na forma de ficção no último filme da série Planeta dos Macacos: o Confronto, de Matt Reeves (2014), quando o líder do grupo de símios precisa enfrentar aquele que usurpou sua liderança por intermédio de um combate corpo a corpo, mesmo quando os demais chimpanzés “sabiam” que ele havia sido traído e emboscado por seu rival covardemente. 15

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Estes grupos nômades de Homo Sapiens já se comportavam de modo propriamente social, isto é, seu comportamento não poderia ser inteiramente deduzido da natureza fisiológica de seus instintos: eles eram sociais quando se tratava do modo como conseguiam comida; da maneira como habitavam em espaços comuns; do arranjo que encontravam para distribuir as tarefas do grupo entre si; das técnicas que elaboravam para produzir ferramentas; dos estilos segundo os quais eles realizavam ornamentos corporais; assim como os significados que davam para os mortos e os ritos que realizavam para prepará-los e enterrá-los em algumas das sociedades. Há um certo consenso científico de que as sociedades de caçadores-coletores que não se agrupavam em clãs eram as mais fortemente igualitárias; assim, em sociedades mais próximas a nós temporalmente, mas nas quais se mantiveram tais características, podemos encontrar as reminiscências das origens das sociedades complexas atuais16. Ou seja, em sociedades de caçadores-coletores que não se agrupam em clãs e que permaneceram se organizando deste modo até tempos modernos – isto é, algumas das sociedades estudadas pela Antropologia – nós poderemos encontrar valiosas analogias para pensarmos as origens das sociedades modernas, seja na linhagem euroasiática, seja na linhagem africana. Tomemos como exemplos desta analogia as sociedades esquimós Caribou e Netsilik, como imagens da linhagem euroasiática, e as sociedades Basarwa e Hadza, como imagens das origens da linhagem africana. O que quero mostrar aqui é como os modos de vida tradicionais destas quatro sociedades se parecem muito com as que encontraríamos se voltássemos em uma máquina do tempo até 15 mil anos atrás e víssemos como nossos ancestrais começaram suas trajetórias que nos trazem onde hoje estamos. Para estas considerações baseio-me em FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality. How our Prehistoric ancestors set the stage for Monarchy, Slavery, and Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2012. 16

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Foram vários os arqueólogos que compararam os Esquimós (ou Inuit, como eles gostam de ser chamados) com os gravetianos e magdalenianos, os descendentes europeus da Era do Gelo. Se esse período da Pré-história se encerrou há cerca de 10.000 anos atrás, os Inuit mantiveram estes modos de vida e de sociabilização intactos até, pelos menos 1920. Os Netsilik, que vivem no Ártico Central canadense, e os Caribou, que vivem ao Oeste da Baía de Hudson, praticavam ao longo de sua existência uma marcada ética igualitária. Havia uma divisão sexual do trabalho: os homens caçavam e pescavam, construíam iglus no inverno e conduziam os trenós movidos por cães; as mulheres construíam as tendas de verão, faziam as fogueiras e costuravam as roupas a partir de peles de animais. Em nenhuma destas sociedades havia a possibilidade de se amealhar qualquer lucro, qualquer tipo de estocagem ou acumulação: “Ninguém reclamava direitos exclusivos sobre a terra”17. Desde as armadilhas para os animais até os açudes, tudo era propriedade comum. Durante períodos de carestia, toda a comida era dividida entre todos. Quando os caçadores matavam um animal, uma foca por exemplo, aquele que foi o responsável pela caçada ficava com a melhor porção de carne, mas precisava distribuir as outras porções para seus companheiros de caçada e suas respectivas famílias. É interessante notar que esta distribuição por parte do caçador bem-sucedido não era meramente um “ato de vontade livre” como dizemos hoje. Antes, era aquilo que a sociedade esperava destes, tanto é assim que registrou-se um ritual no qual os animais eram destrinchados e as porções eram dadas em uma ordem própria, que seguia a ordem de importância para o caçador bem-sucedido e sua família. Ou seja, as porções de carne eram distribuídas para as famílias que estavam na ordem de reconhecimento e proximidade da família do

FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality, op. cit., p. 23. 17

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caçador. Entre os Netsilik esse ritual era chamado de niqaiturasuaktut. A cerimônia foi descrita pela primeira vez em 1956 por um missionário18. A niqaiturasuaktut implicava uma série de relações e compromissos entre as famílias. Por exemplo, se dois caçadores constantemente concediam um ao outro as melhores partes da carne de suas caças é quase certo que seus filhos se juntariam futuramente em matrimônio, e assim por diante. Com as 12 partes cerimoniais da foca, por exemplo, garantia-se uma rede de cooperação de 12 ramificações, que unia vastas regiões geladas. Uma das características mais forte e mais importantes para nosso percurso e que encontramos nestas duas sociedades são suas instituições e costumes sociais de aversão à ganância e à acumulação. Os estudiosos desta cultura relatam inúmeras canções e performances satíricas que ridicularizavam pessoas e famílias que davam sinais de vontade de acumular ou de se apropriar dos recursos comuns. Caso um certo indivíduo ou mesmo uma família insistisse em tais atitudes, o acampamento poderia até mesmo deixá-los quando mudassem para a próxima localidade. Se um indivíduo insistisse em comportamentos violentos neste mesmo sentido, esperava-se que fosse morto pela sua própria família, uma vez que o assassinato por alguém de outra família fazia nascer o direito de vingança. Como dissemos, nosso interesse na antropologia dos Inuit é que diversos arqueólogos já notaram a semelhança nos modos de vida e no igualitarismo desses com a Cultura Folson, por exemplo, que habitou o Colorado há cerca de 11 mil anos atrás. Eram sociedades de caçadores-

Um exemplo desse costume podemos encontrar no filme Apocalypto (2006) de Mel Gibson, logo no começo, quando os caçadores e “Pata de Jaguar” matam um porco do mato e dividem cerimonialmente sua carne. Na cena seguinte, um grupo de outra tribo atravessa seu território e, para sinalizar que vinham em paz, ofereceram peixes como dádivas aos habitantes daquele território por onde estavam passando, ao oferecer uma contra-dádiva, selaram a paz momentânea. Este também é um tipo de ritual muito característico de sociedades de caçadores-coletores. 18

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coletores sem clãs, que se organizam em redes cooperativas e igualitárias, tal como quase toda a humanidade da qual originou a linhagem euroasiática. Entre as sociedades Basarwa e Hadza, pela linhagem africana, os modos de vida e de cultura eram ainda mais igualitários. Como notaram os antropólogos que estudaram estas sociedades, nelas a generosidade era bem quista e premiada, a avareza e a tentativa de acumulação e ganância eram mal vistas e, se permanecessem, para além da sátira e do bom humor, nasceria ali uma razão mais que suficiente para o início de conflitos. Portanto, antes da existência de clãs, os caçadores e coletores de onde todos descendemos, muito provavelmente viviam uma vida cheia de dificuldades, mas fortemente igualitária. Não era, como alguns dizem no senso comum, um compartilhamento igualitário de miséria. Com exceção de alguns momentos, em face de eventos da natureza ou de invasores, a vida era relativamente abundante e tranquila nestas sociedades. O fato é que elas eram conscientes e eram ativas ao impedirem a emergência da desigualdade e, com ela, a acumulação e a exploração que lhe é decorrente. Um fator importante para afastar as tendências à ganância e à acumulação de alguns membros e famílias destas sociedades eram os mitos e religiões criados por eles. As características comuns dos mitos e ritos destas e de muitas outras sociedades de caçadores e coletores eram as seguintes: 1) A generosidade é admirável, o egoísmo é repreensível; 2) A relação social criada pela dádiva é mais valiosa que a dádiva em si; 3) Todas as dádivas devem ser retornadas reciprocamente, entretanto, um certo hiato entre a dádiva e a contra-dádiva é aceitável; 4) Nomes são mágicos e não deveriam ser chamados casualmente;

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5) Uma vez que todos os humanos reencarnam, os nomes dos ancestrais deveriam ser tratados com respeito particular; 6) O homicídio é inaceitável. A família de um assassino deve mata-lo ou prover a reparação para a família da vítima; 7) Não cometa incesto, espose alguém de fora de sua família imediata; 8) Em retorno ao casamento, o noivo deve prover a família da noiva com serviços e dádivas;19 Apesar de muito diferentes entre si, nestas sociedades não encontramos diferenças significativas nas vidas de seus membros que se assemelhe ao que chamamos de desigualdade. A humanidade nasce, portanto, como bem perceberam Kent Flannery e Joyce Marcus, a partir de uma ruptura com o modo de organização social e de vida coletiva dos chimpanzés, que eram verticalmente hierarquizadas em essência. Apesar de que nenhum chimpanzé é “alfa” por nascimento, um deles atinge esse status dentro de suas tropas por intermédio de relações, muitas delas de confronto, que determinam o alfa e os grupos de betas, gamas, etc. Essa hierarquia também não é permanente, betas insatisfeitos podem se unir para destituir um alfa e colocar um de seus pares em seu lugar, originando um novo alfa, por exemplo. Entretanto, o que os primatologistas são unânimes em admitir é que a organização hierarquicamente verticalizada dos chimpanzés é estável pois não há qualquer sinal de cooperação entre tropas. Não existe a possibilidade de trocas entre uma tropa e outra, e que, quando estas se encontram, trata-se inevitavelmente do cenário de um conflito de morte. Ou seja, a inteligência humana, ao contrário do que se pode pensar no senso comum, não teve a função precí-

Adaptado de FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality, op. cit., p. 54. 19

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pua de nos fazer melhores caçadores e coletores, inventores ou engenheiros mais competentes. Todas estas coisas foram as consequências de uma inteligência que nos permitiu primariamente construir redes de relações e de cooperação social entre não-parentes, o que só pôde acontecer sob bases fortemente igualitárias. Ou, como escrevem os dois estudiosos contemporâneos a “inteligência e a linguagem humanas evoluíram não para nos fazer melhores extratores mas para nos fazer melhores na cooperação social”20. As sociedades humanas, portanto, nascem e permanecem a maior parte do tempo sob uma cultura marcadamente igualitária. Em termos temporais absolutos, se tivermos em mente que os fósseis mais antigos de Homo sapiens datam de 195 mil anos atrás, e há apenas cerca de 10 mil anos vivemos em sociedades desiguais, isso significa que nos organizamos em sociedades desiguais em apenas 5% do tempo que nossa espécie habita o planeta. Ainda é, portanto, uma exceção e não a regra. Mas aí uma pergunta se coloca: o que aconteceu com estas sociedades que as tornaram não só desiguais mas iniquas e brutalmente não-igualitárias? Quais foram as novidades que, uma vez estabelecidas, venceram as barreiras que foram criadas até então contra a acumulação e a ganância de alguns membros ou de algumas famílias? Enfim, como surgiu a desigualdade social? Mesmo em uma sociedade de caçadores-coletores como a sociedade Nootka, encontramos alguns elementos importantes para a criação das condições de reprodução da desigualdade. Em algum ponto de seu desenvolvimento, os Nootka (Nuu-chah-nulth) modificaram seus mitos e passaram a ensinar que os ancestrais de tais e quais famílias possuíam títulos e distinções que tais e quais famílias não possuíam. Isso terminava então por justificar diferenças entre os grupos descendentes de umas e de outras. Também nas sociedades Tlingit, as festas que cele-

FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality, op. cit., p. 58. 20

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bravam as trocas cerimoniais foram perdendo o significado igualitário que possuíam para se tornarem um modo do chefe de um grupo expressar seu poder e seu status, além do controle ao acesso aos recursos comuns de uma certa região. Quando as chefaturas passaram a ser hereditárias, estavam a partir daí alicerçadas todas as bases para o posterior desenvolvimento da desigualdade social que conhecemos até hoje. Em suma, é preciso dizer que já havia várias potencialidades para a desigualdade dentro das igualitárias sociedades de caçadores-coletores que mencionamos. Por exemplo, um dos princípios marcantes destas sociedades é aquele segundo o qual quem chega primeiro a um território tem prevalência sobre ele, e, portanto, uma linhagem que fosse formada depois de outra precisava se submeter às suas regras de ocupação do território. Os Nootka e os Tinglit são exemplos estudados pela Antropologia de sociedades de caçadores-coletores bastante desigual. O exemplo destas duas sociedades serve para ilustrar o fato, que Jean-Jacques Rousseau21 sequer sonhava, de que algumas sociedades de caçadores-coletores – e portanto, antes da invenção da agricultura e da pecuária – já assistiram à emergência de acentuada desigualdade. O outro lado desse fato também é verdadeiro. Isto é, a agricultura e a pecuária não implicam necessariamente em desigualdade social. Algumas sociedades permaneceram igualitárias centenas de anos depois do início de práticas agrárias22. Isto nos permite tentar uma hipótese: a importância do privilégio hereditário no estabelecimento da desigualdade social é maior do que qualquer outro fator tomado isoladamente. Do ponto de vista subjetivo, muitos estudos antropológicos dão razão a Rousseau para quem as desigualdades são criadas a partir da vontade de indivíduos e grupos de se colocar e ser tratado como superiores em relação aos demais. Estudiosos contemporâneo reconhecem que Sobre quem nós falaremos mais no próximo capítulo. FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality, op. cit., p. 91. 21 22

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“qualquer que seja o papel secundário de fatores como o crescimento populacional, a intensificação da agricultura e as vantagens ambientais, a desigualdade hereditária não teria ocorrido sem que houvesse uma manipulação ativa da lógica social por agentes humanos”23. Ou seja, ainda que fatores ambientais tenham seu peso e papel, a desigualdade social é resultado fundamentalmente de uma construção social e sua permanência não possa se dar sem que tal construção se reproduza socialmente. Ou seja, o fundamento das desigualdades está principalmente na lógica social e na realização histórica dessa lógica. Pois bem, um filme que permite visualizar a diferença entre uma sociedade de caçadores-coletores e uma sociedade agrária é o já mencionado Apocalypto (2006) de Mel Gibson. Neste filme, uma pequena tribo é cercada e os homens e mulheres são capturados por um grupo de soldados de uma cidade-estado que, aparentemente, pertence à cultura Maia. Os Maias mostrados por Gibson já formaram aquilo que chamamos de civilização, com exército permanente, sacerdotes, exploração de mão-de-obra e um espaço urbano que reflete a desigualdade social. A semelhança entre os Maias, os Astecas, e os Impérios Sumérios e Egípcios é notável, se vocês pararem para reparar. E a partir daqui entramos na História propriamente dita e, como vocês bem se recordam, a dita História da humanidade até então tem sido uma história de profundas e, por vezes brutais, desigualdades. Dissemos que as desigualdades sociais são construídas socialmente. Entretanto, salientamos a importância que os fatores ambientais e geográficos possuem nesta construção. É muito proveitosa a leitura cuidadosa do livro e dos filmes documentários de Jared Diamond, Armas, Germes e Aço24, que mostram as condicionantes biogeográficas para a supremacia histórica do branco europeu na modernidade. De fato, em algo Diamond tem toda a razão: não persistem evidências – todas as que foram apresentadas FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality, op. cit., p. 191 24 DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. São Paulo: Record, 2001. 23

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foram totalmente refutadas – de que existam diferenças genéticas bastantes que possam servir como explicação do jugo dos europeus brancos sobre os ameríndios e sobres os africanos. Jared Diamond mostra em Armas, Germes e Aço que diversos foram os fatores biogeográficos que concederam aos brancos europeus vantagens sobre outros povos. Entretanto, eu não iria tão longe quanto Diamond vai ao afirmar que esses fatores explicam a desigualdade entre a Europa e os Estados Unidos (e poderíamos acrescentar Japão e Austrália) e o restante do mundo. Embora esteja de acordo com grande parte da argumentação de Diamond, ainda penso que ele é cientificamente cego para o fato de que estes fatores só se tornam decisivos a partir do mundo das culturas humanas; as sociedades criam significados para tudo o que as cerca, transformando tudo o que as rodeia material e simbolicamente naquilo que elas anseiam que estas sejam. Assim, esses fatores só se tornam verdadeiramente decisivos após serem socialmente construídos. Portanto, as armas, os germes e o aço que os brancos europeus possuíam a seu favor só se tornaram decisivos quando fizeram parte de uma cultura que precisava se expandir, que já havia estabelecido em seu interior importantes desigualdades sociais e que precisava de matériasprimas e mão-de-obra para aumentar sua expansão. Ou seja, não importa o quão importante tenham sido os fatores materiais (geográficos, ecológicos, etc.) que favoreceram um certo povo em detrimento de outro, estes fatores faziam parte, necessariamente, de uma sociedade humana. Sendo assim, estava dentro de um arcabouço cultural e social. Com isso podemos reafirmar nossa conclusão de que a desigualdade é sempre, em qualquer lugar onde ela exista, uma construção social.

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As desigualdades à porta da modernidade A modernidade inaugura uma profunda ambiguidade em relação à desigualdade social. Se, por um lado, ela instaura um amplo discurso igualitarista, que encontramos, por exemplo, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, funda também a plena vigência do capitalismo, este “moinho satânico” de produção sistêmica de desigualdades. A modernidade passa a partir deste ponto – nas chamadas revoluções burguesas, no último quartel do século XVIII – a deslegitimar progressivamente as formas de desigualdade social baseadas na consanguinidade e nas crenças religiosas; os poderes políticos que decorriam de se pertencer à nobreza, por exemplo, foram todos progressivamente deslegitimados. Entretanto, a sociedade resultante dos processos revolucionários do século XVIII edificaram uma diferente forma de estratificação social e de desigualdade não mais baseada na consanguinidade e apenas subsidiariamente baseada na propriedade da terra: as classes sociais passaram a se basear fundamentalmente e principalmente na economia monetária. Diz um observador contemporâneo:

As classes resultantes [desse processo] não eram nem entidades legais nem agrupamentos de status fechado, e as desigualdades associadas baseadas em classe poderiam, por conseguinte, ser representadas e justificadas como o resultado natural da competição entre indivíduos com diferentes habilidades, motivações e caráter moral (isto é, o "liberalismo clássico").25

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GRUSKY, David B.; WEISSHAAR, Katherine R. A compressed History of Inequality. IN GRUSKY, David B. (org). Social Stratification. Class, Race and Gender in Sociological Perspective. 4ª ed. Boulder:

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Neste capítulo começaremos a discutir essa importante passagem. Talvez a mais importante em toda a história da desigualdade social entre os humanos. Como vocês devem se lembrar, a Europa passava por um momento de transformações profundas no século XVIII. Toda uma nova visão de mundo começava a fermentar entre intelectuais, políticos e pessoas comuns. A ideia que borbulhava era a de que seria possível viver em um mundo mais racional, que não estivesse inteiramente submetido aos poderes ilimitados da monarquia absolutista, do clero e da nobreza corrupta e voluptuosa. Entre as muitas maneiras de se ter uma ideia mais precisa, mais clara e narrativa das transformações desse momento histórico, uma delas é ver um específico episódio da interessante série de documentários Cidades Sujas da Discovery Channel. Cidades Sujas é uma série de documentários que mostram os segredos sórdidos dos porões sujos e fétidos de grandes cidades do mundo em certos períodos históricos; e aqui eu me refiro ao episódio chamado Paris Revolucionária. Neste documentário, o apresentador nos mostra os modos de vida, economia e sociedade de Paris entre Luís XVI (1774-1792) e a Era Haussman (1852-1870). Acompanhar estas transformações nos detalhes do traçado urbano da cidade e dos costumes daqueles que nela habitaram é um modo muito curioso de ver as transformações advindas da Revolução Francesa. De qualquer modo, a Revolução Francesa foi motivada e animada por muitas ideias igualitaristas. Um dos três lemas principais dos revolucionários era a igualdade, como sabemos, ao lado da fraternidade e da liberdade. Muitos ideais revolucionários foram alimentados pela pequena monografia escrita por Rousseau em 1753-1754, chamada A Origem da Desigualdade entre os Homens. As circunstâncias do surgimento deste opúsculo são curiosas.

Westview Press, 2014, p. 48.

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Em 1753 a Academia de Ciência de Dijon lançou um concurso de monografias sobre o tema das origens da desigualdade à luz do direito natural. Rousseau então contribuiu com este pequeno livro para o concurso e embora não o tenha vencido, sua obra é considerada um clássico sobre o assunto enquanto que o verdadeiro campeão já se perdeu nas brumas da história. O opúsculo de Rousseau pode ser bem melhor compreendido se tivermos em mente contra quais concepções ele se coloca. Parece-me claro que um dos interlocutores implícitos de Rousseau é Aristóteles. O discurso de Rousseau começa inclusive com uma epigrafe de A Política do filósofo de Estagira. Nesta obra, Aristóteles, um atento observador da natureza, afirma que as relações entre homem e mulher e entre um senhor e um escravo são relações naturais, pois seria, para o filósofo, naturalmente impossível que homem e mulher não estivessem unidos para sua sobrevivência mútua e, do mesmo modo, seria naturalmente impossível que o comandante e o comandado não cooperassem para sua mútua sobrevivência. Nas palavras de Aristóteles:

As primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir um sem o outro, ou seja a união da mulher e do homem para a perpetuação da espécie (isto não é o resultado de uma escolha, mas nas criaturas humanas, tal como nos outros animais e nas plantas, há um impulso natural no sentido de querer deixar depois de um indivíduo um outro ser da mesma espécie), e a união de um comandante de um comandado naturais para a sua preservação recíproca (quem pode usar o seu espírito para prever é naturalmente um senhor, e quem pode usar o seu corpo para prover é comandado e naturalmente escravo); o senhor e o escravo, têm,

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portanto, os mesmos interesses.26 Portanto, em Aristóteles, a escravidão – a mais extremada forma de desigualdade que pode o homem vivenciar – é justificada pela natureza, ou seja, tratar-se-ia de um direito natural27. Mais adiante neste mesmo clássico texto, Aristóteles afirma que o homem é, por natureza, um “animal político”28 e sua sociabilidade encontra seus fundamentos em sua natureza mesma. Todo o discurso de Rousseau vai no sentido contrário a este. Para Rousseau, a natureza de modo algum justificaria a escravidão e, mais do que isso: todas as desigualdades de poder, prestígio e reconhecimento entre os homens não seriam decorrentes da natureza, mas da sociedade humana. A partir de seu ambiente natural o homem não teria como nem por que criar e manter desigualdades. Ao contrário, teria todas as razões para ser livre e viver uma ética igualitária. Já vimos no capítulo anterior que a ciência mais recente dá alguma razão a Rousseau a este respeito: de fato, nas origens da pré-história dos homens e das mulheres na Terra vivíamos em sociedades que contavam com uma ética predominantemente igualitária, entretanto, parece

ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Mario da Gama Cury. Brasília: Editora da UnB, 1985, 1252 a-b. 27 “Os homens de lei, os juristas, acham “estranho” (deinós) justificar a escravidão na base da mera violência: deinós significa também “terrível, tremendo, funesto, insuportável, repugnante”, adjetivos que expressam melhor a conotação moral da repulsa que suscita, nesses “homens de lei”, o uso da pura violência. Esse ponto merece atenção porque mostra que Aristóteles acata a crítica daqueles que não consideravam justo nem possível fundar o direito sobre a mera força e o obriga a encontrar uma justificação “racional” do fenômeno”. Será justamente para responder a esta objeção que Aristóteles introduz a distinção entre escravo por lei e por natureza: somente demonstrando a naturalidade da escravidão, podese justificá-la e ir além do mero uso da força. A escravidão legal será justa somente no caso em que escravos por lei e por natureza coincidam, de outra forma pode acontecer que “pessoas consideradas nobilíssimas (eugenestatoi) sejam escravas e filhas de escravos, caso sejam feitas prisioneiras e vendidas” TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão natural. Boletim do CPA. Nº 15, 2003, p. 75. 28 Alguns tradutores costumam traduzir politikon zoon como “animal social”. 26

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que Rousseau cria um discurso que lança tanto o “bebê” quanto a “água do banho” fora em sua tentativa de mostrar como as desigualdades entre os homens era algo que não poderia ser explicado pela natureza nem pelo chamado “direito natural”. Vamos seguir alguns dos argumentos do discurso de Rousseau:

Concebo, na espécie humana duas formas de desigualdade. Uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza e consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma. A outra, que pode ser chamada de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens.29 Ao contrário de Aristóteles que justificava a escravidão com base na natureza, Rousseau considerava que a natureza era a fonte da liberdade do homem. Era a sociabilidade, a artificialidade das relações sociais que, segundo ele, criariam as condições para a desigualdade e, no limite, para a escravidão. Através de suas especulações e digressões filosóficas, Rousseau cria uma figura curiosa, a de um homem “natural”, que vive em isolamento social na natureza selvagem. Este suposto natural homem seria igualitário, pois de outro modo sua vida seria impensável, entretanto, a cultura para Rousseau – qualquer que seja ela – apenas pode significar “perversão”, desigualdade e um retrocesso em relação a este suposto “estado de natureza”. Nas palavras de Rousseau:

Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova; entretanto, o ROUSSEAU, J.J. A Origem da Desigualdade entre os Homens. op. cit., p. 33. 29

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homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas em sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz necessariamente os homens a se odiar mutuamente à proporção do crescimento de seus interesses, a retribuir-se uns aos outros serviços aparentes e a dispensar-se efetivamente todos os males imagináveis.30 O discurso de Rousseau resulta em um primitivismo31 que concebe todas as culturas, especialmente as mais complexas, como necessariamente produtoras de desigualdades e irracionalidades sociais. Em suas próprias palavras:

A partir do momento, porém, que um homem teve necessidade do auxílio de outro, desde que os homens perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade foi introduzida, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens e nos quais, em breve, passaram a germinar a escravidão e a miséria, crescendo com as colheitas.32

ROUSSEAU, J.J. A Origem da Desigualdade entre os Homens. op. cit., p. 93. 31 Eu leio Rousseau como um precursor do “primitivismo” que encontra em John Zerzan um dos seus mais conhecidos expoentes na vertente anárquica. cf. ZERZAN, John. Futuro Primitivo. Disponível em: http://frugivorismo.webs.com/JohnZerzan_FuturoPrimitivo.pdf Acessado em . 32 ROUSSEAU, J.J. A Origem da Desigualdade entre os Homens. op. cit., p. 67. 30

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Tivemos a oportunidade de ver no capítulo anterior que a passagem entre a desigualdade verticalmente hierárquica dos chimpanzés e a desigualdade da antiguidade, por exemplo, não são mediadas por qualquer igualitarismo oriundo de um “estado de natureza”. Antes, trata-se de uma lógica social, culturalmente densa e consistente, que impediu que a desigualdade emergisse por milênios. Contudo, o que fica do marcante discurso de Rousseau é sua ênfase no paradoxo de progresso material e cognitivo e a permanência da desigualdade no século XVIII. É um século que vê a emergência de fundadores das ciências, de Lavoisier a Newton, de Voltaire a Condorcet, mas que ainda via monarquias hereditárias, com todas as mais irracionais formas de desigualdade, baseadas em “sangue” e “nascimento”. De um certo modo, embora não vislumbre qualquer alternativa e compreendendo de modo bastante precário os liames da socialização humana, Rousseau já é capaz de vislumbrar em seu discurso o caráter socialmente construído das desigualdades sociais. Como seria possível justificar as desigualdades depois das reflexões de Rousseau e dos muitos filósofos iluministas? A já mencionada Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, um documento revolucionário de 1789 deu a seguinte solução em seu art. 1º: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”33. Ao menos diante do direito e, portanto, do Estado, os homens nascem, se desenvolvem e morrem iguais, e quaisquer distinções que o direito eventualmente faça deveria decorrer de uma “utilidade comum”. Durante a revolução, contudo, houve quem buscasse mais efetividade na equalização dos homens e dos cidadãos. Uma destas tentativas pode ser encontrada no Manifesto dos Iguais de François Noël Babeuf, escrito no meio da turbulência revolucionária, em 1796, que acabaria custando a vida de seu autor. Nascido em 1760 em

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Cf. o documento completo em: http://goo.gl/YbrPoA

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Saint-Quentin em uma família pobre, François Noël Babeuf (mais tarde conhecido como Graco Babeuf, em referência a seu modelo moral tirado da Roma antiga, Caio Gracchus) era da mesma geração de Maximilian de Robespierre (1758-1794) e Louis de Saint-Just (1767-1794). Ficou conhecido como um dos principais articuladores da Conspiração dos Iguais, uma facção radical de revolucionários que tentaram levar a Revolução Francesa na direção de um igualitarismo mais profundo, ou seja, conspiraram para aprofundar politicamente a revolução no sentido de uma maior igualdade do que aquela proporcionada pelos direitos formais da sociedade civil na qual esta revolução resultaria. Como vimos na redação do primeiro artigo da Declaração, a igualdade seria apenas diante do direito e, ainda assim, submetido a uma suposta “utilidade comum”. Ora, o liberalismo já se adiantaria em dizer que o mercado é um bem comum por excelência – por intermédio dos economistas políticos liberais – assim legitimando a desigualdade em face da economia monetária como sendo vantajosa ao “bem comum”. Até hoje há liberais justificam assim as desigualdades sociais. Ademais, até 1789, Babeuf ainda se encontrava junto da corrente democrática da revolução, influenciado pelas leituras de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Jean-Paul Marat (1743-1793). Contudo, a experiência revolucionária mesma exerceu influência decisiva na reflexão e na ação política deste jovem coletor de impostos feudais. Pressentindo que a profissão que lhe sustentara por anos estava na rota de destruição da revolução, Babeuf, que estava em Paris a trabalho quando os eventos explosivos aconteciam, buscou um posto como jornalista da revolução. Nos primeiros anos de sua militância e atividade de agitação jornalística Babeuf insiste, assim como Robespierre e Marat, que a revolução terá falhado se ao final não puder resultar em igualdade não só política e civil, como também social. Mas Babeuf, mais do que agitar e propagandear, auxiliava na organização de massas des-

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contentes, sobretudo de camponeses, na direção da efetivação plena da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Ao liderar a redação e a entrega de uma petição contra cobrança de impostos de camponeses para a Assembléia Nacional, Babeuf foi preso pela primeira vez em maio de 1790. Pela pressão popular e pela intervenção de vozes revolucionárias de peso, como a de Marat e seu jornal, ele é libertado e recebido fora do cárcere como herói. As ações políticas e as intervenções intelectuais de Babeuf nos anos seguintes acompanhavam a vertente democrática predominante, embora saibamos pelas suas correspondências que este nutria esperanças mais extensas e mais profundas, que ele desejava transformar em um programa de ação em circunstâncias mais favoráveis. A partir de 1793, encontrando ou não tais circunstâncias, Babeuf agudiza seu discurso e prática igualitaristas, se afastando de Marat e passando a reclamar pela abolição da propriedade privada, sobretudo quando esta tem por objeto a terra34. Entretanto, ele mantém engavetada sua crítica mais ampla e seus planos de aprofundar o igualitarismo da revolução. Vai se formando paulatinamente assim o movimento babouvista conspirador, baseado muito mais na experiência e na proximidade com as massas camponesas do que em um programa teoricamente consistente. O que caracteriza o babouvismo é principalmente sua busca pelo aprofundamento das consequências igualitaristas da revolução. Isso seria alcançado quando fosse possível transformar as conquistas de igualdade política em igualdade social e igualdade econômica, em egalité de fait [igualdade de fato]35. Depois de ser encarcerado e solto várias vezes, por períodos que chegavam a longos meses, em 1795 Babeuf volta a editar seu jornal Le Tribun de Peuple. Articula as diversas sociedades de conspiradores que lutavam contra MAZURIAC, Claude. François-Nöel Babeuf: Realismo y Utopía de la Revolución Francesa. Tradução: Marçal Tarragó. Madri: Sarpe, 1985. 35 BILLINGTON, James. Fire in the minds of men - Origins of the revolutionary faith. Nova Iorque: Basic Books, 1980. 34

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a “tirania republicana” em uma única direção, colegiada e secreta. Esta direção colegiada seria a base da futura república igualitária comunista. Estava armada a Conspiração dos Iguais. No Manifesto dos Iguais, Babeuf deixa mais do que claro as intenções de sua conspiração: “queremos a igualdade efetiva ou a morte”. Se temos as mesmas faculdades e necessidades, vociferava ele, por que não temos uma única educação e um mesmo regime de alimentação? “Chegou o momento de fundar a República dos Iguais” dizia o Manifesto, “este grande refúgio aberto a todos os homens. Chegaram os dias da restituição geral. Famílias sacrificadas, vinde todas sentar-vos à mesa comum posta para todos os vossos filhos” 36. Em 1796 a Conspiração é descoberta e isolada e seus líderes, Babeuf, Darthé e Buanarroti, presos. Após um longo julgamento, no dia 27 de maio de 1797, Babeuf e Darthé cometem suicídio em suas celas. Ainda assim, o cadáver de Babeuf foi levado ao cadafalso para ser guilhotinado. O articulador da Conspiração dos Iguais jamais teve a oportunidade de expor paciente e cuidadosamente suas teses comunistas e igualitaristas. Seus textos conhecidos são artigos e opúsculos de intervenção e agitação feitos no calor das circunstâncias e nos momentos conjunturais e táticos em que foram escritos, como os artigos da Tribuna do Povo e o Manifesto dos Iguais. O grito de Babeuf e da sua Conspiração dos Iguais é o ponto de partida autodeclarado do movimento socialista que viria mais tarde. É perfeitamente possível chamar Babeuf de comunista (ainda que um comunista “primitivo” ou “proto-comunista”) pois é com ele que pela primeira vez se torna claro um programa político e social de tipo comunista, igualitário37; trata-se de um político e in-

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BABEUF, Gracchus. Manifesto dos Iguais. [1796] Disponível em: http://goo.gl/tz4MJ2. 37 VOVELLE, Michel. Introdución a la historia de la Revolución francesa. Tradução: Marco Aurelio Galmarini. Barcelona: Editorial Critica, 2000.

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telectual que se junta à longa corrente daqueles que fizeram de suas próprias vidas uma batalha pela justiça e pela equidade. Contudo, dificilmente poderíamos chamá-lo de anti-capitalista uma vez que a ordem social erguida pela grande indústria, movimentada pela economia monetária e regulada pelos estados-nação ainda não tinham se desenvolvido sequer a ponto de delinear suas feições mais básicas. Isso só aconteceria na segunda metade do século XIX. Dissemos no começo deste capítulo que o significado desta deslegitimação geral das desigualdades oriundos da crença religiosa e do sangue – ou melhor, da hereditariedade e da pertença a estamentos e de relações feudais com os territórios – não foi universal. Os espaços que funcionavam como satélites e periferias desta Europa revolucionária não viveram esta deslegitimação deste mesmo modo. Os mesmos que brandiam pelo fim dos poderes nobiliárquicos e da escravidão da mão-de-obra legitimavam e justificavam ambos, contudo, nos domínios coloniais, por exemplo. Um exame mais detido na literatura e nas práticas deste período histórico mostra-nos claramente a incoerência do pensamento e da prática liberais, que consistia em lutar pelos direitos do homem e do cidadão nas metrópoles e negálos veementemente, no mesmo fôlego, nas colônias38. Grandes pensadores iluministas, como Condorcet e Diderot, escreveram em diversas oportunidades acerca dessa incoerência. Diderot apontou a hipocrisia dos ingleses em lutar pela liberdade na pátria e lutar para manter a escravidão fora dela. Condorcet clamava retumbantemente contra a escravidão dos negros. Leiamos um destes clamores, nos quais podemos ver claramente uma ressonância do discurso rousseauísta:

Uma competente exploração deste paradoxo no coração do liberalismo pode ser encontrada em LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Tradução: Giovanni Semeraro. 2ª ed. Aparecida: Ideias e Letras, 2006. 38

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Reduzir um homem à escravidão, comprá-lo, vendê-lo, retê-lo na servidão, tudo isso são verdadeiros crimes, e crimes piores que o roubo. Com efeito, esbulha-se o escravo não somente de qualquer propriedade mobiliária ou fundiária, mas da faculdade de a adquirir, da propriedade do seu tempo, das suas forças, de tudo o que a natureza lhe deu para conservar a sua vida ou prover às suas necessidades. A este mal junta-se o de retirar ao escravo o direito de dispor da sua pessoa.39 Entretanto, a Revolução Francesa em face do jugo absolutista, na prática, apertava ainda mais os laços de opressão que uniam os colonos brancos aos escravos negros. Paradoxalmente, o discurso da igualdade, da fraternidade e da liberdade tinha muita dificuldade em sair da metrópole e ainda mais dificuldade em se efetivar para os escravos de peles negras. Muitos justificavam a escravidão na “necessidade” da mão-de-obra escrava para levar adiante a empresa colonial, contra os quais Condorcet já havia dirigido duras críticas em prol da abolição O caso da Revolução Haitiana de Santo Domingo é um divisor de águas neste processo. Quando a primeira revolução negra derrota as forças coloniais francesas, muitos dos que defendiam o liberalismo moderado se afirmavam contra o governo negro e contra suas consequências abolicionistas. Um fato curioso se ouviu nos acontecimentos da revolução liderada por Toussaint de Louverture: os negros revolucionários cantavam a Marselhesa enquanto o exército francês buscava subjugá-los à baioneta. Muitos soldados, ainda impressionados pelos acontecimentos revolucionários na França, desertaram nessa oportunidade por entenderem que estavam no lado errado na luta pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

CONDORCET. Reflexão sobre a escravidão dos negros. Tradução: João Tiago Proença. Lisboa: Antígona, 2014, p. 23. 39

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Entretanto, foi a Inglaterra e os Estados Unidos que mais se viram ameaçados pelo governo revolucionário haitiano. Como anotou um historiador contemporâneo:

A revolução negra de Santo Domingo suscita uma onda de indignação em ambos os países [Estados Unidos e Inglaterra]. “Um Estado Negro no arquipélago ocidental” – escreve The Times – “é radicalmente incompatível com o sistema inteiro da colonização europeia”. E, portanto: “Nesta área a Europa vai recuperar, obviamente, a influência e o domínio que ela justamente reivindica em virtude da sabedoria superior e das capacidades superiores dos seus habitantes”. Os Estados Unidos não apenas se recusam a reconhecer o país nascido da revolução negra, mas fazem de tudo para isolá-lo, enfraquecê-lo, derrubá-lo.40 Conforme conclui este mesmo historiador, as revoluções liberais-burguesas do século XVIII não só não combateram a escravidão racista, mas foram fruto de um “parto gêmeo” com ela41. A emancipação liberal só se deu pelo intermédio da exploração brutal de mão-de-obra negra e escrava. Portanto, a liberdade, a igualdade e a fraternidade pareciam se restringir, fundamentalmente à liberdade de comércio e da empresa, a igualdade apenas entre os brancos e a fraternidade excluía inteiramente negros e índios. Estes limites e contradições das revoluções liberais-burguesas podem nos ajudar a entender como a ordem social dela resultante tem tantas dificuldades em originar uma sociedade mais efetivamente igualitária do que ela é hoje.

LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. op. cit., p. 190. 41 LOSURDO, Domenico. Id., Ib., p. 49. 40

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A ascensão dos “moinhos satânicos” Começo este capítulo com uma citação do historiador social inglês Karl Polanyi cuja pesquisa e reflexão vão de algum modo nos guiar aqui. Em sua obra clássica, chamada A Grande Transformação, escrita nos anos 40 do século passado, ele dizia o seguinte: “No coração da Revolução Industrial do século XVIII ocorreu um processo miraculoso nos instrumentos de produção, o qual se fez acompanhar de uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns”42. Um processo de transformação “miraculoso” nos instrumentos de produção, que se fez existir junto de uma “catastrófica” desarticulação na vida das pessoas comuns! Esta é uma excelente maneira de descrever a emergência da grande indústria na Inglaterra e, com ela, do capitalismo moderno43. Milagre e catástrofe ao mesmo tempo. Não é preciso lembrar ninguém aqui das transformações nas técnicas produtivas e mesmo nas tecnologias do dia a dia incorporadas na vida moderna após o período que ficou conhecido como Revolução Industrial. Basta olhar ao redor e comparar a paisagem observada com uma imagem de qualquer período histórico anterior. Entretanto, poucos se atentam para a catástrofe social que acompanhou o surgimento da grande indústria na Inglaterra, país que estava na ponta deste processo na Europa. A grande indústria só se estabeleceu definitivamente na Inglaterra quando ocasionou uma mudança profunda na organização social44. E mais do que POLANYI, Karl. A Grande Transformação. 2ª ed. Tradução: Fanny Wrabel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 51. 43 Evidentemente que existem historiadores, como Fernand Braudel, que encontram as raízes do capitalismo já no século XVI e há os que as encontram mesmo antes disso. O que aqui queremos marcar é o capitalismo em sentido estrito, a grande indústria, movida pelo trabalho assalariado e regulado pelos estados nacionais. Isto é, o capitalismo tal qual vivenciamos hoje. 44 Contra aqueles que dizem que revolução industrial foi causada pelas descobertas tecnológicas, bastaria dizer que máquinas movidas por energia a vapor já existiam há mais de 100 anos, por exemplo, mas nunca “revolucionaram” nada. 42

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isso: esta mudança foi brutalmente desfavorável para os que se encontravam na base da pirâmide da sociedade. Ou seja, o capitalismo foi um capítulo a mais da história da desigualdade social, entretanto, um capítulo que carrega características muito peculiares e coloca a desigualdade social em uma perspectiva inteiramente diferente. Como isto aconteceu e com que resultados, especialmente na Inglaterra, é o que vamos discutir neste capítulo. Os piores lugares para trabalhar e viver na Inglaterra sem dúvida eram as indústrias em expansão e as minas de carvão que alimentavam as máquinas a vapor. Um observador da época deu a seguinte descrição do modo de vida da “massa dos pobres” empregada na indústria em ascensão:

É verdadeiramente revoltante o modo como a sociedade moderna trata a imensa massa dos pobres. Ela os atrai para as grandes cidades, onde respiram uma atmosfera muito pior que em sua terra natal. Põe-nos em bairros cuja construção torna a circulação do ar muito mais difícil que em qualquer outro local. Impede-os de usar os meios adequados para se manterem limpos: a água corrente só é instalada contra pagamento e os cursos de água poluídos não podem ser utilizados para a higiene; compele-os a jogar na rua todos os detritos e as imundícies, toda a água servida e até mesmo os excrementos mais nauseabundos, para os quais não há outra forma de escoamento – enfim, obriga-os a empestear seus próprios locais de moradia.45 Como é que os grandes proprietários de terras, os banqueiros e os empreendedores capitalistas, que eram os que ocupavam o topo da pirâmide social – expressão da ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 137. 45

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desigualdade –, conseguiram conduzir as enormes populações de camponeses e de pequenos artesãos para estes ambientes de brutal exploração? É preciso começar dizendo que não foi nada fácil. Foi preciso erodir todas as formas de cooperação e de assistência que os pobres possuíam nos períodos anteriores à emergência da Grande Indústria. No caso da Inglaterra, os governos dos Tudors e dos Stuarts possuíam uma rede de proteção aos pobres, contando com diversas leis que os assistiam na miséria e que foram, na primeira metade do século XIX, desmantelados pelos detentores do poder, especialmente grandes proprietários de terra, banqueiros e empreendedores da indústria emergente. É esse processo de desmantelamento que Karl Polanyi descreve em seu magistral livro. Para Polanyi, esse desmantelamento da proteção aos pobres aconteceu por conta de uma ideia que há algum tempo vinha fazendo a cabeça de políticos, cientistas, economistas e filósofos: a de que estava em emergência um novo princípio de sociabilidade auto regulável: o mercado. Nascia aqui uma ideia que hoje parece pulverizada em nossa sociedade em muitos discursos e práticas: a de que o mercado é um tipo de princípio completo e total de regulação social que só funciona a contento se a sociedade permitir que todos os campos da troca social sejam controlados por ele. Até o fim. Somente assim, segundo o que reza esse discurso, seria possível que os benefícios da modernidade se efetivem em todas as suas potencialidades. A rede de proteção à pobreza que os governos paternalistas dos Tudors e dos primeiros Stuarts ainda mantinham foi um dos primeiros grandes alvos do discurso que se auto intitulava de “liberal”. Já vimos no capítulo anterior que este discurso nasceu junto com uma face obscena, sinistra. Lembremos: o discurso liberal-libertário das revoluções nasceu junto com a empresa escravista colonial. De um modo parecido, havia um discurso liberal que justificava a pobreza como sendo um efeito colateral do progresso. Assim, não se trata do resultado fluido, natural ou

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de modo algum espontâneo que os estados nacionais nos princípios da grande indústria tenham deliberadamente lançado multidões na miséria e impedido os esforços de reformadores sociais para tirá-los desta situação. Ao longo do primeiro quartel do século XIX, os liberais entraram em encarniçados conflitos e disputas com o intuito de desmontar toda a estrutura paternalista que ainda dava um suporte qualquer para os pobres, sob a alegação de que esta estrutura levava as pessoas a não desejar mais o “trabalho livre”, assim como o salário que os capitalistas ofereciam em troca deste, o que segundo eles, atrapalhava os negócios e os benefícios que estes traziam para a “sociedade”. Portanto, até 1834 os pobres ainda contavam com alguma proteção contra a total proletarização – contra o jugo do trabalho “livre” nas fábricas e cidades industriais – mas depois do fim das Leis dos Pobres elisabetanas eles só podiam contar com essa “liberdade” da qual todos tentavam lutar com as poucas forças de que dispunham. O conjunto dos efeitos sociais da Revolução Industrial na Inglaterra resultou em uma transformação radical nos modos de vida das pessoas. Mas no que diz respeito à desigualdade, ela apenas se transformou para continuar sendo o que era. Ou seja, a desigualdade social foi tanto combustível quanto consequência da revolução industrial. O historiador inglês Eric Hobsbawn narra muito bem este aspecto da revolução industrial inglesa em sua obra Da Revolução Industrial inglesa ao Imperialismo:

As classes cujas vidas sofreram menor transformação foram também, normalmente, aquelas que se beneficiaram de maneira mais óbvia em termos materiais (e vice-versa), de sua incapacidade de perceber o que estava perturbando os demais, ou de tomar alguma atitude positiva, devia-se não só à sua satisfação material, como também à sua satisfação moral. Ninguém é mais complacente que um homem rico ou coroado de êxito e que também se sente à vontade

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num mundo que parece ter sido construído com vista a pessoas exatamente como ele.46 As profundas transformações sociais da emergência da industrialização, portanto, só pode ser compreendida a partir de seu “gradiente” de classes. Sobre a aristocracia latifundiária, por exemplo, diz-nos este historiador:

Assim, salvo para melhor, a aristocracia e os proprietários de terra britânicos foram pouquíssimo afetados pela industrialização. Suas rendas inflaram com a procura de produtos agrícolas, com a expansão das cidades (em solos de sua propriedade) e com o desenvolvimento de minas, forjas e estradas de ferro (situadas em suas propriedades ou que passavam por elas).47 As classes de profissionais ligadas a esta aristocracia, como advogados e tutores, também não foram perturbados pelos acontecimentos ocasionados pela industrialização. As classes de comerciantes, empreendedores industriais e financistas ascendiam, encontrando poucos obstáculos diante de si. Nas palavras de Hobsbawn, para esta classe “o sucesso não trazia qualquer incerteza desde que fosse bastante grande para guindar um homem às fileiras da classe superior”48. Entretanto, a “massa dos pobres”, essa sim, teve a vida radicalmente modificada pelas novas condições criadas pela mecanização industrial e pela expansão das cidades. Ainda segundo Hobsbawn, as mudanças nas vidas destas pessoas foram de quatro ordens: 1) A mão-de-obra passa a ser formada por HOBSBAWN, Eric. Da Revolução Industrial inglesa ao imperialismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1979, p. 75. 47 HOBSBAWN, Eric. Da Revolução Industrial inglesa ao imperialismo, op. cit., p. 75 48 HOBSBAWN, Eric. Idem, ibidem, p. 77 46

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“proletários” isto é, por pessoas que não possuem nenhuma outra fonte de renda familiar significativa além de seus salários; o servo do período pré-industrial possuía em geral acesso a meios de produção e alguns possuíam propriedades agrícolas de onde extraiam parte de seus meios de vida e bem-estar; 2) Os ritmos de trabalho nas indústrias mecanizadas eram totalmente diferentes dos ritmos de trabalho nas comunidades pré-industriais; o tempo do relógio nas fábricas impactou profundamente a vida das pessoas acostumadas ao tempo do calendário, das estações e dos ritos comunitários; 3) A industrialização significou também uma inegável urbanização. O centro das sociedades industriais passou a ser as cidades que se transformaram profundamente, por consequência. Manchester, por exemplo, foi uma das mais importantes cidades industriais inglesas no início da revolução industrial. Um clérigo testemunhou o seguinte sobre esta cidade: “Não existe uma só cidade no mundo em que a distância entre os ricos e os pobres seja tão grande ou onde seja tão difícil transpor a barreira entre eles”49; 4) Uma economia capitalista prescindia da experiência, da tradição, da sabedoria e da moralidade do passado, rompendo com grande parte destas instâncias da sociedade ao se instalar. Entretanto, esse descompasso entre as transformações das “massas dos pobres” e a placidez com a qual as outras classes encaravam as transformações ocasionadas pela industrialização tinha consequências que fissuravam toda a estrutura social. Com efeito, algumas ideias e sentimentos contrários ao capitalismo ascendente começam a evoluir junto com o desenvolvimento pleno das consequências materiais e simbólicas, ou ainda, econômicas, sociais e culturais do espraiamento do capitalismo. A situação dos trabalhadores fabris e dos 49

HOBSBAWN, Eric. Idem, ibidem, p. 81.

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atingidos pela emergência da economia de mercado geravam reações das mais diversas. Ele gerou, por exemplo, entre alguns trabalhadores, o ímpeto e a ação organizada visando a destruição de maquinário industrial, com o intuito de conter a industrialização nas comunidades onde ela estava se instalando. A mítica identidade coletiva de Ned Ludd é a referência para o que ficou conhecido como ludismo, uma importante fissura causada pelas contradições do capitalismo nascente. Desde o começo, a inserção de grandes e complexas máquinas no processo produtivo ocasionou traumas sociais significativos. Em 1811, alguns tecelões se viram sem empregos ou com remunerações muitíssimo mais baixas logo que as máquinas de tecer foram instaladas em Nottingham. Os operários apresentaram então reclamações aos patrões-proprietários das máquinas que as ignorou completamente. Premidos, os trabalhadores passaram à violência contra as máquinas. A onda ludita se espalhou e já no ano seguinte o parlamento aprovou uma lei tornando o ataque ao maquinário um crime sujeito à pena capital. Ao menos trinta luditas foram enforcados por esse crime entre 18121813; o governo britânico destacou pelo menos doze mil homens para proteger as máquinas dos rebeldes 50. Dois proprietários também foram assassinados durantes estas rebeliões e três rebeldes foram executados por esses homicídios. Em 1817 os movimentos luditas arrefeceram espontaneamente51, muito embora alguns atos de sabotagem levados a cabo nos anos 30 e 40 ainda sejam associados aos luditas originais52. Filmes como Germinal (1993) de Claude Berri – que se baseia em um romance de Émile Zola – e Daens (1992) de Stijn Coninx – que se baseia na biografia romanceada de Louis Paul Bloon – nos ajudam a ver a HORN, Jeff. The path not taken - French industrialization in the Age of Revolution. Cambridge/Londres: The MIT Press, 2006, p. 94. 51 OUTMAN, James L.; OUTMAN, Elisabeth M. The Industrial Revolution - Primary Sources. Farmington Hills: The Gale Group, 2003. 52 JONES, Steven E. Against Technology - From Luddites to Neoluddism. Nova Iorque/Londres: Routledge, 2006. 50

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situação na qual o proletariado afundou nesse período de nudez brutal diante da “livre” iniciativa. Não podemos nos esquecer, em momento algum, que nas colônias ainda grassava o trabalha escravo, que no Brasil, por exemplo, só seria inteiramente abolido em 1888. No mais, a partir de 1834, nascia o rebento mais importante do capitalismo: a mercadoria “força-detrabalho” livre e desimpedida para a exploração.

Se as legislações sociais pré-capitalistas eram punitivas, restritivas e agiam na intersecção da assistência social e do trabalho forçado, o “abandono” dessas tímidas e repressivas medidas de proteção no auge da Revolução Industrial lança os pobres à “servidão da liberdade sem proteção”, no contexto de plena subsunção do trabalho ao capital, provocando o pauperismo como fenômeno mais agudo decorrente da chamada questão social. Foram as “lutas pela jornada normal de trabalho” que provocaram o surgimento de novas regulamentações sociais e do trabalho.53

BEHRING, Elaine Rosseti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social – fundamentos e história. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 51. 53

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As desigualdades e o espectro do comunismo Karl Marx não se tornou tão importante para o pensamento e a política do mundo contemporâneo pelo brilhantismo de suas ideias – muito embora algumas delas, de fato, sejam brilhantes não tendo sido superadas até hoje54. Sua importância se deve mais ao fato de que elas foram uma resposta precisa e abrangente para o enorme e latejante problema da questão social, tal como a vimos no capítulo anterior. Para além das melhores ideias de reformadores sociais, como Robert Owen e Charles Fourier, Marx fundamentou teórico-criticamente um caminho que os trabalhadores organizados poderiam seguir para reconstruir o mundo social degradado pela economia de mercado e a “questão social” que ela secreta. No Manifesto Comunista, ele reiterou que esse caminho era o do comunismo. Marx era jovem mas já influente quando estouraram as revoltas de 1848 na Europa. Era ainda mais influente quando viveu para ver também uma tentativa falhada de derrubada do poder do estado capitalista pelo proletariado, na conhecida Comuna de Paris, de 1871. Já tinha morrido há décadas, contudo, quando uma grande revolução de caráter operário conseguiu derrubar o poder do estado de um grande país, a Rússia czarista, em 1917; décadas mais tarde, um Partido Comunista também tomaria o poder na China, influenciado em grande medida pela experiência russa. Neste capítulo nos perguntamos o seguinte: quais foram as consequências destas duas experiências políticas, sociais e econômicas, do ponto de vista da desigualdade55? A Rússia da década de 10 do século XX era um país

Para uma retomada do pensamento de Marx na contemporaneidade, cf. EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2012. 55 Tal como a definimos no primeiro capítulo deste livro. 54

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economicamente atrasado em relação aos países que já haviam passado pela revolução industrial, sobretudo Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. Contudo, ele crescia a níveis normais para aquele período histórico e poderíamos dizer que seguia um caminho de modernização bastante regular. Ao menos até 1914 quando começa a Primeira Guerra Mundial56. Ainda assim, dois terços da população eram compostos de camponeses, na sua maioria pobres, e além disso, a classe trabalhadora era bem mais pobre do que seus companheiros de classe dos países mais industrializados. Segundo estimativas, a renda per capita da Rússia em 1913 era de 414 dólares. No Reino Unido, chegava a 1,548 dólares e nos Estados Unidos, a 2,063 dólares, apenas o topo da pirâmide social escapava da privação e dos desconfortos da miséria e da pobreza57. Lenin e o partido bolchevique vinham trabalhando há tempos para tornar os textos de Marx sobre o comunismo adaptáveis à realidade russa. Entre os anos de 1901-1903 iniciou-se a formação de uma vanguarda operária que enfrentava constantemente a autoridade do Czar ao ponto de se tornarem a força mais atuante na oposição ao seu regime58. Ao longo de sua militância de décadas, Lenin convenceu o partido bolchevique, liderado e animado por operários e intelectuais, que apesar das lutas ocasionais por direitos sociais, o proletariado deveria ter consciência ativa de que apenas uma transformação qualitativa, profunda, revolucionária, poderia estabelecer uma sociedade igualitária a partir das condições vividas na Rússia. Além disso, apenas a organização das classes trabalhadoras poderia levar adiante tal tarefa, pois apenas as classes trabalhadoras teriam interesse em ver a si Para um retrato comparativo da Rússia czarista e dos países na dianteira da industrialização mundial Cf. NOVE, Alec. An Economic History of URSS. 2ª ed. New York: Penguin Books, 1989. 57 MATTHEWS, Mervyn. Poverty in the Soviet Union. The life-styles of the underprivileged in recent years [1986]. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p.7. 58 CLIFF, Tony. Building the Party. Lenin 1893-1914. Chicago: Haymarket Books, 2002, p. 84. 56

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mesmas em situação de igualdade com todas os demais, ao mesmo tempo que não estão presas à estrutura constitutiva do sistema de exploração e opressão. Nas palavras de Lenin, de um texto de 1905:

... a estrutura econômica e social da Rússia produz mais frutos para aqueles que trabalham menos. Sob o capitalismo isto não pode ser de outro modo. É uma lei do capital, que rege a vida política tanto quanto a vida econômica. O movimento das classes baixas ergue uma força revolucionária; ergue uma massa de pessoas, que, por um lado, é capaz de fazer desmoronar toda a estrutura podre, e por outro, não está ligada a esta estrutura por nenhuma característica especial de sua posição, e a derrubaria de bom grado. E mais, mesmo sabendo que eles não são inteiramente conscientes de suas metas, estas massas são, não obstante, aptas a colocar esta estrutura abaixo, porque sua posição é desesperada, uma vez que a opressão constante as impulsionam a tomar o caminho revolucionário, e elas não têm nada a perder a não ser suas correntes.59 As dificuldades da Rússia Imperial foram aprofundadas com sua entrada na guerra. E o que Lenin escrevera em 1905 só se tornou verdadeiramente realidade em 1914: o colapso da economia e da sociedade russa sob o regime czarista havia feito com que as massas não tivessem mais nada a perder a não ser suas correntes. Ao invés de uma mera troca de governantes, o Partido Bolchevique havia convencido a todos que um regime em transição para o comunismo poderia começar ali, ao contrário do que pensava Marx, em um país economicamente atrasado e ainda por cima dilapidado pela guerra. Em 1917 a Revolução Russa coloca os LENIN. Collected Works. Vol. 8. Moscou: Progress Publishers, 1979, p. 426. (traduzi). 59

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bolcheviques no poder. A realidade porém, foi bem mais difícil do que a imaginação utópica do bolchevismo. Até 1921, a Guerra Civil e as recorrentes falhas na implementação das políticas sociais continuavam tornando realidade a pobreza e a fome para a base da pirâmide social. A produção industrial caía pela metade e a agricultura se reduzia em pelo menos um terço. As políticas de salários mínimos e de seguros sociais se tornavam completamente insignificantes diante da hiperinflação. Se por um lado os bolcheviques foram bem sucedidos em destituir o topo da pirâmide social de seus poderes políticos e econômicos, não conseguia elevar o padrão de vida dos que estavam na base. Foi aí que surgiu a Nova Política Econômica, um “retrocesso” estratégico na implementação das ideologias bolcheviques em prol de pequenos e médios empreendimentos comerciais e industriais privados, além de uma maior tolerância à propriedade rural.60 Após 1921, em meio a profundas dificuldades e conflitos, a economia soviética começa a atingir algum equilíbrio, por meio de uma restauração parcial e de um significativo crescimento. Já em 1927 os níveis pré-guerra de produção econômica já haviam sido atingidos. Com o fim da Nova Política Econômica, há um forte crescimento do número de trabalhadores urbanos e de trabalhadores rurais no país além da quase extinção da iniciativa privada – com exceção de algumas formas de cultivo de terra. Em 1935 Stalin declara que a União Soviética já era plenamente socialista. É difícil saber com precisão quanta desigualdade social de renda, de escolaridade ou as discriminações que as minorias populacionais eventualmente sofriam neste período pois os dados estatísticos, sobretudo sobre estes temas, são bastante escassos até o final dos anos 1970. O regime não permitia ou incentivava a pesquisa pública sobre o assunto. Depois da morte de Stalin, em 1953, sabemos que a 60

MATTHEWS, Mervyn. Poverty in the Soviet Union. op. cit., p. 7-8.

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União Soviética passou por um período de crescimento e pujança econômica sem precedentes e que acompanha uma expressiva melhoria na qualidade de vida geral da população, com forte ênfase em investimentos estatais na indústria pesada. Se por um lado temos pouco acesso a dados quantitativos sobre a desigualdade social dentro da União Soviética, podemos por outro lado listar uma série de políticas públicas de equalização social realizadas no Ocidente, mas que são consequência mais ou menos diretas da Revolução Russa e de sua experiência histórico-social61. Isto porque o estado soviético desafiou o modo como se organizava o estado e a livre iniciativa no Ocidente. Em 1928 se estabeleceu um número máximo de horas em uma jornada de trabalho: 7 horas; pensões por velhice foram garantidas começando aos 50 anos de idade; a escolarização gratuita para filhos de trabalhadores foi garantida na maioria das grandes fábricas controladas pelo estado; o emprego foi também considerado um direito constitucional. Estes direitos sociais, além de muitos outros como estes, significaram um desafio e uma aguda preocupação para os países ocidentais, que temiam que uma onda revolucionária pudesse se espalhar para além das fronteiras da Rússia. Em uma tentativa de diminuir o impacto que a Revolução Bolchevique exerceria sobre a opinião pública e em especial sobre a consciência da classe trabalhadora, os países ocidentais fundaram a Organização Internacional do Trabalho (OIT), esta que foi a primeira organização internacional a tratar de direitos sociais. Temendo o avanço do “espectro do comunismo” – como o chamou Marx –, por intermédio desta instituição internacional normatizando, fiscalizando e orientando as práticas laborais, os países ocidentais visavam melhorar a situação geral de vida dos trabalhadores e, por conseguinte, refrear o ímpeto revolucionário proletário tal qual aquele que Baseio-me em QUIGLEY, John. Soviet Legal Innovation and the Law of Western World. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, 61

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varreu o czarismo. Nos Estados Unidos, o direito constitucional ao emprego calou fundo nas mentes dos indivíduos e nas instituições, sobretudo quando a Grande Depressão surge no horizonte histórico. Aos trabalhadores são concedidos alguns direitos importantes, como o de organização e o de negociação coletiva. Documentos legais como o National Labor Relations Act [Lei Nacional de Relações do Trabalho] davam um tom mais intervencionista do estado nas relações de trabalho. Isto se reforçou ainda mais após a Segunda Guerra, e os direitos dos trabalhadores se tornaram pilares constitucionais a ser protegidos pela intervenção do estado. Em 1946 o Senado norte-americano votou uma lei assegurando como direito do cidadão e dever do estado o pleno emprego, tal qual os soviéticos possuíam há mais de uma década em sua Constituição. Além disso, a segurança no emprego e diversos direitos sociais de bemestar também surgiram no Ocidente com a contribuição significativa da pressão que a mera existência de tais direitos e garantias aos trabalhadores soviéticos ocasionava. Como já dissemos, é difícil encontrar dados precisos sobre a desigualdade de rendimentos na União Soviética, que englobem todo seu território antes de 1967. Segundo o estudo de Michal Alexeev e Clifford Gaddy62, em 1980 o Coeficiente de Gini63, indicador de ALEXEEV, Michael V.; GADDY, Clifford G. Income distribution in the U.S.S.R in the 80’s. Review of Income and Health. Serie 39, nº 1, 1993, p. 29. 63 “O Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini, e publicada no documento "Variabilità e mutabilità" ("Variabilidade e mutabilidade" em italiano), em 1912. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda ou rendimento (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda ou rendimento, e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100). Enquanto o coeficiente de Gini é sobretudo usado para medir a desigualdade de renda ou rendimento, pode ser também usado para mensurar a desigualdade de riqueza. Esse uso requer que ninguém tenha uma riqueza líquida negativa.” (Wikipedia, verbete “Coeficiente de 62

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desigualdade relativa de rendimentos, estava em 0,290 na União Soviética, indicando uma marcante equalização de rendimentos. Para se ter uma noção do significado deste número, poderíamos compará-lo com outros países neste mesmo ano de 1980 conforme a tabela abaixo: País/mundo Mundo Europa Ocidental América do Norte América Central/do Sul Brasil

Coeficiente de Gini em 198064 0,660 0,308 0,407 0,466 0,62065

Elaboração própria

Mais interessante ainda é notar que deste ano para frente, na maioria dos países do mundo, a desigualdade tem aumentado ao invés de diminuir, conforme a tabela abaixo, tirada do estudo de John Serieux e Albert Berry já citado66:

Gini”). Para uma leitura mais aprofundada sobre esta medida Cf. MEDEIROS, Marcelo. Medidas de Desigualdade e Pobreza. Brasília: UnB, 2012, especialmente o capítulo 5. 64 SERIEUX, John; BERRY, Albert. Riding the Elephants: The Evolution of World Economic Growth and Income Distribution at the End of the Twentieth Century (1980-2000). UN/DESA Working Paper nº 27. Disponível em: http://www.un.org/esa/desa/papers/2006/wp27_2006.pdf 65 ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Um balanço social do Brasil (1980-2005). Instituto Nacional de Altos Estudos, Estudos e Pesquisas nº 206, 2007, p. 20, tabela 11. 66 SERIEUX, John; BERRY, Albert. Riding the Elephants: The Evolution of World Economic Growth and Income Distribution at the End of the Twentieth Century (1980-2000), op. cit., p. 28.

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O gráfico nos mostra que o mundo tem aumentado suas desigualdades de rendimentos desde 1980. Apenas com a inclusão de Índia e China, em face de suas enormes populações, é que o cômputo geral da desigualdade pode ser visto como positivo, ou seja, apenas ao incluirmos a diminuição da desigualdade de rendimentos na China e na Índia no cômputo mundial, é que veremos que houve diminuição das desigualdades no mundo desde então. Por outro lado, o gráfico sugere também que o colapso da experiência de socialismo de estado levou os países sob a influência da antiga União Soviética a um brutal aumento das desigualdades. Um massivo empobrecimento e o aumento da desigualdade foi o resultado imediato da abertura aos mercados internacionais ocidentais. Na Rússia, que possuía uma igualdade medindo 0,270 em 1990 no Coeficiente de Gini, viu-se um salto para 0,460 já em 1993. Na Ucrânia, o índice passou de 0,250 em 1992 para 0,410 em 199667. Nos últimos anos, as desigualdades sociais na Rússia, analisadas não apenas pelo Coeficiente de Gini, mas por vários outros indicadores, continua subindo a despeito das diversas políticas públicas empreendidas para cessar seu aumento e a erosão social que lhe é consequência, como mostra em detalhes o estudo de Daria Ukhova 68. Dados de THERBORN, Göran. Killing Fields of Inequality. op. cit. UKHOVA, Daria. After Equality – inequality trends and policy responses in contemporary Russia. Oxfam discussion Papers, 2014. 67 68

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Como dissemos, é a diminuição da desigualdade na China e na Índia que faz a diferença entre o positivo e negativo global, isto é, são estes países que fazem o saldo da desigualdade mundial hoje ainda ser positivo. No que diz respeito à China isto nos remete a outra experiência de revolução social em alguma medida influenciada pela visão de Marx de um comunismo igualitário, para além da estrutura social capitalista. A China sofre um processo de convulsão revolucionária em 1949, sob o comando máximo dos partidários do líder militar Mao Tsé-Tung, que se estabilizou somente em 1953 dando início a um processo de modernização sob o comando do Partido Comunista Chinês. Muitos debates e conflitos se deram nesse momento a respeito de qual caminho de modernização seria possível, viável e desejável em face da realidade sócio-política vivida pelo país. Wladimir Pomar resume bem os dilemas destes anos para a jovem República Popular, mas antiquíssima cultura e sociedade chinesa:

De 1956 a 1976, as tentativas de liquidar as formas de propriedade, implantar as formas sociais e, por meio destas, elevar a capacidade produtiva, chegaram aos extremos. A China sofreu convulsões econômicas, sociais, culturais, ideológicas e políticas, cujos principais eventos foram o Movimento das Cem Flores, em 1957, o Grande Salto Adiante, entre 1958 e 1960, e a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.69 Como estamos acompanhando, muito resumidamente e à distância, os desfechos destes regimes de estado que se inspiravam e se reputavam como socialistas, no que diz respeito à desigualdade de rendimentos, resulta em algo notável. Estudiosos Disponível em: http://goo.gl/jfv5gE 69 POMAR, Wladimir. A Revolução Chinesa. São Paulo: UNESP, 2003, p. 89-90.

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calcularam que em 1978 o Coeficiente de Gini em toda a China era de 0,304; em 1980, de 0,31770. Este era, como vimos, o índice de equidade de rendimentos da Europa ocidental. Os regimes de Estado que se reputavam socialistas sofreram um profundo revés a partir dos anos 80 e colapsaram (a ex-URSS) ou gerenciaram uma abertura aos mercados internacionais em seus territórios (China). As razões para isso podemos encontrar no livro de Robert Kurz, oportunamente intitulado O Colapso da Modernização71. Não seria o caso de retomar o gigantesco debate sobre estes regimes aqui, mas vale a pena relembrar resumidamente que o argumento de Kurz era o de que, por razões própria das formações sociais produtoras de mercadorias – e por conseguinte, de uma Grande Indústria movida a trabalho assalariado e regulação estatal – os regimes socialistas inteiramente centrados no estado eram essencialmente incapazes de emular a dinâmica da concorrência a contento. Desse modo estes regimes terminavam por se tornar necessariamente o “elo mais fraco” das cadeias econômicas globais por não serem capazes de manter o dinamismo que tais formações sociais exigem em seu desenvolvimento maduro. De mais a mais, ainda que não tenha sido uma verdadeira alternativa à sociedade produtora de mercadorias e ao seu estado de tipo liberal ou social, senão apenas uma emulação estática e provisória desta, os regimes de Socialismo de Estado alcançaram inegáveis níveis de equalização social de rendimentos além de influenciar nas lutas internacionais de trabalhadores e de minorias em torno de direitos. Além disso, como o gráfico abaixo nos mostra, tanto o colapso quanto a abertura destes regimes para os mercados “livres” ocidentais levaram a um aumento expressivo na desigualdade social, que permanece crônica em largas porções do mundo, como a América do CHEN, Jiadong; DAI, Dai; PU, Ming; et alii. The trend of the Gini Coefficient of China. BWPI Working Paper 109, 2010, p. 20. 71 KURZ, Robert. O Colapso da Modernização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 70

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Sul e a África.

O gráfico (que representa dados do Banco Mundial, bastante abaixo do estudo que citamos acima sobre a desigualdade na China) mostra ainda ambos os regimes, que estavam no final dos anos 70 e inícios dos anos 80 próximos aos países mais igualitários do mundo, como a Noruega, se afastarem dessa marca, tanto mais abruptamente (Rússia) quanto mais suavemente (China). A China, atualmente, é um dos países emergentes de onde mais surgem novos milionários e, mesmo segundo as estatísticas oficiais do governo, apresenta o alto índice de desigualdade de rendimentos de 0,473 em 201272 e que segue subindo. Se, por um lado, havia razões bastante consistentes e já bem compreendidas para o colapso dos regimes de estado socialistas – ou ainda, dos regimes de propriedade estatal dos meios de produção e comando social – por outro lado, o “espectro da igualdade” tal qual se prometia na concepção marxiana de comunismo e mesmo na realização destes regimes permanece assombrando o mundo. Nos novos movimentos sociais, nas formas alternativas de trabalho e consumo surgidas em espaços erodidos pelas recentes crises do capitalismo algo desse espectro do comunismo não só permanece latejando como fica ainda 72

http://goo.gl/xvAJT6

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mais forte em alguns lugares e momentos. Trata-se daquela esperança à prova de bala, renitente e desabusada de que nossas sociedades possam restaurar uma forma social igualitária, onde todos possam ter de fato as mesmas oportunidades de exercer suas potencialidades tanto individuais como coletivas.

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Desigualdade e bem-estar social A expressão “bem-estar social” é comumente utilizada para designar “uma sociedade, na qual o Estado tomou para si uma ampla responsabilidade pelos problemas sociais e pelo bem-estar social geral da população por intermédio de uma provisão direta de bens e serviços”73. Ou, em outras palavras, trata-se de um “modelo estatal de intervenção na economia de mercado que, ao contrário do modelo liberal que o antecedeu, fortaleceu e expandiu o setor público e implantou e geriu sistemas de proteção social”74. A expressão “Estado social” já vinha sendo usada na Alemanha desde o a década de 70 do século XIX (Sozialstaat) para caracterizar as amplas reformas sociais de viés conservador de Bismarck. Contudo, costuma-se apontar como origem plena e efetiva do Estado de bemestar social as transformações ocorridas em diversos países desenvolvidos, e notadamente, os Estados Unidos, como reação à Grande Depressão iniciada no final dos anos 20 do século passado. Há uma enorme literatura sobre as origens e o desenvolvimento das modalidades de bem-estar social. Para nossos propósitos, precisamos assinalar se esta guinada para os serviços e para a responsabilização do Estado pelas políticas sociais e pelo bem-estar social implicou em equalização das desigualdades sociais. Um dos estudiosos mais importantes e mencionados quando se trata de compreender o significado do bem-estar social é o sociólogo britânico T.H. Marshall. Ele traçou claramente uma relação, ao menos no plano da teoria, entre os novos “direitos sociais” e o que ele chamou de “estrutura de desigualdade social”75. KERBO, Harold.R. Social Stratification and inequality. op. cit., p. 277. 74 PEREIRA, Potyara A.P. Política Social – Temas e questões. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 23. 75 MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 114. 73

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Tomemos os Estados Unidos como exemplo significativo do que representou o bem-estar social para a “estrutura de desigualdade social” daquela sociedade. Em primeiro lugar, não se pode analisar as reformas que levaram os Estados Unidos a propugnar o bem-estar social como objetivo do Estado sem se levar em consideração o crash do sistema financeiro e econômico de 1929. Nunca é demais lembrar o impacto desta crise. De 1929 a 1932 foram 7,7 milhões de empregos perdidos apenas nas áreas urbanas; os investimentos domésticos privados, que atingiram a marca de 16,2 milhões de dólares em 1929 foram parar na marca dos 3,3 milhões em 1934 e só voltaram a atingir o patamar dos 16,2 milhões em 1941, por conta exclusivamente da Segunda Guerra Mundial76. A produção industrial caiu mais que um terço entre 1929 e 1931; alimentos e matérias-primas entraram em queda livre afetando em pouco tempo países de todos os continentes; a produção de automóveis caiu pela metade entre 1929 e 193177. Na hora do desespero, a partir de 1933, aceitou-se gradativamente, na teoria e na prática, uma pesadíssima intervenção do Estado para tentar salvar a destroçada iniciativa privada. Quando o governo americano propôs a agência National Recovery Administration (NRA) que estava investida de poderes para “obrigar a indústria a reorganizar-se, para fixar preços, distribuir quotas de produção, etc.”78 o debate se reacendeu em torno dos limites da intervenção do Estado na economia de mercado. O NRA foi instituído pelo National Industrial Recovery Act [Lei de Recuperação da Indústria Nacional]79, assinado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt em 1933 e tornou-se um dos maiores símbolos do New Deal. Esta curta experiência norte-americana de ROTHERMUND, D. The Global Impact of the Great Depression (1929-1939). New York: Routledge, 1996, p. 51. 77 HOBSBAWN, E. A Era dos Extremos. O Breve Século XX (19141991). 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 95-105. 78 SHONFIELD, A. Os E.U.: a função incerta do Poder Público. In: O Capitalismo Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 451. 79 Para conhecer o texto original desta lei, Cf. http://goo.gl/LmNJ89 76

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controle do setor industrial pelo Estado é bastante significativa. Para começar, o National Industrial Recovery Act ia de encontro às intervenções anteriores como o Sherman Act e o Clayton Act, pois permitia a formação de cartéis e monopólios em certos ramos da indústria, estritamente quando coordenados por esta agência estatal. A situação de frangalhos em que se encontrava a indústria americana com a Grande Depressão tornou a opinião pública, mas também os chefes dos principais empreendimentos industriais, mais inclinados a se engajar nas medidas tomadas pelo NRA para reorganizar a indústria norte-americana. Era consensual, ao menos naquele momento, que a empresa competitiva norteamericana, que precisava tão-somente se livrar de uma tendência patológica para a formação de cartéis, trustes e monopólios, não poderia mais permanecer tal e qual tinha sido até aquele momento. O NRA apenas trazia à luz do dia este problema, levando a experiência da intervenção a chegar a um ponto extremo. Hugh Johnson, o primeiro presidente do NRA, um extremista do corporativismo – e que não escondia de ninguém sua inspiração no fascismo de Mussolini, ao menos no que diz respeito ao seu modo de organizar as indústrias corporativamente –, propôs um desafio no seu último discurso como presidente do NRA, antes de ser substituído por Samuel Willians. Tratava-se de um dilema histórico o que se vivia em meados dos anos 30: “cooperação ou concorrência”80. Em 1935, no julgamento Schechter Poultry Corp. v. United States (Granja Schechter Corp. v. Estados Unidos)81 boa parte do National Industry Recovery Act foi considerado inconstitucional e, em um momento em que já não gozava de quase nenhum apoio dos envolvidos em suas regulações, começou a sofrer diversas derrotas judiciais até 1937. Neste caso citado em particular, os juízes alegaram, ROTHERMUND, D. The Global Impact of the Great Depression (1929-1939), p. 452. 81 Caso em que a Suprema Corte invalidou as regulações da National Industry Recovery Act que incidiam em granjas. Para os documentos do caso Cf. 295 U.S. 495. Disponível em: http://supreme.justia.com/us/295/495/case.html. 80

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dentre outras coisas, que a legislação-base do primeiro New Deal infringia a tripartição de poderes, já que concedia ao Poder Executivo a autoridade para legislar sobre salários e preços etc., o que, segundo estes juízes, era um poder restrito ao Legislativo. A argumentação do tribunal a este respeito tornou-se um precedente judicial: “Condições extraordinárias, tal como as de crise econômica, podem clamar por remédios extraordinários, mas não podem criar ou alargar os poderes constitucionais”82. Além disto, neste caso a Suprema Corte também entendeu que as legislações interventoras de Roosevelt infringiam a cláusula constitucional de comércio (Commerce Clause), que dispunha que o Congresso Nacional poderia regular apenas as trocas comerciais entre os estados, com os índios e com estados estrangeiros, não tendo poderes, por conseguinte, para legislar sobre o comércio intra-estadual e local. Aqui seria preciso lembrar que entre 1897 e 1937, os Tribunais norte-americanos estavam sob o signo daquilo que os juristas chamam de “Era Lochner”. Esta designação foi dada à tendência da Suprema Corte, e de muitos tribunais estaduais, de rechaçarem em seus julgamentos as tentativas do governo de intervir na esfera econômica. Recebeu este nome por conta do caso Lochner v. New York83, no qual o Tribunal de Nova Iorque rechaçou a tentativa governamental de regular as horas semanais dos trabalhadores das padarias. Diz-se que a “Era Lochner” acabou quando, ameaçados pelas tentativas do Governo Roosevelt de reforma do Judiciário, os juízes deram uma reviravolta em suas opiniões ideológicas conservadoras,

“Extraordinary conditions, such as an economic crisis, may call for extraordinary remedies, but they cannot create or enlarge constitutional power”. 295 U.S. 495, s.2. 83 Lochner v. New York se tratava do caso do julgamento na Suprema Corte, em 1905, de uma lei do estado de Nova Iorque que limitava as horas trabalhadas pelos padeiros deste estado a 10 horas diárias e 60 horas semanais. A lei foi considerada inconstitucional por 5 votos contra 4. Cf. 198 U.S. 45, disponível em: http://openjurist.org/198/us/45 . Segundo os juízes ao limitar as horas trabalhadas pelos padeiros de Nova Iorque em 60 horas semanais (!) a lei do estado de Nova Iorque feriria a “liberdade de contrato”. Esta é uma das poucas liberdades das quais os destinatários querem sempre fugir como o diabo foge da cruz, para parafrasear Marx. 82

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que ficavam evidentes nos casos sobre regulação estatal da economia da “Era Lochner”. Esta reviravolta aconteceu no caso West Coast Hotel Co. v. Parrish84. Neste caso, Else Parrish, uma camareira que trabalhava no Hotel Cascadian, na cidade de Wenatchee, Washington, processou o hotel com o fito de receber pela diferença entre o que recebia e o que era estabelecido como salário mínimo de uma trabalhadora pelo Comitê de Bem-estar na Indústria e Supervisão do Trabalho Feminino, que era U$ 14,50. Após ganhar no Supremo Tribunal de Washington, Elsie Parrish foi demandada pelo West Coast Hotel Co., proprietária do Hotel onde a camareira trabalhava. Parrish venceu a apelação. Lê-se na sentença deste caso que:

A privação da liberdade de contrato é proibida pela Constituição sem o devido processo legal, mas se a restrição ou a regulação desta liberdade, se razoável em relação ao assunto e se adotadas para a proteção da comunidade contra os males que ameaçam a saúde, a segurança e o bem-estar das pessoas, ele terá seguido o devido processo legal.85 Ora, esta afirmação da Suprema Corte é precisamente o oposto do que esta mesma Corte havia dito em 1905, ao sustentar, contra os trabalhadores das padarias de Nova Iorque, que as normas de saúde que limitavam a uma certa quantidade máxima as horas por eles trabalhadas, com a alegação de que isto feriria a liberdade de contrato. Ainda mais quando lembramos que as leis estaduais nova-iorquinas em questão protegiam a saúde dos trabalhadores deste setor. Esta “viravolta” da Suprema

300 U.S. 379, Disponível em http://supreme.justia.com/us/300/379/. “Deprivation of liberty to contract is forbidden by the Constitution if without due process of law, but restraint or regulation of this liberty, if reasonable in relation to its subject and if adopted for the protection of the community against evils menacing the health, safety, morals and welfare of the people, is due process. p. 300 U. S. 391.”(traduzi) 84 85

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Corte, sob a pressão de Roosevelt ficou conhecida no meio jurídico e historiográfico norte-americano como “a virada a tempo que salvou nove” (“The switch in time that saved nine”) e teve como seu protagonista o juiz Owen Roberts. Isto porque, em 1 de fevereiro de 1937, Roosevelt anunciou um plano de Reformas do Judiciário, a Court-Reform Bill, que incluía a alteração do número de juízes na Suprema Corte de nove para quinze e realizava outras reformas. Como o julgamento do caso West Coast Hotel Co. v. Parrish só foi publicado em 27 de março, semanas após o anúncio do Plano de Reformas de Roosevelt em cadeia nacional de rádio, o episódio terminou entrando para a história como um recuo da Suprema Corte – em especial do juiz Owen Roberts, cujos votos decidiam a maioria dos casos da “Era Lochner” por 5 a 4 – diante da artilharia de Roosevelt e do seu interesse de aprofundar e desenvolver o programa do New Deal, enormemente atravancado pelas opiniões conservadoras da Suprema Corte. Enfim, após uma batalha interna ao aparelho de estado americano – do executivo contra o judiciário em especial – que levou muitos anos, temos uma virada decisiva no modo de regulação da economia e das relações de trabalho. Não seria preciso muito esforço para demonstrar que a crise capitalista é que lançou uma parte do governo contra a outra, mas somente a perspectiva salvadora da Segunda Guerra pode convencer a mentalidade conservadora que regia a Suprema Corte que um novo modo de acumulação e de assalariamento estava nascendo e, que, nesta nova realidade os trabalhadores teriam uma participação maior na afluência capitalista. É neste contexto que devemos entender a Lei de Seguro Social norte-americana de 1935, uma das bases do bem-estar social naquele país. Como bem percebeu Harold Kerbo, o objetivo do edifício governamental de bem-estar social norte-americano era mais de assistência social do que de diminuição da pobreza e da desigualdade. Apenas nos anos 60 encontraremos uma preocupação consequente

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com a pobreza e a desigualdade naquele país86. Entretanto, o arranjo estrutural que o estado de bem-estar social implicava resultou em significativas transformações nos rendimentos, como este gráfico87 mostra:

O gráfico representa a porcentagem da renda açambarcada por aqueles 10% que estão no topo da pirâmide social em termos de rendimentos nos Estados Unidos. Logo depois do período de emergência do estado de bem-estar social (1929-1940) vemos uma queda abrupta e que se estabiliza até o momento em que ocorre um forte desmonte do bem-estar no Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e o início daquilo que ficou conhecido como “neoliberalismo”88, mostrando claramente que o Estado de Bem-Estar Social em sua plenitude não parece ser inteiramente compatível com uma desigualdade de rendimentos muito profunda. Entretanto, os Estados Unidos é o país onde as políticas de bem-estar social menos influenciam na desigualdade social e no nível de pobreza dentre os países KERBO, Harold. R., Social Stratification and Inequality, op. cit., p. 279. 87 ATKINSON, Anthony B.; PIKETTY, Thomas; SAEZ, Emmanuel. Top Incomes in the long-run of History. Journal of Economic Literature, 49:1, 2011, p. 6. 88 Voltaremos ao tema no capítulo seguinte. 86

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que recepcionaram tais políticas públicas. A tabela abaixo mostra claramente que em outros países foi sentido muito mais o impacto equalizador do bem-estar social. País

Pobreza* (sem transferências de renda) (%)

Pobreza remediada

Redução (%)

(com transferências de renda de bemestar) (%)

Estados Unidos Alemanha França Itália Inglaterra Canadá Austrália Bélgica Dinamarca Países Baixos Espanha Suécia

26.7

19.1

-28.5

22 21.6 18.4 29.2 23.4 23.2 28.8 26.9 22.8

7.6 7.5 6.5 14.6 11.7 12.9 5.5 7.5 6.7

-65.5 -65.3 -64.7 -50 -50 -50 -80.6 -72.1 -70.6

28.2 34.1

10.4 6.7

-63.1 -80.4

* Pobreza concebida como o rendimento menor que 50% da média de renda do país. Dados de 1989-1994. Fonte: KERBO, Harold R. Social Stratification and Inequality, op. cit., p. 255, tabela 9-4. (traduzi)

Assim, o impacto dos sistemas de proteção social que designou-se “bem-estar social” deu-se de modos bastante distintos no gradiente de classes e de renda dos países que o adotaram. O gráfico de dispersão abaixo nos permite ver isso com bastante clareza:

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Fonte: IVERSEN, Torben. Capitalism, Democracy, and Welfare. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 22. Dados de 2003.

O gráfico representa os impostos e transferências de renda (taxes and transfers) proporcionalmente ao Produto Interno Bruto na coordenada horizontal, em função da redistribuição de renda medida pela diminuição no Coeficiente de Gini em face das transferências e tributações, (redistribution) na coordenada vertical. Como resultado, é visível a relação positiva entre ambas as variáveis: na maioria dos casos, os investimentos mais altos representam melhorias na distribuição de renda, investimentos mais baixos implicam em menor distribuição de renda. Pensemos agora no Brasil no contexto da emergência do bem-estar social. A crise e a Depressão que partiram dos Estados Unidos atingiram fortemente a América Latina, ocasionando diversas transformações políticas e sociais. Ela contribuiu fortemente para a queda da República Velha e ocasionou a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, na chamada Revolução de 3089. A ascensão de Vargas “marca o fim de

“O movimento de 1930 não foi a revolução burguesa no Brasil, com o incremento da indústria, como interpretam alguns intelectuais e historiadores, mas foi sem dúvida um momento de inflexão no longo processo de constituição de relações sociais tipicamente capitalistas no Brasil.” BEHRING, Elaine Rosseti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social. op. cit., p. 105. 89

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um ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura produtiva de base urbanoindustrial”90, como é sabido. E isto implicaria, segundo Francisco de Oliveira, em um processo no qual se sucedeu uma “nova correlação de forças sociais, a reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação dos fatores, entre os quais o trabalho ou preço do trabalho”. Foi na virada de 30, diz-nos Sônia Mendonça,

...que se produziu uma primeira ruptura no que diz respeito ao avanço da acumulação capitalista no país, no sentido da implantação de um núcleo básico de indústrias de bens de produção, bem como no da redefinição do papel do Estado em matéria econômica, visando tornar o pólo urbano-industrial o eixo dinâmico da economia.91 Lembramos anteriormente que espécies de disputas a regulação da força de trabalho, em especial as disputas em torno de seus preços e condições de “uso” aconteceram nos Estados Unidos. No Brasil, a legislação trabalhista introduzida por Vargas também pode ser facilmente tida como o centro de suas reformas para a transição da economia para uma de base “urbano-industrial”. Realizada de modo conservador, conciliando os interesses de uma incipiente classe de capitalistas industriais e um Estado mais forte e autoritariamente atuante 92, a legislação trabalhista é um símbolo do desenvolvimento capitalista

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da Razão Dualista – O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 35. 91 MENDONÇA, Sônia R. Estado e Economia do Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 13. 92 “Como se pode perceber, a convergência entre as posições defendidas pela liderança industrial e as formulações dos representantes do pensamento autoritário era patente, em especial no que diz respeito à intervenção estatal na economia e ao nacionalismo” MENDONÇA, Sônia R. Estado e Economia do Brasil, op. cit., p. 21. 90

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brasileiro, desde sempre dependente de ampla institucionalização estatal para suas funções mais elementares. Vimos brevemente que o sentido das transformações jurídico-políticas decorrentes da crise de 1929 nos Estados Unidos foi no sentido de uma radicalização inicial, no primeiro New Deal sendo depois refreados pela Suprema Corte, apoiada certamente por setores mais conservadores. Em seguida as reformas interventoras foram sendo gradativamente realizadas, até 1939 quando o cenário se transforma pela Guerra. No Brasil o sentido foi diferente e, a bem da verdade, o fluxo foi no sentido oposto. Na Constituição de 1934 já aparecia a “função social da propriedade”, além de diversos dispositivos jurídicos que relativizavam a propriedade privada e seus corolários em prol da “questão social”; já se concedia proteção ao trabalhador e aos “interesses econômicos do país”. É o primeiro texto constitucional brasileiro a trazer um título referente a uma “ordem econômica e social”, o primeiro a dispor sobre a obrigatoriedade do Estado em elaborar leis e programas para “direcionar” a economia93. Assemelhava-se, nestas partes, com a Constituição de Weimar, de 191994. Mas a Constituição de 1937 – que se resumia quase que somente em uma abertura para um poder criador de leis por parte do Presidente por intermédio de decretos – era bem mais radical no intervencionismo, claramente inspirada no corporativismo fascista, aquele mesmo que inspirou o “general” Hugh Johnson no início da National Recovery Administration. Senão vejamos: Francisco Campos, um dos idealizadores da Constituição de 1937, justifica desse

FONSECA, J. B. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 75-76. 94 “Apesar desta previsão da função social da propriedade no texto constitucional [de Weimar], Kirkheimer demonstrou que os tribunais alemães entendiam as relações de propriedade nos mesmos moldes do liberalismo clássico do século XIX, protegendo os proprietários contra as determinações estatais, vistas como ‘ingerências indevidas’ do Estado na autonomia individual”. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. São Paulo: Azougue, 2004, p. 43. 93

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modo sua concepção de superação jurídico-política do liberalismo:

O liberalismo político e econômico conduz ao comunismo. O comunismo se funda, precisamente, sobre a generalização à vida econômica dos princípios, das técnicas e dos processos do liberalismo político. (...) Toda a dialética de Marx tem por pressuposto essa verdade: a continuação da anarquia liberal determina, como consequência necessária, a instauração final do comunismo. (...) O corporativismo mata o comunismo como o liberalismo gera o comunismo. O corporativismo, inimigo do comunismo e, por consequência, do liberalismo, é a barreira que o mundo de hoje opõe à inundação moscovita (...) A liberdade na organização corporativa é limitada em superfície e garantida em profundidade. Não é a liberdade do individualismo liberal. É a liberdade da iniciativa individual dentro do quadro da corporação.95 Esta é a quintessência da lógica social fascista: o combate ao comunismo de estado com a suspensão da normalidade liberal sob a justificativa da defesa desta mesma normalidade. Herbert Marcuse, muito cedo captou essa pseudo-crítica do liberalismo e sua potencialidade totalitária96. Apesar deste discurso supostamente antiliberal de um Francisco Campos, o início do artigo 135 deste texto constitucional não deixa dúvidas: “na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional...”. Trata-se de uma estratégia experimentada em todos os cantos do planeta Apud FONSECA, J.B. Direito Econômico, op. cit., p. 77. MARCUSE, H. O Combate ao Liberalismo na Concepção Totalitária de Estado. In: Cultura e Sociedade. Vol. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 95 96

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após o abalo da crise dos anos 20: derrubar os regimes liberais-democráticos para deter preventivamente o avanço do comunismo, que se tornou ainda mais ameaçador durante e depois da crise, sendo que “nos vinte anos de enfraquecimento do liberalismo nem um único regime que pudesse ser chamado de liberal-democrático foi derrubado pela esquerda”97. Além da legislação de proteção ao trabalho, que, segundo Sônia Regina Mendonça, terminou por evitar o conflito direto entre Capital e Trabalho, o Estado passou a atuar também neste período fortemente no papel de investidor, sobretudo nos setores infraestruturais de energia, siderurgia, transporte e outros98. Passou a atuar também em algumas operações de fixação de preços, distribuição de alguns ganhos e perdas entre os estratos e classes capitalistas, em gastos fiscais com interesses direta ou indiretamente produtivos, etc. Tendo estes parâmetros históricos e socioeconômicos em mente, é preciso dizer que não chegou a haver no Brasil um arranjo econômicoinstitucional que merece a designação de estado de bemestar social. Entretanto, no período de 1930 a 1943, quando da emergência do bem-estar social na Europa e nos Estados Unidos vimos no Brasil anos de “introdução da política social”99. Que consequência tem as políticas sociais implementadas a partir daí na estratificação e na desigualdade social brasileiras? HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos, op. cit., p. 116. O mesmo Hobsbawn faz uma conta interessante: em 1920, havia cerca de 35 regimes constitucionais e eleitos no mundo; em 1938 talvez 17 deles, em 1944 algo em torno de 12, conclui então o historiador: “a tendência mundial parecia clara” Idem, Ibidem, p. 115. 98 MENDONÇA, Sônia R. Estado e Economia do Brasil. Op. cit., p. 2531. 99 BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social. Op. cit., p. 106. Para um estudo distinguindo em detalhes “estado de bem-estar social” e “políticas sociais”, cf. PEREIRA, Potyara A.P. Política Social. Op. cit., especialmente o capítulo 1. Embora o distinga profundamente do Welfare State dos países desenvolvidos, Marcelo Medeiros usa, todavia esta expressão para designar as políticas sociais brasileiras. Cf. MEDEIROS, Marcelo. A trajetória do Welfare State no Brasil: papel redistributivo das políticas sociais dos anos 1930 aos anos 1990. IPEA, texto para discussão nº 859, 2001. 97

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Não há estimativas confiáveis sobre a desigualdade social – que permita, por exemplo, extrair um Coeficiente de Gini – no Brasil antes dos anos 1960. Há, entretanto, outros modos, mais indiretos, de se observar as transformações no campo das desigualdades sociais. Em 1960, por exemplo, temos a seguinte configuração de rendimentos no Brasil, altamente desigual: Renda (em salários mínimos) Não Declarada Sem rendimento 0-1 1-2 2-5 5-10 Mais que 10

Porcentagem 1,7 5 58,4 14,1 7,7 2,6 0,5

Elaboração própria com dados de: SINGER, Paul. Dominação e Desigualdade. Estrutura de classes e repartição de renda no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 66. Tabela 18.

Em 1964, como se sabe, o Brasil viveu um regime militar que recrudesceu o caráter conservador de nossa modernização, embora tenha realizado um salto de produtividade econômica. Assim, esta modernização conservadora e autoritária produziu seu próprio naipe de políticas sociais, “conduzida de forma tecnocrática e conservadora, reiterando uma dinâmica singular de expansão dos direitos sociais em meio à restrição dos direitos civis e políticos, modernizando o aparato varguista”100. Na síntese apurada de Marcelo Medeiros:

O modelo de Welfare State dos governos militares perdeu o caráter populista que mantinha desde o período getulista e assumiu duas linhas definidas. A primeira, de caráter compensatório, era constituída de políticas BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social, op. cit. p. 135. 100

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assistencialistas que buscavam minorar os impactos das desigualdades crescentes provocadas pela aceleração do desenvolvimento capitalista. A segunda, de caráter produtivista, formulava políticas sociais visando contribuir com o processo de crescimento econômico. Nesse sentido, foram elaboradas, por exemplo, as políticas de educação, que buscavam atender às demandas por trabalhadores qualificados e aumentar a produtividade da mão-de-obra semi-qualificada. Outros tipos de política, que tinham a função de “modernizar” a vida social dos trabalhadores do núcleo dinâmico da economia (funcionários do Estado, do setor financeiro, trabalhadores da indústria e de setores a ela relacionados), tomando como referência o Welfare State de países desenvolvidos, também foram implementadas conforme uma ótica produtivista: deveriam ser auto-financiadas e, se possível, capazes de gerar excedentes aplicáveis no setor produtivo ou em outras políticas sociais.101 De uma maneira geral as ditas políticas, quer as chamemos de bem-estar social ou de políticas sociais não foram capazes de tirar o Brasil daquilo que Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques e Rosane Mendonça chamaram de “estabilidade inaceitável” e que podemos ver claramente na tabela por eles elaborada e que reproduzimos a seguir102. Vemos aqui uma “estabilidade inaceitável” das desigualdades sociais, representadas como desigualdade de rendimentos, mas que implicam em muitas outras desigualdades em uma sociedade onde todos são inelutavelmente sujeitos de dinheiro 103. MEDEIROS, Marcelo A trajetória do Welfare State no Brasil: papel redistributivo das políticas sociais dos anos 1930 aos anos 1990. op. cit., p. 15. 102 Cf. BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. A estabilidade inaceitável: a desigualdade e a pobreza no Brasil. IPEA, texto para discussão nº 800, 2001, (tabela na p. 16). 103 “Entre outras coisas, o mercado capitalista é um sistema disciplinar. 101

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Destituindo as pessoas dos acessos aos meios de vida exceto via dinheiro e mercados, ele cria a base para a disciplina moderna do trabalho. (...) Tudo isso é uma outra maneira de dizer que o capitalismo envolve não apenas mecanismos especificamente econômicos, mas todo um sistema de relações sociais” McNALLY, David. Global Slump: The economics and Politics of Crisis and Resistance. Oakland: PM Press, 2011, p. 113. (traduzi).

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Desigualdade e a saída neoliberal Comecemos este capítulo fazendo uma análise comparativa do significado do chamado “neoliberalismo” para o Brasil e para os Estados Unidos. A economista brasileira Leda Paulani escreveu sobre uma “mudança histórica” no “regime de acumulação” ocorrida ao longo do último quartel do século XX. A partir de meados dos anos 60 começa a surgir o que ela denominou, retomando o trabalho de François Chesnais, de “regime com dominância da valorização financeira”. Segundo ela:

Depois de 20 anos de crescimento mundial vigoroso produzido pelas políticas de cunho keynesiano, com controle de demanda efetiva, Estado do Bem-Estar Social, reconstrução da Europa e da Ásia e industrialização da América Latina, a reversão cíclica tem lugar e o crescimento desacelera. Esse processo é mais intenso nos países europeus, em razão do término do processo de reconstrução do pós-guerra. As multinacionais americanas espalhadas na Europa optam por não reinvestir a totalidade de seus lucros na produção, pois as perspectivas de ganho já não eram tão boas, mas tampouco enviam o excedente não reinvestido aos Estados Unidos, por conta de uma legislação tributária, à época, considerada muito dura. Esses recursos (eurodólares) começam então a “empoçar” na city londrina, o espaço off shore, também conhecido como euromarket, criado no início dos anos 1950104.

A maior parte da economia mundial entra em PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados 23 (66), 2009, p. 32. 104

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desaceleração após duas crises decorrentes de choques de petróleo (1973 e 1979) causados pelo embargo da OPEP durante a Guerra de Yom Kippur e pela Revolução Iraniana, respectivamente. Assim, o “empoçamento” de que fala Paulani se torna ainda maior nos anos seguintes. Deste modo: “é toda essa massa de riqueza à busca de valorização fora do circuito de produção que está na base da grita geral por desregulamentação e abertura financeira de mercados. E que vai ter em Thatcher e Reagan seus implementadores”105. Esta é a explicação mais consistente da implosão das leis que controlavam os movimentos da moeda e do crédito nos Estado Unidos, como a Lei GlassSteagall106. O indicador que levantamos a seguir permitenos ver o processo maior do qual o neoliberalismo, como teoria e como prática, foi partícipe e ajuda-nos a entender melhor o processo de desregulamentação financeira e bancária.

PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. op. cit. p. 32. Neste ponto é preciso reafirmar, como o fez Rubens Sawaya, que a desregulamentação ocorre por pressão dos capitais individuais que não encontram um nível aceitável de rentabilidade no processo de acumulação “real”. Segundo ele “... é difícil separar a responsabilidade da desregulamentação sobre a crise da queda da rentabilidade do capital produtivo internacionalizado, elemento que o teria levado a fazer pressão sobre a desregulamentação. Esses são processos simultâneos que se autoalimentam” SAWAYA, R. R. Crise: um problema conjuntural ou da lógica da acumulação mundial? Estudos Avançados 23 (66), 2009, p. 56. Este mesmo ponto aparece ainda na análise de Jorge Grespan Cf. GRESPAN, Jorge. A desmedida do capital. Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 13, 2008, p. 15. 106 “O catalisador final da Lei Glass-Steagall foi a proposta de fusão entre o Travellers Group e o Citicorp. A combinação, que reuniu banco comercial, seguro e lançamento de títulos sob o mesmo teto, levou a uma tomada de posição para resolver uma questão urgente: o novo gigante financeiro contrariava as leis em vigor. Após intenso lobby, o Congresso revogou o que restava da Lei Glass-Steagall no fim de 1999 (...)” ROUBINI, Nouriel. A Economia das Crise. Tradução: Carlos Araújo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010, p. 77. 105

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O gráfico mostra de modo cristalino o que diversos autores chamam de financeirização. Mostra, simultaneamente, o progressivo descolamento dos lucros da indústria dos lucros totais e a ascensão dos lucros financeiros nesta lacuna. Já o Brasil, segundo a mesma análise de Paulani, está presente na história do regime global de acumulação com dominância de valorização financeira desde seu início. No campo da economia do trabalho, a passagem dos 80 aos 90 foi grandemente significativa para os países que tomamos aqui como exemplo em nossa análise. Nos Estados Unidos, já no final dos anos 70 há um deslocamento nas práticas monetárias que vinham sendo aplicadas até então e que tinham também repercussões importantes no campo do trabalho e do emprego 107. E com a vitória de Ronald Reagan em 1980, as medidas de austeridade econômica visando combater a estagflação108 107

“Em outubro de 1979 Paul Volcker, presidente do Federal Reserv norte-americano no governo do presidente Carter, designou uma mudança draconiana na política monetária norte-americana. O compromisso de longo-prazo do estado liberal democrático americano com os princípios do New Deal, que significaram, de modo geral, uma política monetária e fiscal keynesiana com pleno emprego como objetivo chave, foi abandonado em favor de uma política designada para dominar a inflação não importa que consequências isso possa ter para o emprego” HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. New York: Oxford University Press, 2007, p. 77 (traduzi). É evidente neste caso, que Suzane de Brunhoff estava certa ao designar a expressão “política monetária” como ideológica por si mesma, independente de qual seja ela. 108 Estagflação é uma “situação na economia de um país na qual a estagnação ou o declínio do nível de produção e emprego se combinam com uma inflação acelerada. O fenômeno contraria a teoria clássica

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à custa das garantias e direitos trabalhistas se aprofundam. Um fato lembrado constantemente ao se falar nos combates que este governo travou contra os trabalhadores é a brutal demissão de mais de doze mil controladores de tráfego aéreo em greve em 1981. Sua investida para controlar o NLRA, o Conselho Nacional de Relações de Trabalho, também é apontada como sinal de seu interesse em combater avanços das organizações sindicais109. No Brasil, os anos 80 foram de intensos processos de luta para a construção de direitos e garantias ao trabalho assalariado110, ao contrário dos Estados Unidos. O “atabalhoado” processo de abertura econômica que, segundo a equipe do governo de Collor de Melo, exigia flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho, só veio em 1989111. Como bem lembra Alysson Mascaro, a Constituição de 1988, que formalizava uma gama de direitos e garantias ao trabalho assalariado para além da antiga e assediada Consolidação das Leis do

segundo a qual a inflação tenderia a declinar com o aumento do desemprego” SANDRONI, P. Dicionário de Economia do Século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 313-313. 109 WESTERN, B.; FARBER, H. S. Ronald Reagan and the Politics of Declining Union Organization. British Journal of Industrial Relations, nº 40, 2002. 110 ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho - Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 135. 111 O adjetivo vem de Márcia da Silva Costa, segundo ela: “A abertura econômica, iniciada de forma atabalhoada com a queda abrupta das tarifas de importação para uma grande diversidade de produtos industriais, trouxe consigo o incremento do discurso da competitividade (agora em níveis internacionais), precipitando a entrada da fechada economia brasileira na circulação da rede global. Isso fez com que, forçosamente, fossem expandidos os processos de reestruturação produtiva: fechamento de fábricas, renovação tecnológica, terceirização, subcontratação, reorganização dos processos produtivos, enxugamento de quadros, entre outros, traduziram os ajustes. Em todos os casos os esforços se concentrariam primordialmente na racionalização de custos, com destaque para os custos do trabalho. Tais processos de reestruturação aconteceram concomitantemente a uma conjuntura recessiva, que se aprofundava, e a uma avalanche de medidas liberais concretizadas nos programas de privatização e no abandono das políticas públicas voltadas para a expansão da demanda, com acento no controle da moeda e da inflação, via elevação da taxa de juros, e no avanço de projetos de regulamentação econômica e flexibilização institucional do mercado de trabalho”.

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Trabalho112, foi como um “canto de cisne”, pois só aconteceu quando “o modelo econômico desenvolvimentista estava em vias de ser trocado por um modelo neoliberal”113. Ou, nas palavras de outro autor, produziu-se no campo dos direitos trabalhistas, ao longo dos anos 90 uma “revolução silenciosa do padrão de regulação”114. E aqui outra questão se coloca: quais foram as verdadeiras razões para que estes países conduzissem a desmontagem de alguns dos direitos e garantias trabalhistas estabelecidos em suas legislações e práticas institucionais, um no começo e outro no final dos anos 80? Em primeiro lugar é preciso sublinhar uma advertência de Anselm Jappe. Para ele é evidente que as medidas de tipo neoliberal foram planejadas e cumpriram objetivos bastante definidos, mas “essa estratégia só foi bem sucedida por ter sido capaz de extrair as consequências do processo de extinção da fase fordista“O coroamento dessas lutas veio com a Constituição de 1988, com a legalização de algumas conquistas centrais, de há muito reivindicadas e mesmo de certa forma já em prática, tanto no âmbito da representação de interesses – direito de greve, liberdade para a criação de sindicatos sem a tutela estatal, restauração do poder de negociar diretamente com os patrões, institucionalização dos delegados de base, entre outros –, como no âmbito da ampliação de direitos sociais e trabalhistas, redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas, seguro desemprego, licença gestante de 120 dias, licença paternidade” COSTA, Márcia da S. O Sistema de Relações de Trabalho no Brasil: alguns traços históricos e sua precarização atual. Revista Brasileira de Ciências Sociais 20, n. 59, 2005, p. 118. 113 Leiamos a argumentação de Mascaro: “Os tempos da nova Constituição foram, certamente, os de maior tensão, e, ao mesmo tempo, de maior ganho social em toda a história jurídica do Brasil. (...) No entanto, mesmo esse ambíguo processo formal, meramente normativo, não logrou vingar seus postulados mínimos. Quando a hora do interesse social chegou, o Brasil mudou o seu padrão econômico e, em vez de ofertar então as migalhas agora juridicamente previstas, abandonou definitivamente o modelo intervencionista, cuja parte de mínima correção de desigualdades sociais teria início. (...) A década de 1980 representou um tempo de descompasso entre as aspirações político-jurídicas e as aspirações econômicas do capitalismo brasileiro” MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.191. 114 DEDECCA, Claudio S.. Anos 90: a estabilidade com desigualdade. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15.a Região. 2001. Disponível em: http://goo.gl/OeRScN 112

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keynesiana, o qual aliás já havia começado”115. Ou seja, as “máscaras de caráter” – para usar uma expressão de Marx – que compunham a frente neoliberal, foram os que melhor realizavam os ditames da “subjetividade automática do valor” e, consequentemente, do capital, daí o sucesso na consecução de suas medidas, sendo que “sucesso” aqui nada tem a ver com bem-estar social – mas na construção das condições de possibilidade de novos ciclos de valorização do valor116. Com efeito, as razões para a intervenção na economia do trabalho assalariado nos países analisados entre as décadas de 80 e 90 estão entroncadas nas mesmas circunstâncias que viram nascer as intervenções no campo da moeda, do crédito e das finanças no mesmo período: a saber, na emergência da crise do padrão de acumulação que erode progressivamente o fordismo-keynesianismo. No pacote de mudanças trazidas pelos líderes políticos alinhados com o Consenso de Washington seria preciso “perder direitos para manter empregos”117 no contexto de uma nova crise advinda da internacionalização quase que forçada das economias nacionais. Os indicadores que analisamos mostram que as medidas de desmontagem de direitos e garantias trabalhistas tiveram efeitos – ou, ao menos, se tornaram parte de processos – distintos no Brasil e nos Estados JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria – Para uma Nova Crítica do Valor. Lisboa: Antígona, 2006, p. 267, nota 2. 116 Importante anotar, portanto, o seguinte: “A ‘vontade política’ mais não fez do que dar execução às leis que regem a derradeira fase do capitalismo, numa circunstância em que se esgotou já a sua vida natural e procura desesperadamente manter uma aparência de produção de valor. A mundialização neoliberal não é um retrocesso contra o qual fosse necessário defender as aquisições da democracia social. A mundialização é antes o estádio que se segue logicamente ao Estado-providência. Não há abuso no facto de os neoliberais se apresentarem a si mesmos como os representantes do ‘progresso’ e das ‘reformas’: eles constituem a melhor expressão do que são o progresso e as reformas na sociedade capitalista” JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria, op. cit., p. 267. 117 “Nesses quase dez anos de doutrinação ideológica pela flexibilização da legislação social, o discurso fundamentador, mantendo sempre o mesmo objetivo, tem oscilado apenas quanto às desculpas, suprarelacionadas, enfatizando sempre a diminuição do desemprego” MACALOZ, S. M. Globalização e Flexibilização. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, nº 18, 1997, p. 75. 115

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Unidos. No que diz respeito ao emprego, em primeiro lugar, nos Estados Unidos estas medidas participaram – sem considerar por agora se elas foram causa ou efeito – de uma queda na taxa de desemprego. Quando Reagan assumiu, o desemprego estava em 7,5%. Apesar de este índice subir nos dois anos iniciais do primeiro mandato e chegar a 10,8% em 1982, começou a cair a partir daí, chegando a 5,4% em 1989 quando ele entregou a presidência após seu segundo mandato 118. Já no Brasil, neste quesito, os resultados foram catastróficos. A partir de 1986, o índice até então relativamente baixo de desemprego (2,6%) já começava a subir. Quando Collor de Melo assumiu o índice estava em 3% e quando foi deposto em 1992 já estava em 6,2% e subindo. No último ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso 119, em 2002, o índice de desemprego já estava em 9,2%120. O indicador de Produto Interno Bruto pode ser melhor compreendido visualmente no gráfico a seguir (em trilhões de dólares).

Dados do US Bureau of Statistics de 2012. Disponível em: http://goo.gl/iMJ0DD 119 Para uma análise detida das medidas do governo Fernando Henrique Cardoso no campo da economia do trabalho Cf. KREIN, José Darin. A reforma trabalhista de FHC: análise de sua efetividade, 2004. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/18663 . 120 “A experiência internacional demonstra que a simples redução de direitos trabalhistas e a ampliação de formas flexíveis de contratação em nada contribuem para reduzir o número de desempregados. Um exemplo é o caso espanhol: não obstante possuir o maior número de tipos de contratos flexíveis de trabalho e o menor custo de mão-de-obra da Europa, a Espanha não conseguiu se livrar da maior taxa de desemprego dentre os países da CCEE” SIQUEIRA NETO, José. Direito do Trabalho e Flexibilização no Brasil. São Paulo em Perspectiva, 11 (1), 1997, p. 40. 118

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Há um aumento visível do PIB após o Plano Real que recua depois, e no geral, não há significativo crescimento econômico, diferente do que acontece nos Estados Unidos. O único indicador que talvez mostre um avanço tanto na economia brasileira quanto na norteamericana é o da inflação. Quando Reagan assumiu, ela estava na marca de 9,37% a.a., ao final do segundo mandato, ela já tinha caído para 3,76%. Quando Collor de Melo assume a presidência no Brasil, a inflação batia 1.209,12% a.a. No ano do Plano Real, 1994 – o plano de estabilização monetária que seria a vitrine do futuro presidente, Fernando Henrique Cardoso, então Ministro da Fazenda – a inflação chegou na marca de 2.252,7%. Somente após o Plano Real, entre 1997 e 2002, os últimos anos dos mandatos de Cardoso, que a média da inflação se manteve mais baixa, em torno de 7% a.a.121 Estes indicadores levam a outra questão: por que as intervenções ditas neoliberais tiveram resultados tão distintos no Brasil e nos Estados Unidos? 122 Dados do Banco Mundial de 2012. Os resultados brasileiros das medidas de intervenção neoliberais se repetiram em toda a América Latina: “Após mais de uma década dessa experiência, os resultados essenciais, com nuances e detalhes secundários, são os mesmos verificados nos demais países do Continente, quais sejam: estabilidade relativa dos preços e baixíssimo crescimento econômico, acompanhados pelo aumento das dívidas externa e interna; a desnacionalização do aparato produtivo, com transferência de renda do setor público para a setor privado e da órbita produtiva para a órbita financeira; a elevação das taxas de desemprego e a redução dos 121 122

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Fundamentalmente, a resposta se encontra na nova posição que o Brasil ocupa neste contexto, marcada por um tipo bastante diferente de dependência se comparada com aquele da era desenvolvimentista. Esta nova forma de dependência é tão distinta que, ao analisá-la, Leda Paulani prefere chamá-la por outro nome, de servidão123. Como plataforma de ganhos rentistas, o Brasil entrou em um período de intensa desindustrialização124, com todas as consequências que isto acarreta. O papel de servidão financeira – termo de Paulani – que foi, e é, encenado pelo Brasil, implicou no estranho paradoxo que consistiu na adoção de um conjunto de medidas que tiveram resultados distintos daqueles obtidos nos países que as criaram e que passaram adiante a receita. O mais importante a ser observado, de nosso ponto de vista, é que as contradições internas dos sistemas produtores de mercadorias foram as maiores responsáveis pela ascensão do neoliberalismo como transformação político-jurídica que prometia uma saída para as crises simultânea ocorridas nos anos 70. E, de fato, o neoliberalismo foi uma fuga para a frente, uma saída125. Mas como sói acontecer nas sociedades produtoras de mercadorias, a saída para uma crise de acumulação já desenha e gesta outra ainda maior. Nossa questão principal já pode ser diretamente respondida nesta altura de nossa argumentação. Qual é o resultado do neoliberalismo em termos de igualdade e rendimentos do trabalho. Em suma, aprofundamento dramático da dependência e da vulnerabilidade externa do país, a ampliação da fragilidade financeira do setor público, a precarização do mercado de trabalho e a manutenção ou deterioração das condições sociais – pobreza, criminalidade, violência e desigualdade de renda e de riqueza” FILGUEIRAS, L. Neoliberalismo e Crise na América Latina. Disponível em: http://goo.gl/igKZeb. (s.d.), (Biblioteca Virtual CLACSO). s.d. 123 PAULANI, Leda. Brasil Delivery. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 91. 124 Sobre a desindustrialização no Brasil Cf. CANO, Wilson. A desindustrialização no Brasil. Texto para Discussão no IE/UNICAMP, n. 200, 2012. Disponível em http://goo.gl/rFDvWl 125 Mesmo em uma economista lúcida e crítica, como Leda Paulani, parece haver sempre um pressuposto implícito de que haveria uma saída “soberana” e que um “plano integrado de desenvolvido” poderia ter sido uma alternativa à destruição social do neoliberalismo. O debate sobre estas supostas alternativas, contudo, foge muito dos propósitos deste livro.

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desigualdade social? Um estudo de Laura Tavares Soares afirma que durante os anos nos quais tanto as autoridades políticas quanto ideólogos defenderam e praticaram a necessidade de um “ajuste” de tipo neoliberal, vivenciou-se um retrocesso na distribuição de renda na América Latina. Em 1990 a distribuição de renda na América Latina estava maior do que em 1970:

O fenômeno indicador da maior desigualdade na distribuição de renda na maioria dos países da região foi a acentuada disparidade entre o rendimento dos 40% mais pobres – que não chega a atingir a metade da renda média nacional – e o rendimento dos 10% mais ricos – que atinge mais de quatro vezes essa média. Em seis dos oito países examinados, essa diferença aumentou no início dos anos 90: a renda dos 10% mais ricos supera em cerca de dez vezes a dos 40% mais pobres.126 Aumento do número de pobres e de extremamente pobres, desemprego, discriminações de gênero e de raça, violência urbana, e o desmonte indiscriminado de infraestruturas públicas e da assistência social foram algumas das consequências funestas das contrarreformas neoliberais dos anos 90 na América Latina.

O indicador mais assustador, no entanto, é o percentual de domicílios cuja renda é menor que a renda média (entendida esta como a renda mensal per capita média dos domicílios dividida pelo valor da linha de pobreza per capita): todos os países selecionados possuem mais de 70% dos seus domicílios nessa situação! O Brasil e a SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009, p. 49. 126

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Colômbia assumem mais uma vez a liderança, com 76% (!) sendo que o limite inferior, de novo com o Uruguai, não é muito animador: 67% dos domicílios com uma renda domiciliar per capita que mal deve alcançar à subsistência.127 Tamanhos foram os custos sociais do “ajuste” neoliberal que estes provocaram uma crise de legitimação nas economias, e consequentemente, nos governos que os coordenavam no sentido neoliberal. Na América Latina, ao menos, algumas políticas de ajuste neoliberal refluíram, ao menos temporariamente. As consequências deste refluxo para o nível da desigualdade social é o que veremos no próximo capítulo.

SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal, op. cit., p. 54. 127

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América Latina, século XXI: um passo adiante? Vamos inicialmente aos fatos brutos. Os dados trazidos pelo estudo da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e corroborados por diversos autores indicam uma diminuição expressiva na desigualdade social de renda na América Latina entre 2002 e 2010. Podemos ver os dados que justificam esta conclusão na tabela abaixo reproduzida:

Extraída de: GONÇALVES, Reinaldo. Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa. IN SALVADOR, Evilasio; BEHRING, Elaine, et alii (orgs.). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012, p. 16.

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Em primeiro lugar, é preciso reconhecer a tendência clara de diminuição das desigualdades de renda na América Latina nesse período; em seguida seria preciso entender quais foram suas causas determinantes. Parece que os dados quantitativos deixam poucas dúvidas a respeito da primeira afirmação, entretanto, há ainda diversos debates em torno da segunda. Tomemos o exemplo do Brasil para situar melhor a discussão. Alguns autores defendem que os processos econômico-políticos dos anos 2000-2002 lograram instaurar um “novo desenvolvimento capitalista” que estes chamaram de “neodesenvolvimentismo”128. Se por um lado algumas teses destes autores são pertinentes quando observam as novas forças políticas e novas facetas do antagonismo entre classes, frações de classe e grupos sócio-políticos neste período, por outro lado, a ideia de que houve uma ruptura efetiva de ordem socioeconômica neste período não parece justificar-se. Conforme observaram outros autores, a razão para o recuo nos índices de desigualdade observados no Brasil entre 2002-2010 é, principalmente, de duas fontes determinantes: o aumento do gasto público com políticas sociais e o aumento real do salário mínimo129. Assim, “parece inegável que tais políticas possuem muito mais o caráter de estratégias para minorar o impacto da crise, que provocar verdadeiramente uma mudança no “modelo de desenvolvimento social”130. Cf. por exemplo ALVES, Giovanni. O mal-estar no neodesenvolvimentismo. 27/11/2014. Disponível em: http://goo.gl/LNC7nv; e BOITO Jr., Armando. As bases políticas do neodesenvolvimentismo. Fórum Econômico da GV/Paper, 2012. Disponível em http://goo.gl/afGL2E. Alguns falam ainda em “pósneoliberalismo”. 129 “...sem mudanças estruturais, as trajetórias de redução da desigualdade da renda na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, seguem a ‘linha de menor resistência’, visto que resultam, em grande medida, do aumento do gasto público social e da política de salário-mínimo” GONÇALVES, Reinaldo. Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa. IN SALVADOR, Evilasio; BEHRING, Elaine (orgs.). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012, p. 22. 130 BOSCHETTI, Ivanete. América Latina, Política Social e Pobreza: “novo” modelo de desenvolvimento? IN SALVADOR, Evilasio; BEHRING, Elaine (orgs.). Financeirização, fundo público e política 128

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Os fatos parecem justificar muito mais a segunda posição, a de que maiores gastos em políticas sociais e o aumento do real do salário mínimo foram os determinantes para a diminuição da desigualdade e que, de resto, linhas de continuidade muito fortes ligam os governos do Partido dos Trabalhadores e as políticas neoliberais das duas décadas anteriores131. No nosso entendimento são as políticas sociais implementadas pelo Partido dos Trabalhadores os objetos de estudo mais importantes para se explicar o “passo adiante” na diminuição da desigualdade que vemos nos anos 2000. Estudos recentes mostram que a focalização é uma característica marcante das políticas sociais de transferência de renda implementadas nos governos LulaDilma132. Uma das provas mais cabais desse entendimento é que em todos os doze países da região que apresentaram diminuição das desigualdades encontramos políticas de transferência de renda focalizadas133. Entretanto, alguns sociólogos já acentuaram repetidamente que as políticas sociais, bem como o combate à desigualdade exclusivamente focado na pobreza social. São Paulo: Cortez, 2012, p. 37. 131 Em, linhas gerais, estamos de acordo com a avaliação de Sampaio Jr., para quem “existe, portanto, uma incongruência absoluta entre o que o neodesenvolvimentismo pensa ser – uma alternativa qualitativa de desenvolvimento capaz de resolver os problemas renitentes da pobreza e da dependência externa – e o que é de fato: apenas uma nova versão da surrada teoria do crescimento e da modernização acelerada como solução para os problemas do Brasil. Nada mais do que isso.” SAMPAIO Jr., Plínio de Arruda. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa. Serviço Social & Sociedade, nº 112, São Paulo, 2012, p. 685. 132 “Estudos avaliativos sobre experiências de Renda Mínima/Bolsa Escola, no Brasil, ressaltam que, via de regra, esses programas têm conseguido um nível de focalização superior ao que historicamente, tem ocorrido com os programas sociais brasileiros. (...) Estudos mais recentes sobre o Bolsa Família evidenciam elevado poder de focalização desse Programa”. SILVA e SILVA; YAZBEK, Maria Carmelita; GIOVANNI, Geraldo di. A Política Social Brasileira no Século XXI. A prevalência dos programas de transferência de renda. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2012, p. 214. 133 GONÇALVES, Reinaldo. Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa. Op. cit., p. 23, que mostra nominalmente quais são cada um destes programas nos 12 países latinoamericanos estudados.

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possuem limites intransponíveis. Antonio Cattani, por exemplo, defende que as políticas sociais em particular e o combate à desigualdade em geral focalizados na pobreza levaram a alguns “resultados pífios” nos países desenvolvidos. Ele argumenta ainda, com muita propriedade, em nosso entendimento, que é impossível uma diminuição contínua da desigualdade focando tãosomente na pobreza. Segundo ele:

A estrutura social precisa ser considerada em sua totalidade. Classes, grupos, segmentos ou qualquer outro recorte para classificar a população necessitam ser entendidos nas suas dimensões relacionais. Classes e indivíduos detentores de diferentes recursos e situados em posições produtivas distintas não são autoexplicativos e tampouco autorreferentes. Eles compõem uma inconsútil rede de relações sociais que envolvem dominação, subserviência ou resistência, que perpassa de alto a baixo a estrutura social econômica. Em termos sintéticos, não existe riqueza que não seja social, que não tenha sido extraída e produzida no contexto de relações de produção determinadas.134 A recusa dos governos Lula-Dilma de envolver as altas fortunas em uma estrutura tributária progressiva representa um sério limite para a tendência a queda da desigualdade social no Brasil135, pois um contexto de crise capitalista sistêmica limitará o orçamento do Estado, levando à diminuição de gastos públicos com políticas sociais, um dos fundamentos da queda da desigualdade, CATTANI, Antonio. Apresentação. Desigualdades: construindo novas perspectivas analíticas. ___________ (org.) Riqueza e Desigualdade na América Latina. Porto Alegre: Zoug, 2010, p. 8. 135 Ver por exemplo, o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas em BURKHARDT, Fabiano. Tributação e reprodução da riqueza no Brasil: o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas. IN CATTANI, Antonio (org.) Riqueza e Desigualdade na América Latina. Porto Alegre: Zoug, 2010. 134

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como vimos. Não por acaso, o início do segundo governo Dilma foi marcado por pesados cortes em previdência e assistência social136. Mas quão importante foi essa diminuição das desigualdades de renda no Brasil no século XXI? Uma interessante análise comparativa do economista brasileiro Sergei Soares mostra que o ritmo de queda das desigualdades de renda entre 2001-2006 é bastante acelerado em comparação com as quedas deste tipo aferidas em países desenvolvidos (0,7 pontos de variação x100 ao ano), conforme a tabela abaixo, que reproduzimos.

Fonte: SOARES, Sergei. O ritmo na queda da desigualdade no Brasil é aceitável? Revista de Economia Política. Vol 30, nº 3 (119), 2010, p. 372, tabela 1.

Uma atualização dos dados de Soares mostraria que o ritmo médio de crescimento anual diminuiu um pouco com o tempo. Hoje o período de 2001-2013 seria de 0,6 Gini/Ano (também x100), calculado de acordo com os dados do IBGE, divulgados em 2014 e apresentados graficamente na figura adiante:

PASSARINHO, Nathalia. Governo tornará mais rigoroso acesso a benefícios previdenciários. G1. 30/12/2014. Disponível em http://goo.gl/P1FQT3. 136

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Segundo pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) em análise feita há três anos, o ritmo de queda da desigualdade no Brasil entre 2002-2012 foi de cerca de 1,09% em média ao ano137. Entretanto, embora muito expressiva, a queda da desigualdade de renda no Brasil precisaria continuar em um ritmo acelerado por décadas antes que o país atingisse os patamares de certas nações desenvolvidas, e, para tanto, as circunstâncias socioeconômicas internacionais precisariam ser ao menos tão favoráveis quanto no período referido. Além disso, os pilares da queda das desigualdades nas duas décadas passadas não serão necessariamente favoráveis do ponto atual em diante. Se tal diminuição das desigualdades é tão expressiva assim, qual é a maior problema para a continuação desta tendência de queda, que como concluiu a CEPAL, é ainda “incipiente”? Antes de qualquer coisa, seria preciso reconhecer que as políticas sociais focalizadas e os aumentos reais no salário mínimo dependem dos resultados positivos no campo econômico, o que se torna mais e mais difícil com NERI, Marcelo; SOUZA, Pedro Ferreira de; VAZ, Fábio. Pobreza e desigualdade: duas décadas de superação. Primeiras análises IPEA da PNAD 2012. Apresentação disponível em http://goo.gl/q3Sx90 137

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a permanência da crise capitalista. Em consequência disso, há que se levar em séria consideração a perda da autonomia do Estado em face das economias capitalistas em crise, tal como Robert Kurz anteviu, ainda nos anos 90. Sendo a modernização capitalista em geral, como já vimos138, essencialmente dinâmica e causadora de constantes convulsões na reprodução social, Por isso, também o problema social do desemprego pode ser mais ou menos regulado, em última instância, somente através de intervenções do Estado. Assim como o processo de “juridificação”, os subsequentes processos sociais de modernização acarretam atividades adicionais do Estado e, com isso, uma demanda financeira crescente por parte do Estado.139 O que Kurz afirma sobre o desemprego pode servir perfeitamente para o emprego precário com renda insuficiente, uma vez que o Brasil hoje tem um baixo índice de desemprego, mas uma grande massa de subempregados e trabalhadores informais. Entretanto, o problema é que, de um lado, temos uma demanda crescente por gastos públicos com agregados de infraestrutura, políticas sociais de transferência de renda, juridificação de processos sociais, etc. e por outro lado, dificuldades em encontrar as fontes de recursos para estas crescentes demandas. O Estado é, portanto, mais demandado ao mesmo tempo que é desmontado como instância autônoma orçamentariamente. Assim conclui Kurz após longa e pertinente reflexão:

Em outras palavras: pela primeira vez na História, a velocidade da “racionalização No capítulo As desigualdades às portas da modernidade neste livro. KURZ, Robert. A falta de autonomia do Estado e os limites da política. IN Os últimos combates. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 97-98. 138 139

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eliminadora” de trabalho supera a expansão dos mercados. A produtividade aumenta com rapidez cada vez maior, ao passo que a expansão do modo de produção, considerada na sua totalidade, chegou ao fim. Por isso, a esperança por um novo surto de acumulação é ingênua. A partir de agora, fica claro que autocontradição fundamental, segundo a qual essa sociedade se baseia na transformação incessante de quanta abstratos de trabalho em dinheiro, chegou a um ponto no qual não se pode mais mobilizar rentavelmente quanta suficientes de trabalho no patamar dos padrões de produtividade, criados pela própria sociedade. Já não é mais um fenômeno cíclico, mas um fenômeno estrutural. Porém, quanto mais fraca se tornar a acumulação real, tanto menos o crédito estatal será financiável, e, quanto menos o Estado puder ser financiado, tanto maiores se tornarão suas tarefas em virtude da crise estrutural de acumulação. É nesse círculo vicioso que a própria modernidade produtora de mercadorias se aprisionou.140 A este problema profundo, que retomaremos no capítulo seguinte, se soma às opções políticas tomadas no Brasil, em prol de um combate à pobreza e uma redução da desigualdade focalizada apenas na própria pobreza, como já dissemos, e que se recusa a operar na reprodução da desigualdade para além de sua manifestação superficial. Com isso queremos dizer que não se trata de um problema de focalização das políticas sociais, mas de uma focalização insuficiente, pois tira de sua abrangência o topo da pirâmide dos rendimentos. Dito de outro modo: para seguir diminuindo desigualdades seria preciso que o estado e a sociedade revertessem o processo de sua reprodução e não operassem apenas em suas manifestações imediatas e dadas superficialmente. A experiência dos países KURZ, Robert. A falta de autonomia do Estado e os limites da política. Op. cit., p. 113. 140

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desenvolvidos ensina que não é o caráter abrupto e superficial da desigualdade que levou a mudanças profundas mas a permanência no tempo da tendência de queda, o que só é possível com um profundo consenso sociopolítico que atravesse diversos grupos e blocos no poder. Políticas sociais como políticas de estado e da sociedade mais do que políticas de governo.

Na ausência de guerras ou revoluções, mudanças no padrão distributivo de uma sociedade não ocorrem da noite para o dia. É possível que o coeficiente de Gini tenha caído vinte pontos em dez anos em Cuba após 1959 ou na Rússia após a Revolução de Outubro. Não sabemos por que os dados não existem ou não estão disponíveis. O que sabemos é que em sociedades democráticas vivendo sob o estado de direito, as mudanças são lentas. O que difere um país que consegue construir uma sociedade igualitária de outros que param na metade do caminho é o fôlego para caminhada mais que sua velocidade.141 Sendo assim, os problemas do capitalismo global e os da democracia liberal brasileira e suas políticas sociais de aleatoriedade142 terão nos próximos anos a difícil tarefa de obter “fôlego” para continuar a diminuir as desigualdades sociais brasileiras em meio a uma atmosfera SOARES, Sergei. O ritmo na queda da desigualdade no Brasil é aceitável?, op. cit., p. 377. 142 “Por que há tendência generalizada de queda da desigualdade na América Latina na primeira década do século XXI, período em que houve aumento extraordinário na diversidade de experimentos com modelos de desenvolvimento? Esta pergunta é relevante quando se considera, com risco de simplificação exagerada, que a redução da desigualdade é no modelo liberal ‘a hipótese sob condições’, nos projetos de orientação socialistas é ‘a própria razão de ser’ e nos modelos de liberalismo periférico é o ‘caminho da aleatoriedade’” GONÇALVES, Reinaldo. Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa. op. cit., p. 22. 141

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mais e mais rarefeita.

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A desigualdade no mundo hoje Desigualdade de recursos A desigualdade entre os países permanece muito alta contemporaneamente. Os países mais ricos do mundo detêm 55% de toda a renda do planeta, tendo apenas 16% do total da população; já os países mais pobres detêm 1% da renda global para viabilizar a vida e a existência biológica e social de 72% da população mundial 143. As tendências notadas quando observamos as séries históricas do Coeficiente de Gini é que entre 1980 e 2000 a tendência mundial foi de aumento na desigualdade de renda mundial. Nas décadas de 2000 esta tendência se modifica e percebemos uma sensível diminuição dessa desigualdade global, puxada especialmente pela diminuição das desigualdades de renda na América Latina, na China e na Índia. Este declínio da desigualdade de renda se explica pelo crescimento econômico de países emergentes, maior do que aquele alcançado pelos países industrializados neste período, que se fez seguir de políticas sociais redistributivas. Entretanto, o fosso que separa a renda per capita obtida nos países mais ricos e aquela obtida nos países mais pobres aumentou em termos absolutos nas últimas décadas. Era de U$18,525 em 1980 e passou a U$32,900 em 2007, retornando para U$32,000 em 2014. A desigualdade de renda entre indivíduos de diferentes países também permanece abissal. Alguém que está entre os 10% mais pobres na Suécia tem uma renda 6 vezes maior do que alguém que se encontra no mesmo percentil de renda na Albânia e 80 vezes maior do que tem a mesma faixa de rendimentos na Bolívia e impressionantes 200 vezes maior do que alguém nos 10% Todos os dados apresentados neste capítulo se baseiam em UN/DESA. Report on the World Social Situation 2013: Inequality matters. Disponível em: http://goo.gl/1X6h40 outras fontes serão devidamente referenciadas. 143

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mais pobres da República Democrática do Congo. Se olhássemos a distribuição de renda no mundo desconsiderando as fronteiras dos estados nacionais, isto é, como se a população mundial fosse considerada em um mesmo nível comparativo encontraríamos um resultado assustador. O Coeficiente de Gini resultante dessa operação metodológica seria de 0,684 em 1988, 0,694 em 1998 e 0,707 em 2005! Ou seja, a desigualdade de renda da população mundial é maior do que a de qualquer país do mundo considerado isoladamente. As tendências atuais de aumento e diminuição das desigualdades de renda e de riqueza não mostram nenhuma relação clara entre desigualdade e desenvolvimento. Ao contrário do que defendia Simon Kuznets, para quem o desenvolvimento econômico faz a curva da desigualdade seguir a forma de um “U” invertido, aumentando quando a urbanização e a industrialização ascendem e diminuindo quando estes processos de modernização amadurecem, muitos países em desenvolvimento aumentaram suas desigualdades ou as diminuíram nas duas últimas décadas. Isto é, as evidências empíricas não corroboram a hipótese de Kuznets; as evidências vão mais no sentido de que cada país desenvolve uma história própria, elemento imprescindível para explicar a relação complexa entre desenvolvimento econômico capitalista e desigualdade para além de uma fórmula geral e supranacional. A América Latina seria uma prova da equivocidade da hipótese de Kuznets, uma vez que a região apresenta níveis medianos de riqueza e renda per capita, mas um alto índice de desigualdade, bem maior do que o de países com semelhante desenvolvimento econômico de outras regiões. Alguns países industrializados, como os Estados Unidos, viram seus índices de desigualdade subirem fortemente recentemente, também contrariando a hipótese144. Os dados empíricos ao redor do mundo indicam também que as transferências diretas de renda respondem Nesta altura seria preciso lembrar que o polêmico novo livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI começa com uma clara oposição às teses de Kuznets, tanto quanto as de Marx. 144

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pela maior parte das diminuições da desigualdade nas últimas décadas. Uma pesquisa em 36 países revelou que 85% da diminuição das desigualdades de renda observadas se deram por conta da transferência de renda e 15% por conta de tributação. Mesmo nos países da OCDE, a cada 1% de aumentos nos gastos públicos com transferência de renda houve, 0,3% na diminuição das desigualdades. Esta proporção é bem maior do que aquela observada na tributação. A tendência das desigualdades de escolarização – sobretudo nos níveis fundamental e médio – sem dúvida é de queda. Entretanto, há ainda muitas disparidades e exclusões nesta dimensão em particular. Segundo dados da UNESCO, havia 102 milhões de crianças em idade escolar não-matriculadas no ensino fundamental no ano 2000; em 2011 ainda existem 57 milhões de crianças nessa situação em todo o mundo. Desigualdades vitais Um dos indicadores mais importantes para avaliar a qualidade geral de vida de uma determinada população é a expectativa média de vida dos indivíduos ao nascer 145. Da mesma forma, trata-se de um indicador importante para se medir as desigualdades vitais existentes em uma determinada sociedade. O hiato entre os países que estão entre os que têm as maiores expectativas de vida e os que têm as menores expectativas está diminuindo ao longo das últimas décadas. Este hiato era de 23 anos entre 1950-1955, de 13 anos entre 145

“Expectativa de vida é a medida mais utilizada amiúde para descrever a saúde de um grupo grande de pessoas, por exemplo para comparar a situação de saúde de um país com outro. A expectativa de vida em geral é reportada separadamente entre homens e mulheres. Consideremos como a expectativa de vida é calculada. Uma vez que não há como saber o que acontecerá no futuro para aumentar ou diminuir nossa expectativa de vida, nós precisamos nos apoiar nos fatos que estão disponíveis neste momento. As figuras da expectativa de vida representam o modo como as pessoas estão vivendo no tempo atual.” BUDRYS, Grace. Unequal Health. How Inequality contributes to Health of Illness. New York: Rowman & Littlefield, 2003, p. 21. (traduzi)

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1980-1985 e de 10 anos entre 2005-2010. Contudo, algumas discrepâncias são bastante flagrantes: os dois extremos, Japão (84 anos) e Serra Leoa (46 anos) possuem uma diferença de 38 anos na expectativa de vida ao nascer, segundo a última pesquisa da Organização Mundial da Saúde146. Em todas as regiões do mundo as disparidades na expectativa de vida estão em queda com a notável exceção da África Subsaariana. De 1980 a 2000 o hiato entre a expectativa de vida ao nascer desta região e a do resto mundo permaneceu estática ao redor de 16 anos. A fome e a desnutrição, apesar de diminuir nas últimas décadas ainda é muito alta para uma modernidade que se reputa como a mais civilizada de toda a história. Segundo estimativas da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) existem 842 milhões de pessoas no mundo que não têm acesso a uma alimentação suficiente entre 2011-2013. Desigualdades existenciais Em todas as regiões do mundo grupos minoritários têm enfrentado desigualdades evidentes nos dados oriundos das pesquisas sociais. Como vimos no primeiro capítulo, estas desigualdades chamadas por Therborn de “existenciais” são ainda mais persistentes no tempo do que as desigualdades de recursos. Estas modalidades de desigualdade, como também já vimos, costumam se reforçar mutuamente, mantendo minorias étnicas em constantes desigualdade de renda, por exemplo. Uma das modalidades de apresentação das desigualdades existenciais é o etarismo: a discriminação presente na estratificação social em face da idade dos indivíduos. Embora varie bastante de país para país, os jovens de todas as regiões do mundo são em geral os últimos a seres contratados e os primeiros a serem demitidos no mercado de trabalho. Por conta disso, em 146

Dados de 2012 disponíveis em http://goo.gl/yZ3NZP

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momentos de crise econômica, tal como a que vive o mundo desde 2007-2008, assistimos a uma dificuldade ainda maior para a admissão e a empregabilidade de jovens e, por conseguinte, a um empobrecimento acentuado deles. Não por acaso, ao longo da crise, em 19 países da OCDE houve aumentos significativos da pobreza entre os jovens. Na Estônia, na Espanha e na Turquia, dentre aqueles que entraram na pobreza entre 2007 e 2010 havia 5% adicional de jovens. Os mais velhos também são mais pobres que os adultos em alguns países do mundo, especialmente naqueles onde falham as políticas sociais de previdência. A tabela abaixo mostra a porcentagem de pessoas mais velhas dentre os que estão no quinto mais pobre da população de diversos países.

Fonte: UN/DESA. Report on the World Social Situation 2013: Inequality matters. 2013, p. 82, Fig. IV.1.

Como podemos ver, em países como Angola e Congo perto de 40% dos mais pobres são pessoas mais velhas. Mas a desigualdade etária em relação aos mais velhos não é exclusividade dos países não industrializados. Alguns países desenvolvidos industrialmente também apresentam dados que deixam evidente esta modalidade de desigualdade e discriminação. Na Austrália, por exemplo, dentre os 14,4% que estão na base da pirâmide de renda 35,5% é formada de pessoas com idade igual ou superior a 65 anos. Há ainda a sobreposição de desigualdades, como

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na Alemanha, onde 7,9% dos que estão na faixa de renda considerada de “pobres” são homens com idade igual ou superior a 65 anos, tendo contudo 12,4% de mulheres mais velhas na mesma situação. Há poucos estudos quantificando as discriminações e desigualdades sofridas por pessoas com deficiências. Sabemos que deficiências físicas e mentais são mais comuns entre mulheres e que países pobres têm mais incidência de pessoas com deficiências. Um estudo realizado em 15 países em desenvolvimento mostrou que em 10 deles, nos domicílios onda há ao menos uma pessoa com deficiência as condições econômicas são significativamente piores do que nos domicílios onde não há ninguém com qualquer deficiência. A mesma pesquisa descobriu também que as crianças com deficiências são menos escolarizadas que as que não o são. Um outro estudo levado a cabo em 27 países da OCDE mostrou que 44% de pessoas com alguma deficiência e com idade para o trabalho estão empregadas enquanto que 49% estão inativas. Entre as pessoas que não possuem deficiências 75% estão empregadas e apenas 20% estão inativas. Além de maiores dificuldades para se empregar e ter renda, como se vê, o estudo mostra que pessoas com deficiências enfrentam uma maior precarização de suas atividades laborais. Há uma extensa e bem documentada literatura sobre as desvantagens socioeconômicas e culturais enfrentadas pelos povos indígenas em todo o mundo. Segundo dados das Nações Unidas, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, um terço dos indígenas do mundo são pobres. As crianças dos povos indígenas são de três a quatro vezes mais subnutridas do que as crianças nãoindígenas147. As taxas de mortalidade entre os povos “Em meados do ano 2000, a prevalência de famintos entre crianças indígenas era de três a quatro vezes mais alta em Camarões (53,5% entre os pigmeus versus 13% nacionalmente), Gabão (51% entre os pigmeus versus 6,7% nacionalmente), Namíbia (25,6% entre os Sans versus 7,3% nacionalmente) e no México (44,3% entre a população indígena versus 14,5% entre a população não indígena)”. UN/DESA. Report on the World Social Situation 2013: Inequality matters. op. cit., p. 90. 147

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indígenas são maiores do que dos não-indígenas tanto em países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. Segundo dados de 2009 das Nações Unidas a diferença chega a 20 anos na Austrália e no Nepal.

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Excurso sobre as relações sociais de fetiche Quando nos deparamos com o nome de Marx ou do marxismo a primeira coisa que nos vem à cabeça é uma reunião de homens de origem proletária conspirando contra o poder dos detentores de propriedade privada. Uma das primeiras palavras que nos vem à cabeça é "classe". O marxismo seria um modo específico de estudo, análise e crítica da sociedade capitalista onde o papel da classe seria o aspecto mais importante, mais definitivo. A famosíssima frase do Manifesto Comunista de 1848 viria logo à mente: "A história da humanidade até hoje é a história da luta de classes"148. Em quase todos os manuais de sociologia, a abordagem de Marx é tomada como uma teoria que revela o antagonismo social das classes sociais existentes e seus possíveis caminhos e desfechos. Logo que lermos Marx, entretanto, não será esse o aspecto de sua obra que mais saltará aos olhos – ao menos não foi esse o meu caso. Embora, de fato, este Marx possa ser encontrado nos muitos volumes que ele legou, não pareceu a mim que este era o aspecto de sua obra que seria, de fato, o mais pertinente para se pensar e agir em face dos desafios da contemporaneidade, como por exemplo, a desigualdade. O que mais me chocou em Marx, e o que mais me mobilizou em seu pensamento, foi o que depreendi de um trecho de um manuscrito que foi base para uma obra sua, de resto bastante conhecida, de 1859, chamada Contribuição à Crítica da Economia Política. O trecho foi escrito em 1857-1858 e nele Marx diz o seguinte: “O dinheiro é propriedade ‘impessoal’. Permite-me transportar comigo, no meu bolso, o poder social e as relações sociais gerais: a substância da sociedade"149. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução: Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 39. 149 MARX, Karl. Fragmento da versão primitiva da Contribuição para a Crítica da Economia Política. IN Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução: Gilbert Badia e Maria H. B. Alves. 2ª ed. São Paulo: 148

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Trata-se de um fragmento que chamou pouca atenção de entusiastas de Marx até onde eu sei, mas que contém em si uma partícula da grandeza e da profundidade do que significou este pensador. O fragmento é ao mesmo tempo trivial, óbvio, e revelador de um dos mais instigantes e ocultos dos problemas das sociedades que vivemos, as sociedades produtoras de mercadorias. Ao afirmar que o dinheiro torna substancial o poder social, mas um poder social que podemos simplesmente "enfiar no bolso", o filósofo alemão está descrevendo um fato trivial da vivência social no capitalismo, mas também de toda sociedade onde o dinheiro se encontra generalizado. Ao fazer esta descrição aparentemente trivial, contudo, ele aponta para o verdadeiro cerne dos problemas mais profundos destas formações sociais. Ele não está dizendo aqui que uma certa categoria de pessoas ou de grupos sociais ludibria e engana a outra, como nos conta o senso comum perguntado sobre o que vem a ser o "marxismo". E mesmo para a maior parte daqueles que se reputam "marxistas" o grande problema é mesmo este "estelionato de classes", consciente e leviano, no qual uma classe de proprietários maquina contra uma classe de despossuídos e espoliados. Aqui não se trata tanto disso. Neste fragmento ao menos, o problema vem da forma social, que, em se espraiando, converte algo que só existe por conta da interação coletiva e social humana (o poder social) em algo simplesmente objetivo, material, algo que se é capaz de enfiar no bolso (o dinheiro). Não alteraria nada, substancialmente, se Marx tivesse dito, ao invés de "enfiar no bolso", colocar na conta, ou "contar como crédito", o caráter “coisal”, numerário, não seria nem um milímetro distinto. Marx não descreve uma fraude que por ventura possa enganar um incauto inocente, mas, antes, um processo social que ocorre à luz do dia, dia a dia, e que é inescapável tanto quanto o dinheiro se torne um dos principais meios de troca social organizada. O dinheiro não é

Martins Fontes, 1983, p. 238.

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um artifício criado conscientemente para enganar os despossuídos, mas uma forma social que transforma o poder da sociedade em mera coisa que alguém pode simplesmente enfiar no bolso e seguir seu caminho. O dado trivial é que é o chocante. Como filósofo que nunca deixou de ser, Marx cumpre à risca a mais elementar tarefa da filosofia segundo os gregos, que era olhar o óbvio e o trivial com um olhar de sincero e real espanto. A forma dinheiro - isto é, o dinheiro em seu caráter elementar e que decorre da forma da mercadoria - apenas por ser o que é, é algo chocante e espantoso. É o poder social que se pode simplesmente "enfiar no bolso". Este fragmento mostra – em miniatura – o modo como Marx realiza a crítica definitiva das sociedades produtoras de mercadorias. No decorrer de seu pensamento quando ele finalmente desvenda o que vai por detrás (e dentro) do dinheiro, ou seja, o valor, o trabalho abstrato e suas conjunções – ainda continuará plenamente vigente este modo de desvelamento. Basta descrever o modo como opera as categorias sociais formadoras da sociabilidade no capitalismo, que suas contradições aparecerão desvendadas. No início de O Capital Marx não cansa de repetir que o segredo da mercadoria é a mercadoria como tal, o que seria o mesmo que dizer que a mercadoria não esconde segredo algum, ela é seu próprio segredo. De qualquer modo, é um Marx nervoso e acusador que entrou para o senso comum, e infelizmente, também para o senso comum daqueles a quem Marx endereçava sua mensagem. E a mensagem era a de que as categorias mais elementares da socialização capitalista eram, elas próprias, o tronco sobre o qual toda destruição e exploração de classes e as desigualdades sociais, por suposto, se arvoravam quando se trata do capitalismo. A exploração de classes significou diversas coisas ao longo da história das civilizações humanas, foram resultado de lutas militares, religiosas, políticas, e outras mais, mas no capitalismo ela tem um significado peculiar, específico, e que se encontra nestas categorias básicas e fundamentais de socialização, como por exemplo, no dinheiro, ou seja, no trivial e no óbvio que

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a crítica dialética precisa revelar como o chocante e pavoroso. Nas sociedades capitalistas, o poder social se materializa no dinheiro. Nestas sociedades, portanto, eu e qualquer um pode simplesmente enfiar o poder social no bolso e seguir um caminho qualquer. Os grandes e os pequenos detentores deste poder social o têm utilizado para destruir nosso habitat (crise ecológica), destruir nossas riquezas materiais (crise econômica) e manter enormes bolsões globais de pobreza e opressão (desigualdade). Poucos, entretanto, fazem como Marx e descem até à raiz do problema do capitalismo e percebem que não se trata de oferecer uma moralidade antagônica (algozes contra vítimas) antes, importa fazer uma crítica categorial deste fato, aparentemente trivial, mas que é prenhe de consequências. Marx já havia percebido muito bem que precisamos dar um passo atrás para poder destituir o deus-dinheiro de sua posição sagrada para que só assim seja possível dar ao poder social um rumo consciente e verdadeiramente democrático. Um autor contemporâneo, recentemente falecido, fez grandes contribuições para a reconstrução da crítica da economia política marxiana neste mesmo sentido. Em Dinheiro sem valor150, Robert Kurz fez uma distinção importante entre aquilo que ele chamou, na esteira de Marx, de relações de fetiche. Em O Capital, como sabemos, Marx afirma que todo o capitalismo se sustenta na existência e na reprodução de relações sociais mediadas pela mercadoria e pelo trabalho que é "incorporado" nas mercadorias como valor. Ele afirma a seguir que as relações sociais que decorrem deste fato são inelutavelmente relações "fetichistas" – termo que ele retoma da crítica da religião – pois, na medida em que tais relações derivam da mediação mercantil, elas adquirem uma autonomia própria, aparecendo para os agentes, necessariamente, como uma realidade externa, que compete ser manuseada apenas externamente, assim como os deuses KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Tradução: Lumir Nahodil. Lisboa: Antígona, 2014. 150

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das sociedades pré-capitalistas possuíam vontade própria, que, de algum modo, só poderia ser acionada na medida em que se se dobrasse, sacrificialmente, a esta vontade. Pois bem, de acordo com a leitura de Marx que faz Kurz, tanto no caso das religiões pré-capitalistas quanto na economia de mercado capitalista, trata-se de uma realidade que, de criatura se transforma em criadora das relações sociais.

Acontece, em ambos os casos, que as pessoas não “dominam” (é este o verbo que Marx utiliza) o contexto em que se enquadram; são as próprias relações, feitas por elas, que se lhes apresentam como fenómenos “dotados de vida própria”, ou mesmo como “leis universais” às quais se sujeitam. Deste modo, poder-se-ia entender a analogia como se a religião ea forma da mercadoria tivessem de ser definidas como duas formas diversas daquilo que Marx denomina “fetichismo”.151 A sociologia já havia se dado conta há muito tempo dos fundamentos "irracionais" da sociabilidade, mesmo da sociabilidade tão cercada de processos racionais como os da modernidade152. Entretanto, Kurz faz uma distinção bastante nítida entre estes fundamentos irracionais no pré-capitalismo e no capitalismo. Embora isto aconteça de modos distintos nas sociedades pré-capitalistas, a relação de fetiche pré-capitalista diz respeito a uma transcendente mediação das relações pessoais. Nas palavras de Kurz,

A sociedade humana é, pois, exortada a KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Op. cit., p. 65. Cf. por exemplo, dentre os muitos possíveis, o interessante ensaio de COLLINS, Randal. The Nonrational Foundations of Rationality. IN Sociological Insight. An Introduction to Non-Obvious Sociology. New York/Oxford: Oxford University Press, 1982. 151 152

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assegurar-se das boas graças ou da “clemência” do princípio divino transcendente, daí resultando um sistema de regras práticas baseado em tradições da mais diversa índole. O sacrifício é, neste contexto, o elemento basilar. É necessário oferecer sacrifícios - originalmente sacrifícios humanos - a Deus, ao universo dos deuses, aos poderes superiores, a fim de preservar a ordem do mundo e o próprio lugar no mesmo.153 O fetiche da forma da mercadoria que "adere" (Marx) a todas as relações sociais realizadas por intermédio da troca mercantil não recorre mais a uma realidade transcendente, mas a uma distinta forma de intangibilidade, uma distinta forma de não-materialidade. Novamente nas palavras de Kurz

...aqui já se perfila claramente a diferença essencial entre as constituições religiosas e o moderno fetiche do capital. Se é verdade que a lógica capitalista também se encontra ancorada de modo “real-metafísico” no contexto formal da “riqueza abstracta” e do seu “sujeito automático”, do valor que aparentemente se move por si e assumiu, de certo modo, o lugar de Deus, já não se trata, apesar de tudo, de uma relação transcendente com Deus. Embora o valor, enquanto definição de substância, seja fisicamente 'intangível' (Marx), não é, ainda assim, tão-só algo do além. O princípio do fetiche outrora transcendente imigrou para a manifestação, terrena e bem tangível, do dinheiro, em cujo movimento se torna superficialmente visível a matriz orientadora.154

153 154

KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Op. cit., p. 67-68. KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Op. cit., p. 68.

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Kurz esmiuça de modo conceitualmente rigoroso a intuição aparentemente enigmática do filósofo italiano Giorgio Agamben, para quem "Deus não morreu, apenas se transformou em dinheiro"155. Seria preciso de deter um tanto mais sobre essa distinção. É preciso reiterar que o fetiche religioso transcendente realiza a mediação de uma relação que é imediatamente pessoal. Ou seja, na relação de fetiche pré-capitalista e pré-moderna, "os representantes pessoais são não apenas eles próprios mas, ao mesmo tempo, algo diferente, ou seja, corpos literalmente representativos do transcendente" 156 ; no fetiche do dinheiro e, por conseguinte, do capital, o "intangível", aquilo que de criatura passa a ser visto fetichisticamente como criador, é uma relação objetivada, reificada, ou seja, certas relações impessoais passam a dominar as relações pessoais, submetendo-as a seus ditames. Se o sacerdote e o fiel são apenas homens que são tomados uns pelos outros como representantes e representados do divino que se crê sobrenatural, o capitalista, o gerente, o banqueiro e o operário são "máscaras de caráter" (Marx) de relações impessoais criadas pelas categorias de socialização da modernidade capitalista (valor, capital, dinheiro, assalariamento, etc.). Dito de outro modo: "o executor do fetiche do capital age na qualidade de 'trabalhador especializado' de uma objectivação pseudonatural, enquanto o executor do poder do além age como 'intérprete' de uma vontade divina pseudopessoal"157. O capitalismo estabelece então um modo historicamente distinto, pois, de cegueira fetichista: a economia autonomizada do valor, isto é, a economia de mercado, passa a se estabelecer como realidade autonomizada, como uma divindade transcendente com vontade própria, que requer sacrifícios esporádicos e cujas exigências precisam ser "O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro". Entrevista disponível em http://goo.gl/WNDEGX 156 KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Op. cit., p. 73. 157 KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. Op. cit., p. 76. 155

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atendidas de qualquer modo como condição inescapável para nos situar no mundo e para nos relacionar uns com os outros e com a natureza.

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A civilização ainda é rentável? Se filmes como Germinal e Daens são boas dramatizações cinematográficas da emergência do capitalismo liberal e de sua perversa invenção, o “mercado autorregulado”, que deu início ao que Karl Polanyi chamou de Grande Transformação, um dos filmes que muito bem definem o capitalismo do século XXI é Um dia de fúria (1993) de Joel Schumacher. Neste filme um engenheiro da indústria armamentista, interpretado por Michael Douglas, entra em uma espiral descendente após ser demitido de seu emprego, além de ter qualquer crédito bancário negado por não ser mais “economicamente viável”. A partir daí, absolutamente confuso com os fatos que transformam inteiramente sua perspectiva de vida, ele sai em uma jornada errante na tentativa desesperada de se reconciliar, um pouco que seja, com sua ex-esposa e filha e para o estilo de vida opulento que levava quando ainda era “economicamente viável”. Ao notar que as cesuras e dilaceramentos não são exclusividades suas, mas que toda a sociedade e até mesmo o espaço urbano passava também por uma espiral descendente (o título original do filme é sugestivo a este respeito: falling down) o personagem interpretado por Douglas, Willian Foster, acaba desmoronando psiquicamente, terminando por praticar aquilo que a psicanálise lacaniana costuma chamar de passagem ao ato158. Sua derrocada é uma dramatização muito perspicaz do dilema do capitalismo maduro cujo desenvolvimento representa, ao mesmo tempo que sua completude, seu esgotamento: não há alternativas “No vocabulário psiquiátrico francês, a expressão ‘passagem ao ato’ evidencia a violência da conduta mediante a qual o sujeito se precipita numa ação que o ultrapassa: suicídio, delito, agressão. (...) trata-se, para Lacan, de um “agir inconsciente”, de um ato não simbolizável pelo qual o sujeito descamba para uma situação de ruptura integral, de alienação radical. Ele se identifica então com o objeto ou rejeitado de qualquer quadro simbólico. O suicídio, para Lacan, situa-se na vertente da passagem ao ato, como atesta a própria maneira de morrer, saindo de cena por uma morte violenta: salto no vazio, defenestração etc. (pequeno) a, isto é, com um objeto excluído” ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 6. 158

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realmente efetivas para aqueles que, nas sociedades produtoras de mercadorias se tornam, em uma dada altura, “economicamente inviáveis”159. Isto se deve ao fato de que, ao contrário do que acreditam os apologistas e mesmo alguns críticos, o capitalismo não é historicamente o “eterno retorno do mesmo”, estando sempre pronto a mais um ciclo de prosperidade bastando apenas saber apertar os botões certos de sua maquinaria. Ao contrário, como já perceberam muito importantes teórico-críticos, a começar por Marx em diversas passagens, o capitalismo historicamente se realiza como espiral finita, ou como bem a definiu Anselm Jappe, sua realização histórica de “desenvolvimento é linear, acumulativa e irreversível, e não cíclica e repetitiva como outras formas de produção”160. Ou seja, há um limite interno à acumulação capitalista, assim como existe um limite externo, por exemplo, nas transformações climáticas ocasionadas pela matriz energética de combustíveis fósseis, que empurra as mais importantes corporações capitalistas. Qual seria esse limite? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o capitalismo exprime a lógica (socialmente irracional) de colocar quase todos os recursos disponíveis em uma dada sociedade sob o desígnio da rentabilidade, isto é, de um processo tautológico que consiste em mobilizar coisas com valor monetário – incluindo a força-de-trabalho – em um processo que visa reproduzir este valor monetário; ou seja toda a sociedade se movimenta sob o princípio da valorização tautológica do valor, isto é, do lucro. Como bem o disse Robert Kurz, em palavras insubstituíveis:

Esta brutalidade essencial está de certa maneira à espreita, na inconsciência da Outro companheiro de jornada de Willian Foster na literatura é o personagem de Barton Dawes, do romance de KING, Stephen. A Autoestrada. Tradução: Fabiano Morais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. 160 JAPPE, Anselm. Crédito à Morte. A decomposição do capitalismo e suas críticas. São Paulo: Hedra, 2013, p. 60. 159

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ordem do sistema. É tão terrível que ninguém a admite, nenhum gerente, nenhum político, nenhum ideólogo. Mas existe, e diz em última consequência: Todos os que não têm capacidade de trabalhar, são por princípio "vidas sem valor". Seriam isto todas as crianças e adolescentes, que ainda não têm capacidade de trabalhar; a não ser que já servissem como material de trabalho, assim que pudessem andar. Seriam isto todos os enfermos, deficientes, etc. que representam apenas factores de custos. E obviamente todos os idosos, que já não são capazes de trabalhar e para os quais se verifica o mesmo, a não ser que fossem aproveitáveis para alguma coisa mesmo no leito de morte. Por fim seriam isto os desempregados, que portanto se tornam escusados. A lógica capitalista pronuncia esta sentença não só sobre os indivíduos, mas também sobre os respectivos âmbitos e instituições: a formação, a educação, os cuidados, a assistência, os serviços sanitários, a arte e a cultura etc. parecem custos mortos, que deveriam ser eliminados.161 Obviamente, como nos diz o próprio Kurz, este desígnio, esta potência latente de se livrar de tudo o que não é parte do processo tautológico de valorização do valor jamais se realiza plenamente. Apesar de ter uma clara forma e mesmo uma fórmula, o capital se realiza sempre dentro de uma sociedade humana e as sociedades humanas manifestam valores morais, familiares, religiosos, etc, e não podem existir sem algum nível de solidariedade162. E assim, completa Kurz:

KURZ, Robert. Não rentáveis, uni-vos! Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz134.htm , 2003. 162 Não se pode esquecer, como dissemos no segundo capítulo deste livro, que é isto que nos faz Homo sapiens de fato, e não nossa eventual engenhosidade ou eventuais capacidades produtivas, já bem desenvolvidas em outros humanos, como os neandertais. 161

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Como é óbvio, qualquer sociedade que executasse esta lógica, entraria imediatamente em colapso. Porém trata-se da lógica do capital, tão cega e insensível como um processo físico. Para que o capitalismo deixe a humanidade viver, em função de ser material para as suas próprias exigências insaciáveis, tem de ser de algum modo iludido. Originalmente, a sobrevivência neste contexto, e com isto as "necessidades não rentáveis" eram da competência das mulheres. Mas o processo de valorização não desprezaria de modo algum a carne feminina, ou seja, "o nervo, o músculo, o cérebro" (Marx). As mulheres seriam então oneradas com uma dupla carga. Tanto faz se se trata das sociedades capitalistas de Estado do antigo bloco de leste, dos centros ocidentais ou dos bairros de lata do Terceiro Mundo: após o fim do trabalho diário, o trabalho para elas apenas começou e só começa com o trabalho de reprodução para a parte da vida "indigna de viver" do ponto de vista capitalista.163 Portanto, surge aqui o que Roswitha Scholz chama de dissociação de gênero no capitalismo, isto é, sua responsabilização e atribuição da reprodução da vida para além do valor ao gênero feminino164. Contudo, o que queremos sublinhar aqui é que o funil da valorização do valor, isto é, da lucratividade do capital em sua essência, KURZ, Robert. Não rentáveis, uni-vos! op. cit. “...a contradição básica da socialização através da forma-valor, de matéria (conteúdo, natureza) e forma (valor abstrato) é determinada com especificação sexual. Todo conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstrata do valor, a despeito de permanecer como pressuposto da reprodução social, é delegado à mulher (dimensão sensível, emotividade, etc.). Há muito essa conexão é tematizada na literatura feminista como o mecanismo da cisão, embora até onde sei nunca tenha sido referida à constituição negativa da socialização pelo valor, no sentido de uma crítica do valor e do trabalho. Somente por meio dessa relação, porém, será possível explicar, para além do simples plano fenomênico, a problemática conceitual da cisão” SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem. Novos Estudos. nº 45, 1996, p. 18. Disponível em http://goo.gl/sKKP8x e em http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm 163 164

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tornou-se – uma vez que seu desenvolvimento histórico é linear, acumulativo e irreversível – um buraco de agulha; e isto implica em aumento exponencial daqueles que são considerados, sistemicamente, não-rentáveis, inúteis do ponto de vista da valorização do valor. Tornar essas massas uma responsabilidade do Estado sem transformar esse desígnio quase-religioso da valorização do valor, como tem sido o viés próprio do capitalismo em suas muitas variantes desde o final do século XIX, é um modo de organizar o desenvolvimento capitalista, mas ao fim e ao cabo, não pode cancelar eternamente seu encontro inelutável com seu próprio limite interno. O Estado também é “financiado”, isto é, ele também precisa se submeter à ordem da valorização do valor, uma vez que ele só existe em face das relações monetárias que é capaz de manter: assalariamento de funcionários públicos, orçamentos, recursos e fundos públicos, todos, invariavelmente, estão sob as formas do dinheiro. Dito de outro modo: o estado precisa de dinheiro, e só é capaz de obtê-lo se puder tributar capitalistas e trabalhadores – sem dúvida, de maneira desequilibrada na maioria dos casos – e, portanto, se impulsionar, regular e realizar ele mesmo os processos tautológicos de utilização de valor para obter mais valor. Neste sentido, uma crise profunda do capitalismo, como a que vivemos, é necessariamente, a médio e longo prazo, uma crise nas funções e na estrutura do Estado. Não é nenhum acaso, portanto, que na última década, como vimos, apenas em países onde se investiu fortemente em transferência direta de renda obteve-se alguma diminuição nas desigualdades. O Estado está emulando em escalas massivas as condições de rentabilidade que o mercado já não oferece aos seus suportes vivos. Evidentemente que não se trata de fazer uma censura a isso: é bom que os envolvidos com a política profissional e os “formadores de opinião” se conscientizem de que o Estado pode e deve fazer algo para tirar as pessoas da miséria e impedir ao máximo possível a emergência da barbárie, da fome, do abandono e da ruptura completa dos vínculos sociais. Todavia, não podemos nos contentar com

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esta margem cada vez mais estreita de ação socialmente organizada como sendo a única possível. Como bem disse, mais uma vez, Robert Kurz:

Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar consumir completamente pelo dia a dia da crise.165 Com isso queremos dizer que a emulação das KURZ, Robert. Seres humanos não rentáveis. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz254.htm 165

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condições de rentabilidade pelo estado não será capaz de continuar diminuindo as desigualdades ainda menos se o buraco da agulha da valorização tautológica do valor continuar se estreitando. O estado é estruturalmente limitado em sua capacidade de regular e comandar a economia capitalista. Esta dificuldade nos remete ainda aos problemas que aparecem para os policy makers apenas como externalidades econômicas, mas que são muito mais profundas do que isso: elas sinalizam para uma contradição inelutável entre a civilização – as sociedades e os vínculos que entre si os indivíduos estabelecem mediado pelas coisas – e a subsunção desta civilização à forma de valor, isto é, a subsunção destas sociedades às formas do dinheiro, das mercadorias, do trabalho assalariado e do estado. Anselm Jappe aborda bem este problema no que segue:

A produção de valor e de mais-valia, o único objectivo dos sujeitos da mercadoria, pode comportar também uma diminuição da produção de valores de uso, mesmo dos mais importantes. É o que se verifica no caso cada vez mais frequente da desindustrialização de países inteiros nos quais a produção se reduz aos sectores cujos produtos são suscetíveis de ser exportados, mesmo que se trate apenas de amendoim. A “produção pela produção” significa a maior acumulação possível de trabalho morto. Os ganhos de produtividade, designadamente o aumento da produção de valores de uso, em nada alteram o valor produzido em cada unidade de tempo. Uma hora de trabalho continua a ser uma hora de trabalho, e se nessa hora se produzem sessenta cadeiras em vez de uma, tal significa que em cada cadeira está contida apenas a sexagésima parte de uma hora: a cadeira “vale” assim apenas um minuto. O aumento das forças produtivas, empurrado pela concorrência, não aumenta de modo algum o valor de cada unidade de tempo: este facto

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constitui um limite inultrapassável à criação de mais-valia, cujo crescimento se torna progressivamente mais difícil. Para produzir a mesma quantidade de valor torna-se necessária uma produção sempre mais ampliada de valores de uso e consequentemente um consumo acrescido de recursos naturais. Ao proprietário do capital, se não quer ser eliminado pela concorrência, torna-se necessário produzir as sessenta cadeiras na esperança de encontrar uma procura compensadora. Pode inclusivamente tentar criar essa procura, sem levar em conta a relação real entre necessidades e recursos no interior da sociedade. Portanto, as desigualdades são bastante irracionais de um ponto de vista social: que um agricultor norteamericano possa alimentar sozinho 126 pessoas e que neste mesmo país o número de pobres e miseráveis tem aumentado consideravelmente nos últimos anos é inconcebível de um ponto de vista socialmente racional. Mas não é ainda a razão que governa o mundo, ou ao menos não a razão social, antes, o que governa as sociedade capitalistas é a produção tautológica de mercadorias com o objetivo único de sobrevalorizar o valor e, assim, é a partir desse princípio unilateral, abstrato e fetichista que tais disparidades e desigualdades podem ser compreendidas pelo pensamento – e ao mesmo tempo repudiadas por alguém que ainda conta com alguma sensibilidade humana e social. Deste modo, poderíamos assistir a uma real transformação de nossas abissais desigualdades sociais apenas quando formos capazes de não mais aceitar este assédio constante da própria forma social que nos governa sem que tenhamos dado qualquer consentimento a ela. Quando não mais precisarmos disfarçar a obscena questão que o capital sempre nos coloca: “são ainda estas e estas pessoas rentáveis?”, e que cada vez mais se torna uma pergunta geral, a ponto de poder ser feita de maneira

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absurda, isto é, como a pergunta “é a civilização humana rentável?”; quando pudermos enfrentar e reformular esta questão, todavia invertendo-a completamente – o que ainda está escondido e inconsciente nos diversos movimentos sociais de contestação da ordem vigente ao redor do mundo em crise – e pudermos gritar: “é a economia capitalista ainda civilizada?”; somente neste momento estaremos à altura do desafio de acabar com este grande estado de exceção chamado desigualdade para nos recolocar na normalidade igualitária das sociedades humanas sobre a Terra.

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Bibliografia Os livros, artigos e documentos citados ao longo do livro estão referenciados nas notas de rodapé, de maneira que utilizaremos este espaço apenas para uma recomendação de leitura para todas que quiserem se aprofundar nos temas de cada um dos capítulos. O que é desigualdade? THERBORN, Göran. The Killing Fields of Inequality. Malden: Polity Press, 2013. GUEDES, Jefferson Carús. Igualdade e Desigualdade. Introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. As origens da desigualdade FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce. The Creation of Inequality. How our Prehistoric ancestors set the stage for Monarchy, Slavery, and Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2012. As desigualdades à porta da modernidade LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Tradução: Giovanni Semeraro. 2ª ed. Aparecida: Ideias e Letras, 2006. A ascensão dos "moinhos satânicos" POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As origens de nosso tempo. Tradução: Fanny Wrabel. Rio de Janeiro: Campus, 2000. CASTEL, Robert. Metamorfoses da Questão Social. Uma Crônica do Salário. Tradução: Iraci Poletti. Petrópolis: Vozes, 1998. As desigualdades e o espectro do comunismo LOSURDO, Domenico. Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje. Tradução: Luiz Mario Gazzaneo e Carolina Muranaka Saliba. Rio de Janeiro: Revan, 2004. LENSKY, Gerhard. New Light on Old Issue: The Relevance of "Really Existing Socialist Societies" for Stratification Theory. IN GRUSKY, David (ed.). Social Stratification. Class, Race and Gender in Sociological

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Perspective. 3ª ed. Boulder: Westview Press, 2008. Desigualdade e bem-estar social BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social. Fundamentos e História. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. Desigualdade e a saída neoliberal SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009. América Latina, século XXI: um passo adiante? SALVADOR, Evilasio; BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete; GRANEMANN, Sara (orgs.). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012. KILKSBERG, Bernardo. Desigualdade na América Latina. O debate adiado. 3ª ed. São Paulo: Cortez/UNESCO, 2003. A desigualdade no mundo hoje UN/DESA. Report on the World Social Situation 2013: Inequality Matters. New York: United Nations, 2013. Excurso sobre as relações sociais de fetiche JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. Para uma Nova Crítica do Valor. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006. A civilização ainda é rentável? KURZ, Robert. Os últimos combates. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

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Sobre o autor Joelton Nascimento é doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso, onde também fez estudos em Filosofia e Comunicação Social. É também professor adjunto no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso. Desde 2009 é coeditor da Revista Sinal de Menos (www.sinaldemenos.org); publicou em 2012 o livro O Avesso do Capital e em 2014 Crítica do Valor e Crítica do Direito ambos pela editora PerSe. Contatos: [email protected]

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Neste livro, por intermédio de uma leitura da crítica da economia política marxiana orientada pela análise da forma valor, buscou-se reapresentar uma versão radicalizada da crítica marxista do direito, concebendo este como uma instância reguladora intrinsecamente atada ao destino da socialização produtora de mercadorias.

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