A República de Weimar e as manifestações do processo civilizatório

July 6, 2017 | Autor: R. dos Santos | Categoria: Habitus, Bildung, Literature and Culture of the Weimar Republic
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Faculdades de Campinas Curso de Ciências Econômicas

A REPÚBLICA DE WEIMAR E AS MANIFESTAÇÕES DAS TENSÕES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO: HITLER COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL.

Renan Enrique dos Santos Carla Cristiane Lopes Corte

Campinas, 21 de novembro de 2012

Ficha Catalográfica Elaborada pela Biblioteca da Facamp

Sa59r

Santos, Renan Enrique dos. A república de Weimar e as manifestações do processo civilizatório: Hitler como construção social. / Renan Enrique dos Santos. - Campinas: [s.n.], 2012. 21f. Orientador: Carla Cristiane Lopes Corte. Monografia – Faculdades de Campinas, Curso de Economia.

1. República de Weimar (1918-1933). 2. Alemanha - História - 1918-1933. 3. Nazismo - Alemanha. I. Corte, Carla Cristiane Lopes. II. Faculdades de Campinas. Curso de Economia. III. Título. CDD: 320.943

A REPÚBLICA DE WEIMAR E AS MANIFESTAÇÕES DAS TENSÕES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO: HITLER COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL.1

Renan Enrique dos Santos

Resumo O presente trabalho objetiva demonstrar como a ascensão de Hitler e o nazismo na Alemanha decorre de uma crise que não é apenas econômica ou política, mas em larga medida de caráter cultural. Para tanto, é necessário tanto apreender como a formação do Estado alemão leva à transformação de seu habitus (a segunda natureza de um povo), bem como analisar as imposições do Tratado de Paz de Versalhes sobre a Alemanha e a configuração da República de Weimar. Com efeito, o processo de formação do Estado Alemão e sua transformação em uma das principais potências europeias ao longo do século XIX causam a sedimentação de elementos importantes em seu habitus, o que gradativamente modifica o espaço que a formação cultural ocupava naquela sociedade. Ao lado da humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, tal mudança do ponto de vista cultural é crucial para a compreensão da crise que eclode no período entreguerras (1919 – 1939), sendo possível considerar, enfim, que o Nazismo e a crise da República de Weimar sejam resultado de uma crise cultural. Palavras-chave Alemanha; Habitus; Bildung; Kultur; Guerra Mundial; Nazismo.

Abstract The following paperwork aims to present how Hitler and the Nazism’s ascension in Germany results from a crisis not only economic or politic, but also cultural. In order to show that, on one hand, it is needed to apprehend how the German State formation comes to transform the German habitus (one people’s second nature); on the other hand, it is essential to analyze many impositions of the Treaty of Versailles over Germany, redesigning it onto the Weimar 1

Artigo submetido à apreciação de banca examinadora do Curso de Ciências Econômicas das Faculdades de Campinas, como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Ciências Econômicas, elaborado sob a orientação da Profª Drª Carla Cristiane Lopes Corte.

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Republic. Therefore, the German State formation process and its projection as one of the main European powers throughout the nineteenth century come to cement important elements on the German habitus – a phenomenon that gradually modifies the cultural formation role in that society. Along with the humiliation imposed by the Treaty of Versailles, this cultural change is pivotal as so as to comprehend the crisis outbreak taken place in the interwar period (1919 – 1939), what makes it possible to assume that the Nazism and the Weimar Republic’s crisis are due to a cultural breakdown. Key-words Germany; Habitus; Bildung; Kultur; World War; Nazism.

Introdução Dentre o sem número de qualificações das quais se pode lançar mão para caracterizar a República de Weimar, talvez as mais bem colocadas sejam as mais amplas que se pode encontrar – amplas, mas não desmesuradas. Consequência direta de sua derrota na Primeira Grande Guerra, a transfiguração da Alemanha na República de Weimar tem muitos significados2. Entre eles, poder-se-ia sublinhar que tal transformação consistia no constrangimento territorial e econômico da potente e pujante Alemanha, prescrito em 1919 no Tratado de Versalhes. Com efeito, todo o ônus da guerra pesou sobre a Alemanha, escolhida como a grande culpada do conflito mundial principiado em 1914. Não obstante, a República de Weimar era retrato da humilhação que os países aliados impunham sobre o derrotado, alienando-lhe o exército, a frota marítima e as anexações territoriais. O novo Estado era a configuração da instabilidade política, social e econômica. Enquanto irrigada pelos capitais vindos dos Estados Unidos no bojo dos programas de auxílio e reconstrução após a guerra, a República de Weimar viveu um período de moderada estabilidade e crescimento econômico. Tão logo a crise de 1929 se abateu sobre o mundo todo, a então ‘nova Alemanha’ mergulhou numa crise profunda, quando se observa que, no limite, a humilhação redigida no Tratado de Paz de Versalhes emergiu como crise de 2

Às ideias que me foram dadas a respeito deste trabalho e ao estímulo ao estudo mais aprofundado deste tema, agradeço imensamente à professora Carla Corte.

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confiança tanto no Estado construído em 1919 quanto no marco alemão, o que punha em cheque a estabilidade proporcionada e a sociabilidade na Alemanha, fenômenos cujo expoente foi a crise de hiperinflação (BELLUZZO, 2009; MAZZUCCHELLI, 2009). No entanto, a República – que existiu de 1919 até 1933 – era mais complexa do que a imagem opaca da derrota. O construto erigido pela Paz de Versalhes era verdadeiramente frágil, porquanto instalava no coração da Europa um edifício insustentável: dadas as imposições do Tratado, jamais a Alemanha poderia sobreviver, quanto mais coexistir pacificamente com seus algozes. Contudo, ao mesmo tempo em que a nação derrotada vivia sobre uma frágil construção repleta de tensões, pôde-se assistir ao expoente da cultura alemã, edificado no desenvolvimento científico, literário e, sobretudo, artístico (GAY, 1978). Até o ano de 1933, a República de Weimar gestou não só convulsões políticas e sociais, mas também a ebulição de movimentos culturais de vanguarda, marcos na História da Arte, a exemplo do expressionismo alemão e do estilo desenvolvido na casa de construção estatal idealizada e fundada por Walter Gropius, a Bauhaus. Destarte, a qualificação que melhor vem a descrever a República de Weimar é manifestação de tensões, fossem elas tensões políticas (entre a esquerda radical e a extremadireita cada vez mais presente) ou sociais. A economia, em última instância, denuncia de forma pronunciada as várias crises provocadas na República de Weimar, o que sugere o objetivo maior deste artigo: demonstrar que a crise econômica – alemã, em específico, no entreguerras – é o reflexo de uma crise de cunho cultural; crise tal que conduz à ascensão do Nazismo em 1933. Assim sendo, o estudo que se segue pretende contornar a construção da efêmera e turbulenta República de Weimar, de modo a localizar tanto as crises que gesta quanto as manifestações do chamado espírito alemão, que vem a se apresentar como se num último sopro de vida. Para compreender tal espírito, vê-se necessário analisar a formação do povo alemão e três conceitos importantes para a compreensão de sua forma de pensamento: habitus, Bildung e Kultur.3

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Vale registrar a imensa contribuição do professor Renato Brolezzi, cujos esclarecimentos foram essenciais para a compreensão de conceitos tão singulares e complexos, indispensáveis para a redação desse trabalho.

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Apesar de sua vida curta, a República de Weimar manifesta um sem número de tensões. As convulsões políticas e econômicas, nesse sentido, não são senão sintomas e desdobramentos de uma crise que, no crítico momento do entreguerras, pode-se provar mais profunda do que aparenta. As páginas que se seguem buscam mostrá-lo.

1. A evolução do habitus alemão no pré-guerras e os conceitos de Kultur e Bildung Se história e cultura formam o homem, também se faz razoável assumir que configuram a sociedade enquanto ela é e se transforma no tempo. Não se trata, aqui, de fixar alguma relação de determinação do homem para a sociedade ou vice-versa, mas de observálos, ambos, como causa e consequência um do outro. As relações sociais podem, assim, ser contempladas com maior complexidade, mas que não se esgota aí: se o homem pode mudar a sociedade (e a sociedade pode transformar o homem), também o passado pode transformar o presente, ou determiná-lo como continuidade. Ao mesmo tempo em que esse considerável número de relações implica uma dificuldade sensível para o estudo de quaisquer fenômenos sociais, confere também maior propriedade à sua análise, que, com efeito, pode ser conduzida à luz do conceito de habitus: a “segunda natureza” de um povo; ou ainda, o “saber social incorporado” nele (ELIAS, 1997). O conceito reflete a sedimentação de elementos na natureza de uma nação, a qual compreende o modo como um povo age e reage a estímulos os mais variados. Cada povo, cada nação tem um habitus próprio e singular, que remonta às transformações que sofre ao longo da história e à sedimentação de características em seu modo de agir. Os diversos habitus podem ser semelhantes, mas não idênticos. Segundo Norbert Elias (1997: 16), o habitus nacional de um povo não é biologicamente fixado de uma vez por todas; antes, está intimamente vinculado ao processo particular de formação do Estado a que foi submetido. À semelhança das tribos e dos Estados, um habitus nacional desenvolve-se e muda ao longo do tempo.

No que se refere à formação do Estado alemão, Elias (1997) observa que a história daquele povo lhe mostra quais as conquistas que se pode alcançar com a subordinação a um Estado forte, direcionador das forças políticas e econômicas. No limite, o intenso – e atrasado – processo de unificação da Alemanha fora fruto do comando forte do Estado da Prússia, que, antes mesmo de se configurar em 1871 como a Alemanha unificada, empenhava a chamada “política de potência e bem estar” (BRAGA, 1999). Tal política compreendia que as forças 5

econômicas seriam conduzidas segundo os interesses materiais do estado, quais fossem direcionados à modernização e à industrialização. Nesse sentido, é possível destacar alguns anos cruciais para o desenvolvimento alemão pautado nessa diretriz política. Em 1834, cria-se a União Aduaneira (Zollverein), conferindo união econômica ao que viria a ser a Alemanha; em 1840, tem-se uma expressiva expansão ferroviária que “proporcionou o meio pelo qual foi possível exercer pressões competitivas e expulsar as empresas ineficientes, antes protegidas pela distância e a topografia” (LANDES, 1994: 204); e, em 1846, centraliza-se a emissão monetária com o advento do Banco da Prússia, o que coroa qual série de eventos que permitiu à Alemanha “desatar as forças propulsoras do capitalismo” (BRAGA, 1999: 197). A essas mudanças, somam-se ainda as transformações territoriais do Estado da Prússia, que derrota a Áustria em 1866 (expulsando-a da Confederação Germânica do Norte) e a França em 1870 (alienando-lhe a Alsácia-Lorena). Em 1871, resulta a unificação política e territorial da Alemanha. Desse modo, ao longo dos anos que precedem a unificação do país, não só se assiste ao desenvolvimento de uma nova potência industrial, mas observa-se também a cristalização de elementos subjetivos no povo alemão. Assim, o ano de 1871 pode ser contemplado como um ponto crítico na história alemã, tanto do ponto de vista político quanto do cultural. Em outras palavras, não só se configura naquele ano um novo Estado, como também se caracteriza um fator crucial para a evolução do habitus alemão. Elias (1997) elenca diversos elementos no período pré-unificação que influenciaram sobremaneira o habitus alemão. Naturalmente, o local onde um povo se estabelece e prospera muito tem a dizer sobre sua formação cultural per si; mas também é importante considerar as relações que se estabelecem entre os povos de determinada região. O processo de formação do Estado alemão é repleto de rupturas (diferentemente da formação do Estado francês, por exemplo), ante o que os laços entre o passado medieval alemão e a formação de seu Estado são frágeis, permitindo assim a mais intensa transformação do habitus. Assim, como destaca Elias, as lutas de eliminação4 às quais o povo alemão fora submetido no séc. XVII (e os

“No final do século XVII, foram as tropas de Luís XIV que travaram batalhas pela supremacia contra as tropas imperiais em solo alemão. (...) No século XIX, os exércitos revolucionários de Napoleão invadiram a Alemanha em sua tentativa de unificar a Europa sob a soberania francesa. Uma vez mais, era demonstrada a fraqueza da Alemanha em comparação com os Estados vizinhos mais eficazmente centralizados” (ELIAS, 1997: 20). 4

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conflitos internos ao Estado da Prússia, antes disso5) ajudam a compreender sua formação, especialmente no que tange a sedimentação do caráter violento e militarista em seu saber social. Ou seja, A fragilidade estrutural do Estado alemão, a qual tentava constantemente as tropas estrangeiras de países vizinhos a invadir seu território, produziu uma reação entre os alemães que levou a conduta militar e as ações bélicas a serem altamente respeitadas e, com freqüência, idealizadas (ELIAS, 1997: 20).

É de maneira semelhante que a vitória do Estado da Prússia sobre a Áustria e a França reserva às décadas de 1860 e 1870 o papel essencial para explicar a evolução do habitus alemão nesse período. São essas as conquistas que, acima de qualquer outra, levam à cristalização definitiva do respeito e da idealização às condutas militares no habitus alemão, que vem a completar uma fase de sua evolução. Tanto não se dá simplesmente porque, a partir de então, o povo alemão como um todo passa a enxergar na política de potência e bem-estar a força para a realização do Estado e de seu sucesso. Sem desprezar qual efeito generalizado, a chave para a intensidade desse movimento reside na inclinação de uma classe específica em direção aos interesses do Estado e às ideias nele vigentes – classe que, avessa à política, idealizava a cultura e o chamado espírito alemão. A esse propósito, cabem algumas considerações relevantes. A intelligentsia6 alemã estava representada na classe média, que se opunha deliberadamente ao que se irradiava da corte francesa como “civilização”: na França, algo que estava atrelado à vida na corte e a modos floreados e superficiais. Uma vez que a França desponta como potência no cenário europeu, seu modo de civilização é posto em evidência e, por conseguinte, mimetizado por outros países em ascensão. Tanto não foi diferente na Alemanha. Ao longo do século XIX, os padrões da corte francesa foram assimilados pela nobreza imperial de Guilherme II. A classe média, burguesa, opunha-se a essa civilização, por sua vez enaltecendo a cultura; ou ainda, Kultur7. Tida em alta conta pelas classes médias alemãs, Kultur era mais do que o espaço que apreende as manifestações artísticas em sua vasta pluralidade, mas é o mundo onde o homem

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“Muito claramente, as lutas eram em torno da hegemonia dentro das fronteiras do antigo império alemão” (ELIAS, 1997: 18). 6

Por intelligentsia, entende-se a parte de uma nação que aspira à atividade intelectual; ou ainda, a classe da sociedade a qual se julga possuir cultura e iniciativa política. Em virtude da apreensão e gênese singular dada ao termo ‘cultura’ pelo povo alemão, vale designá-lo como Kultur. 7

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se pode encontrar, compreender e libertar com a criação artística8. Ainda, é o espaço que permite ao homem observar a beleza ao invés dos costumes e, de modo análogo, realizar quais sejam suas necessidades morais em oposição às físicas. Em última instância, a cultura é onde são criadas “obras da livre escolha”; ao contrário da realidade sensível, onde se cria “obras da privação”, frutos da necessidade (SCHILLER, 2011). É nesse sentido que o conceito de cultura para os alemães é muito diferente do que a cultura para os franceses. Ao passo que para estes a cultura era compreendida com o formalismo e a superficialidade da corte9, os alemães acreditavam que Kultur era, destarte, “menos lustrosa e mais profunda que a [cultura] estrangeira” (LIRA, 2003: 76). Ademais, ao mesmo tempo em que era espaço de emancipação do homem, Kultur contemplava a humanidade inteira à medida que o avanço cultural significava o avanço da humanidade. Em suma, Desde o final do século XIX, Kultur passara a simbolizar, na própria Alemanha, a defesa dos valores pré-industriais contra o processo de racionalização e secularização da vida social sob o capitalismo industrial (...) [aludindo] ao racional e universal por oposição ao instintivo, ao autóctone, ao particular (LIRA, 2003: 76, grifo nosso).

Nas palavras de Elias, Pode-se dizer que no significado do termo alemão “Kultur” estava embutida uma predisposição não-política, e talvez mesmo antipolítica, sintomática do freqüente sentimento entre as elites da classe média alemã de que a política e os assuntos do Estado representavam a área de sua humilhação e da falta de liberdade, ao passo que a cultura representava a esfera de sua liberdade e de seu orgulho (ELIAS, 1997: 122).

Ainda assim, a identificação de Kultur como o espaço de emancipação do homem não basta para compreender o ideário presente na intelligentsia alemã. É importante, também, pensar o modo de se alcançar tal espaço de libertação – algo refletido no conceito de Bildung.

A cultura alemã – assim oposta à cultura “da corte” francesa – ganha envergadura com o movimento préromântico, conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), cujos expoentes são Caspar David Friedrich (na pintura), o jovem Goethe e Friedrich Schiller (na literatura), entre outros. É a fase romântica, contudo, que projeta à cultura alemã mais evidentemente. Com efeito, é o movimento romântico aquele que contesta a “civilização industrial” e a propulsão das forças capitalistas. 8

Tal qual a alcunha do movimento pré-romântico – Tempestade e Ímpeto –, também soa retumbante a sentença de Schiller, que exemplifica bem sua oposição aos modos da nobreza: “O egoísmo fundou o seu sistema em pleno seio da sociabilidade mais refinada, e experimentamos todas as infecções e todos os tormentos da sociedade, sem que daí surja um coração sociável. Submetemos nosso livre juízo à sua opinião despótica, nosso sentimento aos seus usos bizarros, nossa vontade às suas seduções; contra seus direitos sagrados afirmamos apenas o nosso arbítrio” (SCHILLER, 2011: 34). 9

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Em meio às muitas significações da palavra10, Bildung alude à formação do homem, sua educação. Assim, admitindo-se Kultur como um espaço de emancipação e liberdade, Bildung é como o processo de libertação do homem, à medida do qual se desprende das amarras da realidade sensível para alcançar um ambiente – na Ideia – em que se pode desenvolver a razão. A educação estética do homem está para Bildung, ao passo que Kultur é o domínio da moral. Com efeito, nos séculos XVIII e XIX, a intelligentsia alemã é, então, uma parte da sociedade que não apenas enaltece Kultur como um espaço de manifestação artística, exercício da razão e liberdade; mas também idealiza a formação do homem (Bildung) para sua realização em Kultur. É essa classe da sociedade alemã que dá existência e voz ao espírito alemão, algo que abarca um modo de pensar singularmente profundo, talvez de assimilação tão difícil quanto assumir que já houve um tempo em que não se vivia ao compasso do relógio. Enfim, é quando esse modo de pensar é definitivamente solapado que o habitus alemão completa uma fase de sua evolução. Tal fenômeno não é fortuito, e está intimamente ligado com a formação do Estado alemão. Assim, os eventos que permeiam a história alemã até a unificação tardia de seu Estado em 1871 sugerem que uma concepção de Kultur que atravessou os séculos XVIII e XIX foi colocada de lado tão logo as diretrizes políticas e econômicas do Estado vigente capturam a classe que, em última instância, sustentava até então qual espírito alemão, intimamente ligado ao ideal humanista de Kultur. A solidificação do Estado alemão cimenta no habitus a idealização às condutas militares e a violência, o que se dá, enfim, quando aqueles que outrora defenderam a realização moral do homem na cultura como espaço de liberdade se voltam para o ideário nacionalista vigente no Estado instituído. Em outras palavras, grande fração das elites da classe média alemã deixa o ideal humanista e o transforma em nacionalista11; passa a atribuir o desenvolvimento do homem não à sua imagem (enquanto homem), mas à imagem do país, da nação. Dá-se, por outras palavras, 10

Bildung, do alemão, tem muitos significados, sendo formada a partir de Bild, substantivo que (dentre outras tantas palavras em português) pode ser traduzida como quadro, imagem, retrato e (em sentido figurado) ideia. Bildung, por sua vez, pode ser expressada como formação, ou educação; no limite, tendo em vista as ideias contidas em Bild, a palavra sugere o processo de formação que é necessário ao ingresso no espaço dado pela cultura (Kultur). 11

O fenômeno se trata, de acordo com Elias (1997), de uma transferência de paixões do ideal humanista para o nacionalista; respectivamente, do futuro para o passado. O ideal humanista refletido em Kultur descansava na paixão ao futuro da humanidade (na direção da liberdade); ao passo que o ideal nacionalista transfere tal paixão ao passado, à heroicização das conquistas da nação.

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uma modificação de prioridade dos ideais e valores humanistas e morais aplicáveis às pessoas em geral para os ideais nacionalistas que colocaram uma imagem ideal do país e da nação acima dos ideais humanos e morais na escala de valores de cada indivíduo (ELIAS, 1997: 128).

A partir de 1871 e até o princípio da I Grande Guerra, então, parece haver maior conformidade entre os ideais da nobreza e da classe média em ascensão em função do ideal nacionalista. Ao mesmo tempo, o habitus alemão completa uma fase de sua evolução. Alemanha, unificada e modernizante, caminha a passos firmes para a deflagração da Guerra em 1914, fruto do ímpeto expansionista alemão e da propulsão de forças capitalistas.

2. Entre 1871 e 1914: breves considerações sobre os últimos anos do pré-Guerras O Império unificado em 1871 pelo Kaiser Guilherme II e o chanceler Bismarck era uma construção potente. O Estado edificado e a política de potência e bem-estar punha a Alemanha nos trilhos do desenvolvimento industrial, ao passo que gestava relevante ímpeto expansionista – fenômeno que também, e em grande medida, objetivava minimizar a influência da França no continente europeu (MAZZUCCHELLI, 2009). Nas palavras de Braga, O período iniciado em 1871-73 e que se estende até 1914 pode ser compreendido como aquele em que se ergue o poder industrial germânico, com força suficiente para, tragicamente, vir a ser protagonista da primeira grande guerra de extensão mundial. A chamada Grande Depressão de 1873-96, que afetou a Europa (...) não chega a perturbar a performance alemã, que havia ingressado no auge de seu crescimento econômico exatamente na mesma época (BRAGA, 1999: 198, grifo do autor).

Qual pujante desempenho alemão até as vésperas da I Guerra Mundial é amplamente devido à integração entre as grandes empresas alemãs e seus bancos, um fenômeno que também foi guiado e orientado pelo Estado. De fato, impulsionada por medidas protecionistas desde 1879, assiste-se à Alemanha atingir autossuficiência industrial; a associação do capital bancário às empresas alemãs que se projetavam nacional e internacionalmente12, por sua vez, é essencial não só para “ampliar o raio de manobra monetário-financeiro” das indústrias “frente ao padrão ouro gerido pelos ingleses” (BRAGA, 1999: 200), mas também para compreender a expansão das relações capitalistas nesse momento. Na mesma toada, por volta 12

Segundo Braga (1999), a produção alemã consegue até concorrer com a britânica em alguns setores; e, mesmo quando a competição não se realiza por conta do baixo volume de produção, como no caso da indústria de componentes químicos, David Landes (1994, p.194) observa que o patrimônio tecnológico da indústria alemã era mais avançado.

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de 1910, o Estado Alemão unificado orienta a formação de cartéis entre grandes empresas alemãs13 objetivando conferir-lhes maior projeção no cenário europeu (HENDERSON, 1975 apud BRAGA, 1999, p. 201). Com efeito, as forças capitalistas são desacorrentadas à medida que o capital financeiro (enquanto associação entre o capital dos bancos e o capital da indústria) permite não só o aumento potencial da capacidade de maximização do capital, mas expande a própria relação capital. Em outras palavras, o desenvolvimento do capital financeiro é não mais que a consumação

de

uma

determinação

do

capital

no

sentido

de

sua

valorização

(MAZZUCCHELLI, 2009). A Alemanha que aporta em 1914, portanto, é uma importante potência industrial cujo sucesso se deve a três fatores principais – seu poder naval; sua exploração de ferro e carvão; e seu sistema de transporte ferroviário (KEYNES, 2002) – associados à direção dada pelo Estado unificado, que permite o desenvolvimento da indústria e das empresas nacionais. Mais que isso, entre 1871 e 1914, a Alemanha desponta como uma das grandes potências industriais europeias, de modo que disputa com as outras não apenas fatias de mercado já capturadas, mas, em verdade, novos mercados que serviriam à expansão da acumulação capitalista. Para Mazzucchelli (2009: 48-49), A competição pelo poder entre as nações, a exacerbação do nacionalismo e a rigidez do sistema de alianças revelavam a precariedade do equilíbrio internacional. A perspectiva de um confronto de maiores proporções lançou as nações envolvidas em uma corrida militar (...) [de modo que] as condições para a paz tornavam-se cada vez mais débeis.

Os conflitos que sucedem da região dos Bálcãs refletem, desse modo, o intenso confronto gestado no coração da Europa entre as principais potências da época. Trata-se, no limite, do embate entre movimentos de rivalidade e expansão, bem como das contradições impostas pelo próprio capital que, de modo a expandir-se e conquistar novos espaços de valorização, nutre e provoca crises. É no bojo desse contexto que a Alemanha industrializante caminha para a guerra em 1914 – e é tragicamente derrotada.

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Lastreadas sobre a aprovação do cartel compulsório pelo parlamento.

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3. A Paz de Versalhes e a frágil configuração da República de Weimar Quando analisa o futuro da Europa após a assinatura do Tratado de Paz de Versalhes, em 1919, Keynes (2002) afirma que as considerações a esse respeito precisam ser pessimistas. Em suas palavras, O Tratado de Paz não contém qualquer disposição orientada para a reabilitação econômica da Europa – nada que transforme as Potências Centrais derrotadas em bons vizinhos, nada que permita dar estabilidade aos novos Estados europeus, nada para salvar a Rússia; não promove de nenhuma forma um pacto de solidariedade econômica entre os próprios aliados (KEYNES, 2002: 157).

O excerto deixa claro o que era turvo às potências vencedoras do conflito mundial: uma Europa do pós-I Guerra somente gozaria de estabilidade e paz se o que tivesse sido concordado nos Palácios de Versalhes firmasse, ao contrário da humilhação dos derrotados, a cooperação entre os países europeus (e, também, “o Novo Mundo”). Subjugar a Alemanha, no coração da Europa, e humilhá-la14 perante o mundo não fora sábio, ainda que compreensível à luz do contexto internacional da época: claramente, o Tratado de Paz assinado entre os aliados e a Alemanha observava o vácuo de poder que se instalava. Apesar de sua participação na Guerra e sua projeção no cenário internacional, os Estados Unidos não assumiram o papel de poder hegemônico que já se lhes apontava – quer por falta de capacidade ou de vontade. Tal vazio de liderança (MAZZUCCHELLI, 2009) deixado pela Inglaterra, não mais hegemônica, não instigava às potências senão a esmagar a Alemanha, que apresentara desenvolvimento tão rápido e intenso ao longo do século XVIII e da primeira década do XIX. Destarte, o período entre 1919 e 1939 é marcado em larga medida pela crise da hegemonia inglesa. O padrão de conversibilidade entre o ouro e a libra esterlina, chamado na literatura econômica de Padrão-Ouro clássico (ou Padrão Ouro-Libra), fora completamente desestruturado pela Primeira Guerra Mundial e, uma vez que a Inglaterra se via severamente abalada pelo esforço e os resultados da Guerra, bem como todo o resto da Europa, não era mais factível tentar retornar ao padrão. O status quo ante bellum havia sido completamente modificado. Assim sendo, a libra esterlina não tinha a mesma posição de outrora no cenário internacional porquanto não mais imperava como meio de troca preponderante no comércio

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O artigo 231 do Tratado de Versalhes, destacado por Henig (1991a: 49) e também Keynes (2002), explicita que a culpa da Guerra fora declarada e sumariamente atribuída à Alemanha: “Os governos aliados e associados afirmam, e a Alemanha aceita a responsabilidade da Alemanha e de seus aliados em causar todas as perdas e danos a que os governos aliados e associados e seus cidadãos foram submetidos em consequência da guerra a eles imposta pela agressão da Alemanha e seus aliados”.

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entre países; tampouco inspirava confiança o suficiente para denominar contratos15. É nesse contexto caótico que a Paz de Versalhes fora redigida pelas delegações francesa, inglesa e estadunidense, ante as quais os alemães pouco puderam fazer para anuviar as imposições do Tratado que construiria a frágil e peculiar República de Weimar. O Tratado de Paz de Versalhes impunha à Alemanha todo o ônus da guerra: seria de sua responsabilidade o pagamento de todas as reparações, algo em si impraticável. Não obstante, o Tratado lhe desferia também restrições à produção industrial e ao desenvolvimento militar, bem como a limitava territorialmente. Desse modo, a Paz de Versalhes não apenas obrigava a Alemanha a pagar um preço impossível pela guerra, como lhe alienava as próprias capacidades de honrar com tais compromissos. A esse propósito, as linhas do Tratado desmantelavam sistematicamente os três principais alicerces sobre os quais a Alemanha se desenvolvera no período pré-guerra: o poder naval; a exploração de ferro e carvão; e seu sistema de transporte ferroviário (KEYNES, 2002). Em primeiro lugar, desarticula-se o poder marítimo da Alemanha a fim de isolá-la comercialmente: os aliados lhe confiscam toda a frota mercante e alienam-lhe todo direito a respeito das possessões no ultramar. Em segundo lugar, tomam-lhe as reservas de carvão do Sarre e o distrito da Alta Silésia, além de exigirem um pagamento anual à França em relação à suas perdas em carvão durante a guerra; ademais, “as importâncias devidas a título de reparação devem ser pagas parcialmente em produtos em vez de dinheiro” (KEYNES, 2002, p. 58). Finalmente, e em terceiro lugar, desarticula-se o sistema aduaneiro da Alemanha à medida que são impostas medidas que privilegiam as nações Aliadas no que diz respeito à tarifação, vigendo para eles o princípio da nação mais favorecida. Dessa maneira, percebe-se que a despeito de o pagamento de reparações de guerra ser observado como uma tradição nos conflitos europeus, o Tratado de Paz de Versalhes era bastante peculiar: além de impor à Alemanha o pagamento de um preço impossível pela guerra, eram-lhe sistematicamente destruídas as possibilidades de gerar riqueza e porventura arcar com as imposições. Portanto, é também compreensível que as promessas de pagamento tenham sido suspensas no ano de 1922 (SCHACHT, 1999), o que de modo algum suaviza o 15

Na segunda metade da década de 1920, a Inglaterra tentou restabelecer o padrão-ouro clássico, o que não foi possível. A maior parte das reservas de ouro do mundo concentrava-se nos Estados Unidos e a tentativa de vincular novamente a Libra (desvalorizada, no entreguerras) ao ouro foi percebida como uma empreitada artificial de supervalorização da moeda inglesa, assim alimentando expectativas de que, num dado momento futuro, a moeda se precipitaria a desvalorizar. Essa aposta contra a libra frustrou definitivamente a tentativa de retorno ao padrão-ouro clássico, além de evidenciar a crise da hegemonia inglesa.

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peso das imposições de Versalhes. De maneira emblemática, a relação mais íntima entre a assinatura do Tratado de Paz pelos alemães e a fragilidade do entreguerras, edificada na República de Weimar, estava sustentado num componente psicológico, abstrato, e não na real quantia a ser paga. Grosso modo, a Grande Guerra pouco resolvera. Não mitigou as tensões que nela resultaram. No tocante à Alemanha, a Guerra fez despertar novos (e velhos) anseios naquele povo, bem como provocou uma série de fenômenos que desembocariam na II Guerra Mundial. Assume-se, aqui, que a Segunda Guerra Mundial é um desdobramento direto da Primeira, e que a República de Weimar é, então, resultado da Primeira Guerra e também determinante da Segunda. A breve e frágil existência da República de Weimar (1919 – 1933) foi marcada por muitos altos e baixos, mas concebendo turbulências no plano político desde seu nascimento (HENIG, 1991a; MAZZUCCHELLI, 2009). A democracia parlamentar instituída se caracterizou pela ascensão do SPD ao poder (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, um partido de cunho socialista), o que suscitou o apoio da esquerda, de um lado, e a movimentação da direita (e, em especial, a extrema-direita), de outro, no espectro político – cenário no qual os partidos de centro (como o Zentrum) participavam cada vez menos, esvaziando-se paulatinamente até 1933. Os embates entre as frentes políticas eram frequentes, e os levantes de mais larga envergadura eram suprimidos pelo governo16. A ebulição no cenário político da República de Weimar estava alinhada, também, a uma série de outros fatores que geravam constante instabilidade. Ao longo de seus primeiros anos, até o fim de 1922 (quando da suspensão do pagamento das reparações), a pressão exercida pelos vencedores da Primeira Guerra gerava uma densa atmosfera de incerteza, o que conhecidamente afeta a dimensão econômica de qualquer Estado. As contas públicas da Alemanha naquele período sofriam com o ônus da guerra, de modo que o sintoma mais visível e dramático da crise econômica de larga escala era, possivelmente, o desemprego. Em 1920, 3,8% dos alemães se encontravam desempregados. Em 1923, o desemprego acometia 9,6% da população (MAZZUCCHELLI, 2009: 144), tendo crescido, então, cerca de duas vezes e meia. No entanto, a manifestação mais emblemática da crise econômica alemã no

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A exemplo da destruição da Liga Spartacus, grupo político de extrema-esquerda. Lideranças espartaquistas na República de Weimar, como Rosa Luxemburgo, foram assassinadas logo em 1919.

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período é a hiperinflação, o que consiste na instabilidade da moeda enquanto reserva de valor, ao passo que o nível geral de preços se eleva rápida e intensamente. Na Alemanha do imediato pós-I Guerra, a hiperinflação teve proporções alarmantes. Valendo-se do entendimento da moeda como, sobretudo, uma convenção fundada na confiança (MAZZUCCHELLI, 2009), suas funções básicas são apenas válidas se os agentes econômicos nelas acreditam17. A partir de 1919, percebia-se uma crise global de confiança em relação ao marco alemão, dada a incontestável instabilidade da República de Weimar nos planos político, social e econômico. A desconfiança em relação à moeda nacional implicava numa preferência por moedas estrangeiras (como o dólar), traduzida por uma fuga do marco e a consequente dolarização da riqueza na Alemanha, em primeira instância, e também por pressões sobre o câmbio, que se ia desvalorizando. Por conseguinte, a desvalorização cambial empurrava o nível geral de preços para cima, não só os preços de bens importados, mas também os de bens domésticos, já que “a valoração da riqueza e dos produtos, assim como a denominação

dos

contratos,

se

fazia,

progressivamente,

na

moeda

estrangeira”

(MAZZUCCHELLI, 2009: 149), o que repunha a inflação global para os limites internos. Sendo assim, ao passo que a fuga para o dólar se transforma num fenômeno generalizado – pressionando o câmbio –, o processo inflacionário se transforma em hiperinflação. A crise hiperinflacionária alemã só é suavizada por entre os anos de 1923 e 1928, período em que se percebe crescimento econômico e relativa estabilidade na República de Weimar, o que se deve em grande parte à entrada de capitais promovida pelo Plano Dawes (SCHACHT, 1999). Contudo, tão logo cessa o fluxo de capitais, a República mergulha novamente em crise. Com efeito, tal é a República de Weimar recém construída: extremamente frágil do ponto de vista político e também econômico. Ainda assim, é essa mesma construção que se mostra capaz de gerar movimentos sociais e culturais que parecem resgatar no povo alemão algo que persiste em sua cultura ao longo dos séculos. A fortaleza teria nascido da própria fragilidade. Tal ímpeto criativo, aparentemente solapado pela Guerra e a derrota, mas reedificado na República de Weimar, é o objeto de estudo da próxima seção. 17

O poder estatal, aí, deve desempenhar papel crucial na medida em que é responsável por afirmar a confiabilidade da moeda e lançar as bases necessárias para tanto. O que se verifica no bojo da economia nazista, no limite, é a inegável maximização do Estado, inclusive no tocante ao seu papel de agente econômico. Por vias do poder Estatal e da coordenação por ele engendrada, o regime nazista pôde não só re-estabilizar a moeda quanto dinamizar a economia.

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4. Cultura e barbárie na República de Weimar Impotência política; barbárie; convulsão social: muito é atribuído aos momentos finais da República de Weimar, mas pouco é observado em função de tudo quanto fora gerado de virtuoso ao longo de sua curta existência. Entre 1919 e 1933, a Alemanha não conheceu apenas um período de intensa instabilidade política e econômica. Pelo contrário: justamente porque instável, o país gestou ebulições culturais de ampla diversidade, tanto nas artes quanto na ciência – a exemplo do desenvolvimento da física quântica. Ao mesmo tempo em que lideranças políticas de esquerda eram exterminadas, a exemplo da Liga Spartacus (liderada por Rosa Luxemburgo), o cenário cultural na Alemanha vivia um período intenso. Como se num repentino sopro de vida, o espírito alemão outrora enaltecido pelas elites da classe média no pré-guerras logra manifestações no coração da República de Weimar (GAY, 1978; RICHARD, 1993); uma delas, o movimento expressionista alemão, que de modo singular intenta não apenas contestar a desordem social e política que se instalava na Alemanha, mas também denunciá-la18. Apesar de genuinamente rebeldes ante a instituição política da República de Weimar, não havia união ou coordenação entre os expressionistas, de modo que não existia também conteúdo programático de modo a canalizar sua manifestação em direção a alguma mudança na realidade. Destaca-se, ainda, outra manifestação artística de grande projeção na República de Weimar: a Bauhaus. Fundada por Walter Gropius, a casa de construção estatal veio a se tornar uma das maiores e mais influentes escolas de arquitetura, design e urbanismo do mundo, tendo criado seu estilo próprio – muito evidente em seus projetos arquitetônicos e nas criações tipográficas. Tal qual o expressionismo, a Bauhaus é uma das mais importantes heranças culturais deixadas pela República de Weimar, mas talvez venha a evidenciar com ainda mais clareza qual resgate do espírito alemão que sua idealização suscita. Segundo Gropius (apud LIRA, 2003), a Bauhaus não somente se lançava à educação artística, mas serviria – em sua concepção – ao exercício da “grande virtude socialista”, de sua “responsabilidade social como arquiteto” (GAY, 1978: 22). Ainda assim, do mesmo modo como o expressionismo, apesar de haver um propósito à criação da Bauhaus, este não teve força ou engajamento político o bastante. “Se é mesmo plausível a acusação de envolvimento

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A título de referência, um dos primeiros roteiros cinematográficos tidos como expressionista, O gabinete do Dr. Caligari, alude à completa deturpação da política e da ordem na Alemanha do entreguerras. Cf. GAY, 1978: 120 et seq.

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de seus mestres com a política socialista ou revolucionária, ao que tudo indica o nexo universalista fundamental da escola deixava-se impregnar de certo pathos de neutralidade” (LIRA, 2003: 74). É cabível, no entanto, assumir que a idealização de Gropius, a concepção fundamental da Bauhaus e seu propósito emparelham-se tanto com a educação estética do homem – tal como colocada nas cartas de Schiller (2011) – quanto com o que se evidenciava como o espaço de Kultur e seu apelo humanista e universalista nos anos que antecederam a unificação alemã. Com efeito, a Bauhaus não pretendia ser apenas um centro de formação técnica, mas realizar criações que servissem à humanidade (GAY, 1978; LIRA, 2003). Ainda que separados por quase um século, Schiller e a Bauhaus comungam de mais ideais do que sua distância no tempo sugeriria – o que, por sua vez, de um lado pode sugerir que algo no pensamento alemão tenha sobrevivido através das décadas; ou, de outro, que o projeto da Bauhaus (e também a força do expressionismo) resgate no homem alemão algo que há muito havia sido solapado e, então, em tempos de crise e convulsão social, volta a emergir como contestação. Contudo, mais uma assunção é necessária: ainda que a intensidade do período entreguerras venha a gestar movimentos de contestação ou oposição à ordem vigente na República de Weimar, é notório que lhes faltara fôlego, não por conta da pressão das forças políticas vigentes, mas – talvez – por conta da relegação ao segundo plano da velha acepção de Kultur do pré-guerras e, portanto, da solidificação do habitus como se dera em 1871. Com efeito, as intempéries nos planos político e econômico alemães19 na verdade catalisam – e não determinam – a barbárie que é gestada no interior da configuração da República de Weimar e que enfim eclode como uma força que não encontra barreiras sólidas o bastante no próprio povo alemão ante seu avanço20. Assim, as proporções até então inimagináveis tomadas pela crise de hiperinflação e pela taxa de desemprego na Alemanha ao longo do período entreguerras vem a emoldurar uma crise de contornos econômicos, mas cujo cerne está, no limite, na destruição da confiança na capacidade de o Estado chancelar sua própria moeda. Analogamente, a crise política vivida 19

Como abordadas no item anterior.

“E o verão de 1932 foi marcado por choques sangrentos entre comunistas e nazistas e socialistas e nazistas” (GAY, 1978: 181). 20

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em Weimar também é fruto de questões mais profundas. O ganho de cada vez mais cadeiras pelo partido nazista nas eleições parlamentares da República denuncia a degradação crescente de qualquer ordem social naquele período, ao mesmo tempo em que demonstra a força do habitus alemão, imbuído dos ideais militaristas e violentos nele cristalizados quando de 1871. Por mais que Hitler tenha sido nomeado chanceler da República em 1933 e apenas posteriormente dado cabo a toda sua estrutura para construir seu inventado III Reich, ele e seu partido dominavam o parlamento já em julho de 1932. Nesse sentido, a vitória de Hitler, do nazismo, e sua própria possibilidade são resultantes de qual soma de forças. O momentum do entreguerras, naturalmente, contribui para gerar as instabilidades que nele se percebem, mas a permissividade da barbárie pelo povo alemã se deve a uma transformação de caráter cultural cristalizada mesmo antes da Primeira Guerra Mundial. A crise, contudo, é projetada dramaticamente na República de Weimar; ela é, enfim, um reflexo da evolução do habitus alemão como se dera até então. No limite, ela é a morte da República de Weimar e de todas as suas manifestações culturais, a despeito das instabilidades que gestara.

Considerações Finais “Se até agora [a verdade] não comprovou sua força vitoriosa, isso não se deve ao entendimento que não soube revelá-la, mas ao coração que a ela se fechou e ao impulso que por ela não agiu” (SCHILLER, 2011: 45).

Longe de ser um mero nome à unidade política que antecederia o II Reich nazista, a República de Weimar (1919 – 1933) se configura não apenas como cenário de instabilidades econômicas, políticas e sociais, mas também como o berço de manifestações artísticas de vanguarda que se projetam no mundo todo, para a posteridade. Se a física quântica, a Bauhaus e o expressionismo são heranças da “cultura de Weimar” (GAY, 1978), tanto se deve justamente a fragilidade daquele construto político porquanto é ela que permite a contestação. Tal contestação pode ser identificada não apenas como um movimento fortuito, mas também como a recuperação de algo no povo alemão que parecia ter sido soterrado pelo ímpeto expansionista do II Reich, pela transformação do habitus e pela I Grande Guerra. Com efeito, o espírito alemão teria subsistido, dado um sopro de vida no constrito e humilhado coração da Europa. Pois então, se subsistira qualquer alusão à antiga idealização de Kultur em sua acepção mais humanista e universalista, talvez ela tenha sido esmagada no entreguerras. 18

Assim, muito embora a fragilidade econômica e política forneça combustível à barbárie, a permissividade de um povo ante a ela deve ter causas mais associadas a uma crise cultural. Em verdade, a importância em se observar o que ocorrera na Alemanha do entreguerras não reside apenas em sua relevância para compreender os alemães ou o pensamento alemão. O entendimento da crise que pulsa na República de Weimar porventura acende luzes sobre toda e qualquer crise na sociedade capitalista. (BELLUZZO; ALMEIDA, 2002). As contradições estão postas, afinal. O ímpeto expansionista das nações – e do capital – no pré-guerras não é senão o resultado das contradições postas pelo próprio sistema capitalista que, à medida que destrói sua base de valorização – o trabalho vivo – necessita conquistar mais e mais espaços de valorização, porquanto não é ordenado. De modo análogo, a ascensão do nazismo é, de um lado, a vingança do político sobre o econômico (BELLUZZO, 2009), um resgate desesperado, frustrado e contraditório de um ideal nacionalista como se ele fosse servir a mitigação da crise – quando, na verdade, é só o sintoma de outra. A leitura que se pretende fazer, contudo, é de que as crises na sociedade capitalista não residem apenas na compreensão das forças econômicas, mas também na compreensão de que a sociedade se transformara, assim como os conceitos de cultura e civilização. Tal como na República de Weimar, onde a Bauhaus e o expressionismo alemão foram projeções de um resquício de cultura, humanismo e universalismo num movimento fragmentado e sem unidade, é hoje mesmo perceptível a falta de tais valores – e unidade – nas sociedades capitalistas; e, à medida que as contradições da relação capital se tornam mais evidentes, essa falta é tanto mais notável. Quaisquer transformações sociais, enfim, não decorrem apenas de mudanças do ponto de vista material, mas muito devem à história da cultura. Ao mesmo tempo, se o capital esconde as relações sociais, é necessário compreender que a sociedade como é organizada permite fissuras por entre as quais a relação capital penetra; fissuras estas devidas não apenas às forças econômicas, mas à crise de valores.

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Referências Bibliográficas ARQUITETURA da destruição. Direção: Peter Cohen. Alemanha: Versátil, 2001, 1 DVD (121 min), son., color.. BELLUZZO, L. G. de M. Os antecedentes da tormenta: Origens da crise global. São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP: FACAMP, 2009. BELLUZZO, L. G. de M.; ALMEIDA, J. G. de. Depois da queda: A economia brasileira da crise da dívida aos impasses do Real. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. BRAGA, J. C. de S. Alemanha: império, barbárie e capitalismo avançado. In: FIORI, J. L. (org). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. GAY, P. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. HENIG, R. B. As origens da Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 1991a. ______. As origens da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 1991b. KERSHAW, I. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. KEYNES, J. M. As conseqüências econômicas da paz. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2002. LANDES, D. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimento industrial desde 1750 até nossa época. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. LIRA, J. T. C. Arquitetura Internacional e Kultur na Alemanha em torno de 1925. Risco, São Carlos, v. 1, n. 1, p. 74-77, 2003. MAZZUCCHELLI, F. Os anos de chumbo: economia e política internacional no entreguerras. São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP: FACAMP, 2009. MOURA, C. O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da autoimagem do sujeito moderno. Filosofia Unisinos, v. 10, p. 157– 173, mai/ago 2009. RAIMUNDO, L. da C. Alemanha: Mitos, fatos e desafios para o século XXI. Texto para discussão n° 1413. Brasília: IPEA, 2009. RICHARD, L. (org.). Berlim, 1919-1933: a encarnação extrema da modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

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