A Responsabilidade Civil para Além dos Esquemas Tradicionais: Prospecções do Dano Reparável na Contemporaneidade

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Revista Fórum de DIREITO CIVIL RFDC DOUTRINA E ATUALIDADES

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Business judgment rule e responsabilidade civil do administrador: ensaio sobre a função... Ermiro Ferreira Neto A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros... Chiara Antonia Spadaccini de Teffé Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia Luciana Vasconcelos Lima Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e a política de saúde... Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Yannie Araújo Mota A força supralegal da teoria concepcionista no direito brasileiro Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior A viabilidade e o conteúdo do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro... Amanda Souza Barbosa Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos direitos de personalidade por meio do testamento Flaviana Rampazzo Soares, Ísis Boll de Araujo Bastos A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva Angelina Cortelazzi Bolzam

Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel Leonardo Mattietto EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA Interpretação e o protagonismo da doutrina António Pinto Monteiro Trabalho criativo subordinado – A criação de obras intelectuais em execução de contrato de trabalho (com uma perspectiva de direito comparado) Alberto de Sá e Mello ENSAIOS E PARECERES Como a metodologia civil-constitucional pode contribuir para o debate sobre a tutela dos direitos da personalidade na Internet? Marcos Ehrhardt Júnior AGENDAS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Interpretação e protagonismo da doutrina juscivilista no Brasil – Escorço Paulo Lôbo

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Revista Fórum de DIREITO CIVIL

SETEMBRO/DEZEMBRO - 2015 | PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL ISSN 2238-9695

Revista Fórum de DIREITO CIVIL

RFDC

RFDC

A Revista Fórum de Direito Civil – RFDC nasce com o intuito de se tornar uma publicação de excelência, voltada ao Direito Civil. Com um conselho editorial composto por professores das mais conceituadas universidades do país e do exterior, o periódico veicula artigos doutrinários tratando de temas atuais e relevantes, com isso contribuindo para o desenvolvimento científico através de um debate de temas contemporâneos que permeiam o cotidiano forense e ao mesmo tempo merecem atenção de grupos de pesquisa em diversas instituições nacionais e internacionais. A estrutura da Revista foi concebida para colocar em destaque textos doutrinários nacionais e internacionais, além de seções específicas que tratarão da experiência estrangeira e de jurisprudência, pretendendo manter o leitor atualizado e, assim, tornando-se de leitura obrigatória para aqueles que militam no vasto campo do Direito Civil. A qualidade seguirá o selo da Editora Fórum, com larga tradição no campo dos periódicos jurídicos. Eis a síntese de uma revista que tem um objetivo: ser essencial aos que buscam aperfeiçoar-se e ir adiante. E-mail para remessa de contribuições:

III Congresso Brasileiro de Direito Civil – Direito Civil: Interpretação e o protagonismo da doutrina

Assinaturas

ISSN 2238 - 9695

www.editoraforum.com.br 9 772238 969008

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A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar Raul Cézar de Albuquerque

Ano 4 • set./dez. 2015

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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção na espacialidade... Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger

O abuso da cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda e a retroação... Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar

Revista Fórum de DIREITO CIVIL RFDC

A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais: prospecções do dano reparável... André Luiz Arnt Ramos

RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial Ana Paula da Silva Liberalino

ANO 4 - n.

Av. Afonso Pena, 2770 - 16º andar Funcionários - Belo Horizonte - MG CEP 30130-007 - Tel.: 0800 704 3737 [email protected]

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Revista Fórum de Direito Civil – RFDC Coordenação (Editor) Dr. Marcos Ehrhardt Jr, UFAL Conselho Consultivo Dra. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (FDUSP) Dr. Gustavo Tepedino (UERJ) Dr. José Antônio Peres Gediel (UFPR) Dr. Luiz Edson Fachin (UFPR)

Dr. Marcos Bernardes de Mello (UFAL) Dr. Paulo Luiz Neto Lôbo (UFAL/UFPE) Dr. Torquato Castro Júnior (UFPE)

Conselho Editorial Dr. Carlos Alberto Ghersi (UBA – Argentina) Dra. Celia Weingarten (UBA – Argentina) Dr. Eroulths Cortiano Junior (UFPR) Dr. Fernando Borges Correia de Araújo (FDUL – Portugal) Dr. Flávio Tartuce (EPD) Dr. Francisco Infante Ruiz (Universidad Pablo de Olavide – Espanha) Dr. Gonzalo Sozzo (UNL – Argentina) Dr. Gustavo Henrique Baptista Andrade (FASNE) Dr. Jaime Lorenzini Barria (Universidad de Chile – Chile) Dr. José Barros Correia Júnior (UFAL) Dr. Lucas Abreu Barroso (UFES)

Dr. Marcos Jorge Catalan (UNISINOS) Dra. Maria Olinda Garcia (FDUC – Portugal) Dr. Pablo Amat Llombart (Universidad Politécnica de Valencia – Espanha) Dr. Pablo Malheiros da Cunha Frota (UNICEUB) Dr. Ricardo Aronne (PUCRS) Dr. Roberto Freitas Filho (UNICEUB) Dr. Roberto Paulino Albuquerque Júnior (UFPE) Dr. Rodolfo Pamplona Filho (UFBA) Dr. Rodrigo Toscano de Brito (UFPB) Dr. Rodrigo Xavier Leonardo (UFPR) Dr. Toni M. Fine (Fordham Law School – EUA)

Correspondentes Internacionais Msc. Eduardo Dantas Dr. José Carlos de Medeiros Nóbrega Msc. Marianna Chaves

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Equipe Editorial – Coordenadores Msc. Carla Moutinho Msc. Jéssica Aline Caparica da Silva

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Luís Cláudio Rodrigues Ferreira Presidente e Editor Av. Afonso Pena, 2770 – 16º andar – Funcionários – CEP 30130-007 – Belo Horizonte/MG – Brasil – Tel.: 0800 704 3737 www.editoraforum.com.br / E-mail: [email protected]

R454 Revista Fórum de Direito Civil : RFDC – ano 1, n. 1, (set./dez. 2012)- . – Belo Horizonte: Fórum, 2012Quadrimestral ISSN 2238-9695

Esta revista está catalogada em: • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional) Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

1. Direito Civil. I. Fórum. CDD: 347 CDU: 347

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Impressa no Brasil / Printed in Brazil / Distribuída em todo o Território Nacional

Supervisão editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo Capa: Igor Jamur Projeto gráfico: Walter Santos

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Sumário

Editorial................................................................................................................................. 9 DOUTRINA E ATUALIDADES A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais: prospecções do dano reparável na contemporaneidade André Luiz Arnt Ramos.......................................................................................................... 13 Introdução................................................................................................................ 13 1  O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje...................................................... 14 1.1  O apequenamento da culpa....................................................................................... 15 1.2  O evanescer da relação causal................................................................................... 15 1.3  O dano e sua Verwandlung........................................................................................ 17 2  Percepções da mudança: dano reparável, precedente judicial e segurança jurídica......... 21 3  A concretização da mudança: a dogmática jurídica, a afirmação do precedente judicial e o sistema de responsabilidade civil brasileiro................................................ 26 4  Apontamentos conclusivos........................................................................................ 29 Referências.............................................................................................................. 30

Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção na espacialidade da responsabilidade civil Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger.............................................................................. 35 1  Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação na (re)construção da responsabilidade civil................................................................................................ 35 2  A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo.................................. 41 3  Da cátedra à corte: a aplicação da responsabilidade preventiva no direito comparado.... 45 4  A prevenção no Direito Civil brasileiro: elogio e crítica à função e estrutura.................... 50 5  Notas conclusivas..................................................................................................... 58 Referências.............................................................................................................. 59

Business judgment rule e responsabilidade civil do administrador: ensaio sobre a função da doutrina na construção de modelos jurídicos Ermiro Ferreira Neto.............................................................................................................. 61 1  Introdução................................................................................................................ 61 2  Modelos jurídicos e responsabilidade civil................................................................... 62 3  Business judgment rule: um modelo possível no direito brasileiro?............................... 65 3.1  Business judgment rule e a boa-fé como elemento nuclear do modelo brasileiro de responsabilidade...................................................................................................... 69 3.2  Business judgment rule e obrigações de meio............................................................. 71 3.3  Business judgment rule e sindicabilidade dos atos administrativos: possível analogia.... 74 3.4  Business judgment rule na jurisprudência da comissão de valores mobiliários............... 75 4  Conclusão................................................................................................................ 77 Referências.............................................................................................................. 79

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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros, de acordo com o Marco Civil da Internet Chiara Antonia Spadaccini de Teffé........................................................................................ 81 Introdução................................................................................................................ 81 1  A proteção da pessoa humana no ambiente virtual...................................................... 82 2  A elaboração do Marco Civil da Internet ..................................................................... 85 3  A orientação principiológica do Marco Civil da Internet................................................. 87 4  A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros............................................................. 90 4.1  O provedor de aplicações de internet.......................................................................... 92 4.2  O artigo 19 e a regra da notificação judicial................................................................. 93 4.3  O artigo 20 e o dever de informar .............................................................................. 98 4.4  O artigo 21 e a tutela da pornografia de vingança ....................................................... 99 5  A guarda de registros pelo provedor de aplicações de internet e a identificação do ofensor.............................................................................................................. 100 6  Considerações finais .............................................................................................. 103 Referências............................................................................................................ 104

Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia Luciana Vasconcelos Lima................................................................................................... 107 Introdução.............................................................................................................. 107 1  Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte............... 109 2  Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico ............................................ 112 3  Responsabilidade civil médica ................................................................................. 115 Conclusão.............................................................................................................. 118 Referências............................................................................................................ 120

Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e a política de saúde mental brasileira Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Yannie Araújo Mota..................................................... 123 Introdução.............................................................................................................. 124 1  Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas ............................. 125 1.1  Espécies de internações psiquiátricas...................................................................... 129 1.2  Direitos das pessoas em sofrimento psíquico........................................................... 130 2  Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano.......................................... 130 3  Autonomia existencial do drogadito ......................................................................... 132 Conclusão.............................................................................................................. 135 Referências............................................................................................................ 137

A força supralegal da teoria concepcionista no direito brasileiro Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior.............................................................................. 139 Introdução.............................................................................................................. 139 1  A proteção da vida intrauterina no direito regional latino-americano............................. 140 1.1  Sistema normativo de tutela.................................................................................... 141 1.2  Sistema jurisdicional............................................................................................... 144 2  A proteção da vida intrauterina no direito brasileiro.................................................... 147 2.1  O direito constitucional-civil e os direitos do nascituro ............................................... 149 2.2  Tutela jurisdicional da vida pré-natal......................................................................... 150 2.2.1 Aborto na hipótese de anencefalia na ADPF nº 54, STF.............................................. 151 2.2.2  Fertilização in vitro e a Lei de Biossegurança............................................................. 152

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3  A necessidade de adequação convencional do direito estatal brasileiro....................... 155 3.1  A convencionalização do Direito Civil......................................................................... 156 3.2  O diálogo com os precedentes da Corte IDH............................................................. 157 Conclusão.............................................................................................................. 158 Referências............................................................................................................ 159

A viabilidade e o conteúdo do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Teoria do Fato Jurídico Amanda Souza Barbosa....................................................................................................... 161 1  Introdução ............................................................................................................. 161 2  Constitucionalização e personalização do Direito Civil e o fim da vida.......................... 162 2.1  Impactos da CRFB/88 no Direito Civil: transição do viés patrimonial para o existencial ............................................................................................................. 163 2.2  Direito fundamental à morte digna no contexto do direito privado................................ 164 2.3  Diretivas antecipadas de vontade como exercício da autonomia privada e respeito ao projeto de vida................................................................................................... 165 3  As diretivas antecipadas de vontade: origens, disciplina e natureza jurídicas no Brasil................................................................................................................ 167 3.1  Surgimento e características das diretivas antecipadas de vontade............................. 167 3.2  Fontes normativas das diretivas antecipadas de vontade no Brasil............................. 170 3.3  Natureza jurídica do testamento vital à luz da Teoria do Fato Jurídico.......................... 172 4  Exame dos requisitos de validade do testamento vital............................................... 175 4.1  Manifestação de vontade livre e consciente.............................................................. 175 4.2  Capacidade do declarante....................................................................................... 176 4.3  Objeto lícito, possível, determinado ou determinável.................................................. 177 4.4  Forma prescrita e não defesa em lei......................................................................... 179 5  Considerações finais............................................................................................... 181 Referências............................................................................................................ 184

Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos direitos de personalidade por meio do testamento Flaviana Rampazzo Soares, Ísis Boll de Araujo Bastos.......................................................... 189 1  Introdução.............................................................................................................. 189 2  Os direitos de personalidade como voz essencialmente extrapatrimonial..................... 190 3  A dinâmica doutrinária da proteção ao nome, imagem e voz ...................................... 192 4  Avanços tecnológicos e novas expressões da imagem............................................... 194 5  Horizontes da exploração e de proteção póstuma de imagem, nome e voz.................. 196 6  A possibilidade de proteção da vontade pessoal pós-morte: novas feições do testamento a servir como instrumento para essa finalidade....................................... 200 7  Conclusões: o direito das sucessões como meio de proteção de interesses imateriais pessoais – Necessária desvinculação ao patrimonialismo clássico.............. 203 Referências............................................................................................................ 204

A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva Angelina Cortelazzi Bolzam.................................................................................................. 207 Introdução.............................................................................................................. 207 1  Noções principiológicas........................................................................................... 208 2  Origens históricas da cláusula rebus sic stantibus..................................................... 213 3  A revisão contratual no Código Civil de 2002............................................................. 215 4  Cláusula de exclusão da revisão judicial................................................................... 219 5  Revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor............................................ 219 6  Considerações finais............................................................................................... 221 Referências............................................................................................................ 222

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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial Ana Paula da Silva Liberalino................................................................................................ 225 1  Introdução.............................................................................................................. 225 2  Estruturação jurídica do contrato de locação empresarial........................................... 227 2.1  Breve relato histórico.............................................................................................. 227 2.2  Regime jurídico da Lei do Inquilinato......................................................................... 229 2.3  A proteção jurídica ao fundo empresarial................................................................... 229 3  Sistema normativo da ação renovatória.................................................................... 231 3.1  Natureza jurídica do direito à renovação.................................................................... 232 3.2  Prazo renovatório: uma vexata quaestio na Lei do Inquilinato...................................... 233 4  Interpretações do prazo renovatório: direitos e princípios em conflito.......................... 234 4.1  Critério literal.......................................................................................................... 235 4.2  Critério lógico......................................................................................................... 237 4.2.1  Elemento sistemático.............................................................................................. 239 5  Considerações finais............................................................................................... 241 Referências............................................................................................................ 243

O abuso da cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda e a retroação da mora Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar...................................................................................... 245 1  Introdução.............................................................................................................. 245 2  A cláusula de tolerância e a obrigação fundamental................................................... 246 3  O abuso da tolerância e a retroação da mora............................................................ 251 4  Conclusão.............................................................................................................. 254 Referências............................................................................................................ 255

A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar Raul Cézar de Albuquerque.................................................................................................. 257 1  Considerações iniciais............................................................................................. 257 2  Uma revisitação histórica......................................................................................... 258 3  Anotações sobre o dever de fidelidade recíproca....................................................... 260 4  A infidelidade como uma questão de direito matrimonial............................................ 262 5  A infidelidade como uma questão de responsabilidade civil........................................ 264 6  O quadro jurisprudencial e seus equívocos................................................................ 265 7  No toar da retificação.............................................................................................. 266 8  O direito à fidelidade do cônjuge.............................................................................. 268 9  Por uma teoria da responsabilidade familiar.............................................................. 269 9.1  Por um novo dever de fidelidade .............................................................................. 270 9.2  Para além da subsunção......................................................................................... 272 10  Considerações finais............................................................................................... 274 Referências............................................................................................................ 276

Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel Leonardo Mattietto.............................................................................................................. 279 1  Locação, sublocação e conflitos de interesses.......................................................... 279 2  Sublocação: autorizada ou irregular.......................................................................... 280 3  A consignação como um direito do sublocatário........................................................ 282 4  Conclusão.............................................................................................................. 286 Referências............................................................................................................ 287

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EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA Interpretação e o protagonismo da doutrina António Pinto Monteiro ....................................................................................................... 291 1  2  3  4  5  6 

Introdução ............................................................................................................. 291 O sentido do direito – O positivismo jurídico e sua superação..................................... 294 A jurisprudência e a doutrina entre as fontes do direito.............................................. 299 O modo de ser do direito ........................................................................................ 301 Uma amostra dos contributos da doutrina ................................................................ 302 Conclusão.............................................................................................................. 305

Trabalho criativo subordinado – A criação de obras intelectuais em execução de contrato de trabalho (com uma perspectiva de direito comparado) Alberto de Sá e Mello.......................................................................................................... 309 1  Trabalho criativo e liberdade criativa......................................................................... 309 2  Enquadramento empresarial do trabalho criativo. Os fins do contrato.......................... 310 2.1  A criação em execução de contrato de trabalho e as obras colectivas......................... 314 3  Criação intelectual assalariada, alienação do resultado do trabalho e atribuição do direito de autor.................................................................................................. 315 4  O contrato de trabalho de direito de autor................................................................. 316 5  Obras criadas em execução de contrato de trabalho – Em especial: os trabalhos jornalísticos, as fotografias, os programas de computador, as bases de dados........... 318 6  O direito pessoal (“moral”) de autor nas obras criadas em cumprimento de contrato............................................................................................................. 321 6.1  Direito de divulgação (ao inédito).............................................................................. 322 6.2  Direito de retirada................................................................................................... 323 6.3  Direito à menção da designação de autoria............................................................... 323 6.4  Direitos de reivindicação da paternidade da obra e de defesa da integridade da obra.................................................................................................................. 324 7  Trabalho e prestação de serviço para criação de obras intelectuais – Confronto de ordenamentos jurídicos estrangeiros........................................................................ 325 7.1  Direito alemão: oneração do direito de autor e atribuição finalista de faculdades de utilização da obra.................................................................................................... 325 7.2  Direito francês: titularidade originária e inalienabilidade do direito pelo autor............... 327 7.3  Direito italiano: aquisição derivada do direito pelo comitente...................................... 328 7.4  Direito espanhol: atribuição finalista presumida do contrato....................................... 330 7.5  Direito brasileiro: o direito de autor na titularidade do empregador.............................. 332 7.6  Direito britânico: atribuição originária do direito ao empregador.................................. 335 7.7  Direito estadunidense: atribuição da titularidade do direito determinada pela convenção ...................................................................................................... 336 7.8  Lei angolana: atribuição do direito ao empregador independente de convenção específica............................................................................................................... 337 7.9  Lei marroquina: atribuição do direito patrimonial ao empregador por efeito do contrato............................................................................................................. 338

ENSAIOS E PARECERES Como a metodologia civil-constitucional pode contribuir para o debate sobre a tutela dos direitos da personalidade na Internet? Marcos Ehrhardt Júnior........................................................................................................ 341 1 

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Como estudamos os aspectos jurídicos da Internet hoje?.......................................... 341

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O velho, Novo Código de Processo Civil não vai ser a resposta................................... 342 A tecnologia e suas constantes transformações tornaram-se um problema de todos.... 342 Pontos para o debate: o paradigma do individual para o tratamento das questões de internet seria o ideal?......................................................................................... 343

AGENDAS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Interpretação e protagonismo da doutrina juscivilista no Brasil – Escorço Paulo Lôbo .......................................................................................................................... 347 1  2  3 

Sobre o sentido de doutrina juscivilista..................................................................... 347 Interlocução da doutrina civilista com a jurisprudência – Crítica de certa tendência de colonização........................................................................................................ 349 Perspectivas........................................................................................................... 350

III Congresso Brasileiro de Direito Civil – Direito Civil: Interpretação e o protagonismo da doutrina............................................................................................... 353 INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES.................................................................................. 369

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Editorial

O número 10 apresenta uma posição de destaque em nossa cultura. Representa o melhor jogador, a nota máxima a ser alcançada... Em nosso caso, significa que atingimos o final de nosso quarto ano de existência. Eis que o projeto iniciado em fevereiro de 2012, numa reunião em Belo Horizonte, que se espalhou por todo o Brasil, devido às adesões dos membros dos Conselhos Consultivo e Editorial, consolida-se como uma alternativa expressiva entre as publicações especializadas em Direito Civil em nosso país. Este volume não poderia ser mais especial. Através de uma parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL), traremos a você os textos aprovados para o III Congresso Brasileiro de Direito Civil, que ocorreu nos dias 10, 11 e 12 de agosto, em Recife. Este foi, sem dúvida, o maior e mais importante evento de direito civil em 2015, congregando 31 (trinta e um) professores para enfrentar alguns dos temas mais instigantes de nosso tempo: direitos da personalidade na sociedade da informação, a interpretação do direito civil e as novas demandas sociais, prevenção de danos, função social da posse, interpretação dos direitos sucessórios e das questões existenciais das famílias. Com o tema central “interpretação e protagonismo da doutrina”, o evento teve como objetivo debater os métodos de interpretação do Direito Civil, em relação ao saber doutrinário e sua pertinência com as demandas da sociedade contemporânea. Para tanto, os expositores examinaram dialeticamente o conjunto de transformações na jurisprudência derivadas da interpretação civilista da Constituição de 1988 e do Código Civil de 2002, debatendo os desafios que se impõem à aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas. Além desses importantes tópicos, nada chamou mais a atenção dos presentes do que a problematização do papel da doutrina frente a questões atinentes aos novos direitos e à evolução tecnológica. Tudo isso justifica a escolha por este número especial, em homenagem às discussões apresentadas durante o Congresso organizado pelo IBDCIVIL. Os textos publicados nas próximas páginas passam por prospecções do dano reparável na contemporaneidade, discutem o papel da prevenção no direito dos danos, desafiam as fronteiras do dever de indenizar na internet e diante de situações relacionadas a cuidados paliativos e ortotanásia. Destaca-se ainda a delicada questão da autonomia existencial dos pacientes psiquiátricos e a viabilidade do testamento vital no ordenamento brasileiro, dentre outros temas que certamente provocarão grandes reflexões. A contribuição estrangeira está presente no excelente texto do Professor António Pinto Monteiro, responsável por uma das conferências de abertura do III Congresso

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 9-10, set./dez. 2015

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EDITORIAL

Brasileiro de Direito Civil, que nos apresenta suas impressões sobre o protagonismo da doutrina no direito europeu. A RFDC 10 ainda nos brinda com o importante trabalho do professor Alberto de Sá e Mello, sobre a criação de obras intelectuais em execução de contrato de trabalho, que mantém o compromisso da Revista com o diálogo dos saberes no enfrentamento de temas contemporâneos. A RFDC 10 não poderia terminar de um modo mais interessante do que trazendo ao conhecimento de seus leitores os resumos das palestras proferidas durante o III Congresso Brasileiro de Direito Civil. O momento é de celebrar a produção doutrinária em nosso país e voltar nossos olhos para sua importância. Para ilustrar tal afirmação, importante destacar o resumo da conferência do Professor Paulo Luiz Netto Lôbo, que tratou da importância da doutrina juscivilista e dos desafios que as novas tecnologias propiciam, sobretudo quando percebemos a crescente perda de habilidade para leitura das novas gerações, sempre impulsionadas pela imediatividade de respostas descontextualizadas, obtidas muitas vezes sem preocupação com a qualidade da fonte pesquisada. Como bem disse o professor, não podemos esquecer que “formação é mais que informação”, razão pela qual devemos estar comprometidos com a ressignificação dos institutos jurídicos fundamentais, num contexto de perene mudança social. Para tanto, urge valorizar a doutrina jurídica “como criação e crítica e não como repetição”. A partir desta afirmação, o Professor Paulo Lôbo alerta para a tendência de colonização da doutrina civilista nacional pela jurisprudência, destacando a necessidade de um diálogo, o que, numa perspectiva de mão dupla, dignifica atuar com a jurisprudência e não contra, sob ou sobre ela. Ensina o referido professor que “a doutrina jurídica opera no presente, orientada pelo futuro – dialoga com o caso, mas não está condicionado a ele. Seus ambiente e limites são as relações privadas e o sistema jurídico como um todo. Diferentemente, a jurisprudência opera em atenção ao fato passado, que é caso concreto, que a condiciona. Não pode ir além dele. Essa limitação é conquista do Estado de Direito”. Por esta razão, “é preciso à sedução crescente do precedente judiciário acrítico, sob risco de passarmos da centralidade da lei para a da jurisprudência. A força do precedente não está na decisão, mas na sua justificação, o que remete à doutrina”. Dedica-se esse número ao brilhante professor Luciano Camargo Penteado, um dos palestrantes do III Congresso Brasileiro de Direito Civil e que nos deixou no dia 16.9.2015, pouco mais de um mês após ter encantado a todos com suas instigantes reflexões, deixando um grande vazio nos corações de seus colegas professores e, principalmente, de seus alunos, que sempre encontraram nele um docente excepcional e um cidadão exemplar. Descanse em paz Luciano. Resta para nós, que por aqui ainda estamos, combater o bom combate, com o amparo e o conforto de suas lições. Maceió, AL, 18 de setembro de 2015. Marcos Ehrhardt Jr. [email protected]

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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais: prospecções do dano reparável na contemporaneidade André Luiz Arnt Ramos Mestrando em Direito das Relações Sociais junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico, associado ao IBDFAM. Advogado em Curitiba.

Resumo: O Direito Civil brasileiro perpassa momento de holística ruptura, na qual se arrostam diferentes sentidos de muitos de seus significantes centrais, como dano, segurança jurídica e atividade jurisdicional. Este trabalho se propõe a esboçar o estado dessas viragens no âmbito da responsabilidade civil (ou por danos) e projetar as mudanças ainda por vir, à luz do que vêm trabalhando alguns setores da literatura especializada. Parte da transição entre Estado de Direito e Estado Constitucional, da recompreensão do papel processual das cortes de vértice e da refuncionalização da responsabilidade civil, para, ao identificar o local onde se está (e do qual se parte), a travessia em curso e o pórtico que se projeta para além da margem, prospectar as possibilidades do modelo brasileiro de reparação civil, sob as lentes da segurança jurídica, mediada pelo precedente judicial. Diagnostica, assim, a confluência de sintomas da emergência do Estado Constitucional, da consagração do modelo de cortes supremas e da reinvenção da responsabilidade civil em responsabilidade por danos, sem olvidar da indisputável relevância do papel da literatura jurídica especializada na criação e atuação do modelo brasileiro de reparação de danos, bem como de sua adequação à unidade/complexidade do ordenamento jurídico. Palavras-Chave: Dano reparável. Segurança jurídica. Precedente judicial. Responsabilidade civil. Responsabilidade por danos. Sumário: 1 O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje – 2 Percepções da mudança: dano reparável, precedente judicial e segurança jurídica – 3 A concretização da mudança: a dogmática jurídica, a afirmação do precedente judicial e o sistema de responsabilidade civil brasileiro – 4 Apontamentos conclusivos – Referências

Introdução O sistema brasileiro de responsabilidade civil contemporâneo, além de mudanças que lhe são internas, enfrenta problemas muito próprios do momento de transformação pelo qual, em arco amplíssimo, passa a experiência jurídica europeia continental.1 Sucede que, por aqui, pouco se tem teorizado a respeito dessas viragens, que marcam a superação do modelo de Estado de Direito e o caminhar em MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente: justificativa do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 45-66.

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direção ao Estado Constitucional, tido como dado, ao menos desde a Constituição de 1988.2 Entre o escasso material que captou esta problemática, sobretudo no direito privado, são incomuns leituras despegadas de alarmantes ranços anacrônicos ou pouco afobadas em relação a alguns significantes ainda centrais, mas ressignificados. Sem embargo disso, eclodem, em alguns rincões da comunidade jurídica, constatações da holística metamorfose por que passa, meio apaticamente, o direito brasileiro. Em particular e visando ao escopo dum texto que não se pretende de fôlego, convém pôr em revista três categorias intercomunicantes, que, sem suficiente percepção da manualística, vêm sofrendo mutações sintomáticas do tempo de ruptura que se nos apresenta: segurança jurídica, precedente judicial e dano (reparável). Assim pretende-se, pela via da captação do que diz a literatura jurídica especializada, a verdadeira ou dogmática jurídica, esboçar a atuação dos vetores da mudança num ponto de convergência específico: a responsabilidade civil (ou direito de danos). Atento a este desiderato, o trabalho cinde-se em três seções: a primeira situa o problema posto em revista, com o pretensioso intento de identificar o local em que estamos (e do qual partimos); a segunda trata da convergência dos três focos de análise e de seu acoplamento no caminho que percorremos; a terceira, enfim, prospecta, conclusivamente, o pórtico desta travessia (trata de aonde vamos).

1  O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje A atual problemática inerente à responsabilidade civil contemporânea respeita à alardeada crise de seus pressupostos (ou filtros) tradicionais; àqueles “factos e condições que, em conjunto, produzem essa modalidade de obrigação de indemnizar”.3 A manualística, reflexo da literatura jurídica especializada de outrora, elenca, com algumas variações, três fatores principais: conduta humana, culpa (ou risco reconhecido em lei), nexo de causalidade e dano.4 Nenhum deles, contudo, preserva-se em sua inteireza.5

Cf. BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Interesse Público, v. 5, n. 19, p. 51-80, 2003. 3 JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 1995, p. 9. 4 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Método, 2012, p. 434. 5 É que “a responsabilidade civil e a consumerista, moderna e contemporânea, são colocadas em xeque, diante da não contenção da expansão desordenada dos danos de toda ordem (...), o que dificulta a restauração da igualdade objetivada pelo instituto. Amplifica-se essa situação pelos adjetivos que marcam as características da sociedade atual, cujos emblemas são o risco, a massificação, a superficialidade, a vigilância, a cibernética, o hiperconsumo, a globalização e, por que não, os danos” (CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem nexo causal e a responsabilidade por danos. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013 p. 198). 2

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1.1  O apequenamento da culpa A associação da responsabilidade civil a juízos morais quanto à conduta culposa de sujeitos de direito é típica duma acepção dita tradicional do Direito Civil, pelo qual se articula o dever de reparar como consequência do mau uso consciente e, portanto, moralmente reprovável, da liberdade individual.6 A centralidade do elemento volitivo da conduta culposa foi, paulatinamente, erodida pela vertiginosa expansão da complexidade das sociedades contemporâneas. É que, neste novo contexto, tornaram-se recorrentes situações em que pessoas lesam a esfera de interesses jurídicos de outrem por intermédio de atos que não lhe imputam faltas morais ensejadoras de algum tipo de responsabilidade.7 Despersonalizaram-se os danos, pelo que ficou inviabilizada a prova da culpa, atribuída ao lesado. Neste contexto, teve início “a busca de fundamentos para imputação da responsabilidade dos danos ensejados pelos riscos das atividades decorrentes do progresso”,8 donde advieram diversos fatores de objetivação da culpa, cujo desenvolvimento culminou com sua normatização e com a consolidação, para algumas hipóteses, da responsabilidade civil objetiva, que dispensa a conduta culposa.9 Assim, ainda que não se tenha, por completo, aberto mão da culpa como fator a ser tomado em conta na atribuição do dever de reparar, ela se arrefece e cede espaço em prol nexo de causalidade, de modo que a socialização dos danos oriundos da exploração de atividades de risco tidas como socialmente importantes rouba a cena da apreciação moral da conduta do lesante.

1.2  O evanescer da relação causal O segundo pressuposto da responsabilidade civil é o nexo causal. Essa figura, malgrado induvidosamente relevante, não aparenta se prestar a suprir o espaço deixado pelo definhar da culpa, por conta da atecnia com que é tratada nos mais diversos ordenamentos10 (SCHREIBER, 2012, p. 5). É que, apesar do notável esforço de autores especializados, as soluções, em concreto, muito dificultam a abstrata eleição da teoria aplicável (CAPELOTTI, 2012, p. 88-123; SCHREIBER, 2012, p. 51-78).

A propósito, v. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 13; GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010, p. 9. 7 ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery. Oxford: Hart Publishing, 1997, p. 33. 8 PAULA, Carolina Bellini de. As excludentes de responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Atlas, 2007, p. 13. 9 Para abordagem panorâmica do processo pelo qual se caminhou da indispensabilidade da prova da culpa para a consagração, mitigada ou elastecida, da responsabilidade objetiva, seja facultado remeter a JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 8, n. 454, p. 548-559, 1941; e SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 10 Assim: SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 248. 6

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A complexidade da questão é facilmente captável a partir da constatação de que há, ao menos, catorze teorias explicativas da relação de causalidade (DEUTSCH; AHRENS, 2009, p. 19-28), cujas pouco sutis variações servem de pretexto para um ecletismo judicial revelador da preferência pela pretensa realização da justiça no caso concreto, mesmo em detrimento da previsibilidade dos resultados. Isto é: “os tribunais têm simplesmente se recusado a dar ao nexo causal um tratamento rigoroso e de consequências aflitivas como o que fora, anteriormente, reservado à culpa”. Este quadro de incertezas, registre-se, vem, mesmo, conduzindo à formulação de propostas de imputação do dever de reparar à míngua de nexo causal (rectius: fora dos traços comuns identificáveis na indicada miríade de teorias). Começa-se, então, a falar em imputação objetiva: A insuficiência das construções retrocitadas para a imputação da responsabilidade por danos no direito civil e consumerista brasileiros não faculta uma travessia da responsabilidade civil para a responsabilidade por danos, a erigir uma categoria jurídica normativa, de matriz complexa, que abarque a imputação sem nexo de causalidade, previsível ou altamente provável, pela responsabilidade por danos. Essa construção pode ser denominada de formação da circunstância danosa, e pode auxiliar na interface do direito abstrato com a realidade concreta, a fim de densificar os direitos fundamentais e os pilares hermenêuticos de uma sociedade mais justa e igualitária, tendo em vista que conecta diversos matizes teóricos que sustentam uma perspectiva de uma responsabilidade por danos que possa melhor responder aos questionamentos postos pela sociedade hodierna.11

A proposta, genuinamente doutrinária, é chocante e tende a custar para ser bem assimilada pela comunidade jurídica em geral e, pelos aplicadores do direito em particular. Isso não quer dizer, contudo, que careça de concretização na judicatura: há a coisa, desprendida do nome, mormente no que respeita à atribuição de responsabilidade a instituições financeiras por fraude a sistemas online.12

CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem nexo causal e a responsabilidade por danos..., p. 196. No mesmo sentido: “Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar responsabilidade, o que, de todo correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima. Quando assim, a direção pode indicar a renovação do conteúdo da causa, e especialmente do nexo causal. A imputabilidade tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e de justiça social que se deve inebriar o nexo de causalidade, atento `formação das circunstâncias danosas” (FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 113-114). 12 “As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros — como, por exemplo, abertura de conta corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos —, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno” (REsp nº 1.197.929/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 12.9.2011). 11

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Seja como for (e fechado o parêntesis quanto à imputação objetiva), parece clara a veraz erosão dos filtros tradicionais do juízo de reparação, a impor a constatação de que “a responsabilidade civil principia por se vestir de direito à reparação de danos, com foco na vítima e não mais apenas no nexo causal”.13

1.3  O dano e sua Verwandlung Os holofotes se concentram, então, sobre o dano reparável, alçado ao posto de derradeiro mecanismo de controle e contenção a enxurradas de demandas frívolas: Não há dúvida de que, em um cenário de gradual objetivação da responsabilidade civil e de flexibilização da prova do nexo causal, a aferição do dano se eleva a único filtro capaz de, legitimamente, funcionar como instrumento de seleção das demandas de responsabilização. A melhor via parece ser, portanto, a de reconhecer o dano ressarcível como cláusula geral, operando uma efetiva ponderação de interesses em conflito para fins de configuração de elemento imprescindível à deflagração do dever de reparar.14

Outrora identificado ao ato ilícito, na condição de pressuposto da responsabilidade civil, o dano adquiriu, recentemente, autonomia.15 A tradicional orientação segundo a qual a responsabilidade civil se prestaria à repressão ou sanção do ilícito culposo,16 portanto, foi subvertida em prol da identificação do evento lesivo — cuja verificação parte do sujeito lesado — como elemento central do juízo de reparação. “A responsabilidade civil se redefiniu como uma reação a um dano injusto.”17 Daí as contemporâneas iniciativas teóricas empenhadas no diagnóstico da superação de um paradigma tradicional de responsabilidade civil e na consolidação paulatina de um

FACHIN, Luiz Edson. Direito civil..., p. 38. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 193. 15 LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1996, p. 15. Para além da referência indireta, importa ter em mente que a acepção mencionada não está, por completo, superada. Boa parte da manualística teima em abraçar a confusão entre dano e ato ilícito, em função da literalidade do texto normativo do art. 186, do Código Civil. Assim, e.g.: “O ato de vontade, contudo, no campo da responsabilidade deve revestir-se de ilicitude. Melhor diremos que na ilicitude há, geralmente, uma cadeia ou sucessão de atos ilícitos, uma conduta culposa. Raramente, a ilicitude ocorrerá com um único ato. O ato ilícito traduz-se como um comportamento voluntário que transgride um dever. Como já analisamos, ontologicamente o ilícito civil não difere do ilícito penal; a principal diferença reside na tipificação estrita deste último. Na responsabilidade subjetiva, o centro de exame é o ato ilícito. O dever de indenizar vai repousar justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011. v. 6. p. 25). 16 CUPIS, Adriano de. El daño: teoría general de la responsabilidad civil. Tradução de Angel Martínes Sarríon. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1975, p. 81. 17 LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto em la responsabilidad civil..., p. 15. 13 14

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novo paradigma, o da responsabilidade por danos18 (ou direito de danos19), articulado a partir de três linhas-mestras: a primazia da vítima, a solidariedade social e a reparação integral.20 Claro é, neste prisma, que, ao menos no plano enunciativo, “esse Direito de Danos não é meramente uma alteração de nomenclatura. Resulta de uma nova preocupação do Direito Civil em geral com a pessoa (...) a partir dos conceitos constitucionais da Carta Magna de 1988”.21 Nesse diapasão,22 a ilicitude, que correspondia, na opinião tradicional, ao elemento formal do dano,23 cedeu à força dos fatos. É que, a fim de acompanhar as sensíveis modificações por que vem passando a sociedade contemporânea, o ilícito teve de ser elastecido “a tal ponto que se dissolveu em sistema valorativo de resultados ex post facto”.24 Assim, ganhou espaço a noção de dano injusto, que permite, à luz dos referenciais valorativos albergados pela constituição material, identificar condutas que, ilícitas ou não, ensejam o surgimento de dever de reparar. Esta travessia, no Brasil, é tributária do pragmatismo de Aguiar Dias — a firmar que a noção de dano deva se restringir à ideia de prejuízo, de resultado de uma lesão25 — e da genialidade de Pontes de Miranda, a assim luminar a questão: O sistema jurídico traça as linhas de onde começa a responsabilidade pelo dano. A imputabilidade, a atribuição do dever de prestar indenização, nem sempre coincide com a antijuridicidade, nem com algum ‘ato’ que a lei repute ilícito. Às vêzes há regra jurídica que, para proteger algum

“O modelo de responsabilidade civil e consumerista vigentes parecem erodidos, porque sua reoxigenação histórica (...) não resolve o problema. As seis perspectivas constitutivas da responsabilidade por danos reportam à imprescindível tarefa do jurista de hoje, ao se debruçar sobre as reflexões que o Direito Civil e o direito do consumidor estão adstritos a realizar como fator de transformação social. Para tanto, a perspectiva de uma responsabilidade por danos constitui um de seus alicerces epistemológicos, a realizar os interesses da vítima, sem desconsiderar que o lesante também possui direitos e deveres” (CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem nexo causal e a responsabilidade por danos..., p. 212). 19 “[S]e antes o elemento primordial da responsabilidade (expressão que traz consigo a ideia de reprimenda, de desvalor moral) era a culpa, hoje o elemento basilar ao dever de indenizar é o dano. Nesse sentido, a própria expressão ‘responsabilidade civil’ tem um significado limitado, vez que nem sempre a imputação do dever de indenizar recai sobre o responsável pelo dano. Melhor referir-se a essa disciplina, hoje, como um direito de danos” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade civil contratual e extracontratual: primeiras anotações em face do novo código civil brasileiro. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (Org.). Responsabilidade civil: doutrinas essenciais. v. I: Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 396-7). 20 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23. 21 REZENDE, Adrieli; GONDIM, Glenda Gonçalves. Ilícito de perigo e ilícito de lesão: repercussões para o direito de danos. Revista Direito e Justiça – Reflexões Sociojurídicas, ano 13, n. 22, p. 120, abr. 2014. 22 Apesar da indiscutível relevância das propostas que conduziram ao reconhecimento da reinvenção da responsabilidade civil em direito de danos, o trato com suas premissas e consequências em muito extrapola os objetivos deste trabalho, pelo que a referência a esta novel abordagem finda por servir apenas à exaltação da importância ostentada pelas metamorfoses sofridas pelo dano no Direito Civil brasileiro contemporâneo. 23 CUPIS, Adriano de. El daño..., p. 81. 24 LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto em la responsabilidad civil..., p. 22. 25 Cf. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 7. ed., rev. e aument. Rio de Janeiro: Forense, 1983. v. 2, p. 794. 18

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interêsse de outrem, permite que se atinja a esfera jurídica de alguém, e estabelece, para equilíbrio, que o favorecido pela lei excepcional indenize o dano causado. Trata-se, aí, de intromissão permitida. Outras vêzes, há regra jurídica que não veda que se mantenha ou crie riscos para outrem, ou para outros, mas cogita a reparação dos danos que provêm dêsses riscos. (...) Tem-se, então, a dita responsabilidade pelo risco. Assim, a responsabilidade pelo ato ilícito, com o elemento do ato positivo ou negativo, voluntário, no suporte fático, é uma das espécies, pôsto que as leis costumem falar, em geral, de responsabilidade por atos ilícitos. Nem sempre há o ato, nem sempre há, sequer, a ilicitude.26

O dano injusto, vertido na dicção ponteana, desenha-se, então, como “o fato jurídico gerador da responsabilidade civil, em virtude do qual o ordenamento atribui ao ofendido o direito de exigir a reparação, e ao ofensor a obrigação de repará-lo”.27 Por outras palavras: o dano é um fato jurídico em sentido estrito que advém de outro fato jurídico que lhe seja antecedente, de sorte que: Os fatos jurídicos ilícitos no sentido lato (fatos, atos e atos-fatos ilícitos) produzem em geral o dano ilícito (fato jurídico stricto sensu ilícito); enquanto os fatos jurídicos lícitos lato sensu (atos e atos-fatos lícitos) podem eventualmente gerar o dano lícito (fato jurídico stricto sensu lícito).28

O dano, o Leitmotiv da responsabilidade civil, crivado pela literatura especializada, escapa da má redação dos dispositivos do Código que lhe enclausuram na ilicitude. Funda-se na lesão a um determinado interesse eleito pela ordem jurídica como superior em relação àquele que conduz a ação lesiva.29 Afinal, mesmo na literatura esquadrinhada em manuais, “o dever de reparar pressupõe o dano e sem ele não há indenização devida”.30 É necessário, contudo, para render azo a indenização, “que a vítima demonstre (...) que o prejuízo constitua um fato violador de um interesse juridicamente tutelado do qual seja ela o titular”.31 A definição dos interesses juridicamente tutelados, cuja lesão conforme um dano ressarcível, é, com efeito e ressalvada a problemática atinente à imputação objetiva, o grande desafio que se coloca aos contemporâneos sistemas de responsabilidade

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualizado por Rui Stoco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. LIII, p. 276-277. 27 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003, p. 43. 28 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano..., p. 44. 29 CUPIS, Adriano de. El daño..., p. 25-30. 30 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012, p. 77. 31 MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Do ressarcimento de danos pessoais e materiais. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1992, p. 17. 26

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civil.32 Isso porque o binômio paternalismo-vitimização,33 somado à salutar inauguração de toda uma nova axiologia pelos atos fundantes dos estados constitucionais pós-Segunda Guerra, encoraja a magistratura a chamar para si o papel de Vigilante, autoconclamado a envidar esforços distributivistas norteados pela intenção de atenuar os azares que acometem os vitimizados. Essa postura, contudo, conduz ao total desvirtuamento da responsabilidade por danos, que deve exercer função eminentemente compensatória;34 além de produzir um efeito colateral indesejado: a conta, diluída conforme a atividade exercida pelo demandado, é paga por toda a coletividade,35 o que prejudica, inclusive, o lesado-demandante. Não bastasse essa consequência negativa, a expansão quantitativa e qualitativa dos interesses, cujas lesões suscitam demandas de reparação civil, “vem exigir das cortes a aplicação de métodos ou critérios de seleção dos danos ressarcíveis, que, na maior parte dos ordenamentos, permanecem carentes de um exame crítico” (SCHREIBER, 2012, p. 85). Assim, tendo em conta a subversão da orientação tradicional, de resto potencializada pela técnica legislativa contemporaneamente preferida pelo legislador brasileiro, segundo a qual “a seleção dos interesses merecedores de tutela jurídica consiste em tarefa não do intérprete, mas do legislador”,36 propõe-se anunciação prospectiva dos trilhos aparentemente conducentes ao trato com o problema hodierno da

A esse propósito, v. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 377-384. 33 Este fator é enunciado por Atyah como um dos grandes responsáveis pela consagração de um sistema de responsabilidade civil injusto e ineficiente. Diz, in verbis: “A fourth factor is the growth of paternalism and the blame culture, which among other things has led many of us to attribute blame for injuries and accidents and losses to others, when we ourselves are perhaps responsible for what has happened, or at least could have insured against risks” (ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery..., p. 157-158). 34 Esta problemática é especialmente pronunciada em matéria de compensação de danos morais. A dogmática vanguardista, neste diapasão, sugere que o caráter punitivo da condenação por dano moral viola a tradicional dicotomia segundo a qual a responsabilidade civil tem caráter meramente compensatório, enquanto, ao direito penal, confia-se a punição pela prática de condutas socialmente indesejadas. “Não bastasse isso, há ainda no caráter punitivo diversas outras inconsistências. Primeiramente, se sua finalidade é desestimular condutas antijurídicas, é de se perguntar por que não se fala em caráter punitivo dos danos meramente patrimoniais. (...) Não há motivo que justifique a diversidade de tratamento. (...) Também há problemas no que diz respeito às relações entre o dano moral e a responsabilidade objetiva. (...) O intuito punitivo não integra a reparação do dano moral, não pertence à sua essência. O dano moral deve ser compensado em todas as hipóteses, inclusive nas de responsabilidade objetiva” (SCHREIBER, Anderson. Arbitramento do dano moral no novo código civil. In: SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 183). No mesmo sentido, mas com alguns temperos, Moraes admite o caráter punitivo da responsabilidade civil por dano moral em hipóteses excepcionais, porque “aplicado indiscriminadamente a toda e qualquer reparação de danos morais, coloca em perigo princípios fundamentais de sistemas jurídicos que têm na lei a sua fonte normativa, na medida em que se passa a aceitar a ideia, extravagante à nossa tradição, de que a reparação já não constitui o fim último da responsabilidade civil, mas a ela se atribuem também, como intrínsecas, as funções de punição e dissuasão, de castigo e prevenção” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 258). 35 ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery…, p. 111. 36 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 121. 32

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responsabilidade civil — definição do dano reparável, sem abdicação da flexibilidade do sistema e da previsibilidade de seus resultados.

2  Percepções da mudança: dano reparável, precedente judicial e segurança jurídica O atípico sistema de direito de danos brasileiro, articulado, à francesa, por cláusulas gerais, imprescinde, para sua construção e atuação, de sensatos exercícios de judicatura, os quais, por seu turno, não podem ser senão informados pela literatura jurídica.37 Mais que isso: a sisifica (re)construção deste sistema clama, para se tornar factível, por arranjos que lhe permitam conferir previsibilidade ao tráfego jurídico, sem perder em maleabilidade. Trocando em miúdos: a realização das potencialidades do sistema brasileiro de responsabilidade civil demanda o acoplamento de uma postura hermenêutica ao mesmo tempo tópica e sistemática38 à afirmação dum mecanismo estabilizador que já se delineia no horizonte de sentido posto diante da comunidade jurídica brasileira: o precedente judicial.39 É que, em arco bastante amplo, o direito brasileiro de hoje insere-se no campo de tensão gerado pela paulatina ruptura do vetusto modelo de cortes superiores — cujo abandono parece ser visto com renitência, talvez em função de questões culturais40 — e o vagaroso caminhar em direção ao

Nesta linha, “torna-se imprescindível a revitalização da doutrina, porque os horizontes do Direito não podem fossilizar-se na jurisdição e não se ampliarão sem a sua contribuição. A doutrina deve reassumir a postura e o compromisso de constranger epistemologicamente, conforme sustenta Streck, e questionar os fundamentos de decisões equivocadas, sem se portar como mera subscritora das decisões dos tribunais” (NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial: uma provocação essencial. Repro, ano 39, n. 232, p. 351, jun. 2014). 38 Tópica, porque consistente em “procedimento racional que se dirige a refletir por problemas a partir da abertura semântica de alguns significantes ou signos linguísticos” e sistemática porque “se opera com plúrima noção de sistema, haurido então, em vários significados, ora como conjunto de conceitos, ora como a composição de sentidos verificados pela função, mas sempre aberto, poroso e plural, de tal modo que se apresenta aqui o limite externo, o da unidade do sistema” (FACHIN, Luiz Edson. Direito civil..., p. 7). 39 Precedente e jurisprudência, longe de serem sinônimos, distinguem-se em caráter: (i) quantitativo — precedente respeita a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto jurisprudência refere a uma pluralidade deles (um conjunto de subconjuntos ou grupos). Nos sistemas amparados no precedente, a decisão que assume este caráter é uma; poucas vêm citadas em apoio do precedente. Nos sistemas em que há jurisprudência, se faz referência a várias decisões pretéritas, o que gera dificuldades quanto à identificação da decisão verdadeiramente relevante ou quanto à quantidade de decisões necessárias para que se possa dizer que há jurisprudência sobre certo tema; (ii) qualitativo — precedente fornece regra universalizável que pode ser depois aplicada como critério de decisão ou de analogia entre os fatos do primeiro e do segundo caso. “E’ dunque il giudice del caso sucessivo che stabilisce se esiste o non existe il precedente, e quindi — per cosìdire — “crea” il precedente”, a partir de raciocínio calcado nos fatos. Jurisprudência carece de análise comparativa dos fatos, na maioria dos casos, vez que se resume a enunciados sintéticos com pretensão de generalidade, aos moldes das regras jurídicas em geral. “[D]i regola i testiche costituisconola mostra giurisprudenza non includono i fatti che sono stati oggetto di decisione, sicchè l’applicazione dela regola formulata in una decisione precedente non si fonda sull’analogia dei fatti, ma sulla sussunzione dela fattispecie successiva in una regola generale” (TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Civilística.com, ano 3, n. 2, jul./ dez. 2014. [Online]. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2015. 40 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente..., p. 90-91. 37

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de cortes supremas, inclusive em prestígio à atribuição constitucional do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Nesse prisma, o estilo redacional41 historicamente difundido nas Cortes nacionais, sumular ou ementário (quase frasal), negligente em relação aos fatos, porque preocupado com os resultados,42 e algo displicente com o encadeamento lógico e cronológico de decisões pretéritas, tende a sofrer variações que o aproximem daquele típico do modelo de cortes supremas — não tanto da variação deste modelo no círculo da Common Law, porque, ainda que o cisma seja apenas de grau, nesta tradição jurídica predomina o precedente integrativo, enquanto, na continental, há mais espaço para o precedente interpretativo.43 Esta ruptura, haurida da renovação das premissas fundantes do ordenamento jurídico — em especial, do prestígio que o constitucionalismo democrático dá à dignidade humana44 e da retomada da segurança jurídica como standard primacial45 —, aponta para uma crescente valorização das circunstâncias de fato subjacentes a cada causa, a preocupação com os fundamentos de direito, a fixação de diretivas interpretativas e de opções valorativas.46 Isso tende a se fazer sentir com maior intensidade na seara da responsabilidade civil, dada sua sensibilidade pronunciada às contingências da vida em comum,47 sobretudo no elemento dano reparável, pelas razões já expostas. A prospecção, entre os processualistas, é bastante otimista. Mas supõe a superação dum poderoso óbice: a confusão, sobretudo em meio aos civilistas, de texto com norma, como antessala da segurança jurídica (a qual se confinaria na predeterminação

Stylus curiae é categoria de análise que, na comunidade jurídica lusófona, parece confinada à história do direito, mas tem muito a agregar ao processo civil e por simetria, ao direito material, dado o caráter instrumental daquele. Seus contornos são algo fluidos, mas parece acertado dizer-se que se trata dos “usos dos tribunais a julgar questões semelhantes” (HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005, p. 174). Ou melhor: das constâncias hauridas da prática redacional reiterada dos tribunais. O estilo judicial, assim, é importante elemento de contraste entre o modelo de cortes superiores — fiel à unidade entre texto e norma, pelo que protetivo à interpretação exata da lei, fixada com vistas para o passado e sem força vinculante (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 33-52) — e o de cortes supremas — atento à distinção entre texto e norma, pelo que dedicado a atividade lógico-interpretativa de atribuição de sentido, com vistas para o futuro e força vinculante (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas..., p. 53-78). 42 Cf. NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial..., p. 343-344; e SCHREIBER, Anderson. Em que medida os pressupostos da constitucionalização do Direito Civil têm sido acolhidos pela construção jurisprudencial? Palestra proferida no II Congresso Nacional do IBDCivil. Curitiba-PR, em 4 de setembro de 2014. 43 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 313. 44 COSTA, Pietro. Democracia política e Estado Constitucional. Tradução de Érica Hartmann. In: COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios sobre a história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 255. 45 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas..., p. 20-21. 46 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 191-210. 47 MORAES, Maria Celina Bodin de. Humor, liberdade de expressão e responsabilidade. Palestra proferida no Congresso Brasileiro de Direito Civil, Curitiba-PR, em 11 de junho de 2013. 41

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de enunciados normativos). Esta acepção formalista, enviesada e anacrônica, todavia ainda dominante,48 desse elementar princípio representa grave risco à dinâmica do precedente judicial no ordenamento jurídico pátrio. É que, na ebuliente tensão experimentada pelo Direito Civil brasileiro contemporâneo, o obsoleto formalismo interpretativo (com todos os cuidados que o emprego desta etiqueta demanda49) sucumbe diante da compreensão da segurança jurídica como cognoscibilidade, confiabilidade, calculabilidade e efetividade do direito, numa perspectiva dinâmica de controlabilidade semântico-argumentativa e garantia de respeito ao jurídico. Nesse sentido: Em vez de se propor um conceito de segurança jurídica exclusivamente vinculado à certeza por meio do conhecimento da determinação prévia e abstrata de hipóteses legais e aferível mediante descrição da linguagem — e para o qual o Direito é mera criação de um poder e precede, como algo totalmente dado a sua própria atividade aplicativa —, apresenta-se um conceito de segurança jurídica centrado no controle argumentativo e constatável por meio do uso da linguagem, por meio do conhecimento de critérios e de estruturas hermenêuticas, e para o qual o Direito é produto da experiência e resulta da conjugação de aspectos objetivos e subjetivos inerentes a sua aplicação. A segurança jurídica deixa, assim, de ser, no seu núcleo, mero fator lingüístico baseado na determinação prévia de hipóteses legais, para centrar-se em um conjunto de processos de determinação, de legitimação, de argumentação e de fundamentação de premissas, de métodos e de resultados envolvidos na definição de normas gerais e individuais. Em vez de algo pronto (“o Direito como segurança”), a segurança jurídica denota algo a construir (“um direito à segurança”); no lugar da “certeza semântica”, a “controlabilidade argumentativa”; no espaço da “atividade descritiva”, um “conjunto de atividades reconstrutivas e decisionais”. Intenta-se, com isso, ultrapassar a compreensão da segurança jurídica como garantia de conteúdo, baseada no paradigma da determinação, para uma segurança jurídica como garantia de respeito, fundada no paradigma da controlabilidade semântico-argumentativa e cuja realização depende de elementos, de dimensões e de aspectos a serem conjunta, sintética e equilibradamente avaliados.50

Assim, por exemplo, THEODORO JUNIOR: “Advoga-se ostensivamente a supremacia de valores abstratos, por engenhosas e enigmáticas fórmulas puramente verbais, que simplesmente anulam a importância do direito legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos claros e precisos que as demonstrem genericamente e, por isso mesmo, permitem ditar por mera conveniência do intérprete e simples prepotência do aplicador o sentido que bem lhes aprouver nas circunstâncias do caso concreto. (...) É nesse plano que devemos voltar os olhos para a segurança jurídica antes de advogar qualquer reforma legislativa e antes de agredir, às vezes, desnecessariamente, outras vezes, de maneira desastrosa, o direito positivo e o sistema que o preside” (THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista da EMERJ, v. 9, n. 35, p. 17 e 21, 2006). 49 Faz-se a ressalva em atenção às argutas críticas que Rodrigues Junior dirige ao fragmentário Direito Civil contemporâneo, sobretudo nos ataques que alguns propagandistas desta corrente dirigem ao positivismo kelseniano (cf. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O direito, ano 11, n. 143, p. 47, 2011). 50 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 272. 48

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Assim, reformula-se “o conceito de segurança jurídica em função da argumentação que fundamenta as decisões judiciais e não exclusivamente em função do texto legal”.51 É nessa nova (ressignificada) dimensão da segurança jurídica que se principia a desenhar o potencial do sistema de responsabilidade civil brasileiro. Isso porque muito se tem avançado no emprego de cláusulas gerais a situações concretas, no sentido da obtenção de resultados satisfatórios. E os avanços, sobretudo em matéria de definição do dano reparável, tendem a se confirmar e potencializar com a implosão do modelo de cortes superiores e a consolidação do de cortes supremas. Assim, as respostas dantes formuladas ganham novo fôlego e se recolocam como difusoras de novas soluções, sobretudo com a abertura de novo arsenal de ferramentas. Neste diapasão, o juízo concreto de atribuição do dever de reparar, centrado já não mais na culpa e nexo causal, mas no dano, é reforçado pela dimensão de segurança jurídica projetada pelo trato com o precedente judicial. E assim é por que o juízo de reparação depende de diálogo com mecanismos que outorguem, com iteratividade, previsibilidade ao ordenamento. Muito em síntese, o iter que se colhe, da literatura especializada, como ideal­ mente conducente à boa atribuição do dever de reparar, principia pela checagem da observância do dever de respeito recíproco demandado pela relação jurídica fundamental, que se reporta tanto à esfera personalíssima de cada sujeito quanto à patrimonial, porquanto o interesse humano tutelável diz respeito à idoneidade do bem que tem por objeto para fins de atendimento de necessidades humanas.52 Se a alegada lesão põe em xeque um interesse tutelado pelo direito, tem-se um forte indicativo de que se está diante de uma hipótese ensejadora de responsabilidade civil. Se não houve, nesta primeira análise, inobservância ao dever universal de respeito, prossegue-se à etapa seguinte, a qual consiste em “verificar se o interesse dito lesado (...) vem protegido por alguma norma do ordenamento jurídico”.53 Assim, se houver norma jurídica protetiva ao interesse lesado (positivada em diplomas normativos ou adscrita em decisões judiciais universalizáveis), prossegue-se à próxima etapa. Caso contrário, não há dano reparável. À mesma análise que se fez do interesse da vítima, deve se submeter o interesse do lesante. Destarte, se a conduta lesiva for vedada pelo ordenamento, o dano gerado poderá ensejar reparação. Se, por outro lado, não houver proibição ou o interesse do lesante for, também, protegido pelo direito, prossegue-se à verificação da existência de norma jurídica (em sentido amplo) determinadora de prevalência RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 185. 52 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução de Luis Díes-Picazo. Madrid: Civitas, 1993, p. 55 e ss. 53 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 162. 51

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entre os interesses conflitantes.54 Acaso um dos interesses possa ser afastado mediante aplicação de critérios interpretativos tradicionais, a lesão a interesse juridicamente tutelado de determinada pessoa pode configurar dano reparável, dependendo, apenas, da existência de lesão concreta. Diferentemente, se o conflito permanecer, segue-se a derradeira etapa: a ponderação dos interesses contendentes, “definindo a relação de prevalência ente eles, com base na leitura das circunstâncias concretas à luz do ordenamento jurídico”.55 Particularmente em relação à estabilização do vislumbre do escopo protetivo de normas jurídicas e dos interesses jurídicos tutelados que, se violados, conformam dano reparável,56 eloquente solução ofertada no bojo do modelo de cortes superiores é tributária da chave grupos de casos típicos, enunciada por Martins-Costa. A partir deste mecanismo, o conjunto das rationes decidendi invocadas pelas Cortes em julgamentos sucessivos sobre determinadas questões disciplinadas por intermédio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados (é, com precisão, o caso da responsabilidade civil) permitiria “a ressistematização desses elementos [normas jurídicas individuais criadas pelo juiz, à luz dos princípios e diretrizes axiológicas do ordenamento], originalmente extrassitemáticos, no interior do ordenamento jurídico”.57 Isto é, já não mais se fala, com alarde, dos riscos inerentes ao rompimento da clausura da segurança jurídica na predeterminação de textos normativos;58 a desconfiança em relação ao juiz, vetusto fator de reforço à projeção do juiz bouche de la loi, dissolve-se como névoa no solo: A técnica da cláusula geral será decisiva para uma construção do sistema jurídico comprometido com a realidade social e concreta contemporânea. O juiz merece a confiança dos operadores do Direito, carecendo-lhe, no entanto, melhor compreender seu papel e a sua responsabilidade social, por não ser ele um mero ‘aplicador da lei’, mas, de outro viés, um construtor do sistema jurídico, gozando de status constitucional para tanto.59

A atuação da magistratura (não retrospectiva e limitada à dicção do sentido da lei, como no modelo de cortes superiores, mas prospectiva e ciente de seu caráter criativo, já em diálogo com o modelo de cortes supremas), então, é o canal pelo qual

Cf. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 163-164. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 166. 56 Cf. ALTHEIM, Roberto. Atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro: superação da teoria tradicional da responsabilidade civil. Curitiba. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 123-125. 57 MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro. RIL, ano 25, n. 139, jul./set. 1998, p. 8. 58 Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica..., p. 25-29. 59 NALIN, Paulo. Cláusula geral e segurança jurídica no código civil. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 41, n. 0, p. 97, 2004. 54 55

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noções metajurídicas se incorporam ao sistema pela via da atuação sucessiva e prospectiva do intérprete.60 Os ecos do modelo das cortes superiores se fazem perceber, contudo, na medida em que “o alcance para além do caso concreto ocorre porque, pela reiteração dos casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio decidendi dos julgados, especificar-se-á não só o sentido da cláusula geral, mas a exata dimensão de sua normatividade”.61 O critério, apesar de avançado em relação ao formalismo exegético, ainda é o da jurisprudência, não do precedente — muito embora este já venha sendo debatido por civilistas de outras escolas.62 Daí situar-se no caminhar, na sede das percepções de mudanças ainda por vir. A alteração de perspectiva, portanto, já se coloca no campo de percepções dos setores atentos da comunidade jurídica brasileira. E nem se trata apenas da literatura vanguardista: também as Cortes a vêm, paulatinamente, assimilando. Disso é suficiente indício o acórdão pelo qual a Terceira Turma do STJ julgou o REsp nº 959.780/ ES, em que não obstante o uso de alguns critérios próprios do modelo de cortes superiores (especificamente, a chave do grupo de casos típicos), editou-se vero e próprio precedente. É que, por intermédio desse acórdão, a Corte de Vértice estabeleceu, em decisão transcendente e universalizável, referenciais valorativos e o caminho a ser trilhado pela magistratura para o arbitramento do quantum compensatório de dano moral indireto, pela morte de ente querido, sem perder de vista o caso que se estava a resolver. As normas adscritas constitutivas de suas rationes decidendi parecem ser “aplicáveis a todos os universos de situações que possam eventualmente ser enquadráveis em suas hipóteses normativas”.63

3  A concretização da mudança: a dogmática jurídica, a afirmação do precedente judicial e o sistema de responsabilidade civil brasileiro À medida que se avança na espinhosa travessia do modelo de cortes superiores ao de cortes supremas, do formalismo exegético às contemporâneas teorias da interpretação, começa-se a vislumbrar, no horizonte, o desenho do pórtico que se projeta para além da margem. Assim, a crescente valorização da função pretoriana, impulsionada pela tomada a sério da magistratura pelos próprios magistrados, pela

MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo código civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 81. 61 MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”..., p. 10. 62 Cf. TIMM, Luciano Benetti. O novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do Direito Civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 55. 63 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial..., p. 275. 60

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introdução do precedente judicial nos perímetros do ordenamento jurídico brasileiro e pela consequente revalorização do papel da dogmática, parece apontar para um modelo de responsabilidade por danos apto a oferecer a segurança que do direito se espera. Não se trata, como visto, duma segurança confinada na textualidade de enunciados normativos, mas de cognoscibilidade e efetividade do direito, haurida da intersecção de razões e autoridade,64 amarrada por um juiz que não mais se pretenda Júpiter ou Hércules, mas Hermes.65 Desse modo, as cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, antes tidos como irradiadores de insegurança jurídica,66 tornam-se, eles mesmos, fatores de agregação, polos de convergência desta segurança ressignificada, porque complementados pela atuação criativa e estabilizadora da judicatura: Diante da cláusula geral, o juiz tem poder para elaborar a norma adequada à regulação do caso; a cláusula é texto legislativo que conscientemente lhe dá amplo espaço para participar da elaboração da norma jurídica. A técnica das cláusulas gerais tem como premissa a ideia de que a lei é insuficiente e, nesse sentido, constitui elemento que requer complementação pelo juiz. (...) Só o respeito aos precedentes da Corte Suprema pode deixar claro que a cláusula geral se destina a dar ao Judiciário poder de elaborar a norma de aplicação geral, ainda que atenta a uma circunstância específica insuscetível de ser defendida à época da edição do texto legal. Ou seja, a norma judicial derivada da técnica legislativa das cláusulas gerais, não obstante considere uma circunstância que surge no caso concreto, deve ter caráter universalizante, na medida em que não terá racionalidade caso não puder ser aplicada aos casos futuros marcados pela mesma circunstância.67

Desse modo, particularmente no que respeita ao problema recortado por esta análise, a concreção do precedente judicial na condição de mecanismo estabilizador próprio do modelo de cortes supremas lança novas luzes sobre a outorga de estabilidade e previsibilidade à definição do dano reparável (injusto). É que, a um só tempo, impõe precedência (ao menos prima facie) das diretrizes interpretativas e referenciais valorativos transcendentes, empregados por Cortes intermediárias e de Vértice, sobre a contingência de cada caso ulterior, em relação à dimensão de tutela jurídica

V. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial..., p. 317-318. Cf. OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. ano 4, n. 8, p. 101-130, 2007. 66 V. THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica..., p. 30; e WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung. 2. ed. Göttingen: Van den Hoeck und Ruprecht, 1996, p. 476-477. 67 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente..., p. 60 e 62. 64 65

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ofertada a cada interesse conflitante e ao sentido das normas protetivas invocadas pelos litigantes. “Desse modo, os juízes não podem ignorar as decisões anteriores, o que significa que não podem decidir do nada (ex nihilo), ou seja, mesmo em caso de superação do precedente por overruling ou distinguishing, deverá o juiz partir das decisões anteriores e justificar o motivo de sua não aplicação.”68 Com isso, não se extingue o problema da delimitação de quais sejam os danos injustos, mas, à medida que se sedimenta o sistema de precedentes judiciais, deixa-se de ignorar a identidade e a medida de proteção de variados interesses juridicamente tutelados.69 De mais a mais, sem olvidar de que a formação do precedente se dá de forma paulatina e dinâmica,70 rompem-se as amarras inerentes à proposta de atribuição de sentido às cláusulas gerais a partir da leitura de grupos de casos típicos, na medida em que: Os conceitos indeterminados, pela sua própria natureza, facilmente se amoldam à alteração da realidade social. A permeabilidade desses conceitos confere ao Judiciário maior facilidade para adequar o direito aos novos tempos. Isso não quer dizer, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça não tenha que definir o sentido de um conceito indeterminado em face de uma específica situação no tempo. Trata-se de função essencial da Corte, uma vez que há necessidade de definir-se o sentido em que um conceito indeterminado deve ser compreendido em determinado momento histórico, evitando-se a sua múltipla e incoerente aplicação em face de casos similares.71

Isto é: mais vale a similitude fática entre a causa levada a julgamento com apenas um paradigma que a reiteração de determinado resultado para circunstâncias semelhantes, mas não tão bem delineadas. A transcendência substitui a repetição. O sistema, portanto, ganha, ao mesmo tempo, flexibilidade, estabilidade e previsibilidade. As teorizações acerca do precedente judicial, sobretudo, como sintoma do perfazimento dum modelo de corte suprema no Brasil, não é, entretanto, a salvação da

QUEIROZ BARBOZA, Estefânia Maria de. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 31. 69 O problema a que se refere é, precisamente, aquele que se considera dos mais difíceis no direito privado contemporâneo: “Um dos problemas mais difíceis do Direito privado contemporâneo consiste na determinação de quais são os ‘danos injustos’, pois não se sabe previamente quais são todos os interesses juridicamente protegidos. É a partir da análise dos casos concretos que se conclui pela injustiça ou não de um dano, não existindo um rol prévio de danos indenizáveis. (...) Apesar da caracterização do dano como injusto não estar apegada apenas à verificação dos aspectos subjetivos da conduta do lesionante, não se pode negar que tal exercício depende da ponderação contraposta dos interesses do lesionante e da vítima. A princípio todo dano sofrido será injusto, salvo se partir de uma valoração comparativa dos interesses em conflito se concluir que o ato lesionante era justificado. Certo é que esses interesses devem estar contidos no âmbito de proteção das normas jurídicas” (ALTHEIM, Roberto. Atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro..., p. 124-125). 70 A propósito: NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial..., p. 311. 71 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes..., p. 95-96. 68

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lavoura da responsabilidade por danos, dada a indispensabilidade de mediação da literatura jurídica especializada, que também colaborou para deflagrar a tematização do dano injusto e do precedente — e, especialmente quanto ao último, dar-lhe força suficiente para alcançar o direito positivo. Assim, deve-se retomar a participação cidadã da literatura jurídica na (re)construção e atuação do direito, pela via da interpretação e integração, colmatação de lacunas e exercício de tarefa crítica de jurisprudência,72 de modo a minimizar a discricionariedade e a arbitrariedade que, inevitavelmente, advêm do sufocamento de sua voz criativa pela prevalência da judicatura. Com efeito, a doutrina deveria desempenhar respeitável influência, especialmente sobre três espaços jurídicos: nos cursos de formação jurídica; na elaboração das leis e nas atividades jurisdicionais. A doutrina também deveria ter precípua função contributiva da atividade jurisdicional, na construção da jurisprudência e na fundamentação de suas decisões, confirmando ou modificando orientações aplicadas pelos tribunais.73

Destarte, a consagração desse mecanismo padronizador no direito positivo brasileiro não basta para resolver os complexos problemas inerentes à responsabilidade por danos. Seria ingênuo pensar o contrário. Seja como for, a desobstrução de canais de diálogo entre a literatura jurídica e os tribunais, na linha do que sugerem, com propriedade, Nunes et al,74 parece indispensável para a recompreensão das possibilidades atuais e potenciais sistema de responsabilidade civil brasileiro, no sentido de livrar-lhe do sítio da aleatoriedade de seus resultados.75

4  Apontamentos conclusivos O Direito Civil brasileiro contemporâneo se insere em importante momento de holística ruptura, no qual se arrostam diferentes concepções teóricas a respeito de significantes elementares, como norma jurídica, interpretação, adjudicação e segurança jurídica. Na transição que se desenha, compreensiva das pontes que levam do vetusto modelo de cortes superiores ao contemporâneo modelo de cortes supremas, os problemas inerentes ao modelo de responsabilidade civil albergado pelo Código de 2002 ganham corpo e começam a acenar para respostas que se delineiam neste novo horizonte de sentido. A ressignificação da segurança jurídica — que rompe os

Cf. FACHIN, Luiz Edson. Direito civil…, p. 184. NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial..., p. 336. 74 NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial..., p. 346-351. 75 Exemplos de iniciativas declaradamente voltadas a esta (re)compreensão são as já citadas obras de Marinoni (O STJ enquanto corte de precedentes: repensando o papel processual da Corte Suprema) e de Mitidiero (Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente). 72 73

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grilhões que a confinavam na predeterminação de enunciados normativos —, acoplada ao mecanismo estabilizador do precedente judicial e a uma postura hermenêutica ao mesmo tempo tópica e sistemática parece dar novos contornos ao dano reparável, última fronteira do juízo de reparação. Com isso, desenham-se as possibilidades de (re)estruturação e atuação prospectiva do sistema contemporâneo de responsabilidade civil brasileiro, a confirmarem-se pela revitalização do papel crítico e transformador da dogmática jurídica. Curitiba, junho de 2015.

Civil Liability Beyond Tradition: Contemporary Prospects on Personal Injury Abstract: Brazilian civil law currently undergoes a holistic fracture in which most of its most important signifier — such as personal injury, legal certainty and adjudication — assume renewed meanings. This article aims at outlining the state of these affairs in civil liability and at sketching ruptures yet to come, in the light of what avant-garde legal scholars have recently been developing. It departs from the downfall of the traditional Rechtstaat and the subsequent rise of contemporary constitutional state, the re-apprehension of the role played by supreme courts, and the refunctionalization of civil liability, to identify precisely where we are (and from whence we depart), the ongoing Verwandlung and the portico jutting beyond the margin. In this manner, it sketches a prospect of Brazilian-style civil liability, through the lenses of legal certainty, mediated by judicial precedent. At the end, it diagnoses the present-day intersection of notable symptoms of the rise of constitutional state, the emergence of a Supreme Court model — in opposition to traditional civil-law Superior Courts — and of the reinvention of civil liability into a model that resembles German Schadensrecht or Hispanic derecho de daños, and underlines the indisputable importance of legal scholarship in the development and work of Brazilian civil liability, as well as in its fitting into the unity and complexity of the wide-framed legal order. Keywords: Personal Injury. Legal Certainty. Judicial Precedent. Civil Liability. Tort Liability.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): RAMOS, André Luiz Arnt. A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais: prospecções do dano reparável na contemporaneidade. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 13-33, set./dez. 2015.

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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção na espacialidade da responsabilidade civil Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger Mestrando em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pósgraduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET). Membro do grupo de pesquisa em direito civil-constitucional Virada de Copérnico (UFPR). Presidente da Comissão de Relações Acadêmicas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro consultor da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.

Rafael Corrêa Mestrando em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Professor de Direito Constitucional, Responsabilidade Civil e Contratos das Faculdades Opet (Curitiba/PR). Advogado militante na área da Responsabilidade Civil. Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR) no eixo de Relações Jurídicas Contratuais e Responsabilidade Civil.

Resumo: partindo da exposição de como a doutrina valeu-se da interpretação civil-constitucional para realizar a transformação da responsabilidade civil do Estado Liberal na responsabilidade civil contemporânea, percurso que logrou relativizar até mesmo seus elementos essenciais, evidencia-se que a reformulação da função da responsabilidade civil não despertou o mesmo interesse. Ainda que há muito se falasse na finalidade preventiva da responsabilidade civil, o tema foi pouco explorado durante a citada transformação. A partir daí, o texto examina a estrutura (como funciona) e função (a que serve) da responsabilidade preventiva, através dos mecanismos de direito material que a instrumentalizam e de como tem sido aplicada no direito comparado. Ao final, apresenta um elogio à função, porém, critica a inserção dos mecanismos até agora propostos dentro da espacialidade da responsabilidade civil, deixando claro que o desafio da doutrina contemporânea será construir uma estrutura sistematicamente coerente que consiga inserir a prevenção no Direito Civil brasileiro. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Prevenção. Função. Direito civil-constitucional. Sumário: 1 Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação na (re)construção da responsabilidade civil – 2 A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo – 3 Da cátedra à corte: a aplicação da responsabilidade preventiva no direito comparado – 4 A prevenção no Direito Civil brasileiro: elogio e crítica à função e estrutura – 5 Notas conclusivas – Referências

1  Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação na (re)construção da responsabilidade civil Dentre os campos específicos do direito privado, certamente a responsabilidade civil se destaca na contemporaneidade por despertar interesse cada vez maior, R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 35-60, set./dez. 2015

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seja em aspecto acadêmico, pelas relevantes construções teóricas erigidas na última década sobre o tema, ou mesmo em aspecto prático, pelo desafio constante de oferecer resposta às mais criativas e inéditas problemáticas oriundas dos fatos sociais. Ancorada na culpa desde a época de Justiniano1 e com pressupostos rigidamente estabelecidos, a responsabilidade civil da modernidade exigia a ocorrência de um fato ilícito culposo que através de um claro nexo de causalidade tenha acarretado um dano concreto à vítima. A ausência de qualquer desses elementos, a serem provados por aquele que sofreu o evento lesivo, levava à improcedência de qualquer pedido de reparação. Os Códigos da modernidade bem demonstram essa configuração estanque da responsabilidade civil. Até mesmo pela sua essência liberal em vistas a beneplacitar a ampla liberdade privada, o direito da responsabilidade civil foi esteado nesta tríplice base que envolvia culpa, dano e nexo de causalidade, tanto para hipóteses de ilícitos relativos como para ilícitos absolutos, que vincam efetivamente a diferenciação entre responsabilidade civil contratual e extracontratual.2 O enunciado do art. 159 do Código Civil de 1916 bem elucida tais pressupostos: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Esse modelo de responsabilidade, tal qual o próprio Código Civil de então, apresenta-se como sintoma das codificações do século XIX, reconhecidamente marcadas pelo dogmatismo científico e pretensões de certeza e definitividade.3 Tais contornos, por certo, não poderiam manter-se.4 O próprio desenvolvimento da sociedade exigiu do Direito respostas a problemas que não poderiam ser adequadamente solucionados pela estrutura moderna da responsabilidade civil. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217. 2 Rodrigo Xavier Leonardo parte da máxima neminem laedere para precisar, a partir do mesmo núcleo, a diferenciação dogmática e histórica entre os polos mais típicos da responsabilidade civil: “Partindo-se da ideia de relação obrigacional como um todo — processualizada e polarizada pela finalidade do adimplemento —, destaca-se a indagação sobre as eventuais consequências jurídicas provenientes a frustração desse norte teleológico. Vale dizer, quais seriam as respostas dadas pelo Direito nos casos de frustração do processo obrigacional? Para responder essa questão, o direito privado tradicionalmente adotou a diferenciação entre a responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual. Essa distinção, por sua vez, costuma ser explicada pelos manuais de Direito Civil brasileiro a partir da diversidade das fontes a partir das quais poder-se-ia depreender o dever de indenizar” LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade civil contratual e extracontratual. In: NERY JR. Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. v. I. Teoria Geral. São Paulo: RT, 2010, p. 392. 3 “Em essência, sob os ares desse sentido de codificação, navegou-se pelo século XIX, sob uma concepção autoritária e dogmática da ciência; os saberes se projetavam em pretensões de universalidade e as questões do método eram todas submetidas à solução pelo conhecimento científico, com pretensões de certeza e definitividade” (FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 79). 4 Diversas questões comprovam tal perspectiva. Desde o deslocamento da ênfase anteriormente dada ao causador do dano para aquele efetivamente o suporta até a sua crescente objetivação, fato é que a configuração do dever de reparar projetado na responsabilidade civil foi objeto de uma intensa modificação, fruto também 1

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De um lado, as categorias jurídicas da responsabilidade civil moderna não ofereciam suporte às novas demandas; de outro, doutrina e tribunais viam-se impelidos a solver situações para as quais não havia um modelo de responsabilidade. Tal conflito revela a insuficiência do modelo clássico às questões que escapam a sua moldura, o que não passou desapercebido a Luiz Edson Fachin: Esse problema parece mera controvérsia conceitual. Não o é. E não o é porque não se trata tão somente de alcançar resultado prático com solução que encontre justificação. Versa, isso sim, sobre as dificuldades inegáveis que, na almejada harmonia lógica, decorrem de conceituações a priori. Em tais casos, os conceitos são afastados porque o Direito reclama soluções. Nada mais improvável que ofertar soluções, que colmatar vazios. Uma missão realmente indeclinável para manter a estrutura do sistema conceitual.5

Essa a espacialidade da margem de partida da transição da responsabilidade moderna para a contemporânea. Com o advento da Constituição Federal de 1988, realocando o vértice do ordenamento jurídico na dignidade da pessoa humana e na realização da justiça social, tornou-se imprescindível a reestruturação da responsabilidade civil para que, de fato, pudesse instrumentalizar os valores e anseios consagrados pela Constituição. As vozes da Carta da República, entretanto, não foram suficientemente ouvidas pela codificação de 2002, ao menos não na seara da responsabilidade civil. Promulgado oitenta e seis anos após o código ao qual sucedeu, e catorze anos após a Constituição, o “novo” Código Civil trouxe consigo inovações de grande relevo, como a responsabilidade objetiva nos casos previstos em lei e quando o dano decorrer de risco da atividade (art. 927), ampliou a responsabilidade do incapaz (art. 928), a adoção da teoria do risco-proveito na responsabilidade por fato de outrem (art. 932 e 933), entre outras,6 porém, limitou-se a repetir a redação da cláusula geral da responsabilidade civil insculpida no antigo art. 159 em seu artigo 186.

do reconhecimento da inserção direta de princípios e pressupostos da Constituição Federal em todas as searas do Direito Civil. Emerge daí, pois, uma série de discussões, como bem aponta Gustavo Tepedino: “Diante do novo panorama legislativo, doutrinário e jurisprudencial, polarizou-se o discurso jurídico entre aqueles que identificam na ampliação do dever de reparar uma vitória em si mesma, atribuindo ao Estado e aos empresários praticamente todos os ônus decorrentes da atividade produtiva; e, de outra parte, os que denunciam uma indústria de danos, propiciadora de verdadeiro enriquecimento sem causa.” TEPEDINO, Gustavo. O futuro da responsabilidade civil [Editorial]. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 24, p. iii. 5 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 50. Ressalte-se que no excerto transcrito, entretanto, o autor não se refere à responsabilidade civil, mas ao conceito de nascituro, que não é pessoa, mas é titular de direitos, ou seja, o Código confere poder a quem poder não poderia ter. De qualquer modo, a observação é absolutamente aplicável ao tema em análise. 6 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 224-227.

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Não seria a legislação, portanto, a adequar o direito posto às demandas da sociedade. Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a vigência do Código Civil de 2002, tendo à disposição apenas as velhas ferramentas da codificação de 1916, coube à doutrina a missão de reconstruir a responsabilidade civil, revendo sua função, estrutura e elementos, para que só então pudesse ela responder às situações que emergiam do plano da vida. Nem poderia ser diferente: “não se pode ser justo, aplicando o direito, quem não no sabe. A ciência há de preceder ao fazer-se justiça e ao falar-se sobre direitos, pretensões, ações e exceções”.7 Nesse cenário, marcado em um primeiro momento pelo descompasso entre uma Constituição Cidadã e um Código novecentista, e sequencialmente pela promulgação de uma codificação que ainda refletia as matrizes ideológicas e estruturais da modernidade, o método da interpretação civil-constitucional desenvolvido por Pietro Perlingieri na Itália e difundido no Brasil sobretudo por Maria Cristina de Cicco, Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, “surge como opção viável de aplicação atualizada do Direito Civil, na medida em que autoriza a ampliação do circuito do sistema civil fechado para uma dimensão mais ampla, para uma dimensão civil-constitucional”.8 Consiste esse método hermenêutico em realizar a constante releitura do Direito Civil a partir da eficácia direta que as normas constitucionais irradiam, buscando, em síntese, remodelar as categorias jurídicas do Direito Civil para nelas incluir os valores constitucionais e buscar a máxima realização do projeto constitucional.9 Sua aplicação e, antes, compreensão demandam a prévia superação de “alguns graves preconceitos” típicos da hermenêutica da modernidade e o reconhecimento de três pilares centrais do método. Exige que o intérprete reconheça: a) a natureza normativa dos princípios constitucionais, que não se limitam ao papel secundário de suprir lacunas;10 b) a unidade e complexidade do ordenamento jurídico, que gravita em torno dos valores constitucionais e pelas órbitas por eles desenhada; e c) que a interpretação não pode se limitar a subsunção do fato à norma, devendo comprometer-se com a aplicação sistêmica, dialética, aberta e plural do direito de modo a efetivamente realizar os valores constitucionais.11 Tais premissas implicam, dentre outras constatações, a despatrimonialização do direito civil, eis que a leitura das relações privadas sob as luzes da constituição, que elege como vértice a dignidade da pessoa humana, enseja o distanciamento MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Prefácio. Tomo I. Atualizado por Judith Martins-Consta et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 26. 8 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 31. 9 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 6. 10 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.) Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 18-21. 11 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 15. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 117. 7

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do individualismo patrimonialista e a funcionalização das relações patrimoniais, cuja leitura deve privilegiar os valores existenciais aos materiais. Prevalece o ser sobre o ter. Não se trata de desconstituir ou negar eficácia às relações patrimoniais, mas sim colocar os valores existenciais em um locus de preferência sobre os patrimoniais. Eis, aí, a ferramenta que permitiu à doutrina e, na sequência, aos tribunais, exercer com completude sua função de interpretar, reconstruir e aplicar as normas de direito privado de modo a compatibilizá-las com a Constituição. Para além de método de interpretação, a constitucionalização se releva como fundamento do Direito Civil, e como tal “se destina a construí-lo teórica e pragmaticamente nos caminhos para a solução correta dos casos”.12 Na travessia do Direito Civil calcado na ideia do código como “constituição do direito privado” para um direito civil-constitucional, cada um dos até então rígidos elementos da responsabilidade foram flexibilizados a fim de possibilitar a transição para o modelo da responsabilidade civil contemporânea. É o que o Anderson Schreiber chamou de erosão dos filtros da responsabilidade civil. A culpa perdeu o espaço dominante que outrora ocupava na configuração do dever de indenizar,13 mesmo no campo contratual,14 expandindo-se as hipóteses de culpa presumida ou mesmo de responsabilidade sem culpa. A pluralidade das novas formas de dano desafiou a concatenação de uma nova percepção acerca da tutela individual e coletiva de bens jurídicos em conjunto15 a uma nova interpretação da responsabilidade civil como um “direito de danos”.16 Nem mesmo o nexo de causalidade restou imune à transição. Diversas teorias foram desenvolvidas para remodelar a causalidade, aceitando-se em algumas que a causalidade seja equivalente, adequada, direta ou imediata, suficiente, entre tantas outras, de modo que, seja qual fosse a hipótese fática a exigir resposta jurídica, alguma

FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 116. Emerge daí as ponderações acerca da “objetivação” da responsabilidade civil, ensejada, além das diretrizes constitucionais, também pela fórmula decorrente do art. 927, parágrafo único, do CC/2002. Para tanto, ver: TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. II, p. 807 e ss. 14 Do mesmo modo, sobre o fim da predominância da culpa na seara do inadimplemento contratual, ver: CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. São Paulo: RT, 2013. 15 Como bem explica Anderson Schreiber: “À parte a questão das ações coletivas de reparação, parece inegável que, sob o ponto de vista substancial, a tutela dos interesses supraindividuais veio revelar a insuficiência da dicotomia dano moral-dano patrimonial e propor novos problemas, como se vê particularmente da discussão do chamado ‘dano moral coletivo’. Pressupõe a figura que seja possível causar dano moral de forma difusa, afetando-se uma comunidade de pessoas, para além da individualidade de cada um” SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 88. 16 Tal interpretação pode ser capturada na análise de Daniel de Andrade Levy: “Essa é a proposta que aqui fazemos, de um verdadeiro Direito dos Danos, disciplina que reuniria todas as regras atinentes ao processo de indenização da vítima e cujo fundamento metodológico seria a sua tutela prioritária. A autonomização desse conjunto não é uma construção nova, mas apenas uma constatação de que o processo de reparação tem assumido um caráter cada vez mais independente.” LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito de danos a um direito de condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 224. 12 13

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das teorias seria capaz de oferecer suficiente vínculo entre o fato e o dano,17 e em certa medida passa-se a admitir até mesmo a responsabilidade independentemente de nexo de causalidade,18 de modo a não deixar que a estrutura da regra prejudique a concretude dos valores constitucionais de proteção à pessoa. A própria função da responsabilidade civil muda sua direção. Tradicionalmente voltada a sancionar o comportamento culposo, prefere agora reparar a vítima, ainda que para isso pulverize a responsabilidade entre vários agentes que potencialmente se relacionem com o dano sofrido, deslocando-se, ainda que apenas em situações pontuais, da responsabilidade para a solidariedade.19 Tamanha a virada copernicana da responsabilidade civil que não raro verifica-se na doutrina apontamentos no sentido de que a responsabilidade civil passa por um momento de crise, cuja estabilidade só se atingiria com a construção de critérios seguros e harmônicos ao sistema constitucional vigente, papel, novamente, desempenhado pela doutrina.20 Mas ainda que se tenha alterado o tripé fundamental da responsabilidade civil, manteve-se a centralidade de sua finalidade reparatória: a responsabilidade civil consolidar-se-ia como mecanismo repressivo de oposição à violação de um dever jurídico previamente existente, seja ele de ordem absoluta ou relativa, uma vez que é nessa lógica que a reparação de danos materiais e compensação de danos morais operaram — e ainda operam — na lógica jurídica pátria.

FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014, passim; SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 56-68. 18 “Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar responsabilidade, o que, de todo correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima. Quando assim, a direção pode indicar a renovação do conceito de causa, e especialmente do nexo causal. A imputabilidade tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e de justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas” (FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 86). 19 GIUSTINA, Vasco Della. Responsabilidade civil, causalidade alternativa e a jurisprudência. In: MARTINS-COSTA, Judith; FRADERA, Vera Jacob de (Coord.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil: em homenagem a Clóvis do Couto e Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 327-337. 20 Aqui faz-se uma evidente alusão à salutar pesquisa efetivada por Anderson Schreiber na obra Novos paradigmas da responsabilidade, dedicada a perscrutar o novo momento que abarca a responsabilidade civil no direito pátrio. Em prefácio à referida obra, Maria Celina Bodin de Moraes aponta, com atenção maior às novas formas de dano, que: “Um pouco de ordem é justamente com que sonham aqueles que se dedicam ao estudo da responsabilidade civil [...]. Observa-se atualmente uma inundação de novos danos ressarcíveis, nada criteriosa, capaz de pôr em risco — em vez de proteger — os próprios fundamentos éticos e sociais que deram origem à extensão da responsabilização. Diante da premissa, autoexplicativa, de que nem todo dano pode ou deve ser reparado, o cerne do direito da responsabilidade civil passou a ser o estabelecimento de critérios — ou dos critérios — que justificam a transferência a outrem do prejuízo sofrido pela vítima em virtude da lesão a um bem jurídico seu.” MORAES, Maria Celina Bodin. Prefácio. In: SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. XII. 17

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E é justamente no contraponto dessa proposição que volta à cena o tema da responsabilidade civil preventiva: em lugar de apenas tutelar, por meio de reparação ou compensação, os bens/direitos/deveres jurídicos violados, ter-se-ia espaço também para a responsabilidade civil ocupar-se em prevenir a ocorrência de tais hipóteses lesivas?21

2  A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo A prevenção22 não é tema novo no campo da responsabilidade civil, mas não recebeu o mesmo prestígio e atenção que outros temas desse ramo. Ainda que há muito cogitada como princípio, função, ou mesmo fundamento da responsabilidade civil, a prevenção ficou fora do retrato da responsabilidade civil moderna. Fora, mas não esquecida. Pelo contrário, a prevenção vem sendo resgatada e remodelada para ocupar seu espaço no Direito Civil, ainda que com novos contornos. Aguiar Dias, em seu clássico Da responsabilidade civil expõe o esboço traçado por G. Marton para uma teoria unificada da responsabilidade civil, em contraposição à divisão entre responsabilidade contratual e extracontratual.23 A teoria unificada de Marton estabelece como primeiro fundamento da responsabilidade civil o princípio de prevenção, estranhando “que nunca se tenha atribuído a merecida importância à ideia da prevenção”.24 Diz o autor: A prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas também da repressão civil. Pena e reparação, profundamente diferentes na estrutura interna, são, sem embargos, meios iguais da política legislativa; servem, como disse muito bem Von Liszt, em derradeira análise, ao mesmo fim social, a defesa da ordem jurídica, lutando contra a injustiça.25

Aguiar Dias, embora aceite ponto a ponto a posição de Marton, observa que responsabilidade civil não pode ter por fundamento primário apenas a prevenção.

Como já se alertou, tem-se na doutrina diversos trabalhos que abordam o caráter preventivo da responsabilidade civil. Nada obstante, destaca-se singularmente sobre o tema a tese erigida por Thaís Goveia Pascoaloto Venturi, intitulada Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material” (São Paulo: Malheiros, 2014), ante o enfoque único dado a tal perspectiva, servindo, pois, como base central ao presente tópico deste trabalho. 22 Ainda que alguns autores tomem os termos prevenção e precaução em sentidos distintos, tendo o primeiro objetivo de evitar danos prováveis e o segundo de evitar danos possíveis (cf. GONDIM, Glenda Gonçalves. Responsabilidade civil sem dano: da lógica reparatória à lógica inibitória. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, 2013, p. 202), toma-se aqui a prevenção como gênero, de modo a abarcar tanto os danos prováveis quanto os possíveis. 23 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, passin. 24 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 120. 25 MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile, 1938, nº 70, apud AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 121. 21

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Acredita o autor que a prevenção é de fato um dos fundamentos da responsabilidade, notadamente o fundamento prospectivo, voltado ao futuro, mas também o é a reparação, voltada ao passado. Apenas pela conjugação desses dois fundamentos a responsabilidade civil cumpriria de fato a manutenção do equilíbrio social estabelecido. Salutar evidenciar que ambos os autores tratam da prevenção na responsabilidade civil equiparando-a a prevenção geral negativa do direito penal, ou seja, pela convicção de que os sujeitos, sabendo que terão de responder pelos danos por eles causados, deixarão ou evitarão cometê-los, atuando, portanto, como elemento psicológico. Apesar da grande relevância atribuída à prevenção por estes autores, ela não chegou a se inserir na espacialidade da responsabilidade civil tradicional, sendo relegada, quando muito, a cumprir uma função secundária do dever de reparação, notadamente a de desestímulo. Na já tão mencionada travessia da responsabilidade civil, Giselda Hironaka aponta para a retomada da prevenção, mas já não com a mesma roupagem: Como um retrato que não se suporta mais em sua própria moldura — estreita demais para o enfoque —, avolumam-se as novas necessidades, emergem as atuais tendências e contemporanealiza-se a mentalidade reparatória. Privilegia-se a prevenção dos danos, em razão da supremacia dos denominados interesses difusos e coletivos. As experiências concretas do cenário atual fizeram surgir uma nova modalidade de responsabilidade civil que destaca certas situações tuteláveis entre as inúmeras situações de perigo imagináveis, circunstância essa que busca, antes de tudo, evitar a produção do dano em face de certo grupo, agrupamento ou categoria de pessoas, razão pela qual se as convenciona chamar de situações supra-individuais ou metaindividuais tuteláveis.26

A prevenção, para a autora, não mais se relaciona com o objetivo abstrato de dissuadir a realização do dano através do desestímulo dirigido ao causador pelo dever de reparação. O significante prevenção ganha o significado de tutela jurídica efetivamente voltada à não realização de danos decorrentes de perigos imagináveis, através de ações concretas e objetivas, e não mais como a ficção de um desestimulo psicológico. Tais perspectivas assentam-se, em primeiro lugar, na assertiva de que uma dimensão considerável dos danos hoje vista atinge a esfera extrapatrimonial das pessoas, contemplando, em grande parte, direitos de personalidade cuja tutela posterior à violação mostra-se, no mais das vezes, desprovida de qualquer utilidade.27

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 220. 27 Nas palavras de Thaís Goveia Pascoaloto Venturi: “Compreender-se a incidência do sistema de responsabilidade civil por um viés preventivo parece ainda mais necessário e oportuno na medida em que se constata que 26

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Logo, pensar a responsabilidade civil como mecanismo reparatório repressivo, nessa perspectiva, seria condizente apenas com uma visão já ultrapassada que conceberia a tutela do direito subjetivo apenas quando já houvesse a violação, ignorando a motivação da ordem jurídica em coibir os ilícitos em todas as medidas, mesmo antes da ocorrência do dano. Do mesmo modo, tal paradigma da prevenção exsurge imbuído em uma “ética de responsabilidade”, que contempla não só a complexidade das relações sociais, implicando em ser “responsável”, mas levando em conta também uma característica de alteridade,28 promovente, ao seu turno, de uma perspectiva que leva em conta o sujeito enquanto pessoa, na concretude de sua existência, conforme exige o projeto constitucional e a já mencionada despatrimonialização do Direito Civil. Tal reflexão, deflagrada em uma análise sociológica, deságua em uma investigação eminentemente científica que visa perscrutar a composição e encadeamento corretos dos conceitos jurídicos inerentes ao dever de indenizar postos no direito da responsabilidade civil, concluindo-se que, a rigor, a doutrina tem comumente promovido uma correlação confusa acerca de dois pressupostos relevantes, vistos no elo quase que obrigatório entre ilicitude e dano. Em linhas gerais, a doutrina central e mais clássica da responsabilidade civil, mesmo ante as flexibilizações erigidas em alguns de seus filtros essenciais, entende como indispensável a configuração do dano para deflagrar, como efeito reparador ou compensatório, o dever de indenizar.29 E é justamente no contraponto de tal assertiva que a responsabilidade civil preventiva encontra novo abrigo: em uma análise rigorosamente concreta, o que a ordem jurídica coíbe é a prática de condutas ilícitas, pouco importando se, a rigor, delas emergem ou não prejuízos fáticos. A vedação ao ilícito posto na ordem jurídica constitui, pois, o fim maior de se impedir a ocorrência de danos e lesões, sendo o desígnio da reparação/compensação, dentro do paradigma repressivo já referido, o fito secundário da responsabilidade civil, que pode ser concebida para a finalidade maior de se prevenir a ocorrência de

grande parte dos direitos mais caros aos seres humanos [...] se caracteriza pela nota da extrapatrimonialidade, não comportando solução repressiva satisfatória” VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 30. 28 A reflexão ora posta sobre o que “é ser responsável” liga-se diretamente à análise consolidada Max Weber na obra Ciência e política: duas vocações (São Paulo: Cultrix, 1993, p. 109 e ss) a partir da ciência do sujeito acerca da consequência de seus atos e como coibi-las para alcançar uma problematização assim disposta: “A ética da responsabilidade implica constantes reflexões a respeito da dinâmica dos direitos e deveres socialmente incidíveis não apenas sobre os indivíduos que se inter-relacionam diretamente, como também sobre os indivíduos que dependem do equilíbrio geral das relações humanas e, portanto, por elas se responsabilizam” Ibidem, p. 198. 29 Por todos, veja-se o que aponta Fernando Noronha: “Só teremos responsabilidade civil quando existir um dano resultante de uma lesão antijurídica e só teremos esta quando existir um ato ou fato antijurídico” NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 498.

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qualquer conduta ilícita, independentemente de que dela possa resultar determinado dano.30 Em termos mais simples: na lógica do paradigma da prevenção, a ilicitude é tomada em sentido lato, justamente para dar conta de tutela de categorias de direitos especiais (como os fundamentais e de personalidade) que não se subsomem confortavelmente a soluções reparatórias ou compensatórias a posteriori.31 Tais ponderações implicam necessariamente investigar a existência de espaços para a aplicabilidade prática dos pressupostos da responsabilidade civil preventiva. Nesse passo, Thaís Goveia Pascoaloto Venturi propõe a efetivação de mecanismos de tutela inibitória material estruturados em três ordens distintas. O primeiro mecanismo poderia ser verificado na autotutela, esteada na interpretação sistemática dos artigos 12, 249, parágrafo único e 251, parágrafo único, todos do CC/2002, que perfazem, em certa medida, uma forma de tutela inibitória material (= fora do campo processual) posta à proteção preventiva de direitos de personalidade e outros inerentes às obrigações de fazer e não fazer. De outra margem, aí como decorrência de análise do direito comparado, emerge também a figura do ressarcimento de despesas preventivas postas à satisfação de autotutela de direitos fundamentais mirados por danos certos, prováveis ou iminentes, tal qual se determinou na União Europeia pela aplicação da Diretiva 2004/35/CE. Por derradeiro, haveria também a possibilidade de aplicação de multas civis, como forma de “pena privada” a coibir a reiteração de danos ou ameaça de danos a bens jurídicos tutelados.32 A retomada da prevenção aqui sinteticamente esboçada retrata como a doutrina, contando quase que exclusivamente com a hermenêutica civil-constitucional, reconstruiu a figura jurídica da prevenção, outrora definida como um desestímulo psicológico realizado de forma geral através da ameaça de imputação do dever de reparar o dano causado, em um instrumento jurídico que, através da autotutela, do ressarcimento de despesas preventivas ou das multas civis, constitui ferramenta disponibilizada à própria vítima para concretamente evitar a ocorrência do dano.

Nesse plano, expõem-se que: “De fato, a noção tradicional de ilicitude foi construída no direito civil clássico a partir da perspectiva patrimonial, concebendo-se o ato ilícito puramente pela sua consequência, isto é, o dever de indenizar oriundo do dano ao patrimônio. É importante observar que, na medida em que necessariamente o ilícito ao fato danoso, ignora-se que a conduta ilícita, por si só, independentemente de produzir danos, representa violação ao Direito que igual e autonomamente merece tutela, sobretudo nos sensíveis campos dos direitos extrapatrimoniais e fundamentais. Trata-se de compreender que inibir a conduta ilícita não é o mesmo que inibir o evento danoso” VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 210. 31 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 215. 32 Para uma análise detida de tais mecanismos, cujo aprofundamento escaparia dos limites deste trabalho, ver: VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 350-368. 30

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3  Da cátedra à corte: a aplicação da responsabilidade preventiva no direito comparado Em que pese estejam traçados os contornos iniciais dessa responsabilidade preventiva da doutrina brasileira, ainda carecemos de uma jurisprudência consolidada sobre o tema e que permita visualizar sua aplicação em casos concretos, de modo que se faz necessário recorrer ao direito comparado para figurar sua aplicação. Os três mecanismos de tutela inibitória material propostos por Thaís Venturi têm espaço no direito comparado, notadamente a autotutela, a multa civil objetivando dissuadir a repetição da conduta danosa, e por fim, a figura do ressarcimento por despesas preventivas. Começaremos por esta, pois é a de maior aplicação prática, sobretudo pelas cortes europeias. Os precedentes que apreciaram a preventive expenses incurred before the daming event podem ser analisados em três categorias, divididas de acordo com os fundamentos utilizados para cada solução. A primeira categoria trata dos pleitos de reparação pelo custo de manutenção de uma estrutura preventiva. A hipótese fática com maior reincidência nas cortes é das empresas de transporte público que, após ter um de seus veículos danificado por um terceiro, coloca um veículo reserva de sua propriedade para suprir a falta do veículo danificado, exigindo do causador do dano não só a reparação do dano material causado ao veículo, mas também os custos por manter um veículo reserva em sua frota. Trata-se, portanto, de responsabilidade pelas despesas preventivas. Esse cenário foi analisado por tribunais da Alemanha, Áustria, Holanda, Portugal e Inglaterra, e em todos os casos, ainda que por fundamentos distintos, as cortes acataram o pleito e condenaram o causador do dano a ressarcir tais despesas. Na Alemanha o Bundesgerichstshof (Tribunal Federal Alemão) debruçou-se sobre o tema já em 10 de maio de 1960, ao julgar um acidente de trânsito causado por negligência de um motorista e que acarretou tamanho dano a um dos bondes da companhia de transporte público que o referido veículo ficou 102 dias fora de uso até que fosse consertado. Ainda que a empresa possuísse um bonde reserva, a corte entendeu que caberia ao autor do dano ressarcir os custos de manutenção desse veículo reserva, em um, porque caberia ao réu disponibilizar um veículo semelhante à vítima pelo período de conserto do bonde danificado, ou compensar os custos de reposição de tal veículo, sendo irrelevante no caso que a vítima possuísse ela própria um bonde reserva.33

“However, it should make no legally significant difference whether the owner of a public transportation company rents a vehicle as a substitute for a tram-car damaged by someone else’s fault or whether he uses a vehicle which, in view of the difficulty of renting a tram-car at short notice, he bought and held in reserve specifically as a precaution for cases of this kind. Even if the costs for acquiring the spare vehicle have already been settled at the time of purchase, they were incurred only in order to be able to redress the anticipated consequences of

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Em dois, pois tal obrigação estaria compreendida no dever de mitigar o prejuízo da vítima, insculpida no parágrafo 254 (2) do BGB. Também a Suprema Corte Holandesa analisou idêntica hipótese fática, igualmente aplicando a responsabilidade preventiva. A decisão do tribunal reconheceu que caberia ao réu ressarcir as despesas de manutenção do veículo reserva em decorrência de seu dever de mitigar o prejuízo da vítima. Porém, a corte sopesou que a manutenção de veículos reserva não é feita exclusivamente em favor de eventual causador de dano futuro, mas em benefício da própria empresa, de modo que a condenação limitou-se a parte proporcional das despesas.34 Nos mesmos termos decidiu a Corte de Apelação de Lisboa em 9 de março de 1989 e, na Inglaterra, a Câmara dos Lordes no caso Birmingham Corporation v. Sowsbery, julgado em 1970. Esta decisão trouxe ainda interessante precedente de 1900, no qual o Earl of Galsbury equiparou-a à seguinte situação: “supondo que uma pessoa pegue uma cadeira da minha sala e fique com ela por doze meses, alguém poderia sustentar que a condenação deveria ser reduzida por usar ordinariamente aquela cadeira, ou por ter outras em minha sala? A proposta me pareceria absurda”.35 A Suprema Corte da Áustria julgou caso similar em 6 de junho de 1986. A única diferença é que o bem danificado foi um ônibus, não um bonde. Da mesma forma que a corte alemã, o tribunal austríaco admitiu a condenação do causador do dano também nas despesas preventivas relativas ao custo de manutenção de um ônibus reserva em sua frota, porém, o fez sobre outro fundamento. Para a corte austríaca, a obrigação não deriva da responsabilidade civil, mas da teoria da negotiorum gestio, positivada nos §§1036 e 1037 do ABGB, pela qual é do próprio interesse do réu que a vítima tome tais precauções para evitar a paralização de sua atividade, diminuindo assim o valor final da condenação. Por essa teoria, a vítima estaria atuando em favor do réu, através de uma espécie de contrato ficto similar ao mandato.36 A segunda categoria das preventive expenses utiliza-se da distinção entre a utilização de uma prevenção geral, contra riscos abstratos, e de uma prevenção

negligent acts of others. […] Hence it is justified, if a spare vehicle is used as a result of a tram-car having been damaged by the negligent act of another, to consider the expenses incurred, proportionate to the period of use, as having been caused by such use” (WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 169). 34 WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 174. 35 No original: “supposing a person took away a chair out of my room and kept it for twelve months, could anybody say you had a right to diminish the damages by shewing that I did not usually sit in that chair, or that there were plenty of other chairs in the room? The proposition so nakedly stated appears to me to be absurd …” (WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 182). 36 WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 179.

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especificamente realizada em face do causador do dano, admitindo os pedidos de ressarcimento apenas na segunda hipótese. As duas hipóteses ficam claras no caso julgado pelo Tribunal Federal Alemão em 6 de novembro de 1979. Tratava-se de ação em que o réu foi surpreendido pelo vendedor de uma loja de doces furtando a mercadoria dos expositores. O dono da loja, além dos 12 marcos alemães referentes ao valor dos doces, pleiteou a condenação do réu também no valor de 550 marcos, correspondentes ao valor que a loja paga aos funcionários como recompensa quando evitam um furto. A decisão da corte firmou duas conclusões: de um lado que, em regra, nenhuma indenização é devida em razão dos custos inerentes ao sistema de segurança utilizado pelas lojas, eis que tais ferramentas não têm por objetivo prevenir especificamente a infração cometida pelo réu, mas resguardar o estabelecimento como um todo e contra todos. De outro, que sendo a recompensa prometida decorrência direta e especificamente vinculada ao furto em questão, deve ser reparada pela vítima. Sopesou a corte, no entanto, que como a fiscalização dos funcionários, em certa medida destina-se a todos os possíveis furtos, e não apenas àquele objeto da ação, entendeu que o ressarcimento de 50 marcos seria suficiente — redução esta criticada por Zimmermann por estar estribada exclusivamente na equidade, sem qualquer supedâneo doutrinário.37 Também o Tribunal Federal Suíço admitiu a reparação das despesas preventivas distinguindo a prevenção geral daquela especificamente realizada em razão de uma circunstância concreta. Tratava-se de caso em que o Cantão de Basel instalou uma “street-room” em um terreno de sua propriedade, na qual usuários de drogas recebiam seringas esterilizadas a fim de evitar doenças transmissíveis pelo sangue. Em razão da implantação de tal unidade, a região passou a ser frequentada por usuários de drogas e traficantes, levando os proprietários dos imóveis vizinhos a instalar grades, interfones, sistemas de luz e de vigilância. Os proprietários então recorreram à corte para pleitear o ressarcimento de tais despesas do Cantão de Basel. Em 22 de dezembro de 1993 o Tribunal Federal, estribado na proteção contra intromissões injustas na propriedade dos autores, reconheceu o dever do Cantão de indenizar os autores pelos custos das grades e da vigilância, porém, por considerar que tanto o sistema de luz quanto o interfone tem utilidade geral e não apenas para proteção contra os usuários que passaram a frequentar a região, entendeu devido apenas metade do valor do sistema de luz e nada pela instalação de interfones.38

WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 171-172. 38 WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 176-177. 37

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O mesmo se deu no caso Lord Advocate v. Rodgers, julgado na Escócia em 1978. Tratava-se de caso em que por duas vezes o acusado havia colocado fogo em suas terras (possivelmente nas palhas que restam após a colheita, visando limpar a área para novo plantio) sem tomar qualquer providência para que o fogo não se espalhasse para a plantação da propriedade vizinha. Nas duas ocasiões, a Forestry Commission, proprietária da plantação adjacente, tomou as medidas necessárias para extinguir o fogo antes que ele se espalhasse para suas terras, exigindo na ação os valores despendidos em tais diligências. O acusado alegou que não houve qualquer dano à plantação vizinha, de modo que nada haveria espaço para a responsabilidade civil. A Corte, reconhecendo tratar-se de situa­ção excepcional e que a lei escocesa reconhece que quaisquer despesas voltadas a reduzir os prejuízos da vítima devem ser suportados pelo causador do dano, considerou irrelevante que a mitigação do dano ocorra antes ou depois de sua ocorrência, devendo em ambos os casos ser suportada pelo acusado. A decisão deixou claro que a reparação só é cabível em razão da prevenção voltar-se especificamente para um risco proveniente de uma fonte identificável, não de uma prevenção geral. Por derradeiro, a terceira categoria distingue as medidas preventivas tomadas contra ameaças reais ou apenas potenciais. A melhor representação da posição pretoriana nessas situações provém do julgamento da Suprema Corte da Áustria em 28 de abril de 1998. Tratava-se de situação em que o acusado, em gravação deixada na secretária eletrônica, havia ameaçado o autor da ação e sua esposa. Os ameaçados, com medo de que a ameaça se cumprisse, instalaram alarmes e sistema de segurança em sua residência. O pedido de reparação pelas despesas com segurança foi negado pela Corte, sob o argumento de que as medidas tomadas pelos autores não eram necessárias a ponto de justificar uma reparação, eis que a ameaça não era eminente, mas apenas potencial.39 De outro lado, em 5 de junho de 1989, no caso Daly v. McMullan, a Circuit Court irlandesa deferiu o ressarcimento dos valores despendidos para prevenir novas inundações na propriedade do autor, provenientes da insuficiência do sistema de drenagem de seu vizinho. A decisão somente foi favorável pois o dano que se visava impedir (a inundação) já havia se consumado em duas oportunidades, evidenciando tratar-se de risco concreto.40 Desses casos é possível extrair que, no direito europeu, a responsabilidade preventiva instrumentalizada na reparação dos custos despendidos anteriormente ao dano: a) são cabíveis sempre que as despesas são aplicadas para reduzir o prejuízo

WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 175-176. 40 WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 185-186. 39

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da vítima, ainda que esta já possuísse os instrumentos utilizados; b) somente são admitidos quando despendidos contra um risco específico e cuja realização seja eminente ou ao menos de grande probabilidade. Os dois outros mecanismos — a autotutela e a multa dissuasória — não foram objeto de construção jurisprudencial tão consolidada, mas ainda tiveram maior desenvolvimento do direito comparado. A autotutela é admitida dentro da responsabilidade civil alemã como um desforço próprio voltado a evitar um dano ou fazer cessar a conduta danosa. Segundo Helmut Koziol, consiste na implementação de medidas preventivas para a proteção dos interesses legalmente tutelados ou, em caso de condutas danosas já em curso, em atuação própria voltada a fazer cessar a conduta.41 A esse conceito correspondem as medidas tomadas pela Forestry Commission para conter o avanço do fogo sobre sua propriedade, no caso Lord Advocate v. Rodgers anteriormente citado. No direito alemão e austríaco, a autotutela não depende da ilicitude por parte de quem deflagra a agressão ou a quebra de um dever de cuidado. Pelo contrário, o caráter “injusto” da agressão depende apenas do resultado danoso, único elemento fático necessário à sua deflagração. De outro lado, a licitude da reação depende apenas da proporcionalidade em relação à agressão. Acaso a resposta seja desproporcional ao agravo, será ela própria ilícita.42 Por derradeiro, o mecanismo da multa civil dissuasória, em verdade, parece apenas um novo rótulo à velha figura dos danos punitivos, típicos do sistema norte-americano e cujo caso emblemático foi a condenação proferida em Liebeck v. McDonalds, em que a rede de fast food foi condenada a pagar à autora 2,7 milhões de dólares por danos causados por seu produto, nomeadamente seu café, servido a 88 graus célsius, e que causou queimaduras de terceiro grau à autora, então com 79 anos de idade.43 No sistema norte-americano, os valores dos danos punitivos por vezes são tão elevados por serem calculados a partir do custo que o causador do dano teria para adequar sua conduta, somado de um, de modo que lhe seja economicamente mais vantajoso corrigir seu procedimento do que compensar todas as vítimas de eventuais danos, supondo que todas elas levem o pleito ao judiciário, consistindo tal método no “valor da dissuasão”. Em 1996, no caso BMW v. Gore, a Suprema Corte dos Estados

No original: “it concerns the implementation of preventive protection of legal rights and interests or in the case of attacks already in course the ending of an interference that has already begun in a manner similar to reparative injunctions, in this case however by means of self-help” (Basic questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 24) 42 KOZIOL. Helmur. Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 24-25. 43 Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2015. 41

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Unidos fixou os limites constitucionais para as indenizações punitivas, sendo eles: a) a reprovabilidade da conduta; b) proporcionalidade entre a indenização compensatória e a punitiva, indicando como limite máximo para esta um multiplicador de um dígito (0-9).44 A lógica norte-americana, no entanto, não é acolhida nos países de sistema romano germânico, que via de regra inadmitem os danos punitivos como uma parcela adicional à indenização, “mas aparecem embutidos na própria compensação do dano moral”.45 Anderson Schreiber aponta ainda que tal instrumento vem ganhando adeptos na Itália para os casos de tutela dos interesses da pessoa humana, que sendo centrais ao ordenamento jurídico, justificam uma condenação para além da mera compensação. Com estes contornos, pode-se afirmar que o instrumento da multa civil relaciona-se muito mais com a ideia de prevenção traçada por Aguiar Dias, notadamente de uma função de desestímulo psicológico a toda a sociedade realizado através da certeza de que a conduta danosa trará consequências econômicas a seu causador, do que a prevenção que se desenha no campo da responsabilidade civil contemporânea, que visa concretamente evitar um possível dano. Do até aqui exposto, já é possível reconhecer a possibilidade e pertinência de uma função preventiva aos danos, bem assim comprovar que a prevenção doutrinariamente construída tem vasto campo para aplicação prática. Cumpre, ao apagar das luzes, questionar se seria a responsabilidade civil a espacialidade adequada para a inserção desse modelo de tutela preventiva.

4  A prevenção no Direito Civil brasileiro: elogio e crítica à função e estrutura Diante do que se refletiu anteriormente, a análise crítica que doravante se pretende desenvolver parte do reconhecimento de que a responsabilidade preventiva pode ser dissecada a partir de dois aspectos: o aspecto funcional (para que serve), que visa concretamente impedir a ocorrência do dano, e o aspecto estrutural (como funciona), que se manifesta através dos três mecanismos de tutela inibitória anteriormente expostos: a autotutela, as despesas preventivas e as multas civis. Iniciamos pelo aspecto funcional. A partir da virada copernicana pela qual passou a responsabilidade civil na transição do Estado Liberal para o Estado Social, é de reconhecer-se que a linha de raciocínio posta a assimilar a modalidade preventiva

SHARKEY, Catherine. Punitive Demages. In: SIMPÓSIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, III, Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. As ações de indenização nos Estados Unidos e no Brasil. Curitiba, 2014. 45 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 209. 44

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exsurge a partir do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil e da incidência das normas e diretrizes constitucionais nas relações interprivadas. Em linhas gerais, não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto vetor fundamental da CF/1988, objetivou um giro paradigmático que retirou da patrimonialidade o viés essencial do Direito Civil, passando este a ser identificado, então, na pessoa considerada na concretude de sua existência.46 Logo, todas as ramificações do Direito Civil passaram a ser concatenadas tendo como base tal pressuposto essencial, não sendo a responsabilidade civil, pois, uma exceção, ensejando uma nova leitura acerca dos danos e suas hipóteses de contenção.47 Na prevalência da esfera existencial sobre a patrimonial, não faz sentido a manutenção de um sistema que diante da expansão dos danos não patrimoniais admita apenas sua reparação, que em última instância se dá por via financeira. Alavanca-se, assim, o paradigma da prevenção da responsabilidade para, quando menos, ser posto ao lado e em compatibilidade com o já notório paradigma de repressão. A rigor, pelo reconhecimento da modificação gradual das relações sociais postas em movimento no tempo presente, pode-se identificar as razões para o surgimento desse novo paradigma, termo que implica a observância de ruptura e transformação de uma de determinada ordem de regras. Tal problematização tem seu cerne, no direito brasileiro, nos questionamentos e reflexões envidados por Luiz Edson Fachin ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional na advocacia, ao apontar as transformações havidas no Direito Civil em face da realidade a qual esta desinência do direito privado deve prestar contas.48 Em tal linha de perspectiva, pode-se conceber o paradigma da prevenção afeito à responsabilidade civil como alinhado a uma percepção teórica problematizante do próprio Direito Civil, percepção essa que reconhece, ao lume das reflexões de Fachin,

As palavras de Paulo Lôbo são caras nesse sentido: “Para o direito civil atual, o patrimônio está a serviço da pessoa e não esta a serviço daquele. [...] O Código Civil [passa a ser] o estatuto da defesa da pessoa humana, na contenção dos poderes privados, garantindo-se-lhe o espaço de sua dignidade para que não se converta em objeto coisificado dos grandes sistemas sociais e culturais da sociedade global.” LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 18 e 28. 47 Tal perspectiva, a rigor, não é nova, sendo possível encontrar uma de suas sementes nas problematizações de Pietro Perlingieri, que congrega, ao lado da dignidade humana, o princípio da solidariedade: “O dano à pessoa [e sua tutela] encontra fundamento nos princípios constitucionais que reconhecem na pessoa o valor central do ordenamento à luz do qual se deve reler a normativa ordinária, incluindo todas as disciplinas sobre a responsabilidade civil. Nesta perspectiva, deve-se constatar a inadequação deste último instituto e a necessidade, de um lado, de se adequar suas técnicas [...] e, de outro, utilizar com maior decisão sistemas de segurança social, em um modo mais tangível, o princípio da solidariedade constitucional” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 175. 48 Na teoria crítica de Luiz Edson Fachin, o desenhar de novos paradigmas vem assim posto: “Embora não seja unívoco, o termo paradigma vem aqui colacionado para simbolizar ruptura e transformação. É possível que não se tenha uma percepção exata do desenho desse novo fenômeno mas, por certo, tais reflexões revelaram que aquela arquitetura anterior está corroída em pontos fundamentais” FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 243. 46

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a transitoriedade e multidisciplinaridade do campo jurídico que, nada obstante a presença da segurança jurídica, identifica a necessidade do repensar dos institutos fundamentais do Direito Civil em lugar de sua compreensão abstrata e pretensamente perene.49 Nesse passo, o paradigma da prevenção atinente à responsabilidade civil dar-­ se-ia na recompreensão teórica e prática de tal instituto voltado ao porvir, envolvendo necessariamente, a partir da correlação direta da principiologia constitucional no direito privado, o encadeamento de uma tríplice dimensão do Direito Civil e suas desinências: uma dimensão posta atentamente às regras positivadas em núcleo constitucional e infraconstitucional; outra afeita à manifestação da dita força normativa constitucional no núcleo hierarquicamente inferior; e, por fim, uma dimensão transformadora e de carga propositiva pautada em processo hermenêutico apto a ressignificar significantes e significados vertidos do Direito Civil contemporâneo. Tais proposições correspondem às “três constituições do Direito Civil” (a saber, formal, substancial e prospectiva) analisadas igualmente por Luiz Edson Fachin em sua obra mais recente, sustentada em uma análise aberta e, como dito, problematizante do Direito Civil e seus trois piliers (que, do campo da teoria geral das obrigações e dos contratos, esteiam a responsabilidade civil).50 Logo, ao lume dos argumentos expostos, o paradigma da prevenção serviria a projetar a responsabilidade civil aos desafios do porvir, (re)funcionalizando-o em medida apta prestar contributo efetivo à tutela de direitos da pessoa considerada concretamente na realidade de suas interações sociais.51 Nesse passo, a leitura de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk sobre o alicerçamento da teoria crítica de Luiz Edson Fachin a um perfil problematizante — em contraponto às teorias totalizantes — do Direito Civil faz-se pertinente: “Ao contrário, as teorias problematizantes (por certo, mais raras do que aquelas de pretensão totalizante), reconhecem a complexidade do fenômeno jurídico não como algo a ser artificialmente reduzido a classificações e conceitos, mas, sim, como uma circunstância inexorável, cuja apreensão jamais pode pretender ser dotada de uma lógica formalmente precisa — que somente se atinge nas representações abstratas que não recolhem a multiplicidade do real. [...] É nessa fecunda seara das teorias problematizantes que se insere a Teoria Crítica do Direito Civil do Prof. Luiz Edson Fachin” RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A teoria crítica do Direito Civil de Luiz Edson Fachin e a superação do positivismo jurídico. In: FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. 50 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 8-9. Acerca da responsabilidade civil, Fachin faz especial alusão às flexibilizações paradigmáticas da responsabilidade civil ao ponderar a configuração, em casos excepcionais, do dever de indenizar desprovido do próprio nexo de causalidade em uma leitura do referido instituto já próxima à lógica do “direito de danos”. Em suas palavras: “Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar a responsabilidade, o que, de todo correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima. Quando assim a direção pode indicar a renovação do conceito de causa, e especialmente do nexo causal. A imputabilidade tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e de justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas” (p. 113-114). Ainda, sobre o tema da imputação e causalidade, ver: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014. 51 Não apenas no contexto jurídico pátrio se percebe a preocupação em tutelar concreta e efetivamente o ser humano em diversas frentes. Aliás, do direito comparado, colhe-se a influência de tal perspectiva: “En una elogiable postura se ubican algunos precedentes que colocan a los derechos de las personas por sobre esquemas 49

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Ao lado disso, não se pode olvidar que, de certa forma, o próprio paradigma repressivo da responsabilidade civil alimenta seu anverso da prevenção, uma vez que imposição de reiteradas reparações/compensações (concebidas como penas civis) pela violação de direitos/deveres/bens jurídicos servem, ainda que indiretamente, ao propósito de desestimular a reiteração de tais condutas.52 Sem negar qualquer dos elogios até aqui tecidos sobre a função preventiva, é de se reconhecer que uma análise que se pretenda crítica não se constrói apenas sobre exaltações. É da conjugação de elogio e crítica que se compõe o diálogo apto a realizar a reflexão verticalizada sobre qualquer tema, solidificando as bases e apontando os possíveis pontos sensíveis. A crítica que aqui se pretende levar a cabo reconhece in totum que o direito material deve superar o paradigma da função reparatória, admitindo e até preferindo a prevenção de danos, bem como que esta representa instrumento harmônico à despatrimonialização do Direito Civil e cuja função pode, de fato, constituir efetivo contributo à tutela dos interesses existenciais. Para além desses pontos, a crítica dirige-se não à proficuidade da tutela preventiva, mas sim a sua estrutura, e mais especificamente às dificuldades de compatibilização dos mecanismos de tutela material preventiva com a responsabilidade civil, cuja estrutura fora construída sob a base da reparação e através de requisitos que, ainda que em possível ocaso, serviram — e ainda servem — como critérios para a (re)construção teórica desse subsistema de Direito Civil.53 Em síntese: seria necessário novamente remodelar a responsabilidade civil, já dita em crise, para nela inserir os corpos estranhos dos remédios preventivos, ou poderiam estes ser melhor alocados?54 “Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros”, diria a personagem de Machado de Assis.55



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que conducen a una solución injusta. Por ello hacen prevalecer la solución que mejor se compadezca con los derechos de las víctimas y ello es lo socialmente correcto, de lo contrario cabría preguntarse para qué sirve el Derecho si no es para proteger las personas damnificadas” MOSSET ITURRASPE, Jorge. Responsabilidad por daños: actualización doctrinaria y jurisprudencial de los tomos I a X. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 252. Nas palavras de Nelson Rosenvald: “Não é possível reduzir a função da responsabilidade civil somente à finalidade reparatória, sobretudo à luz de diversos critérios de imputação de danos. [...] O sistema de responsabilidade civil não pode manter uma neutralidade perante valores juridicamente relevantes em um dado momento histórico e social. Vale dizer, todas as perspectivas de proteção efetiva de direitos merecem destaque [...]. As penas civis também se propõe a realizar uma tutela efetiva, com critério funcional preventivo/punitivo, naquelas hipóteses em que a reparação por si só não é idônea a desestimular o ofensor à prática de ilícitos” ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 75-81. Deve-se a Rodrigo Xavier Leonardo a percepção inicial de que talvez a responsabilidade civil não seja o campo apropriado para a tutela preventiva, pelo que registra-se aqui o crédito pela temática da presente análise crítica. Comunga dessa ideia Helmut Kozyol, ao afirmar que “All this is not presented as an argument that tort law has no preventive consequence; I only want to stress that this effect is secondary to the main aim of compensation. This means that under tort law, the victim’s claim cannot go beyond the loss. (...) I only reject the dishonest way in which the departure from existing principles of tort law is disguised in Continental European legal systems. It has to be emphasised that preventive damages are different remedies from those provided for by tort law or the law of injunctions and that creating such remedies which are unknown to civil law as it exists on the Continent require special justification” (KOZIOL. Helmut. Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 57). ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 73. v. 1. (Obra completa).

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Quiçá a resposta negativa mostre-se relevante, eis que estribada na análise das ferramentas de tutela material preventiva e a espacialidade de sua aplicação no Direito Civil brasileiro. A primeira delas é a autotutela. Pontes de Miranda preferia designá-la justiça de mão própria, definindo-a como “a aplicação da regra jurídica pelo próprio interessado, quando aquêle, que deveria atender à incidência da regra jurídica, a ela não atendeu”.56 Em que pese mostrar-se aprioristicamente como uma ferramenta de grande serventia à prevenção de danos, e por isso justifica-se sua inclusão como uma possibilidade para o porvir, a autotutela como um mecanismo geral de tutela preventiva encontra obstáculo preliminar: sua não admissão pelo direito brasileiro, senão em situações excepcionais, excepcionalidade esta que obsta a pretensão a uma aplicação ampla no campo da responsabilidade civil: A justiça de mão própria somente se permite se, excepcionalmente, o sistema jurídico não a condena; portanto onde se abre exceção ao princípio do monopólio estatal da justiça. O direito brasileiro não possui princípio geral, escrito, que seja limitação àquele. Nem a autonomia da vontade pode estabelecer casos em que se exercite a justiça de mão própria.57

Ainda que não se possa recorrer a uma aplicabilidade geral, o Direito Civil brasileiro consagra hipóteses em que autoriza a autotutela. Thais Venturi arrola hipóteses legais como: a) o direito de retenção: do locatário (art. 578), do depositário (art. 644), do possuidor de boa-fé que tenha realizado benfeitorias (art. 1.219), do credor pignoratício (art. 1.433 e 1434); b) direito ao desforço imediato (CC, art. 1.210, §1º), que Pontes de Miranda entende tratar-se em verdade de hipótese de legítima defesa; c) o penhor legal (art. 1.467), que Pontes de Miranda classifica como hipótese de direito formativo modificativo; d) o direito de cortar árvore à extrema de prédio (art. 1.283), que para o mestre alagoano é exercício regular de direito; e e) os atos justificados, que compreendem aqueles realizados em legítima defesa, estado de necessidade ou exercício regular de direito.58

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 393. 57 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 405. 58 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 230-236; MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 414-416.

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A autora destaca ainda as inovadoras hipóteses dos art. 249,59 e 251,60 do Código Civil, ao estabelecer que o credor de obrigação de fazer pode, em caso de urgência, executá-la ele próprio ou mandar terceiro executar, ressarcindo-se posteriormente face ao devedor, e de forma símile o credor de obrigação de não fazer inadimplida, desfazendo-a ele próprio. Essas hipóteses legais bem servem a demonstrar que a inserção da autotutela como instrumento de prevenção na espacialidade da responsabilidade civil, para além de estar obstada como instrumento de uso geral, pode ser melhor alocada, atendendo igualmente bem à função preventiva, de modo esparso pelo Direito Civil, seja no campo das obrigações, seja no campo dos direitos reais, sem que seja necessário cogitar dos requisitos da responsabilidade civil, como se confirma pela citada hipótese do art. 249, parágrafo único, que sequer exige uma conduta antijurídica do devedor (inadimplemento). De outro lado, a função preventiva também pode ser atingida de maneira mais ampla nas hipóteses da legítima defesa e do estado de necessidade, autorizadas pelo art. 188 do Código Civil, que embora não constituam hipóteses de autotutela,61 permitem ao indivíduo o desforço próprio para a manutenção do status quo, prevenindo um dano injusto, sem que seja necessária a reestruturação da responsabilidade civil. A mesma questão referente à espacialidade das ferramentas de tutela preventiva material pode ser aplicada às multas civis, há muito conhecidas no Direito Civil brasileiro, e que se espalham ao longo de seus ramos. À guisa de exemplo, pode cogitar-se da multa civil na esfera contratual, seja através da imputação em face de cobrança de dívida não vencida ou já paga (CC, arts. 939 e 940), seja através das cláusulas penais (CC, art. 408 e seguintes). A questão se torna tormentosa quando projetada especificamente para o âmbito da responsabilidade civil. Primeiro, pois a utilização de multas civis dentro do campo da responsabilidade civil, como meio de coibir a repetição de condutas danosas, encontra obstáculo legislativo de difícil superação, eis que resultado de uma escolha política. Trata-se do comando contido no art. 944 do Código Civil, o qual, ao determinar que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, evidencia a escolha

“Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.” 60 “Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.” 61 Como bem expõe Pontes de Miranda, a legítima defesa e o estado de necessidade consistem em elementos fáticos de regra jurídica pré-excludente de ilicitude, ao passo que a justiça de mão própria (autotutela) é ato que se pratica a propósito fatos jurídicos que tiveram ou tem eficácia (Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 402-403). 59

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de um subsistema de responsabilidade civil exclusivamente compensatório no qual não se admite a figura dos punitive damages. Trazer as multas de caráter punitivo para o âmbito da responsabilidade civil implicaria também transferir substancial parcela da função punitiva às relações interprivadas, além das questões atinentes ao enriquecimento sem causa. Vale aqui a ressalva de Rui Stoco ao afirmar que “no nosso sistema jurídico a indenização do dano deve obedecer à glosa lucratus non sit, de modo que a reparação do dano não pode converter-se em fonte de enriquecimento da vítima”.62 Não bastasse, há ainda a questão consequencialista que surgiria de sua aplicação, e que é posta às claras por Maria Celina Bodin de Moraes: Há, de fato, quem distinga a função punitiva da função preventiva, conectando esta última a um objetivo utilitarista, no sentido de avaliação de sua utilidade para prevenir danos futuros, e não para retribuir danos passados — característica própria de juízo punitivo. Ocorre que, mediante tal perspectiva, será possível deduzir que uma conduta gravemente dolosa possa não constituir pré-requisito necessário e suficiente à imposição de penalidade, justamente por ser de difícil repetição; de outro lado, uma conduta menos grave, mas que possa ser facilmente imitada, mereceria, na finalidade preventiva, uma condenação maior. Este parece ser o problema principal da justiça/injustiça das sentenças exemplares e dos chamados ‘bodes expiatórios’.63

Ainda que a multa civil seja um instrumento que detenha além da função punitiva também um caráter preventivo, e que reconhecidamente já se integre tanto ao direito material quanto processual, resta claro que sua inserção especificamente dentro da responsabilidade civil, ao menos no seu atual estágio de desenvolvimento, pode trazer mais problemas do que soluções. Por derradeiro, também o ressarcimento pelas despesas preventivas, do modo como realizado pelos tribunais europeus, está sujeito a certas críticas. A primeira delas diz com a reparação do custo de manutenção de uma estrutura preventiva, como nos casos dos veículos de transporte. A questão inicial cinge-se à própria natureza preventiva de tal estrutura de reserva, afinal, ela não previne o dano, já causado sobre o veículo retirado de circulação, mas apenas mitiga seus efeitos. Para além, ainda que se concorde com a ratio decidendi utilizada nos julgados, uma análise econômica demonstraria, sem espaço para dúvidas, que aquelas empresas contabilizaram as despesas de manutenção de uma frota reserva como custos da atividade, e dessa forma, embutiram esse ônus no preço cobrado ao público. Nessa STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 152. 63 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 226.

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situação, a condenação do causador do dano a ressarcir essas despesas, já repassadas ao consumidor no preço da tarifa, não implicaria enriquecimento sem causa às empresas de transportes? Parece-nos que sim. E mesmo que se admita tal condenação, se o seu fundamento foi o negotiorum gestio, figura que não pertence propriamente ao campo da responsabilidade civil, seja ela repressiva ou preventiva. E neste caso, novamente, reconheceríamos que os instrumentos de tutela preventiva não pertencem ao campo da responsabilidade civil, sendo a gestão de negócios é figura típica no direito contratual brasileira. Fábio Konder Comparato classifica-a como forma de representação sem mandato que se realiza toda vez que alguém toma a iniciativa de agir em nome de outrem, sem poderes. Segundo o autor, o gestor de negócio, “malgrado a falta de poderes, não deixa de ser representante do dominus negotii, na medida em que age em nome deste. É representante de interesses, e não da vontade do representado, pelo menos da sua vontade efetiva e não meramente presumível”.64 Daí que, reconhecido o dever de mitigação dos efeitos de um dano já causado (duty to mitigate the loss) ou mesmo o de agir de modo a não lesar aos outros (alterum non laedere), a potencial vítima poderá sempre valer-se da gestão de negócio para, agindo em nome e no interesse do potencial causador do dano, agir de modo a evitá-lo, ressarcindo-se posteriormente das despesas que houver efetuado, sem necessidade de se alterar a estrutura da responsabilidade civil. No caso da prevenção a dano específico, e mais especificamente no caso da promessa de recompensa aos vendedores que flagrem o furto, o reembolso das despesas preventivas poderia perfeitamente bem ser realizado pela ótica compensatória, afinal, a conduta ilícita do cliente acarreta não só o prejuízo do proprietário pela perda da mercadoria, mas também a redução patrimonial decorrente do dispêndio do valor da recompensa, paga direta e exclusivamente em razão da conduta ilícita, de modo que ambos os valores estariam incluídos no conceito de dano indenizável a partir da ótica da reparação integral. Nem mesmo as hipóteses de ressarcimento por despesas realizadas contra ameaças concretas parecem pertencer ao campo da dita responsabilidade civil preventiva. As decisões citadas mostram que os tribunais da Áustria e Irlanda exigiram que a ameaça fosse real e concreta, de modo que, no plano da faticidade, só adquiriram tais características quando o dano a ser evitado já havia efetivamente ocorrido anteriormente, prevenindo apenas sua reincidência. Tal requisito acaba por transfigurar uma hipótese nominalmente preventiva em efetivamente compensatória,

COMPARATO. Fábio Konder. Notas sobre parte e legitimação nos negócios jurídicos. In: COMPARATO. Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 517. O autor ainda chama a atenção para a hipótese de os interesses do gestor coincidirem com o do titular do negócio gerido, caso em que os sujeitos serão tidos por sócios, conforme estabelece o art. 875 do atual Código Civil.

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e, quanto a parcela de prevenção, novamente poderia ser solucionada pela gestão de negócios, no campo do direito contratual.

5  Notas conclusivas De todo o exposto, o que se pode concluir é que a releitura da responsabilidade civil pelas lentes do Direito Civil-Constitucional de fato realizou uma virada copernicana nesse campo, tanto em sua função quanto em sua estrutura. No entanto, enquanto temas centrados na culpa, dano e nexo de causalidade foram objeto de acalorados debates doutrinários e jurisprudenciais, pouco esforço foi dirigido a reler a função reparatória da responsabilidade civil, tema que parece, de fato, merecer também uma releitura crítica. Aí aflora, novamente, o papel da doutrina: “sempre é tempo de a doutrina assumir a responsabilidade que lhe é própria: distinguir, qualificar, classificar, refletir, criticar, elaborar e propor modelos hermenêuticos”.65 De todo modo, dos contornos que se tem da responsabilidade civil preventiva na doutrina brasileira e dos precedentes que se colhe do direito comparado, uma leitura inicial do tema permite concluir que de fato se clama por uma função preventiva aos danos, o que inclusive pode ser alcançado desde logo por uma interpretação que parta do projeto constitucional da Carta de 1988, porém, essa função ainda encontra obstáculos tão robustos para sua inserção no campo da responsabilidade civil que talvez seja melhor buscar para ela um locus próprio, sem invadir a espacialidade própria da responsabilidade civil,66 que já vive tão conturbado momento.

Abstract: from the exposure of how the doctrine, through the civil-constitutional interpretation, performed the transformation of the liability of the liberal state on contemporary liability, journey that succeeded even relativize its essential elements, it is clear that the reshaping of the tort function not aroused the same interest. Although admittedly long defended, the preventive purpose of liability was unexplored during the aforementioned transformation. From this point, the text examined the structure (how it works) and function (serving) of preventive liability, through the mechanisms of the substantive law that instrumentalize it and how it has been applied in comparative law. Finally, presents a compliment to function, however, criticizes the inclusion of the mechanisms so far proposed within the spatiality of tort, making it clear that the

MARTINS-COSTA, Judith. Critérios para aplicação do princípio da boa-fé objetiva. In: COSTA, Judith Martins; FRADERA, Vera Jabob de (Org.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil em homenagem a Clóvis do Couto e Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 193. 66 A conclusão é compartilhada na doutrina alemã por Helmut Koziol, para quem: “one should not abuse tort law for other — albeit sensible — aims but instead look to or design a different branch of law which takes regard of the different aims pursued. (…) Last but not least, as far as» preventive damages «have the function of siphoning off a gain netted by a wrongful activity, the rules on unjust enrichment seem to be more appropriate than tort law where the damage and not the gain is decisive. It is an unreasonable violation of tort law to use it as a basis for gain-oriented claims. There is a rather strange tendency in these times to neglect differences; to put the same label on different things and in doing so to feel happy that the world is simple and is in such harmony” (Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 57).

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challenge of contemporary doctrine is to build a systematically coherent structure able to insert prevention in Brazilian civil law. Keywords: Tort Law. Preventive Liability. Function. Civil-Constitutional Law.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): BÜRGER, Marcelo Luiz Francisco de Macedo; CORRÊA, Rafael. Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção na espacialidade da responsabilidade civil. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 35-60, set./dez. 2015.

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Business judgment rule e responsabilidade civil do administrador: ensaio sobre a função da doutrina na construção de modelos jurídicos Ermiro Ferreira Neto Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Faculdade Baiana de Direito, UNIFACS e da Fundação Faculdade de Direito da UFBA (graduação e pós-graduação). Membro do Instituto de Direito Privado e Instituto Brasileiro de Direito Civil.

Resumo: Modelos jurídicos são construções culturais forjadas não apenas à vista das normas produzidas em dada ordem jurídica, como também à luz da produção doutrinária. Por esta razão, é prudente, antes de se transpor determinado instituto de direito comparado para a ordem jurídica nacional, realizar as ressalvas devidas, à luz do modelo jurídico previamente existente, sob pena de cair-se em incompatibilidades, culturais ou jurídicas. A business judgment rule constitui modelo jurídico norte-americano de responsabilidade civil do administrador e, antes de propor a sua aplicação no Brasil, faz-se necessário sua análise à luz do nosso modelo de responsabilidade civil do administrador — estudo que se pretende fazer através deste ensaio, tendo como pano de fundo a reflexão sobre a função da doutrina na construção de modelos jurídicos. Palavras-Chave: Responsabilidade civil. Administrador. Modelos jurídicos. Sumário: 1 Introdução – 2 Modelos jurídicos e responsabilidade civil – 3 Business judgment rule: um modelo possível no direito brasileiro? – 4 Conclusão – Referências

1 Introdução O presente ensaio tem o objetivo de investigar se, e em que medida, a regra da business judgment rule, construída no direito norte-americano, tem aplicação no âmbito da ordem jurídica brasileira. Para tanto, busca-se apoio teórico no conceito de modelos jurídicos, de modo a demonstrar a existência não de um sistema único de responsabilidade civil, mas de diversos regimes jurídicos específicos com características próprias, como ocorre com o regime de responsabilidade dos administradores de sociedades empresárias. Na investigação do modelo jurídico de responsabilidade civil do administrador vigente no Brasil, é possível refletir sobre a função da doutrina no âmbito desta construção. Particularmente, ante a evolução tecnológica, a complexidade de algumas relações no direito privado e, por conseguinte, a constituição de novos direitos, seria

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atribuição da doutrina de Direito Civil decodificar as linhas gerais dos modelos nos termos postos pela legislação; o modelo jurídico de tutela de determinada relação, pois, não seria obra exclusiva das normas postas, mas resultado de esforço conjunto empreendida pela comunidade jurídica, o que carrega em si certos pressupostos, tradições e construções culturais que não podem ser desconsiderados por aqueles que buscam o seu conteúdo. Definido, em linhas gerais, qual o modelo previsto na legislação brasileira para a responsabilização dos administradores, tratou-se de compará-lo com o regime da business judgment rule, verificando, em termos doutrinários, possíveis convergências e incompatibilidades entre os dois modelos (brasileiro e norte-americano). Ao fim, foram objeto de análise os julgamentos no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários tidos como referência pela bibliografia especializada sobre o tema, de modo a permitir um exame da construção destas decisões, à luz das premissas teóricas firmadas anteriormente, fruto da comparação dos regimes. Uma ressalva: este ensaio, por ter proposta singela e bem definida, não abrange considerações mais aprofundadas a respeito da natureza jurídica da função desempenhada pelos administradores de sociedades empresárias, elementos históricos dos regimes objeto de comparação ou distinções teóricas sobre a regulação da atividade empresarial no Brasil e nos Estados Unidos.

2  Modelos jurídicos e responsabilidade civil Vem de longa data a pretensão dos juristas de instituir, na forma de um conjunto geral de normas, um regulamento que fosse ao mesmo tempo geral e comum à maior parte possível de condutas humanas, particularmente no âmbito do direito privado. Esta busca, cujas raízes podem ser localizadas desde as regras jurídicas romanas mais rudimentares, enunciadas de modo abstrato e exigíveis em face de todo aquele que se comportar conforme o suporte fático das normas, impôs consequências fundamentais para o próprio desenvolvimento do direito. Esse espírito, aliado à ascensão do Liberalismo, logrou refletir de modo contundente na Teoria do Direito. A liberdade reclamada pelos movimentos liberais, juridicamente, operou uma verdadeira mudança de paradigmas quanto a força conferida pela legislação aos contratos e demais atos privados, de modo a ampliar os muros que separavam o Estado da intervenção nos pactos firmados entre particulares. Do mesmo modo, se no campo ideológico a igualdade era erigida como elemento fundamental para que não existissem mais, ao menos no campo formal, distinções de tratamento entre nobres, burgueses e demais cidadãos, tal circunstância se reflete nos marcos regulatórios deste momento histórico, de sorte a garantir que a lei, geral e abstrata, pudesse incidir igualmente, em ônus e bônus, em face de todos que se comportassem de acordo com seus preceitos.

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É este estado de coisas, em linhas gerais, que impulsiona os movimentos de codificação: os códigos civis, como regulamentos gerais das relações privadas, tinham a pretensão de completude; deviam abarcar todos os comportamentos, de todas as pessoas, em face do direito privado. Com tal objetivo, o ideal que inspirou a construção dos códigos civis remonta à Revolução Francesa de 1789 e não deixa de ser igualmente revolucionário: regulamentar as condutas de todos os cidadãos, em face da mesma lei, seria medida de compatibilidade com o “princípio da igualdade perante a lei”. Deste modo, “o código prevalece [...] sobre todas as leis locais ou pessoais, bem como sobre os costumes” (VICENTE, 2013, p. 702). A premissa dos principais teóricos da Codificação, atualmente, poderia ser facilmente desconstruída: se a sociedade atual parece cada vez mais complexa, com relações cada dia mais específicas, de modo a reclamar tratamento jurídico também particular, como ocorre com as relações de consumo, relações empresariais, relações societárias, entre tantas outras, seria um erro reduzir toda esta sofisticação a regras gerais, que não refletem, do ponto de vista da regulação das condutas, as especificidades de cada um destes setores. Relações específicas, como aquelas que se enunciou, reclamam regulação específica, sem que isso signifique afastar completamente as regras dos códigos civis. Esta agenda, a partir do século XX, ganha a pauta dos juristas e desemboca nos movimentos de descodificação, no Brasil refletido na criação de microssistemas: embora pudessem ser subsumidas ao regulamento genérico do Código Civil, as relações de consumo passam a ser tuteladas pelo Código de Defesa do Consumidor; o mesmo se pode dizer, por exemplo, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impõe regras de proteção de um sujeito de direito específico, o menor, dirigidas aos pais, à família, ao Estado, e a terceiros de maneira geral; por fim, apenas para ficar em três exemplos, dada a conhecida dificuldade para o exercício do direito fundamental à moradia nos grandes centros urbanos, o mesmo movimento vê nascer a Lei de Locações, com regras para regulamentar as locações de bens imóveis urbanos. Um contexto tal tem permitido à doutrina referir-se à atual quadra histórica como uma “era da desordem”, um contraponto histórico ao que se convencionou chamar de “era da ordem” (LORENZETI, 2010, p. 39) ou “mundo da segurança” (IRTI, 1999, p. 21). Neste primeiro momento, diz-se que “as fontes eram autônomas e únicas”: “o direito público era tratado na Constituição, e o direito privado nos Códigos Civil e Comercial”; já no segundo e atual momento, na fronteira entre o público e o privado residem “numerosos temas, permeada por problemas e princípios que estabelecem um novo sistema de comunicação” entre os dois setores (LORENZETI, 2010, p. 39). Neste ambiente, a criação de microssistemas reflete uma política legislativa que por sua vez é “fruto da crescente intervenção do Estado na vida social, em particular nas atividades econômicas, a qual levou à adoção nas últimas décadas [...] R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./dez. 2015

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de um vastíssimo número de diplomas avulsos em matéria civil” (VICENTE, 2013, p. 703-704). Em contraposição ao ideal de completude e generalidade defendido pelas primeiras codificações, a adoção de uma política legislativa voltada para a adoção de microssistemas prestigia uma visão de direito civil “antes como uma estrutura defensiva do cidadão e da coletividade do que como uma espécie de ordem social”, visão de certo modo totalizadora (LORENZETI, 2010, p. 44). Os microssistemas permitem estruturar qual o modelo jurídico pertinente a cada uma das relações jurídicas que se busca regular. Assim entendido como “estruturas normativas dinâmicas, que integram fatos e valores em normas jurídicas”, os modelos jurídicos são formados a partir da análise dos “modelos legislativos, jurisprudenciais, costumeiros e negociais” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 10). A partir da análise de cada uma das fontes, é possível traçar um perfil dos modelos existentes para tutela das relações jurídicas, num esforço que será (ou deve ser, ao menos) empreendido pela doutrina, tendo como objetivo não apenas explicar, como também “antecipar possibilidades de sentido e soluções práticas que venham a atender as necessidades sociais” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 32). Embora a ideia de modelos jurídicos não possa ser conectada exclusivamente à noção de microssistemas, parece intuitivo que, tanto mais são as relações especificamente reguladas, tanto mais evidentes serão os modelos a serem dissecados pela doutrina. E mais: tanto mais são os microssistemas, mais esforço será exigido dos operadores para construir modelos dogmáticos, tendo como base a aplicação de institutos tradicionais, como a responsabilidade civil, a relações jurídicas extremamente particularizadas. Exemplo prático, cuja análise pode ser feita à vista dessas considerações teóricas, pode ser visto no âmbito das relações societárias, ou mais especificamente na relação entre a administração de uma sociedade empresária e seus sócios. É sabido que os sócios, em face de ato ilícito causado pelos administradores, poderão obter indenizações por eventuais danos a si causados. Todavia, a análise do que seria ato ilícito, nesse contexto, opera do mesmo modo como operaria em qualquer outra relação jurídica? Do mesmo modo, a respeito da culpa, qual o modelo jurídico da sua aferição no contexto de processos de decisão complexos, cujo principal elemento, ao final, vem a ser o próprio risco da atividade econômica ser rentável ou não? Essas e outras questões, no âmbito do direito norte-americano, levou a jurisprudência a cunhar a chamada business judgment rule, uma regra construída a partir de precedentes, segundo os quais, em linhas bastante gerais, o Poder Judiciário não deve avaliar o mérito, a correição das decisões empresariais, mas exclusivamente, a diligência, a honestidade e a transparência da administração nos seus processos decisórios. Adiante, tendo como base o que se expôs, passa-se a analisar se a business judgment rule é um modelo compatível com o modelo brasileiro de responsabilidade civil dos administradores de empresas.

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3  Business judgment rule: um modelo possível no direito brasileiro? Com o objetivo de limitar a responsabilidade do administrador, as Cortes norte-­ americanas cunharam, em sucessivos precedentes, a regra da business judgment rule. Tal regra baseia-se em dois enunciados: (i) os administradores não serão responsabilizados por danos causados à empresa quando suas decisões sejam tomadas de boa-fé e nos limites dos poderes conferidos pelo estatuto; e (ii) em lides envolvendo a responsabilidade dos administradores, os tribunais não devem analisar o mérito da decisão do administrador, devendo limitar-se a aferir se a tomada de decisão foi resultado de um processo razoável e bem fundamentado na informação disponível ao administrador (QUATTRINI, 2014, p. 29). Embora o termo “rule” possa ser traduzido como “regra”, deve-se ter em mente o alerta feito por Pablo Marchesini que, em trabalho de conclusão de curso cuja banca foi integrada por este autor, alertou para o fato de que a business judgment rule configura-se, em verdade, em um padrão de revisão judicial — padrão este cujo principal elemento é, justamente, o relativo afastamento do Judiciário quanto a análise do mérito das decisões do administrador (MARCHESINI, 2014, p. 38). Construída a partir de precedentes da Corte de Delaware (BRIGAGÃO, 2013, p. 10), a business judgment rule tem como principal fundamento o fato de que a assunção de riscos é parte fundamental da atividade empresarial. Dito de outro modo, pode-se dizer que o infortúnio ronda sempre a operação de uma empresa, não sendo incomum que expectativas eventualmente não sejam atingidas, metas não sejam alcançadas e que, justo por isto, ao invés de lucro, a atividade gere prejuízos e danos aos que dela tomam parte, sócios ou administradores. O risco, todavia, exerce papel peculiar no âmbito da atividade empresarial. É que, tanto maior o risco maior também a possibilidade de ganhos. Decisões arrojadas, inovadoras ou que sejam tomadas contra o senso comum poderão criar rentáveis margens de lucro; por outro lado, mostrando-se a decisão incorreta, disso poderá resultar perdas financeiras relevantes causadas a todos aqueles que acreditaram na possibilidade de sucesso do planejamento inicialmente traçado. Em um país de profundas tradições liberais, como nos Estados Unidos, a business judgment rule é bastante compatível com uma mentalidade ligada à liberdade de iniciativa econômica e que privilegia o empreendedorismo. Neste contexto, “ganhar” ou “perder” fazem parte do jogo, o que, particularmente, no âmbito das companhias abertas, atrai o dever de informação quanto aos riscos, mas não excluem a divisão do infortúnio e da falência com acionistas que tenham eventualmente prejuízo com o investimento em papéis de uma empresa. Bem por isso, “o foco analítico é claramente transferido da decisão em si, para o processo de tomada de decisão” (QUATTRINI, 2014, p. 30). R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./dez. 2015

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No Brasil, assim como nos Estados Unidos, administradores também podem ser responsabilizados por atos praticados de modo ilícito na forma da legislação de regência, e que deles tenham resultado danos causados aos sócios/acionistas. Os marcos legislativos para este modelo de responsabilização podem ser encontrados, em primeiro lugar, no Código Civil. Este, no artigo 1.011, dispõe que “o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. Mais à frente, no artigo 1.016, o mesmo diploma prevê que “os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”. Embora os dois dispositivos encontrem-se localizados no capítulo do Código referente às “Sociedades Simples”, o perfil de responsabilidade do administrador traçado a partir das duas normas poderá alcançar a sociedade limitada. É que, na forma do artigo 1.053, “a sociedade limitada rege-se”, nas omissões do seu próprio capítulo (artigo 1.052 e seguintes), “pelas normas da sociedade simples”. Não havendo normas específica sobre a responsabilização, pois, serão aplicáveis os dispositivos vistos anteriormente, salvo se o contrato social dispuser que a regência supletiva seja pelas normas da sociedade anônima (artigo 1.053, parágrafo único). A análise conjunta dos textos dos artigos 1.011 e 1.016 permite extrair elementos importantes para a construção do modelo de responsabilização do administrador no Brasil. Ao impor ao administrador, de um lado, o dever de cuidado e o dever de diligência, a legislação quer lhe obrigar a conduzir-se de modo cauteloso, ciente dos riscos, enfim, de maneira diligente na gestão das operações da empresa. A fórmula construída a partir do artigo 1.011, ao impor a obrigação de cuidado e diligência “que todo homem probo costuma empregar” na gestão de suas coisas não é, propriamente, uma novidade do Código Civil. Em diversos outros trechos, quando trata de maneira geral da gestão de bens ou negócios alheios, o Código impõe este mesmo dever. É o que ocorre, por exemplo, com o depositário (“é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence” – artigo 629); do mesmo modo, na gestão de negócios, em que o “gestor envidará toda sua diligência habitual na administração do negócio, ressarcindo ao dono o prejuízo resultante de qualquer culpa na gestão”. Para todos esses casos, a doutrina, baseada numa metáfora que deita suas raízes na Roma Antiga, costuma indicar que o gestor de negócios alheios deve se portar como o bonus pater familae, como o faz Modesto Carvalhosa (2009, p. 274). De modo semelhante, também para Fábio Ulhoa Coelho, a diligência a que alude o artigo 1.011 “se expressa normativamente pelo ‘standard’ do bom pai de família” (2011, p. 271), conduzindo-se de modo diligente, cuidadoso, de forma a não colocar em risco os bens e os direitos alheios.

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É esta mesma figura que tem sido suscitada para explicar, à luz do modelo brasileiro de responsabilização do administrador, que este sujeito também deve se comportar como o bonus pater familiae. Na gestão de uma sociedade, deveria ele, a todo o tempo, agir com cuidado, ser diligente, evitar expor-se a riscos, tudo de modo a preservar o patrimônio da empresa e de seus sócios. Justamente por esta razão, não agindo desta forma, ou seja, sendo ele negligente, imprudente ou imperito para a função, os atos que resultem destes três elementos poderão ser considerados ilícitos (artigo 186), podendo o administrador responder por culpa pelos danos à sociedade e a terceiros no desempenho das suas funções (artigo 1.016). O mesmo perfil do Código Civil pode ser encontrado na Lei Federal nº 6.404/76, que regulamenta as sociedades anônimas, abertas ou fechadas. Com efeito, o artigo 153 repete a fórmula do Código Civil (ou, a rigor, por critério temporal, o Código Civil repete a norma do artigo 153) impondo o já visto dever de cuidado e diligência. O diploma sob análise, todavia, desdobra estes deveres em obrigações específicas, que visam impedir o desvio de poder (artigo 154), garantir o dever de lealdade (artigo 155), de informar (artigo 157) e não atuar em conflito de interesses (artigo 156). Todos estes deveres, que, como se vê, são obrigações de meio, e não de resultado, conduzem o administrador de uma sociedade anônima a responder “pelos prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições e poderes, com culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto” (artigo 158). Do que se viu, pois, é possível enunciar que: (i) na sociedade limitada, o administrador responde pelos danos que causar, decorrentes de seus atos de administração, desde que se apure sua culpa, na forma de negligência, imprudência ou imperícia, pelos prejuízos; (ii) nas sociedades anônimas, bem como nas sociedades limitadas regidas pelas regras da sociedade anônima, o administrador responde pelos danos que causar, decorrentes de seus atos de administração, desde que, dentro de suas atribuições e poderes, seja apurada sua culpa pelos prejuízos causados (sob a mesma fórmula de negligência, imprudência e imperícia) ou o seu dolo (aqui compreendido, civilmente, como a intenção de causar dano); (iii) nas sociedades anônimas, bem como nas sociedades limitadas regidas pelas regras da sociedade anônima, o administrador pelos danos que causar, decorrentes de seus atos de administração, e independente de culpa ou dolo, se agir em violação da lei ou do estatuto da companhia. Em arremate, o artigo 159, §6º, ainda da Lei nº 6.404/76, dispõe que “o juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia”. R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./dez. 2015

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Vale destacar a divergência, quanto à hipótese do inciso II do artigo 158,1 a respeito da natureza objetiva ou subjetiva da responsabilidade. Quanto ao ponto, não tendo o texto do referido inciso II feito alusão à expressão “culpa ou dolo”, como fez expressamente o inciso anterior, parece clara a opção legislativa pela possibilidade de responsabilização independente de culpa, em modalidade, pois, objetiva. A opção se justifica pela gravidade do ato do administrador que possa tomar decisões gerenciais em desconformidade com lei ou com o estatuto social. Agindo de tal modo, o administrador descumpre o principal e mais básico dever inerente à sua atividade, que é o respeito às normas legais e societárias (CARVALHOSA, 1983, p. 17-18). Assim, para além de uma interpretação literal da Lei nº 6.404/76, que em seu silêncio solene na omissão da expressão “culpa ou dolo” fez, sim, uma opção legislativa, a medida se justifica por razões relacionas ao dever de compliance, seguramente vinculado ao bloco de deveres do administrador relacionados a uma atuação diligente e com boa-fé. Sobre estas regras a doutrina tem entendido que a gestão do administrador à frente da empresa encerra uma obrigação de meio. Deverá o administrador empreender seus melhores esforços para a obtenção de resultado econômico positivo, que, afinal, é o objetivo da própria atividade econômica. Todavia, não há obrigação quanto a este resultado, não sendo, certamente, ilícito não alcançar os resultados almejados. Sob este contexto, “se de ato regular de gestão resultam prejuízos para a companhia e/ou seus acionistas, arcam eles — sociedade e acionistas — com os danos ocorrentes. Se estes atingem a terceiros, pela respectiva indenização responderá a sociedade. Em qualquer um desses casos, jamais se poderá responsabilizar civilmente o administrador” (LUCENA, 2009, p. 561). Todavia, deve-se ter em mente uma importante observação. Há uma fundamental diferença entre agir de modo diligente no âmbito da gestão de uma empresa e agir de modo diligente em outras atividades. É que, no primeiro exemplo, tem-se certo que o risco é inerente à atividade, sendo esta tanto mais lucrativa, tanto mais arriscadas forem as decisões, assim compreendidas aquelas relativas a novos investimentos, abertura de filiais ou contratação de mais pessoal, por exemplo. Assim, um administrador de empresas diligente não deve ser, sob pena de completa desfiguração da própria atividade, um administrador que não corre riscos. Por esta razão, não é imune de críticas o entendimento que liga o bonus pater familiae à figura abstrata do administrador diligente. A diligência do gestor, repita-se,

“Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: (...) II – com violação da lei ou do estatuto.”

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não lhe pode impedir de correr riscos; o seu dever de prudência revela-se mais compatível com o “homem de negócios honesto”, que busca aumentar o seu patrimônio à custa de decisões empresariais informadas, visando resultados que possam razoa­ velmente ser esperados. Seja como for, o que acima se enunciou, juntamente com a previsão, no sistema brasileiro, de que o administrador não responderá pelos prejuízos que causar na gestão da sociedade se não agir com culpa ou dolo, salvo nas hipóteses de violação da lei ou do estatuto, de algum modo aproxima o modelo do nosso país do modelo da business judgment rule. A construção do modelo, todavia, não é obra exclusiva da legislação. Pode-se dizer, em metáfora, que o perfil legislativo de tutela de determinada relação é apenas uma “casca” — importante, fundamental até, mas não suficiente para se compreender o conteúdo de modelo jurídico em questão. Incumbe à doutrina o preenchimento do seu conteúdo. Assim, sob pena de se estabelecer um mero transplante de institutos entre jurisdições com modelos dogmáticos tão distintos, cujos resultados podem resultar em incompatibilidade, é fundamental investigar-se não apenas o perfil legislativo, mas o perfil doutrinário da responsabilidade civil do administrador no âmbito da ordem jurídica brasileira.

3.1  Business judgment rule e a boa-fé como elemento nuclear do modelo brasileiro de responsabilidade O principal fundamento da business judgment rule é a presunção de que o administrador agirá sempre de boa-fé (SILVA, 2007, p. 193). Agindo de tal modo, observando os deveres de informar e informar-se, enfim, conduzindo-se segundo os parâmetros de boa-fé objetiva, e no interesse da companhia, os eventuais prejuízos causados por suas decisões não poderiam ser qualificados como decorrentes de um ato ilícito. Nesses termos, o principal elemento para a responsabilização do administrador não é o resultado da decisão em si, mas sim o processo decisório — que deverá ser pautado pela boa-fé, pela lealdade e pela diligência (SILVA, 2007, p. 193). No Brasil, o modelo legislativo de responsabilidade do administrador, ressalvada a hipótese do art. 158, II, da Lei nº 6.404/76, exige em todas as hipóteses a configuração de culpa, na forma de uma condução imprudente, negligente ou imperita da atividade empresarial. À parte o resultado de sua gestão, conduzindo-se o administrador de modo diligente, não poderá responder ele por eventuais danos causados a terceiros. A diligência que se exige do administrador, portanto, é a sua obrigação principal. Não se obrigando pelo resultado, como se verá adiante, o seu dever fundamental é conduzir-se de modo leal e prudente. Se se tiver em conta que este padrão de R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./dez. 2015

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conduta é o mesmo que se exige de qualquer sujeito de direito, em qualquer outra relação obrigacional, por força da incidência da cláusula de boa-fé objetiva, tem-se aí a conclusão de que este standard de comportamento integra a própria obrigação principal do administrador, e não uma obrigação lateral ou acessória. Nos limites deste ensaio, deve-se registrar que a cláusula geral de boa-fé objetiva “impõe ao contratante um padrão de conduta, de modo que deve agir com retidão, vale dizer, com probidade, honestidade e lealdade” (NERY JÚNIOR et al., 2013, p. 640). Por força disso, conforme larga doutrina, encontram-se as partes obrigadas a “cumprir não só a obrigação principal, mas também as acessórias, inclusive o dever de informar, de colaborar e de atuar diligentemente” (DINIZ, 2014, p. 418). À segunda espécie de obrigações aludidas anteriormente a doutrina confere o nome de “obrigações laterais” ou “deveres laterais”, que por sua vez podem ser divididos em (i) deveres de cooperação, (ii) deveres de informação e (iii) deveres de segurança (MARTINS-COSTA, 1999). Sendo todos eles, os deveres, exigíveis judicialmente, encontram-se as partes obrigadas a agir de modo honesto no âmbito de suas relações, esforçando-se para que o programa contratual seja cumprido como um todo, cooperando inclusive para que o seu contratante possa adimplir com suas obrigações. Note-se que agir em conformidade com o padrão de comportamento que a boa-­ fé exige, para o administrador, é seu próprio dever e, sem exagero retórico, o mais importante. Assim, se na regra da business judgment rule o processo decisório é mais importante do que o resultado da decisão em si, é certo que, no Brasil, este processo deve ser pautado em um padrão firme de conduta, compatível com a boa-fé objetiva. Sobre o ponto, remonta à obra de Clóvis do Couto e Silva, ainda na década de 60 do século passado, os primeiros estudos da doutrina brasileira a respeito do tema. É célebre a sua definição, segundo a qual “a relação obrigacional tem sido visualizada, modernamente, sob o ângulo da totalidade. (...) Lato sensu, abrange todos os direitos, inclusive os formativos, pretensões e ações, deveres (principais e secundários, dependentes e independentes), obrigações, exceções e, ainda, posições jurídicas” (SILVA, 2007, p. 19). Disso se pode extrair relevantes implicações entre as consequências da incidência da boa-fé nas relações obrigacionais e o seu correspondente uso no campo da responsabilidade civil. Com efeito, ao se construir padrões de comportamento para os sujeitos de direito, tem-se aí, a partir do uso da boa-fé objetiva, importantíssimo parâmetro para avaliar as condutas lesivas, principalmente sob o ângulo da culpa dos agentes. Sobre esta convergência entre boa-fé e responsabilidade civil já se disse, de forma absolutamente apropriada, que “as transformações relativas ao método de aferição da culpa e, em especial, à sua verificação a partir de parâmetros objetivos de comportamento encontram paralelo no funcionamento daquela que talvez seja a noção mais festejada pelo direito privado nas últimas décadas” (SCHREIBER, 2013, p. 46).

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Tendo essas considerações em vista, deve-se atentar para uma singela, mas importante, distinção entre o regime da business judgment rule e o regime de responsabilidade civil dos administradores no Brasil. Veja-se que na business judgment rule o comportamento do administrador tem uma presunção de boa-fé (SILVA, 2007, p. 193), o que criaria travas a que o Poder Judiciário tomasse parte na análise da decisão em si. De modo distinto, no Brasil, pode-se falar em um dever de boa-fé, o qual, caso seja descumprido, poderá impor ao administrador a obrigação de reparar os danos. A boa-fé objetiva, pois, pode-se dizer, constitui em elemento nuclear para a aferição da existência ou não da responsabilidade civil. Se é certo que a conduta do agente ainda é a pedra de toque da responsabilidade civil, ressalvada a existência de recente produção que busca deslocar este eixo para a tutela da vítima ou dos danos, a incidência da boa-fé objetiva cria parâmetros relevantes para a análise do comportamento lesivo. Tal circunstância, alerta Anderson Schreiber, deveria servir de estímulo “à construção jurisprudencial e doutrinária de parâmetros ou standards de comportamento que possam ser considerados exigíveis no tráfego social” (SCHREIBER, 2013, p. 46) — o que não ocorre, ao menos no âmbito particular da responsabilidade do administrador. Sob este aspecto, parece temerário a adoção do modelo da business judgment rule sem ressalvas. Sob o ponto de vista doutrinário, não seria exagero falar na existência de um déficit dogmático a respeito dos standards de boa-fé no âmbito das relações entre gestores e sociedades. O dever de informação incide do mesmo modo em sociedades limitadas ou anônimas? Qual a relevância das normas de compliance internas para o fim de definir a existência de responsabilidade civil do administrador? Há solidariedade obrigacional entre conselheiros e integrantes da diretoria? Todas estas questões suscitam o debate sobre o conteúdo da boa-fé numa relação desta espécie e ainda reclamam resposta no seio da doutrina. Tais respostas seriam um passo necessário e preliminar à adoção de um modelo que presume a boa-fé na atuação do gestor.

3.2  Business judgment rule e obrigações de meio Nos termos da Constituição Federal, “não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão” (artigo 5º, inciso XXXV). Disso se poderia compreender, a respeito da possível aplicação da business judgment rule a partir da interpretação dos dispositivos vistos anteriormente, que tal regra não poderia ser aplicável pois, neste caso, o Poder Judiciário estaria sendo afastado da apreciação de determinados fatos, em violação à regra constitucional. Este obstáculo teórico, todavia, é superável.

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Veja-se que dizer que ao Poder Judiciário não é dado revisar o mérito de decisões do administrador não significa afastar lides deste teor do alcance de um magistrado. O que se pretende através de business judgment rule é exclusivamente calibrar a apreciação judicial em face do processo decisório, na análise da diligência, da lealdade e da boa-fé, mas não no resultado das opções do administrador. É dizer: não há de modo algum afastamento do Poder Judiciário ou proibição a que um magistrado possa apreciar o mérito de uma decisão do administrador. Ao contrário, a responsabilidade civil que eventualmente se extraia de tais decisões poderá ser avaliada, através de todos os seus requisitos fixados em Lei. Todavia, nesta análise, por força da business judgment rule, deverá o juiz cingir-se à análise da culpa no processo de formação da decisão, sob os critérios de boa-fé, lealdade e diligência — não no resultado final deste processo decisório. É de rigor destacar que a técnica de julgamento que decorre da business judgment rule, como se viu acima, não traz qualquer novidade no âmbito do modelo brasileiro de responsabilidade civil. O mesmo raciocínio exposto anteriormente vem sendo aplicado por doutrina e jurisprudência a conhecidas hipóteses de responsabilidade civil nas obrigações de meio. Tome-se, por exemplo, a responsabilidade civil do médico. É sabido que, sendo os deveres do médico em face do seu paciente obrigações de meio, este profissional não se obriga pelo resultado (“curar”, “salvar a vida”, por exemplo). Eventuais danos causados a um paciente, nestes termos, deverão ser indenizados apenas no caso de o médico agir com culpa quanto aos meios eleitos por ele para administrar a saúde de quem lhe procura, bem assim quanto aos procedimentos médicos utilizados. Agindo pautado nas regras decorrentes da boa-fé objetiva, informando, conduzindo-se com a segurança e correição esperada, dadas as circunstâncias do atendimento médico, não haverá dever de indenizar, não haverá responsabilidade civil. O mesmo deverá ocorrer quanto a análise judicial de casos de responsabilidade civil decorrente de decisões do administrador de uma sociedade empresária. Sabendo-se que as obrigações do administrador em face dos sócios, quanto ao alcance de lucro, é uma obrigação de meio, a ausência de resultados positivos na gestão do negócio não pode atrair, prima facie, a sua responsabilidade civil. Para tanto, deve-­ se apreciar a conduta deste administrador, a fim de se verificar se ele agiu dentro de suas atribuições, se foi diligente ou não, enfim, se conduziu-se com culpa, conforme requerido pelos dispositivos que regulam a responsabilidade civil neste caso. Sobre o tema, todavia, não se pode deixar de registrar que recente produção tem questionado a própria razão de ser da divisão obrigacional entre meio e resultado. É conhecida, por exemplo, a objeção suscitada por Paulo Lôbo, para quem não há na ordem jurídica nacional norma alguma que fundamente tal dicotomia, a qual seria puramente dogmática (LÔBO, 2011, p. 37). Tratando da distinção também clássica, no sentido de que na obrigação de meio a prova da culpa incumbiria à vítima,

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enquanto na obrigação de resultado, ao contrário, haveria uma presunção de culpa do agente, o autor citado é contundente ao refutar este raciocínio como método legítimo na atribuição do ônus da prova. Segundo ele, “é da natureza de qualquer obrigação negocial a finalidade, o fim a que se destina, que nada mais é que o resultado pretendido. O resultado é o interesse do credor. Quem procura um profissional liberal não quer a excelência dos meios por este empregados, quer o resultado, no grau mais elevado de probabilidade. Quanto mais renomado o profissional, mais provável o resultado pretendido, no senso comum do cliente” (LÔBO, 2011, p. 38). A manifestação de Paulo Lôbo, no contexto da pretendida comparação entre a business judgment rule e o regime brasileiro de responsabilidade civil do administrador, permite refletir sobre a necessidade de uma ambientação de institutos estrangeiros, antes de sua efetiva aplicação no âmbito da experiência jurídica nacional. Por ambientar, na ausência de palavra melhor, compreenda-se a necessidade adaptar, integrar, modelos dogmáticos alienígenas, antes de adotá-los, sem ressalvas, no ambiente brasileiro, como se tem pretendido fazer com a business judgment rule. A ambientação, para o tema deste ensaio, deve ter em vista o modelo legislativo respectivo (modelo de responsabilidade civil do administrador) e, sobretudo, o modelo dogmático. Aplicada esta premissa, não se pode pretender a aplicação da business judgment rule e da técnica de julgamento quanto à não avaliação do mérito da decisão do gestor, sem que se tenha em vista as próprias objeções da doutrina nacional a respeito da obrigação de meio. Se na business judgment rule pode-se dizer que o resultado da decisão do gestor não deve ser avaliado pelo Poder Judiciário, na doutrina brasileira, mesmo nas obrigações de meio, tal afirmação deve ser vista cum grano salis. Tendo em mente a objeção manifestada por Paulo Lôbo e ainda que ela não seja encampada pela maior parte dos autores, parece legítimo supor que a relação diligência x resultado, no âmbito das atividades dos administradores, deve levar em conta elementos muito mais sofisticados do que simplesmente o transplante acrítico da business judgment rule poderia conduzir. A aplicação de elementos da business judgment rule no Brasil, pois, deve ter em vista o alerta feito pela doutrina nacional quanto a dificuldade da aferição abstrata do comportamento do agente supostamente responsável por um dano. Afinal, é certo que “não apenas as desigualdades sociais, como também a crescente complexidade da vida contemporânea, a especialização dos setores econômicos e o avanço desconcertante das novas tecnologias resultam em que, muitas vezes, o juiz se vê diante de situações às quais não se pode transportar” (SCHREIBER, 2013, p. 41). E, não o podendo, mesmo nas obrigações de meio, como no caso das obrigações do gestor de empresa, a análise da diligência empregada e dos resultados razoavelmente esperados, deve ser realizada à vista de modelos de conduta específicos, e não abstratos

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ou generalistas — como, por exemplo, na fórmula norte-americana do administrador de boa-fé. Sobre o tema, Anderson Schreiber pontua que “sem abandonar o método in abstracto ou retornar a um exame de imputabilidade moral, os tribunais têm, em toda parte, procurado dar ênfase às circunstâncias concretas e à especialidade das situações submetidas à sua avaliação, desenhando modelos múltiplos e menos generalizados de comportamento” (SCHREIBER, 2013, p. 41). Pode-se dizer que, tal atividade de arquitetar modelos de conduta, para além de atribuição dos tribunais, deve ter na doutrina área fértil de soluções. Deste modo é que se poderá ponderar o que pode ser razoavelmente esperado de um gestor em vista da diligência possível, em um dado segmento econômico e momento histórico. A se ter tal atividade em mente, não se pode encampar sem ressalvas a ausência de controle jurisdicional quanto ao resultado das decisões de um gestor, próprio da business judgment rule. Em um momento em que o modelo brasileiro de responsabilidade civil tem preconizado a fragmentação dos modelos de conduta, ao invés da generalização, é digno de nota a observação segundo a qual “os magistrados têm buscado recursos na sociedade para a formação de standards de conduta, valendo-se, por exemplo, de diretrizes emitidas por associações profissionais, de códigos de conduta especializados mesmo desprovidos de valor normativo, da oitiva de assistentes judiciais especializados” (SCHREIBER, 2013, p. 42). Sob este ângulo, não é totalmente irrelevante o resultado da decisão do gestor, ao menos não em uma análise abstrata; em face desta pretensa irrelevância de um resultado danoso a doutrina deve se opor através da criação de standards de conduta, com fundamento em modelos específicos, não generalistas, o que torna possível a visualização do que poderia ser razoavelmente esperado em face de uma gestão diligente.

3.3  Business judgment rule e sindicabilidade dos atos administrativos: possível analogia Embora seja possível falar em uma aproximação, no entanto, é importante verificar se outro elemento importante da business judgment rule poderia ser aplicado ao modelo brasileiro: a impossibilidade de revisão, pelo Judiciário, do mérito das decisões do administrador. Além do elemento risco, como visto, ser inerente à atividade de qualquer gestor de empresas, o que torna a sua atividade sui generis, já que tanto maior o risco, maior a possibilidade de retornos financeiros, deve-se ter em mente sociedades empresárias operam sob um regime de direito privado. Tal circunstância, por incidência da autonomia privada e por um prestígio maior que deve ser conferido aos mecanismos de autorregulação, a exemplo de estatutos, contratos sociais, acordos de sócios,

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entre outros, impõe certos limites à intervenção do Poder Judiciário no julgamento de lides com este contexto. Assim, não havendo violação das normas de ordem pública ou regras cogentes da legislação, é induvidoso que o Poder Judiciário deverá cingir-se a apreciar as condutas das partes, administrador, sociedade e sócios, em casos de responsabilidade civil com este perfil, mas não buscar um exercício de substituir-se ao gestor, buscando avaliar qual teria sido a melhor decisão caso ele próprio, juiz, estivesse lá. Sobre o tema, nos Estados Unidos, já se disse que juízes não são administradores (QUATTRINI, 2014, p. 31). Por esta razão, cujo fundamento também é legítimo no âmbito do modelo brasileiro de responsabilidade do administrador, deve-se ter em mente que “os juízes se encontram em uma posição muito mais confortável do que aquela dos administradores quando da tomada de decisões. Dessa maneira, magistrados e acionistas podem apontar quanto os administradores poderiam saber ao tempo da decisão, mas não sabiam; ou se a decisão realmente deveria ter sido tomada rapidamente” (BRIGAGÃO, 2013, p. 123). No Brasil, para além dos domínios do Direito Empresarial, fundamento semelhante pode ser localizado no âmbito do Direito Administrativo. Com efeito, assim como juízes não são administradores, é conhecido o entendimento segundo o qual juízes também não são gestores públicos, o que se enuncia com base na regra de proibição de sindicabilidade do mérito dos atos administrativos. Assim, à discricionariedade do gestor público, corresponde a vedação, ao Poder Judiciário, de imiscuir-se no mérito dos atos administrativos, com as ressalvas quanto a legalidade, motivos e razoabilidade do ato. Tendo em conta a questão do mérito das decisões de um administrador, à autonomia privada incidente nas relações societárias, corresponde a vedação, ao Poder Judiciário, de imiscuir-se no mérito das decisões operacionais, devendo ser apreciado a existência de boa-fé, diligência, lealdade e observância, por parte do administrador, da lei e das normas estatutárias, no curso do processo decisório.

3.4  Business judgment rule na jurisprudência da comissão de valores mobiliários Na esteira dos fundamentos anteriormente expostos, há espaço no modelo brasileiro de responsabilidade civil do administrador para aplicação da business judgment rule, ainda que com ressalvas. As regras previstas tanto na Lei nº 6.404/76, quanto no Código Civil (modelo legislativo), bem assim a doutrina sobre o tema (modelo dogmático) conduzem a uma interpretação segundo a qual (i) a responsabilidade será subjetiva; (ii) a obrigação será de meio e (iii) não é dado ao Judiciário avaliar o mérito das decisões do gestor, mas sim a diligência e a boa-fé no processo decisório.

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A jurisprudência da Comissão de Valores Mobiliários confirma este espaço no modelo brasileiro para a aplicação da business judgment rule. Este dado, haurido do órgão regulador do mercado de capitais no Brasil, merece destaque, pois é neste foro, no âmbito das companhias com títulos negociados no mercado, que são adotadas medidas de punição em face de gestores que se possam ter conduzido fora dos parâmetros de governança corporativa que, de maneira geral, são exigidos de administradores de sociedades anônimas. Confira-se, como exemplo da assimilação, pela jurisprudência da Comissão, da business judgment rule o quanto decidido ainda no ano de 2004, no Processo Administrativo Sancionador n. 03/2002, sob a relatoria da Diretora Norma Parente: - O não pagamento de dividendo obrigatório na data prevista constitui hipótese de fato relevante, nos termos da legislação em vigor e a falta de sua divulgação, sem qualquer justificativa, importa responsabilidade Infração ao §4º do artigo 157 da Lei nº 6.404/76 e artigo 2º da Instrução CVM Nº 31/84; - O não pagamento na data aprazada do dividendo declarado não constitui irregularidade sujeita a punição disciplinar nem caracteriza falta de dever de diligência, salvo se for imotivado ou caprichoso; - A administração da companhia e seus acionistas têm discricionariedade para administrar os pagamentos devidos pela companhia, inclusive quanto à respectiva prioridade, não devendo a CVM se substituir à administração nestas decisões; - A não declaração do dividendo obrigatório nos termos do parágrafo 4º do art. 202 da Lei nº 6.404/76 e a respectiva constituição da reserva especial de dividendo de que trata o parágrafo 5º do art. 202 da Lei nº 6.404/76 decorrem de juízo da administração da cia. (grifou-se)

De modo mais vistoso, no ano de 2006, a Comissão expressamente aderiu ao modelo da business judgment rule. Julgando caso em que integrantes do Conselho da Administração de uma companhia eram acusados de não ter, de modo deliberado, convocado os integrantes do Conselho Fiscal para participar de assembleia, o relator Diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa assim se manifestou (Processo Administrativo nº RJ2005/1443): Para evitar os efeitos prejudiciais da revisão judicial, o Poder Judiciário americano criou a chamada “regra da decisão negocial” (business judgment rule), segundo a qual, desde que alguns cuidados sejam observados, o Poder Judicial não irá rever o mérito da decisão negocial em razão do dever de diligência. A proteção especial garantida pela regra da decisão negocial também tem por intenção encorajar os administradores a servir à companhia, garantindo-lhes um tratamento justo, que limita a possibilidade de revisão judicial de decisões negociais privadas (e que possa impor responsabilidade aos administradores), uma vez que a possibilidade de revisão ex post pelo Poder Judiciário aumenta significativamente o risco a que o administrador fica exposto, podendo fazer com que

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ele deixe de tomar decisões mais arriscadas, inovadoras e criativas (que podem trazer muitos benefícios para a companhia), apenas para evitar o risco de revisão judicial posterior. (...) A construção jurisprudencial americana para o dever de diligência em nada discrepa do que dispõe o art. 153 da Lei n. 6.404/76, sendo possível utilizar-se, no Brasil, dos mesmos standards de conduta aplicados nos Estados Unidos. A aplicação destes standards poderia fazer com que a aplicação do art. 153 fosse mais efetiva do que é hoje, pois poderíamos passar a observar o processo que levou à tomada de decisão para ver se os cuidados mínimos, que demonstrem a diligência do administrador, foram seguidos, não nos limitando a simplesmente negar a possibilidade de re-análise do conteúdo da decisão tomada. (grifou-se)

O julgado de cujo voto relator fora extraído o trecho acima vem sendo considerando, desde então, o condutor das decisões da Comissão a respeito da aplicação de sanções aos administradores em função de decisões negociais. São muitos os julgamentos desde então,2 sendo despiciendo, para os objetivos deste ensaio, a análise pormenorizada de todos eles. De todo modo, o que se extrai é a existência clara, na Comissão de Valores Mobiliários, de uma jurisprudência que se vale de parâmetros da business judgment rule para, a pretexto de uma correlação com o modelo brasileiro de responsabilidade dos administradores, aplicar a regra construída pelas Cortes norte-americanas no Brasil. Tal não só parece possível, como adequado, ante os graus de convergência dos dois modelos.

4 Conclusão Deve-se ter claro que os modelos são convergentes em muitos pontos, mas não semelhantes. Com a devida venia da doutrina, que parece ter se firmado em sentido contrário, por exemplo, não se pode tomar como fundamento da possibilidade de aplicação da business judgment rule no Brasil a regra do artigo 159, §6º da Lei nº 6.404/76.3 O objetivo da regra anteriormente enunciada não é evitar a sindicabilidade das decisões administrativas por parte do Poder Judiciário. Ao contrário, para se valer da prerrogativa de excluir a responsabilidade do administrador, antes deverá o magistrado, por óbvio, tê-la reconhecido. Tal minúcia não é retórica, pois ao reconhecer a responsabilidade, deverá o magistrado, na forma dos artigos 153 e 158, aferir culpa, dolo ou atuação do administrador em desconformidade com a Lei e com o estatuto

Para uma análise detalhada, ano a ano, desde 2000 até 2014, confira-se BRIGAGÃO, 2013. “Art. 159. (...) §6º. O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.”

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da companhia. Disto resulta, pois, a possibilidade de, num exemplo, o administrador negligente ou imperito ser “perdoado” pelo Poder Judiciário, se ele comprovar que agiu no interesse da companhia e de boa-fé. O exemplo é fictício, mas não é modo algum inverossímil: imagine-se que um diretor toma a frente de uma operação de aquisição de determinado ativo, seguindo a diretriz estabelecida pelo Conselho de Administração. Se esta operação for considerada prejudicial à empresa em função da negligência do administrador na avaliação do valor da aquisição, ainda assim, poderia ter ele excluída a sua responsabilidade, desde que demonstre ter agido no interesse da companhia e de boa-fé quanto a sua expectativa de lucro no negócio. A norma do artigo 159, §6º tem muito mais a natureza de um critério ope legis de exclusão ou redução de responsabilidade, a exemplo do quanto já previsto no artigo 944, parágrafo único, do Código Civil,4 do que propriamente de um veículo para a introdução do business judgment rule no Brasil. Com o objetivo de evitar-se um déficit de argumentação, o que poderia enfraquecer a crescente utilização da regra ou abrir espaço para impugnações, é prudente refletir sobre os fundamentos possíveis para o seu uso no país tendo como parâmetro de comparação institutos típicos do modelo dogmático brasileiro, como se buscou fazer a partir das conexões possíveis com as obrigações de meio e a autonomia. No âmbito deste modelo que se procurou traçar, é possível vislumbrar-se uma dimensão dupla na investigação da responsabilidade do administrador. Em primeiro lugar, tem-se uma dimensão formal. Nesta oportunidade, assentada na premissa de que o inciso II do artigo 158 prevê hipótese de responsabilidade objetiva, deve-se investigar se a decisão do administrador observou a lei e o estatuto da empresa, sobretudo quanto às suas atribuições, bem assim quanto a outras normas internas que instituam deveres de compliance. Superada a investigação formal (“o administrador agiu conforme a lei e conforme as normas internas da sociedade?”), vai-se a um segundo momento, de dimensão material (“o administrador, no processo decisório, agiu com a diligência e o cuidado esperados para o contexto?”). Aqui, será necessário avaliar o processo decisório em si, tendo em conta os critérios de boa-fé, diligência e lealdade — sendo de todo possível aqui, pela semelhança de modelos, o uso dos mesmos critérios bastante desenvolvidos pela jurisprudência norte-americana ao cunhar a business judgment rule. Por outro lado, quanto à obrigação de meio, está certo que, obedecidas as complexidades de cada companhia, relacionada ao seu porte e sofisticação dos mecanismos de governança, não basta demonstrar a ausência de negligência, imperícia

“Art. 944. (...) Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.”

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e imprudência. Como se viu, dada a possibilidade de aplicação da business judgment rule no Brasil, os meios de conduta exigidos do administrador o impõem extremo cuidado ao longo do processo decisório, devendo ele informar-se, informar, obedecer os controles internos da administração, tudo de modo a excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer elemento relativo ao mérito, à correição de suas decisões enquanto gestor. O que se pretende, a partir da dupla dimensão sugerida para análise da responsabilidade civil do administrador, é ambientar a regra da business judgment rule na ordem jurídica brasileira. Disso resulta apenas ganhos na interpretação do modelo atualmente vigente, com as contribuições do desenvolvimento obtido pela jurisprudência norte-americana. Não somente no campo da responsabilidade civil, mas na ordem jurídica como um todo, deve-se ter sempre em conta que “não se faz doutrina com erudição vazia, slogans e palavras de ordem (...), nem com o transplante acrítico de soluções estrangeiras, sem pensar-se nas possibilidades e sem avaliar os efeitos concretos de sua inserção no sistema” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 22). É sob este ângulo, em um momento de séria crise econômica, no qual pode-se divisar no horizonte inúmeras lides questionando decisões tomadas por administradores e possíveis danos causados a acionistas, que business judgment rule deve ser vista: como mais um elemento que soma-se ao modelo brasileiro de responsabilidade civil, o qual não pode ser simplesmente abandonado, com o que se estará abandonando também séculos de tradição jurídica e que bem refletem a função desempenhada pela doutrina na construção de tal modelo.

Abstract: Legal models are cultural constructions not only in view of the standards produced in a given legal system, but also considering the doctrinal production. For this reason, it is prudent, prior to transpose certain institute of comparative law to the national legal system, carry out the appropriate caveats in the light of previously existing legal model, lest it falls into incompatibilities, cultural or legal. The business judgment rule is the US legal model administrator liability and, before proposing its application in Brazil, it is necessary to its analysis in light of our administrator liability model - study what is intended through this essay, with the backdrop of the reflection on the doctrine of function in the construction of legal models. Keywords: Civil Liability. Administrator. Legal Models.

Referências BRIGAGÃO, Pedro Henrique Castello. A administração de companhias e a business judgment rule: uma análise à luz do direito brasileiro. Disponível em: . CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 3.

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CARVALHOSA, Modesto. Responsabilidade civil dos administradores de companhias abertas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 49, jan./mar. 1983. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 2. DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 11. ed. São Paulo, Saraiva, 2014. p. 418. IRTI, Natalino. L’etá della decodificazione. 4. ed. Milano: Giuffré, 1999. LORENZETI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial. São Paulo: RT, 2010. LUCENA, José Waldecy. Das sociedades anônimas: comentários à lei (arts. 121 a 188). Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. 2. MARCHESINI, Pablo Oliveira. Aplicação do business judgment rule à responsabilidade civil do administrador na sociedade limitada. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso – Faculdade Baiana de Direito, Salvador. MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2013. QUATTRINI, Larissa Teixeira. Os deveres dos administradores de sociedades anônimas abertas: estudo de casos. São Paulo: Saraiva, 2014. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dos administradores de S/A: business judgment rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. VICENTE, Dário Moura. Tendências da codificação do Direito Civil no século XXI: algumas reflexões. In: LOPEZ, Teresa Ancona; LEMOS, Patrícia Faga Iglecias; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz (Coord.). Sociedade de risco e direito privado. São Paulo: Atlas, 2013.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): NETO, Ermiro Ferreira. Business judgment rule e responsabilidade civil do administrador: ensaio sobre a função da doutrina na construção de modelos jurídicos. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./ dez. 2015.

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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros, de acordo com o Marco Civil da Internet Chiara Antonia Spadaccini de Teffé Mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Conselho Executivo da revista eletrônica de direito civil civilistica.com. Professora de Direito Civil. Advogada. E-mail: .

Resumo: Este artigo discute o tratamento conferido à responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros no Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Diante da complexidade das questões pertinentes ao ambiente virtual e considerando a recente vigência da Lei nº 12.965/14, deseja-se contribuir teoricamente com a sua discussão e interpretação, a partir dos pilares da metodologia do Direito Civil-Constitucional. Para tanto, inicialmente, foi realizado um breve estudo a respeito da elaboração e da estrutura do Marco Civil e, em seguida, foram analisados os artigos legais referentes à responsabilidade do provedor de aplicações de internet pela compensação dos danos oriundos do conteúdo inserido por terceiro. Utilizaram-se como principais fontes a legislação nacional, doutrina nacional e estrangeira e decisões do Superior Tribunal de Justiça. Ao final, ponderando cada justificativa apresentada, pareceu que o legislador agiu corretamente ao evitar a restrição prévia ao discurso, embora eventuais exceções à lei ainda devam ser consideradas. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Dignidade da pessoa humana. Liberdade de expressão. Marco Civil da Internet. Provedor de aplicações de internet. Sumário: Introdução – 1 A proteção da pessoa humana no ambiente virtual – 2 A elaboração do Marco Civil da Internet – 3 A orientação principiológica do Marco Civil da Internet – 4 A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros – 5 A guarda de registros pelo provedor de aplicações de internet e a identificação do ofensor – 6 Considerações finais – Referências

Introdução O artigo visa a analisar o regime de responsabilidade civil desenvolvido no Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, para o provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Sob o manto da liberdade de expressão, entre os artigos 19 e 21 da lei, o legislador positivou normas

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com o escopo de orientar o debate acerca de qual seria o sistema de responsabilidade civil mais adequado para reger a relação estabelecida entre os provedores e os usuários da rede, na hipótese específica de um terceiro inserir conteúdo danoso. Com a entrada em vigor desta lei, cabe ao intérprete analisar criticamente o tratamento oferecido ao assunto, bem como avaliar dentre as possíveis interpretações a mais adequada para garantir a proteção da pessoa humana. Neste estudo, em primeiro lugar, será realizada uma breve análise a respeito da importância da Internet para a sociedade atual e da trajetória de elaboração do Marco Civil no Brasil, norma específica desenvolvida para tratar de determinados conflitos no ambiente virtual. Em seguida, passa-se para o estudo da relevância conferida pelo legislador do Marco Civil ao princípio da liberdade de expressão. Após essas considerações, a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros será densamente examinada. Optou-se por realizar este estudo a partir dos artigos do Marco Civil da Internet pertinentes à Seção III “Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por Terceiros”, visando a melhor organizar o desenvolvimento de cada tema e contribuir com a interpretação dessas normas, tendo em vista a complexidade das questões e a escassez de material doutrinário. Por fim, será realizada uma concisa análise a respeito do dever de guarda de registros atribuído pela lei ao provedor de aplicações de internet, de forma a facilitar a identificação do responsável pela inserção do conteúdo danoso.

1  A proteção da pessoa humana no ambiente virtual O desenvolvimento da Internet representa um novo episódio dentro de um conjunto de transformações tecnológicas que vêm ocorrendo na sociedade da informação. A sua origem remonta a década de 1960 quando, durante a guerra fria, o departamento de defesa norte-americano promoveu pesquisas em torno da elaboração de uma rede de comunicações de base descentralizada que seria responsável por interligar computadores militares e industriais. Inicialmente, o projeto realizado pela ARPA (Advanced Research Projects Agency) conectava apenas quatro universidades nacionais, vindo, posteriormente, a se expandir, em razão do interesse comercial em torno deste serviço. Com mais de três bilhões de usuários no mundo,1 a Internet tornou-se essencial para o funcionamento das mais diversas estruturas da sociedade, proporcionando a difusão, o armazenamento e o processamento de dados com velocidade e precisão.

Dados obtidos no site Internet Live Stats, com base nos estudos desenvolvidos até o ano de 2014 pela International Telecommunication Union. O Brasil encontra-se em 5º lugar no ranking de usuários por país. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2015

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Entende-se que este novo instrumento seria capaz, até mesmo, de modificar e reorganizar as relações de poder, em virtude de atuar diretamente em um dos bens mais relevantes na presente conjuntura — a informação. Na atualidade, a Internet representa um elemento fundamental para a disseminação da informação, o que impacta tanto o crescimento da economia quanto o direcionamento do discurso político, de forma que o seu controle vem sendo alvo de uma séria disputa entre Estados soberanos. Destaca-se também a relevância do ambiente virtual para o processo de democratização do acesso à informação, uma vez que permite que pessoas de lugares diferentes e com graus diversos de educação possam acessar o mesmo conteúdo, e para o incremento da participação popular na própria construção das informações e conteúdos divulgados. Analisando a estrutura do que chama de Sociedade da informação, Oliveira Ascensão afirma que esta teria como instrumento nuclear a Internet, que, segundo o autor, foi objeto de profunda e rápida metamorfose, pois de rede militar teria passado a rede científica desinteressada, depois a meio de comunicação de massas, para tornar-se no presente importante veículo comercial. A respeito da informação, o autor destaca que: Nesta evolução, a informação que seria o seu conteúdo vai mudando de natureza. Não só passa a abranger qualquer conteúdo de comunicação — de maneira que melhor se falaria em sociedade da comunicação que em sociedade da informação — como a própria informação se degrada. O saber transforma-se em mercadoria. De conhecimento livre transforma-­ se em bem apropriável. É cada vez mais objecto de direitos de exclusivo, que são os direitos intelectuais. Estes, por sua vez, são cada vez mais dissociados dos aspectos pessoais, para serem considerados meros atributos patrimoniais, posições de vantagem na vida económica.2

O caráter global da Internet e a ausência de um domínio absoluto sobre as suas dimensões exigem uma maior reflexão acerca dos possíveis impactos e efeitos do ambiente virtual na vida real de seus usuários. Neste sentido, parece equivocada a afirmação de que na Internet a circulação de informações deveria ser completamente livre e irrestrita, bem como que naquele meio os instrumentos legais de proteção à pessoa humana não seriam de todo aplicáveis.3 Ainda que a Internet seja o espaço

ASCENSÃO, Oliveira. Sociedade da informação e mundo globalizado. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2015. 3 Por consequência, critica-se também as premissas da corrente liberatória, centrada na ordenação espontânea do ciberespaço, que surgiu nos Estados Unidos da América no início da década de 1990. Esta defende que a internet seria um ambiente que não deveria estar sujeito à regulamentação jurídica tradicional, tendo em vista a impossibilidade de adequação da normatização legal às situações desenvolvidas no ambiente virtual. Partese de uma concepção romântica do ciberespaço como um reino separado do espaço físico e do alcance tanto de governos nacionais quanto das forças do mercado. Este entendimento foi defendido, principalmente, por David Clark e por John Perry Barlow, que em 1996 elaborou “A Declaration of the independence of Cyberspace” 2

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por excelência da liberdade, isso não significa que este seria um universo sem lei e contrário à responsabilidade pelos abusos que lá possam ocorrer. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é apenas um, de forma que nem o meio em que os agressores transitam e nem as ferramentas tecnológicas que utilizam poderão transmudar ou enfraquecer a natureza irrenunciável, intransferível e imprescritível do referido princípio.4 Na legalidade constitucional, é efetivamente o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF) que institui e preenche a cláusula geral de tutela da personalidade, que dispõe que as situações jurídicas subjetivas não patrimoniais deverão receber um tratamento prioritário e uma tutela especial pelo ordenamento. No Brasil, a ordem constitucional mostra-se responsável por proteger os indivíduos de qualquer ofensa ou ameaça à sua personalidade, devendo-se tanto prevenir quanto reparar da forma mais ampla possível os danos causados.5 Neste cenário, verifica-se que, cada vez mais, direitos e deveres deverão ser garantidos à pessoa humana, tanto com base no texto constitucional quanto em norma específica. Diante de uma situação de conflito, o intérprete deverá colocar os interesses existenciais em uma situação de preeminência, de forma a garantir a plena tutela da dignidade. Nesta perspectiva, destaca-se o entendimento de Gustavo Tepedino: (...) as novas tecnologias, como se veio de demonstrar, rompem com os compartimentos do direito público e do direito privado, invocando regulação a um só tempo de natureza privada e de ordem pública. A dignidade da pessoa humana há de ser tutelada e promovida, em última análise, nos espaços públicos e privados, daí resultando a imprescindibilidade de um controle da atividade econômica segundo os valores constitucionais, processo hermenêutico que, em definitivo, há de ser intensificado — e jamais arrefecido — com a promulgação de leis infraconstitucionais.6

Deve-se, portanto, buscar a permanente inserção da principiologia oriunda da tábua axiológica constitucional nas categorias antes estritamente ligadas ao direito privado, visando a promover tanto a elaboração quanto a aplicação de normas responsáveis por proteger não apenas o corpo físico, mas também o seu duplo eletrônico.

(Confira a íntegra em: . Acesso em 20 ago. 2015). Entretanto, este otimismo liberal não tardou a ser combatido em virtude da progressiva ocupação da internet por governos e grandes empresas que buscavam uma maior segurança nas relações ali traçadas. Verificou-se que, mesmo que as características de estruturação da Internet e do tráfego de informações pela rede tornem praticamente impossíveis o monitoramento e o controle completo deste ambiente, a Internet não poderia ser tratada como uma utopia diferenciada, autogovernada e libertária, mas sim como um ramo da vida em sociedade que daria ensejo a relações tão complexas quanto aquelas desenvolvidas no ambiente real. 4 STJ. REsp nº 1.117.633. 2º T. Min. Rel. Herman Benjamin. DJ de: 03.03.2010. 5 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 117. 6 TEPEDINO, Gustavo. Direito Civil e ordem pública na legalidade constitucional. Boletim Científico da ESMPU. Brasília, ano 4, n. 17, p. 234, out./dez. 2005.

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A adequada tutela da pessoa humana deve ser realizada a partir do ordenamento globalmente considerado e não de maneira setorizada com base na dicotomia entre os direitos público e privado.7 Na última década, no Brasil, foram noticiados diversos casos envolvendo violações aos direitos da personalidade por meio de perfis falsos, descrições difamatórias e a exposição não consensual de vídeos e informações pessoais, em locais como redes sociais,8 aplicativos para celular ou plataformas que permitem compartilhar conteúdos variados.9 Além do grande número de lesões à pessoa na Internet, verificou-se a dificuldade de se reparar integralmente os danos ocorridos naquele meio, em razão da facilidade com que o conteúdo lesivo pode ser transmitido e armazenado por terceiros, em nível global, e da falta de instrumentos próprios para a identificação dos ofensores. Diante deste cenário, conclui-se que as novas tecnologias ampliaram extraordinariamente o potencial lesivo de cada indivíduo, o que exige, por conseguinte, não apenas uma nova ética, mas também uma nova abordagem por parte do Direito, que deve ocorrer de acordo com os ditames da metodologia civil-constitucional.

2  A elaboração do Marco Civil da Internet No Brasil, optou-se por se elaborar uma norma própria e específica, em âmbito civil, para reger as relações no ambiente virtual, o Marco Civil da Internet, que foi desenvolvido a partir de um processo colaborativo com diversos setores da sociedade. Em 29 de outubro de 2009, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 762. No Recurso Especial nº 1.308.830, julgado em 2012, a Min. Nancy Andrighi salientou o interesse coletivo que envolve a controvérsia referente aos danos a direitos da personalidade por conteúdo de terceiro nas redes sociais virtuais, em razão de sua enorme difusão e da crescente utilização deste meio como artifício para a consecução de atividades ilegais. 9 Percebe-se uma intensa relação entre os direitos à imagem e à privacidade, principalmente, nas hipóteses que envolvem danos à pessoa humana no ambiente virtual. O leading case sobre o tema envolveu a publicação, em um site de visibilidade internacional, o YouTube, de um vídeo em que a modelo Daniella Cicarelli e o seu namorado, sem saber que estavam sendo filmados, encontravam-se em momentos íntimos, em uma praia na Espanha (TJ/SP, Apelação Cível nº 556.090.4/4-00, 4º Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, julg. 12.06.08). Em agosto de 2014, o juiz da 5ª Vara Cível de Vitória deferiu medida liminar determinando que o Google e a Apple retirassem de suas lojas virtuais o aplicativo Secret, que permitia que seus usuários fizessem comentários e postassem fotos anonimamente (Ação Civil Pública nº 002855398.2014.8.08.0024). Entretanto, em setembro de 2014, a justiça suspendeu os efeitos da referida medida liminar. Segundo o desembargador, o aplicativo não seria completamente anônimo, pois seria possível a identificação do usuário por meio do endereço de IP. Ele considerou também que obrigar as empresas a acessarem remotamente os celulares dos usuários, para desinstalar os aplicativos já baixados, violaria o direito à privacidade. Rubens Barrichello ingressou com uma ação em face do Google com o escopo de obrigar o réu a excluir do Orkut conteúdo lesivo à sua imagem e honra (comunidades e perfis criados por terceiros), bem como a indenizá-lo pelos danos morais sofridos em razão da conduta ilícita de usuários do serviço e da demora em corrigir a situação (TJSP, 4ª Câm. Dir. Priv., AC nº 990.10.126.564-8, Rel. Des. Francisco Loureiro, julg. 21.10.2010) (STJ, 3ª Turma, REsp 1.337.990, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julg.21 ago. 2014). Cf. TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. A existência refletida: o direito à imagem a partir de uma perspectiva civil-constitucional. Artigo publicado no XXIV Encontro Nacional do CONPEDI. Aracaju. 2015. 7 8

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Justiça, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, iniciou e fomentou estudos visando à elaboração do projeto de lei do Marco Civil da Internet no Brasil, o qual deveria ter como meta a colaboração e a participação social, por meio de debates tanto no ambiente físico quanto virtual.10 Em um primeiro momento, foi produzido um texto base pelo Ministério da Justiça, que teve como objetivo estabelecer uma pauta e problematizar as principais questões envolvendo o uso da rede, que seriam abordadas em um futuro projeto de lei. O foco central dos envolvidos era desenvolver uma norma que pudesse orientar as decisões judiciais envolvendo conflitos na Internet. Em seguida, foi elaborada a minuta do anteprojeto de lei sobre o tema e, mais uma vez, o debate foi aberto, contemplando vários setores da sociedade.11 Segundo dados coletados, a discussão sobre o Marco Civil da Internet, realizada entre novembro de 2009 e junho de 2010, recebeu mais de 2.000 contribuições e 18.500 visitas. Na segunda fase, a minuta foi submetida à apreciação de outros órgãos governamentais e encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, iniciando o seu trâmite na Câmara dos Deputados, quando se transformou no projeto de Lei nº 2.126/2011.12 Tendo como base uma densa estrutura principiológica, com ênfase no princípio da liberdade de expressão, o projeto do Marco Civil abordava temas de grande relevância, mas de elevada polêmica, como, por exemplo, a privacidade de dados, o grau de vigilância e responsabilidade dos provedores de internet e a guarda de registros pelos provedores. Diante dos inúmeros debates promovidos, no ano de 2012, a redação deste projeto sofreu algumas alterações por meio de seu relator — o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), que ofereceu um texto substitutivo. Em setembro de 2013, em razão de pedido do Poder Executivo, o projeto de lei, que se encontrava até então pendente de análise na Câmara dos Deputados, entrou em regime de urgência Constitucional, na forma do art. 64, §1º, da CRFB/88.13 14 Entretanto, apenas no final de março de 2014, o projeto de lei foi enviado para o Senado, sendo aprovado e transformado na lei ordinária nº 12.965/14 no mês de abril,

Foram marcadas audiências públicas, ouvidos especialistas e interessados e disponibilizado, em um site na Internet, local adequado para que qualquer pessoa pudesse apresentar a sua contribuição na redação do texto. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2015. 11 Este debate pode ser verificado no site “Cultura Digital”. Disponível em: . Acesso em 28 ago. 15. 12 Este projeto pode ser acompanhado em site vinculado a Câmara dos deputados. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 15. 13 “Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. §1º – O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.” 14 Ronaldo Lemos afirma que isso ocorreu em razão do escândalo provocado pelas revelações de Edward Snowden quanto à espionagem norte-americana a governos e empresas. LEMOS, Ronaldo. O marco civil como símbolo do desejo por inovação no Brasil. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 03-11. 10

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época em que ocorreu no Brasil o evento internacional NET Mundial. Posteriormente, a Presidente sancionou a lei, que entrou em vigor em 23 de junho de 2014. Ao longo de 32 artigos, o Marco Civil da Internet estabelece direitos e deveres para o uso da Internet, além de regular temas específicos como a proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, a neutralidade da rede, a responsabilidade civil dos provedores de conexão e aplicações de internet, a guarda de registros e a sua eventual requisição pelas autoridades. Da leitura, percebe-se a importância conferida aos princípios da neutralidade da rede, da privacidade e, principalmente, da liberdade de expressão, que preconiza a necessidade de se garantir um discurso livre e plural na rede que não sofra uma indevida interferência externa ou uma eventual censura prévia. Em virtude de este instrumento legislativo abarcar questões que envolvem alguma complexidade e fazem referência a conceitos não jurídicos, parece necessário que a doutrina contribua teoricamente com a sua discussão e interpretação, que deverá levar em conta, segundo o artigo 6º da lei, “além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural”. Observa-se que o intérprete não deve considerar o Marco Civil como um microssistema próprio e fechado, devendo sempre interpretar e aplicar as suas normas sob a luz dos valores e princípios constitucionais.15

3  A orientação principiológica do Marco Civil da Internet Com base no artigo 3º da Lei nº 12.965/14,16 afirma-se que a Internet brasileira encontrar-se-ia alicerçada em um tripé axiológico conformado pelos princípios da neutralidade da rede, da privacidade e da liberdade de expressão. Em breves linhas, compreende-se que a neutralidade da rede – princípio da disciplina do uso da Internet no Brasil (Art. 3º, IV) – garantiria um espaço que trataria

De acordo com a metodologia do direito civil constitucional, deve-se permanentemente “reler todo o sistema do código e das leis especiais à luz dos princípios constitucionais e comunitários, de forma a individuar uma nova ordem científica que não freie a aplicação do direito e seja mais aderente às escolhas de fundo da sociedade contemporânea” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 137-138.) 16 “Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; II – proteção da privacidade; III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei; IV – preservação e garantia da neutralidade de rede; V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; VII – preservação da natureza participativa da rede; VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei. Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 15

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da mesma forma tudo que transportasse indiferente à natureza do conteúdo ou à identidade do usuário.17 Seria um princípio de arquitetura de rede que endereçaria aos provedores de acesso o dever de tratar os pacotes de dados que trafegam em suas redes de forma isonômica, não os discriminando em razão de seu conteúdo ou origem.18 No Marco Civil, a neutralidade apresenta disciplina própria no artigo 9º que dispõe que “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Em relação ao princípio da privacidade, verifica-se que este deve ser concebido de forma a tutelar integralmente as informações da pessoa humana, impedindo a interferência alheia. Diante do acelerado avanço da tecnologia, entende-se que a noção de privacidade deve ser ampliada, para englobar, além do mero isolamento ou reserva do indivíduo, o controle da circulação das informações pessoais e a autodeterminação informativa.19 No Marco Civil da Internet, o princípio da privacidade foi expressamente assegurado nos artigos 3º, II, 8º e 11. Em outras passagens, a lei estabeleceu a proteção aos dados pessoais, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e a inviolabilidade e o sigilo do fluxo das comunicações pela Internet. Por fim, entende-se que a liberdade de expressão representaria o fundamento do direito de externar ideias, juízos de valor e as mais variadas manifestações do pensamento em qualquer ambiente. Alguns autores destacam que a liberdade de expressão poderia ser utilizada como referência de gênero, que abarcaria as liberdades de (i) manifestação de pensamento, (ii) consciência e expressão religiosa, (iii) expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e (iv) informação. Ao longo do Marco Civil, verifica-se a preocupação do legislador em assegurar que o ambiente da Internet seja colocado, como não poderia deixar de ser, a serviço do valor maior do ordenamento que é a pessoa humana, conformando-se em um ambiente saudável para o livre desenvolvimento de sua personalidade. Entretanto, alguns intérpretes apontam que a liberdade de expressão teria sido colocada em uma posição preferencial frente aos demais direitos e princípios, em razão de determinadas opções na redação da lei, notadamente a menção à liberdade em cinco momentos distintos.20 Este entendimento toma como referência a doutrina de direito

WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google. Tradução de Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 244. 18 Definição desenvolvida por Pedro Ramos no site: . Acesso em: 24 ago. 2015. 19 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Coord. Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 74-75. 20 No artigo 2º, o único fundamento para a disciplina do uso da Internet no Brasil que se encontra no caput é a liberdade de expressão; no art. 3º, o primeiro princípio que disciplina o uso da internet no Brasil é a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento; no art. 8º, a lei faz referência à delicada ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade; no art. 19, a regra da responsabilidade do provedor de aplicações de internet foi construída de forma a assegurar a liberdade de expressão e impedir 17

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público que afirma que as liberdades de informação e de expressão, por servirem de fundamento para o exercício de outras liberdades, deveriam ser colocadas em uma posição de preferência em relação aos demais direitos fundamentais individualmente considerados.21 22 Sinteticamente, a posição preferencial envolveria duas ideias: a importância de haver um controle muito rigoroso das medidas que eventualmente possam restringir estes direitos e o reconhecimento de uma prioridade prima facie das liberdades comunicativas, nas hipóteses de colisão com outros princípios constitucionais, inclusive aqueles que consagram direitos da personalidade.23 Entretanto, salvo melhor juízo, não parece que o legislador tenha realizado no texto constitucional uma ponderação a priori em favor de algum direito, mas sim direcionado a interpretação e a aplicação da norma à condição que garanta a maior tutela à dignidade da pessoa humana. Partindo-se da premissa de que na Constituição Federal não haveria uma hierarquia entre os direitos fundamentais, qualquer preferência atribuída em abstrato e de forma geral carecerá de fundamento de validade. Nesta lógica, defende-se que, diante do caso concreto, o magistrado responsável deverá analisar os interesses em conflito e as especificidades da situação para, só então, realizar a ponderação de direitos. É importante destacar que eventual rechaço à posição preferencial não deve ter como consequência direta a alteração do resultado da ponderação, visto que é inquestionável a importância da liberdade para o adequado desenvolvimento e proteção da personalidade humana. Como um dos corolários da dignidade da pessoa humana, “Liberdade significa, hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier”.24



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a censura na Internet; no§2º do art. 19, foi estabelecido que a aplicação do disposto no caput para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição da República. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 235, p. 1-36, jan./mar. 2004. No Supremo Tribunal Federal, alguns ministros já se posicionaram neste sentido. Na ADPF nº 130, o Min. Carlos Britto afirmou que “a Constituição brasileira se posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para, de imediato, cravar uma primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato senso”. Na ADPF nº 187, o Min. Luiz Fux consignou que: “a liberdade de expressão (...) merece proteção qualificada, de modo que, quando da ponderação com outros princípios constitucionais, possua uma dimensão de peso prima facie maior”, em razão da sua “preeminência axiológica” sobre outras normas e direitos. No Rec. Ext. nº 685.493, o Relator Min. Marco Aurélio declarou que: “é forçoso reconhecer a prevalência da liberdade de expressão quando em confronto com outros direitos fundamentais, raciocínio que encontra diversos e cumulativos fundamentos. (...) A liberdade de expressão é uma garantia preferencial em razão da estreita relação com outros princípios e valores fundantes, como a democracia, a dignidade da pessoa humana, a igualdade”. SARMENTO, Daniel. Parecer Liberdades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional brasileira para o Recurso Extraordinário com agravo nº 833.248. Divulgado em 2015. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2015. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.

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Nesse sentido, em recente resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas reconheceu-se que: (…) the effective exercise of the right to freedom of opinion and expression, as enshrined in the International Covenant on Civil and Political Rights and the Universal Declaration of Human Rights, is essential for the enjoyment of other human rights and freedoms and constitutes a fundamental pillar for building a democratic society and strengthening democracy, bearing in mind that all human rights are universal, indivisible, interdependent and interrelated.25

Apenas não se outorga à liberdade de expressão uma posição inicial de vantagem, no caso de conflito com outros direitos fundamentais, sendo exigida uma criteriosa avaliação dos direitos e bens jurídicos contrapostos e dos níveis de afetação destes. Observa-se que este entendimento não destoa de parte significativa da doutrina26 e encontra-se disposto inclusive em documentos internacionais. Neste sentido, recorda-se o artigo 19 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966,27 que dispõe que: (i) “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões” e que (ii) “Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.28 Todavia, o exercício do direito previsto no §2º implicará deveres e responsabilidades especiais. Por conseguinte, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, constar expressamente em lei e ser necessárias para assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas e proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

4  A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros O Marco Civil da Internet dispõe acerca da responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo inserido por terceiro, Resolution adopted by the Human Rights Council 25/2. Freedom of opinion and expression: mandate of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression. 9 April 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 15. 26 Nesta perspectiva, Ingo Sarlet e Maria Celina Bodin de Moraes. 27 O Congresso Nacional aprovou o texto do referido diploma internacional por meio do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991, tendo sido depositada a Carta de Adesão em 24 de janeiro de 1992. O pacto ora promulgado entrou em vigor, para o Brasil, em 24 de abril de 1992. Desde então, o Brasil tornou-se responsável pela implementação e proteção dos direitos fundamentais previstos no Pacto. 28 Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015. 25

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entre os artigos 19, 20 e 21. Trata-se de norma que não aborda a responsabilidade por conteúdo próprio do provedor e sim por conteúdo terceiro. Em uma leitura inicial, parece que tal regra surgiu da necessidade de se regular os conflitos oriundos das redes sociais virtuais, como o Orkut e o Facebook, quando um terceiro inseria conteúdo lesivo ou criava perfis falsos gerando danos a terceiros. Observa-se que, caso o sujeito que inseriu propriamente o conteúdo ofensivo seja identificado, ele será responsabilizado de forma direta e pessoal, com base nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil. Antes da regra estabelecida na Lei nº 12.965/14, havia grande questionamento acerca da natureza da responsabilidade do provedor de aplicações de internet, chegando o tema alcançar até mesmo repercussão geral no Supremo Tribunal Federal no ano de 2012.29 Defendia-se desde uma total isenção de responsabilidade até a responsabilidade objetiva do provedor independentemente de sua notificação prévia. Correntes intermediárias apontavam ora para uma responsabilidade objetiva do provedor (com base no Código de Defesa do Consumidor ou no Código Civil) se, após notificado extrajudicialmente, ele não retirasse o conteúdo lesivo, ora para uma responsabilidade subjetiva, caso ele se mantivesse inerte após a sua notificação extrajudicial,30 sendo esta última corrente adotada majoritariamente pelo STJ.31 Por fim, parte da doutrina defendia como regra a responsabilidade subjetiva do provedor se, após a ordem judicial impondo a retirada do conteúdo lesivo, este restasse omisso e não tornasse indisponível o material, entendimento que acabou sendo adotado no MCI.

No Recurso Extraordinário com Agravo nº 660.861, o Google contesta decisão da Justiça de Minas Gerais que o condenou a indenizar em R$10 mil uma vítima de ofensas na rede social Orkut e a retirar do ar a comunidade virtual criada por terceiros onde as ofensas ocorreram. Quando da análise deste caso, não havia ainda um regramento legal para a matéria, de forma que para o ministro fazia-se necessário definir se a incidência direta dos princípios constitucionais gerava, para a empresa hospedeira de sítios na rede mundial de computadores, o dever de fiscalizar o conteúdo publicado nos seus domínios eletrônicos e de retirar do ar as informações. Conforme a análise do andamento processual, em 24 de agosto de 2015, a Corte ainda não proferiu decisão definitiva sobre o assunto. 30 Este entendimento tem como base o sistema norte-americano do notice and takedown, que se encontra disposto no Digital Millennium Copyright Act de 1998, na seção 512. Recorda-se também o artigo 15 da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho que dispõe: “1. Os Estados-Membros não imporão aos prestadores, para o fornecimento dos serviços mencionados nos artigos 12.o, 13.o e 14.o, uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes. 2. Os Estados-Membros podem estabelecer a obrigação, relativamente aos prestadores de serviços da sociedade da informação, de que informem prontamente as autoridades públicas competentes sobre as actividades empreendidas ou informações ilícitas prestadas pelos autores aos destinatários dos serviços por eles prestados, bem como a obrigação de comunicar às autoridades competentes, a pedido destas, informações que permitam a identificação dos destinatários dos serviços com quem possuam acordos de armazenagem”. 31 Com base em julgados anteriores da Corte (REsp nº 1.306.066/MT e REsp nº 1.193.764/SP), o Min. Rel. Raul Araújo deu provimento a uma reclamação afirmando que “(...) aparenta tratar-se de decisão manifestamente ilegal e, prima facie, contraria a entendimento desta Corte quanto à aplicação da responsabilidade civil, nos termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, a provedor de conteúdo na internet.” (STJ. Reclamação nº 11.654 – PR. DJe: 25/02/13) 29

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4.1  O provedor de aplicações de internet De forma a abordar com maior rigor o tema da responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet, faz-se necessário enfrentar a classificação dos provedores de serviços de internet, que se dá a partir da individualização do serviço que prestam e do poder de gerência sobre o conteúdo que disponibilizam. Entende-se que esta identificação constitui atividade imprescindível para que o intérprete estabeleça o regime de responsabilidade aplicável ao caso. Como regra geral, é possível afirmar que será o dever de controle prévio sobre o conteúdo que tornará o provedor responsável ou não pelo ato praticado por terceiro.32 O Marco Civil da Internet menciona, ao longo de seu texto, apenas duas espécies de provedores: o provedor de conexão e o provedor de aplicações de internet. Ainda que o legislador tenha incluído um glossário no artigo 5º, não foi colocado neste rol uma definição para os provedores, tampouco uma classificação, mas apenas a definição das atividades desempenhadas por eles. Para os efeitos desta lei, considera-se “conexão à internet” a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP (Art. 5º, V), por outro lado, define-se “aplicações de internet” como o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet (Art. 5º, VII). Assim, diante do caso concreto, o julgador terá o ônus de identificar qual foi o serviço prestado pelo provedor, a fim de deflagrar a perquirição de sua eventual responsabilidade.33 Em uma interpretação inicial, o provedor de aplicações de internet pode ser compreendido como a pessoa física ou jurídica que fornece um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet. Parece equivocado limitar este provedor exclusivamente a uma pessoa jurídica que

Antes do Marco Civil da Internet, a doutrina e a jurisprudência usualmente utilizavam uma classificação que colocava o provedor de serviços de internet como um gênero que englobava espécies como o provedor de backbone, de acesso, de hospedagem, de informação e de conteúdo. “Os provedores de serviços de Internet são aqueles que fornecem serviços ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou por meio dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, como: (i) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários finais acesso à rede; (ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes conexão com a Internet; (iii) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; (iv) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na Internet; e (v) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores de informação ou pelos próprios usuários da web” (STJ, Terceira Turma, REsp. nº 1.308.830, j.: 19/06/2012; STJ, Terceira Turma, REsp nº 1.316.921, j.: 26/06/2012). 33 Cabe observar que as empresas de internet, eventualmente, poderão oferecer serviços diversificados que compreendam atividades tanto de provedores de conexão quanto de aplicações de internet. Nestas hipóteses, elas serão demandadas de forma correspondente ao serviço que prestaram, ainda que atuem primordialmente apenas em determinada função. 32

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exerça atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos, com base no artigo 15 da lei.34 O provedor de aplicações de internet aparenta englobar os tradicionalmente chamados provedores de conteúdo e de hospedagem, tendo em vista que, no artigo 19 do MCI, foi determinada que a responsabilidade civil deste provedor, por conteúdo gerado por terceiros, será omissiva e a partir da notificação judicial.35 Há dúvidas se o provedor de informação teria sido alcançado por esta Lei,36 pois, usualmente, parte dos intérpretes defendia que, nesta hipótese, a responsabilidade seria comissiva, na forma dos artigos 186 e 927 do CC/02, já que o provedor de informação teria o dever e a possibilidade de controlar o conteúdo disponibilizado.37 Enquanto isso, não parece haver dúvidas de que o provedor de conexão congregaria os chamados provedores de backbone e de acesso.

4.2  O artigo 19 e a regra da notificação judicial O artigo 19 do Marco Civil da Internet dispõe que, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências

“Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. §1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado. §2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§3º e 4º do art. 13. §3º Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo. §4º Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência.” 35 De acordo com Carlos Affonso P. de Souza, “(...) o Marco Civil faz uma distinção entre provedores de conexão (os que dão acesso à rede) e os de aplicações (como pesquisa, hospedagem, redes sociais e etc.)” (“As cinco faces da proteção à liberdade de expressão no marco civil da internet”. Artigo que será publicado em obra coletiva). Caitlin Mulholland afirma que o conceito presente no art. 5º, VII, do MCI, faria referência a atividade de provedoria de aplicações (conteúdo, busca, hospedagem, email, por exemplo). (Responsabilidade civil indireta dos provedores de serviço de internet e sua regulação no marco civil da internet. Artigo publicado no XXIV Encontro Nacional do CONPEDI. Aracaju. 2015.) 36 “O provedor de conteúdo é toda pessoa natural ou jurídica que disponibiliza na Internet as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação, utilizando servidores próprios ou os serviços de um provedor de hospedagem para armazená-las. Não se confunde com o provedor de informação, que é toda pessoa natural ou jurídica responsável pela criação das informações divulgadas através da Internet, ou seja, o efetivo autor da informação disponibilizada por um provedor de conteúdo” (LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 136. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2014.) 37 Conf. Resp nº 1.352.053 relatado pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe: 30/03/2015. 34

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para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Este regime de isenção de responsabilidade inicial do provedor tem como uma de suas fontes o artigo 230 do Communications Decency Act norte-americano que dispõe que: “No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider”.38 Da leitura, pode-se afirmar que: (I) restou clara a responsabilidade subjetiva por omissão do provedor que não retira o conteúdo ofensivo, após a devida notificação judicial; (II) a mera notificação extrajudicial, em regra, não ensejará o dever jurídico de retirada do material; (III) esta opção de responsabilidade coaduna-se com o objetivo de assegurar a liberdade e evitar a censura privada; (IV) o Judiciário foi considerado a instância legítima para definir a eventual ilicitude do conteúdo em questão; (V) a remoção de conteúdo não depende exclusivamente de ordem judicial, de forma que, o provedor poderá a qualquer momento optar por retirar o conteúdo, quando poderá eventualmente responder por conduta própria. A justificativa pela escolha deste regime de responsabilidade reside no fato de que a responsabilidade civil objetiva incentivaria o monitoramento privado e a exclusão de conteúdos potencialmente controvertidos, o que representaria uma indevida restrição à liberdade de expressão. Além disso, este regime criaria uma imprevisibilidade quanto à responsabilidade do provedor, o que constituiria uma possível barreira para a inovação tecnológica, científica, cultural e social, bem como obrigaria o provedor a realizar um controle prévio de tudo aquilo que fosse postado, o que poderia ser compreendido como uma forma de censura e aumentaria os custos do serviço. Entretanto, é necessário observar que tal disposição não impede que os provedores possam determinar requisitos para a remoção direta de conteúdo em seus termos de uso39 e atendam possíveis notificações extrajudiciais enviadas. Carlos Affonso Pereira de Souza40 aponta quatro principais argumentos para embasar esta opção do legislador: (I) parece equivocado empoderar os provedores a ponto de poderem decidir se o conteúdo questionado deve ou não ser exibido ou se causa ou não dano, mediante critérios que extrapolam os seus termos de uso; (II) os critérios para a retirada de conteúdo seriam muito subjetivos, o que prejudicaria

Em relação à importância desta disposição para a liberdade de expressão na Internet, ver . Acesso em: 29 jun. 2015. 39 É necessário observar que muitos provedores de aplicações já realizam um controle prévio do conteúdo que é postado por terceiros, por meio de filtros. Inclusive, é possível conhecer algumas regras deste controle nos termos de uso destes sites. Vale conferir, por exemplo, a política do Facebook: . Acesso em: 05 maio 15. 40 SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Responsabilidade civil dos provedores de acesso e de aplicações de internet: evolução jurisprudencial e os impactos da Lei 12.695/2014 (Marco Civil da Internet). In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 803-804. 38

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a diversidade e o grau de inovação na internet; (III) a retirada de conteúdos do ar, de forma subjetiva e mediante mera notificação, poderia prejudicar a inovação no âmbito da internet, implicando em sério entrave para o desenvolvimento de novas alternativas de exploração e comunicação na rede, as quais poderiam não ser desenvolvidas em razão do receio de futuras ações indenizatórias; (IV) ao colocar nas mãos do Poder Judiciário a apreciação do conteúdo, garante-se uma maior segurança para os negócios desenvolvidos na internet e a construção de limites para a expressão na rede mundial.41 Este artigo recebe duas críticas principais. Em primeiro lugar, questiona-se a imposição da via judicial para a solução da questão. Afirma-se que esta medida acabaria permitindo a propagação do dano, tendo em vista a facilidade com que os conteúdos são compartilhados na rede e a comum demora na apreciação judicial das demandas. Lembra-se que, nos casos de lesão à privacidade, o retardo na indisponibilização do material pode inviabilizar completamente a reparação do dano. Em segundo lugar, coloca-se que haveria uma incoerência na redação do artigo, visto que “ordem judicial deve ser cumprida ou suspensa através de recurso, sob pena do crime de desobediência ou pagamento de multa visando compelir o destinatário à execução da determinação legal. Responsabilidade civil extracontratual se origina de um ato ilícito, culposo ou doloso, na modalidade subjetiva, ou em razão do risco da atividade ou por força de Lei, na modalidade objetiva, sendo plenamente questionável do ponto de vista técnico esta inovação, com a criação de uma nova forma de responsabilidade civil, oriunda de um descumprimento de ordem judicial”.42 Outro ponto polêmico foi a estipulação da seguinte condição “no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço”, visto que esta parece representar uma excludente legal de responsabilidade do provedor que romperia o nexo causal. Assim, caso ele demonstre que tal retirada é impossível ou que extrapola os limites técnicos de seu serviço, ele será isento de responsabilidade civil. Observa-se, com temor, que esta

Marcel Leonardi aponta os principais problemas da retirada de conteúdo, após uma notificação, independente de uma ordem judicial: 1) incentivaria a remoção arbitrária de conteúdo; 2) regras procedimentais de notificação e retirada não impediriam a censura temporária; 3) permitiria abusos frequentes. “Estudos realizados por membros da Electronic Frontier Foundation e do Berkman Center for Internet & Society da Harvard Law School demonstram, com riqueza de exemplos, que o sistema de notificação e retirada instituído pelo DMCA é rotineiramente utilizado de forma abusiva, servindo como ferramenta de intimidação ou sendo empregado impropriamente para a retirada de conteúdo não protegido por direito autoral, trazendo enormes implicações para a liberdade de expressão, além de não combater adequadamente a violação de direitos online. Entre outras situações, o conteúdo indevidamente removido por abuso do DMCA inclui fatos e informações não sujeitos à proteção autoral, material em domínio público, crítica social e material de utilização livre em razão de limitações aos direitos autorais.”; 4) não ofereceria granularidade e seria desproporcional. (LEONARDI, Marcel. Internet e regulação: o bom exemplo do Marco Civil da Internet. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXXII, n. 115, p. 99-113, abr. 2012) 42 VAINZOF, Rony. Da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. In: MASSO, Fabiano del; ABRUSIO, Juliana; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coord.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 188. 41

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disposição legal é deveras favorável ao provedor de aplicações, podendo ser utilizada como um importante instrumento em teses defensivas, tendo em vista a dificuldade de se responder, de forma neutra e exata, quais são os limites e as possibilidades técnicas dos provedores. Qual deveria ser o “prazo assinalado” pelo juiz? Pela lei, tal estipulação ficará a cargo do magistrado, ao julgar o caso concreto. Observa-se que, em alguns julgados, o STJ vem fixando o prazo de 24h para a retirada do material do ar, após a notificação, sendo que esta seria uma retirada preventiva, não estando o provedor obrigado a analisar o teor da denúncia recebida neste curto prazo.43 Em relação ao texto do artigo 19, vale trazer os seguintes questionamentos: (I) Por quanto tempo o provedor teria o dever de tornar indisponível o conteúdo infringente? Eternamente ou durante determinado espaço de tempo fixado na sentença? (II) Seria interessante impor ao provedor a elaboração de uma marca própria para aquela imagem ou conteúdo, de forma a facilitar a sua retirada quando fosse inserido novamente na internet? Estas perguntas ainda precisam ser analisadas e respondidas pela doutrina e pela jurisprudência. No §1º do artigo 19, o legislador dispôs que a ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. Em razão da facilidade de disseminação de dados na Internet, da capacidade de determinados conteúdos tornarem-se virais e da comum falta de habilidade técnica do usuário da rede, agiu bem o legislador ao não obrigar a vítima a fornecer a exata localização de todo o material danoso. Neste sentido, afirma o Enunciado nº 554 publicado na VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Independe de indicação do local específico da informação a ordem judicial para que o provedor de hospedagem bloqueie determinado conteúdo ofensivo na internet”. Em precedente relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, foi reconhecida a desnecessidade da indicação específica, por parte do ofendido, dos locais onde a informação nociva a sua dignidade foi inserida. “O provedor de internet — administrador

“(...) considero razoável que, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor retire o material do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. (...) Nesse prazo de 24 horas, não está o provedor obrigado a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações” (STJ. REsp nº 1.323.754. Rel. Min. Nancy Andrigui. DJe de: 28.08.2012.) “7. Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em site de relacionamento social por ele mantido possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo a direito autoral, deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão praticada. 8. O cumprimento do dever de remoção preventiva de mensagens consideradas ilegais e/ou ofensivas fica condicionado à indicação, pelo denunciante, do URL da página em que estiver inserido o respectivo conteúdo” (STJ. REsp nº 1.396.417. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe de: 25.11.2013)

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de redes sociais —, ainda em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários, independentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URL’s).”44 Entende-se que a vítima que procura o Judiciário para a satisfação da pretensão de bloqueio do conteúdo nocivo não pode ser incumbida do ônus de indicar o local específico onde se encontra disponibilizada a informação lesiva toda vez que a mesma for replicada e disponibilizada, novamente, por terceiros.45 O §2º do artigo 19 dispõe que a aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.46 Ao mesmo tempo em que o Marco Civil estava sendo discutido no Congresso Nacional, a Lei Brasileira de Direitos Autorais nº 9.610/98 passava por uma consulta pública semelhante, que resultou em um anteprojeto de lei. Como a discussão acerca da violação de direitos autorais no sistema de responsabilização criado pelo Marco Civil tornaria seu debate ainda mais complexo, preferiu-­ se criar uma exceção à regra. Neste parágrafo reside alguma polêmica na doutrina. Há quem afirme que, enquanto o legislador teria estabelecido um sistema dificultoso para a inibição de conteú­do potencialmente lesivo à pessoa humana, ele teria oferecido um tratamento mais favorável para os conteúdos protegidos por direitos autorais, ao excluí-los da regra do artigo 19. No Brasil, mesmo que não haja uma lei que regule especificamente o tema da responsabilidade civil por violação de conteúdo protegido por direito autoral, entidades e empresas de internet acabaram adotando espontaneamente o mecanismo conhecido por notice and take down ou notificação e retirada. Desta forma, os detentores de direitos autorais enviam uma notificação para a empresa, como o Google ou o Facebook, pedindo a remoção do conteúdo, e esta notifica a pessoa

STJ. REsp nº 1.175.675. DJe de: 20.09.2011. No REsp nº 1.274.971, o Min. Rel. João Otávio de Noronha entendeu que no caso de mensagem ofensiva publicada em blog gerenciado pelo Google caberá à vítima indicar o URL das páginas onde se encontram os conteúdos: “Se em algum blog for postada mensagem ofensiva à honra de alguém, o interessado na responsabilização do autor deverá indicar o URL das páginas em que se encontram os conteúdos considerados ofensivos. Não compete ao provedor de hospedagem de blogs localizar o conteúdo dito ofensivo por se tratar de questão subjetiva, cabendo ao ofendido individualizar o que lhe interessa e fornecer o URL. Caso contrário, o provedor não poderá garantir a fidelidade dos dados requeridos pelo ofendido” (julg. 19/03/2015) Entendese que, na hipótese, o mais razoável seria a indicação tanto do conteúdo quanto das páginas. A partir do conhecimento inequívoco do material, o provedor de hospedagem deveria realizar a indisponibilização de todo o conteúdo similar lesivo, ainda que este se encontre em outras páginas não indicadas pela vítima. 46 “Art. 31. Até a entrada em vigor da lei específica prevista no §2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável na data da entrada em vigor desta Lei.” 44 45

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que postou o conteúdo. Se ela não quiser assumir a responsabilidade pela veiculação do material, o provedor poderá remover o conteúdo.47 No §3º do artigo 19, estabeleceu-se que as causas que versem sobre o ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. No §4º do art. 19, o legislador estabeleceu que o juiz, inclusive no procedimento previsto no §3º, poderá antecipar total ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, se presentes: (i) prova inequívoca do fato, (ii) interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, (iii) verossimilhança da alegação do autor e (iv) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Esta previsão reflete a prática, visto que a grande maioria das decisões judiciais que versam sobre retirada de conteúdo é oriunda de tutela antecipada ou de medidas cautelares. Observa-se que o legislador inseriu um requisito a mais na disposição do art. 273 do CPC de 1973, qual seja, o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na Internet.

4.3  O artigo 20 e o dever de informar O artigo 20 dispõe que, sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. Em seu parágrafo único, positivou-se que, quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização. Assim, cria-se um “Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em site de relacionamento social por ele mantido possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo a direito autoral, deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão praticada” (STJ. REsp. nº 1.396.417. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe de: 25.11.2013) “1.- No caso concreto, foi disponibilizado material didático em blogs, na internet, sem autorização da parte autora. Notificada sobre a ilicitude, a Google não tomou nenhuma providência, somente vindo a excluir os referidos blogs, quando intimada da concessão de efeito suspensivo-ativo no Agravo de Instrumento nº 1.0024.08.228523-8/001. (...) Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que, para a demora na retirada de publicação de material didático sem autorização foi fixado, em 04.08.2011, o valor da indenização em R$ 12.000,00 (doze mil reais) a título de dano moral, consideradas as forças econômicas da autora da lesão. 5.- Agravo Regimental improvido” (AgRg no AREsp nº 259.482/MG. Rel. Min. Sidnei Beneti. DJe de: 30.04.2013)

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dever de informar os motivos da remoção por parte do administrador do site alvo da determinação judicial ao terceiro que teve seu conteúdo removido. Quanto ao referido assunto, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou afirmando que ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente suas opiniões, sem assumir um mínimo de controle, o provedor estaria assumindo um risco, devendo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. A existência de meios que possibilitem a identificação de cada usuário se colocaria, portanto, como um ônus social.48

4.4  O artigo 21 e a tutela da pornografia de vingança O artigo 21 representa a principal exceção legal à regra da notificação judicial presente no artigo 19. A norma dispõe que o provedor de aplicações de internet que disponibilizar conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.49 Em seu parágrafo único, foi estabelecido que a notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. Este artigo tutela os casos chamados de revenge porn ou de pornografia de vingança, casos em que ocorre a divulgação de fotos ou vídeos íntimos de terceiros sem a sua autorização. Uma vez que a conduta lesiva poderia causar danos irreparáveis muito rapidamente e de extensão imprevisível, o legislador abriu mão da segurança jurídica decorrente das ordens judiciais visando a tornar mais célere a retirada do conteúdo. Dessa forma, após a notificação extrajudicial por parte do participante ou de

STJ. REsp nº 1.193.764. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2011; REsp nº 1.308.830. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2012. Esta norma dialoga harmoniosamente com a seguinte disposição contida no Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. §1º Nas mesmas penas incorre quem: I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo. §2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do §1º deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo” (grifou-se).

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seu representante legal, caso o provedor não retire o material danoso, ele responderá subsidiariamente pelo dano causado.50 Essa disposição assume especial relevância tendo em vista o aumento do número de vítimas do revenge porn, que são na maioria mulheres de até 30 anos. Acreditase que, na maioria das vezes, as vítimas sejam menores de idade.51 52 Lamenta-se que, em pleno século XXI, expressar a sua sexualidade por meio de uma foto ou de um vídeo enviado em confiança para o seu parceiro ainda represente motivo para que a mulher seja discriminada e cruelmente julgada pela sociedade.53 Alguns chegam ao ponto de afirmar que a mulher teria cometido uma grave violação à moralidade, o que justificaria, até mesmo, um possível abrandamento das consequências cíveis e penais para aquele que divulgou o conteúdo. Isso mostra que a discriminação em razão do gênero ainda resta presente, sendo necessário que os intérpretes do direito questionem esta lógica.

5  A guarda de registros pelo provedor de aplicações de internet e a identificação do ofensor Em setembro de 2014, a 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o Facebook fornecesse dados de usuários e grupos do Whatsapp para identificar os responsáveis pela disseminação de imagens íntimas de uma estudante. No caso, o desembargador reputou correta a decisão recorrida, em que o juiz deferiu liminar impondo que a ré (Facebook) promovesse a exibição de todas as informações requeridas relativas aos IPs dos perfis indicados na inicial e

Na responsabilidade subsidiária, um sujeito tem a dívida originária e o outro a responsabilidade por essa dívida. Não sendo possível executar o efetivo devedor, quando ocorrer o inadimplemento da obrigação, poderão ser executados os demais sujeitos envolvidos na relação obrigacional. Percebe-se que o legislador fez esta distinção para evitar que a responsabilidade fosse considerada solidária. 51 “O número de vítimas de vazamento de ‘nude selfies’, ou vídeos íntimos divulgados sem consentimento, quadruplicou no Brasil em dois anos. No ano passado, 224 internautas procuraram o serviço de ajuda da SaferNet, organização de defesa de direitos humanos na web, para denunciar o crime cibernético conhecido como ‘revenge porn’ — pornografia de vingança, em tradução livre. Em 2012, 48 casos haviam sido registrados pela entidade. O vazamento de imagens íntimas atinge principalmente mulheres, que representam 81% dos casos denunciados. A cada quatro vítimas, uma delas é menor de idade” (Notícia disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015). 52 Segundo comunicado de Amit Singhal, vice-presidente do Google, a empresa vai disponibilizar um sistema para atender pedidos de remoção de links de suas buscas feitos por vítimas de pornografia de vingança. Foi lembrado que, em alguns casos, a divulgação envolve tentativas de extorsão. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2015 53 HILLY, Laura; ALLMANN, Kira. Revenge porn does not only try to shame women – it tries to silence them too. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015.) 50

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ao teor das conversas dos grupos “Atlética Chorume” e “Lixo Mackenzista”, entre os dias 26 e 31 de maio de 2014.54 Não obstante a extensa polêmica relativa à guarda de dados e registros pelos provedores de internet, esta conduta apresenta como uma de suas principais vantagens tornar possível o rastreamento e a identificação do ofensor, permitindo a sua eventual punição e a reparação da vítima. Entende-se que o provedor de aplicações de Internet que exerce a sua atividade de forma organizada e com fins econômicos teria a possibilidade e o dever de contribuir com os usuários da rede, evitando danos, auxiliando na identificação de ofensores e retirando de suas páginas conteúdos lesivos à dignidade da pessoa humana. Este seria um dever oriundo do princípio constitucional da solidariedade social. Na ponderação entre o interesse da sociedade de que os atos ilícitos sejam reprimidos e o interesse do usuário de que seus dados não sejam armazenados pelos provedores, parece que o primeiro obteve um peso maior na balança. Em regra, a integridade individual e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre os interesses coletivos. Entretanto, aqueles poderão ceder em casos específicos, como quando em colisão com a segurança e a saúde públicas. Neste sentido, no Brasil, em determinadas hipóteses, o provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, conforme disposto nos artigos 15 a 17 do Marco Civil da Internet.55 Segundo a lei, no art. 5º, VIII, os registros de

TJSP. Agravo de Instrumento nº 2114774-24.2014.8.26.0000. Rel. Salles Rossi. Julgado em: 01/09/14. “Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. §1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado. §2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§3º e 4º do art. 13. §3º Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo. §4º Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência. Art. 16. Na provisão de aplicações de internet, onerosa ou gratuita, é vedada a guarda: I – dos registros de acesso a outras aplicações de internet sem que o titular dos dados tenha consentido previamente, respeitado o disposto no art. 7º; ou II – de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado consentimento pelo seu titular. Art. 17. Ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei, a opção por não guardar os registros de acesso a aplicações de internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros.”

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acesso a aplicações de internet seriam “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP.” Quanto ao tema, é necessário realizar algumas observações. No Brasil, o provedor de aplicações poderá realizar, na forma como estabelecido pela lei, a coleta, o armazenamento, a guarda e o tratamento de registros, dados pessoais ou comunicações, porém, em certos casos, terá a obrigação legal de guardar os registros de acesso a aplicações de internet e fornecê-los às autoridades quando elas estiverem investigando a autoria de eventuais ilícitos. Não se deve confundir os registros de acesso a aplicações de internet com os dados cadastrais ou com o conteúdo das comunicações privadas, estas são informações distintas, conforme observa-se no art. 10 da lei. A guarda de dados e registros deve ocorrer em conformidade com o estabelecido no art. 7º da lei.56 Por fim, ressalta-se que parte da doutrina defende que os artigos 15 a 17 do MCI só seriam aplicáveis após a edição da regulamentação da lei, que será realizada, posteriormente, por meio de decreto. Como consequência disso, por precaução, os provedores deveriam guardar os registros por 3 anos, em razão do disposto no art. 206, §3º, V, do Código Civil ou 5 anos, se envolver questão consumerista, conforme o prazo prescricional disposto no art. 27 do CDC.57 58

“Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: (...) VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; VII – não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII – informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet; IX – consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei;” 57 Este entendimento pode ter como referência a orientação proferida pelo Comitê Gestor da Internet no documento “Práticas de Segurança para Administradores de Redes Internet”, em que se preconiza que os provedores devem armazenar os registros de conexão pelo prazo de 3 anos e os demais registros pelo prazo mínimo de 6 meses.” Os logs armazenados off-line devem ser mantidos por um certo período de tempo, pois podem vir a ser necessários para ajudar na investigação de incidentes de segurança descobertos posteriormente. O Comitê Gestor da Internet no Brasil recomenda que logs de conexões de usuários de provedores de acesso estejam disponíveis por pelo menos 3 anos. É aconselhável que os demais logs sejam mantidos no mínimo por 6 meses. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2015. 58 Em relação à guarda de dados de usuários, no Recurso Especial nº 1.398.985, a Rel. Ministra Nancy Andrighi afirmou que ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários divulguem livremente suas opiniões, deve o provedor de conteúdo (que foi englobado pelo provedor de aplicações) ter o cuidado de propiciar meios para que seja possível ocorrer a identificação de cada um de seus usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada imagem uma autoria certa e determinada. O provedor deve adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a 56

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6  Considerações finais Nos últimos anos, o ambiente virtual tem operado em paralelo com o real, influenciando de forma direta tanto a organização das estruturas de poder quanto o próprio comportamento do ser humano. Dessa forma, tornou-se necessário que o intérprete do direito analise as relações desenvolvidas nesse novo meio, em especial aquelas estabelecidas entre os indivíduos e os provedores que oferecem serviços na internet, tendo em vista a possível assimetria de poder entre as partes, o que eventualmente pode prejudicar a proteção da pessoa humana e impedir que ela detenha um pleno controle sobre os seus dados. Em junho de 2014, entrou em vigor o Marco Civil da Internet, norma responsável por tratar de questões pertinentes à privacidade, à neutralidade e à responsabilidade na rede. A lei estabeleceu um amplo rol de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil por diversos sujeitos. Entre os artigos 19 e 21, regulou-se expressamente a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, tema objeto deste artigo. Além disso, entre os artigos 15 e 17, tratou-se da guarda de registros de acesso a aplicações de internet na provisão de aplicações. Entende-se que o provedor de aplicações de internet teria a possibilidade e o dever de contribuir com os usuários da rede, evitando danos, auxiliando na identificação de ofensores e retirando de seus domínios conteúdos lesivos à dignidade da pessoa humana. Ainda que este provedor não tenha o dever de monitorar previamente o conteúdo inserido por terceiro em seu ambiente, uma vez caracterizado o modelo de negócio e o potencial lesivo da relação, não se pode admitir que este agente privado receba uma completa imunidade e jamais seja titular de obrigações ou responsabilizado por eventuais danos que possam ocorrer, de forma direta ou indireta, na atividade que realiza. O Marco Civil estabeleceu, como regra, que o provedor de aplicações de internet deverá retirar o conteúdo danoso, após ordem judicial específica, sob pena de responder subjetivamente pela omissão. Todavia, caso se trate de conteúdo que viole frontalmente a privacidade de uma pessoa – imagens, vídeos ou outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado – este provedor terá o dever de retirar o material após a notificação extrajudicial da vítima ou de seu representante legal. Cuida-se aqui de tutelar, principalmente, os casos que envolvem a

individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. Neste sentido, as informações necessárias à identificação do usuário devem ser armazenadas pelo provedor de conteúdo por um prazo mínimo de 03 anos, a contar do dia em que o usuário cancela o serviço. (STJ. Recurso Especial nº 1.398.985. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 19/11/2013).

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chamada pornografia de vingança, perversa disponibilização de conteúdo íntimo sem o consentimento do(s) envolvido(s). Ainda que o regime de responsabilidade civil atribuído ao provedor de aplicações de internet não caminhe ao encontro da jurisprudência estabelecida no STJ, ponderando cada justificativa apresentada, a princípio, parece que o legislador agiu corretamente ao adotar como regra a notificação judicial. A sociedade atual vem se mostrando cada vez mais multifacetada e plural, de forma que a retirada de determinado conteúdo deve passar por um crivo menos parcial e que detenha um maior grau de legitimidade. Contudo, tendo em vista o elevado número de danos à dignidade humana na Internet e a dificuldade de sua efetiva compensação, há dúvidas se não teria sido mais adequado ampliar as hipóteses de exceção à regra, de forma a tutelar outras situações que eventualmente possam causar graves danos à pessoa humana, ainda que estas exceções fossem aplicadas a apenas determinados provedores de aplicações.

The Civil Liability of the Provider of Internet Applications for any Damages Arising from Content Generated by Third Parties According to the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet Abstract: This paper discusses the treatment of the civil liability of the provider of Internet applications for any damages arising from content generated by third parties on the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet, Law n. 12.965 approved on April 23rd 2014. Due to the complexity of issues relating to liability in the digital environment and considering the recent effective date of the Law n. 12.965/14, I consider essential to contribute with its discussion and interpretation, based on the methodology of the civil-constitutional law. For this purpose, initially, I did a brief study on the elaboration and the structure of the Marco Civil and, later, I analyzed the legal articles relating to the civil liability of the provider of Internet applications. I used as main sources national legislation, national and foreign doctrine and Superior Court of Justice decisions. At the end of the study, weighing each justification, it seemed that the legislature has acted properly by avoiding the prior restriction of the speech, although possible exceptions to the Law still have to be considered. Keywords: Civil Liability. Human Dignity. Freedom of Expression. Brazilian Civil Rights Framework for the Internet. Provider of Internet Applications.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros de acordo com o Marco Civil da Internet. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 81-106, set./dez. 2015.

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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia Luciana Vasconcelos Lima Mestranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduada em Direito pala Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogada. E-mail: .

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora titular da Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação strictu senso em Direito (Mestrado/Doutorado). Professora da Universidade de Fortaleza, nas disciplinas “Direitos de Personalidade” e “Direito dos Danos”. Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: .

Resumo: A evolução da medicina permitiu o uso de novas técnicas e de novos medicamentos que aumentam o tempo entre a descoberta de doenças e a morte, prolongando a existência das pessoas. Além dos tratamentos revolucionários para a cura de muitas doenças, também é possível o uso de aparelhos de manutenção artificial da vida e de medicamentos que afastam ou minimizam dores, permitindo atrasar a morte do paciente acometido de doença grave e incurável ou terminal. Essas possibilidades, porém, remetem à reflexão sobre a conduta médica em relação aos cuidados despendidos aos doentes terminais, descortinando problemas bioéticos com reflexo no Direito. Qualquer solução deverá cotejar os princípios de justiça consolidados na Constituição Federal, notadamente, a dignidade da pessoa humana que constitui o epicentro dos direitos fundamentais. Embora os pacientes terminais não tenham chances de cura para sua doença, são titulares de direito e devem ter sua dignidade preservada nos últimos momentos de vida. Em respeito a esses direitos, sobretudo a autonomia, não podem ser submetidos a qualquer tipo de tratamento capaz de configurar tortura, tampouco àqueles tratamentos fúteis que apenas aumentam o sofrimento e não geram bem-estar ou perspectiva de cura. Enfocando a prática dos cuidados paliativos e da ortotanásia no Brasil, correlacionados ao princípio da dignidade humana e aos princípios bioéticos do respeito à autonomia, não maleficência e beneficência, o presente trabalho visa a analisar o panorama da responsabilidade civil médica. No aspecto metodológico, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental, notadamente doutrina jurídica, leis e resoluções que disciplinam a conduta médica. Palavras-Chave: Cuidados paliativos. Ortotanásia. Bioética. Responsabilidade civil do médico. Sumário: Introdução – 1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte – 2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico – 3 Responsabilidade civil médica – Conclusão – Referências

Introdução “ – Eu não tenho mais forças para suportar isso”. Declarou uma senhora de setenta e cinco anos, diante do sofrimento causado pela quimioterapia. Acometida por um linfoma que os médicos já declararam ser irreversível, recebeu a notícia de R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015

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que teria poucos meses de vida. A partir de então, decidiu, juntamente com a família, que não daria continuidade ao tratamento quimioterápico. Recebeu alta do hospital e passou a ser tratada em casa, junto dos familiares. Assim, planejou viagem com os filhos e passou seus últimos dias em casa, no convívio com as pessoas que amava.1 O relato acima ocorreu no Brasil e constitui uma situação na qual o paciente requer apenas cuidados paliativos em face do diagnóstico que não oferece possibilidades de cura. Porém, trata-se de uma prática que ainda inspira dúvidas, especialmente pela confusão que se faz entre cuidados paliativos, ortotanásia e eutanásia. Ademais, enseja o questionamento sobre a repercussão dessa forma de tratamento no plano da responsabilidade civil do médico, que corre o risco de ter sua conduta avaliada como negligente e, consequentemente, sofrer contra si uma demanda indenizatória por parte dos familiares. À medida que a medicina vem se desenvolvendo, com a descoberta de novos medicamentos e de novas técnicas de tratamento, ampliou-se a expectativa de vida das pessoas. E ainda que as pessoas adoeçam grave e irreversivelmente, a mecanização possibilita que vivam por vários anos ligadas aos aparelhos de manutenção artificial da vida. Nem sempre, porém, essa luta contra a morte será a melhor alternativa. Por vezes, o processo de artificialização da vida traz mais sofrimento do que bem-estar, notadamente quando não se faz acompanhar de chances concretas de cura. Mais danoso ainda é esse prolongamento artificial da vida em oposição à vontade do paciente. Em se tratando de pacientes com doenças incuráveis ou terminais para as quais o estado atual da arte não oferece expectativa de cura, é necessário avaliar a conveniência da prescrição ou continuidade dos cuidados de intenção curativa, sempre considerando a vontade livre e esclarecida do enfermo. Não sendo possível a reversão da doença, é melhor investir no controle da dor e nos procedimentos menos invasivos, a fim de permitir à pessoa uma vida mais digna e, de preferência, no convívio de seus familiares. Em face dessas possibilidades terapêuticas, o presente estudo tem por objetivo central analisar a adequação da conduta do médico e do hospital aos direitos do paciente terminal ou grave e irreversivelmente doente e aos princípios da bioética, identificando as possibilidades de incidência da responsabilidade civil. Para facilitar o estudo, o texto parte de uma análise descritiva, delimitando conceitos elementares à discussão, dentre os quais, cuidados paliativos, ortotanásia e eutanásia para, em seguida, informar os princípios bioéticos e deontológicos que orientam a conduta dos profissionais e a prestação de serviços de atenção em saúde

ZIEGLER, Maria Fernanda. Recente no Brasil, medicina paliativa dá ‘qualidade de morte’ a idoso incurável. iG São Paulo. São Paulo, maio 2014. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2014.

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pelos estabelecimentos especializados, a fim de se analisarem os pressupostos da responsabilidade civil no caso. Em síntese apertada, o estudo visa delimitar as fronteiras entre a luta pela vida do paciente, a obstinação terapêutica e o reconhecimento da iminência da morte, com a prescrição de cuidados paliativos e as implicações correspondentes na seara da responsabilidade civil. Importa analisar a adequação da conduta médica em face dos comandos bioéticos e da vontade do paciente em se submeter ou não ao tratamento inócuo, especialmente, nos casos em que a família divergir. A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa, de cunho bibliográfico, utilizando-se referências da área do Direito e de outras áreas do conhecimento, além de uma pesquisa documental que selecionou as leis nacionais e as resoluções do Conselho Federal de Medicina aplicáveis à matéria.

1  Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte O desenvolvimento tecnológico a serviço da medicina permitiu a erradicação ou o controle de algumas enfermidades, além da ampliação do tempo entre a descoberta de uma doença e a morte. Se em termos de longevidade o ser humano teve um ganho significativo com esses avanços, é necessário analisar a conveniência da aplicação desses recursos para uma mera obstinação terapêutica, quando a perspectiva de cura for nula e o prolongamento da vida somente trouxer um sofrimento adicional. É nesse contexto que emergem os temas da ortotanásia e dos cuidados paliativos que já são discutidos na área da saúde e vêm ganhando espaço no âmbito jurídico, requerendo soluções condizentes com o ordenamento pátrio. Embora sejam temas que não lograram a atenção específica do legislador stricto sensu, tocam aspectos fundamentais da pessoa — sua dignidade e seus direitos — e receberam atenção do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931, de 24 de setembro de 2009,2 — que instituiu o novo Código de Ética Médica; e da Resolução nº 1.995 de 31 de agosto de 2012 — que disciplina as diretivas antecipadas de vontade.3 A necessidade de cuidado e apoio aos doentes que estão em processo de morte é antiga, porém o desenvolvimento de locais específicos para os receber, prestando-­ lhes tratamentos de alívio à dor, remonta ao início do século XIX. Tratam-se dos antigos hospices que, na Idade Média, eram destinados ao acolhimento de peregrinos e Antes da edição do novo Código de Ética Médica, era a Resolução nº 1.805 de 2006 que trazia disposição acerca da vedação de obstinação terapêutica por parte do médico. 3 No tocante aos cuidados paliativos, o Ministério da Saúde vem implantando-os gradualmente no âmbito do Sistema único de Saúde, o que se verifica por meio das Portarias nº 19, de 03 de janeiro de 2002; nº 1319, de 23 de julho de 2002 e nº 2439 de 8 de dezembro de 2005. 2

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viajantes. Posteriormente, passaram a ser associados ao cuidado dos pacientes que estavam morrendo, principalmente na França, Irlanda e Estados Unidos.4 Modernamente, porém, há literatura que diferencia o sistema de hospice da prática de cuidados paliativos, na medida em que tais cuidados não são focados na morte, mas no conforto e no alívio, associados ou não ao cuidado curativo. Em última análise, busca-se o conforto do paciente e o respeito às suas decisões, para melhorar a qualidade da vida ao longo do tratamento curativo ou no já iniciado processo de morte. Destinam-se aos pacientes graves que estejam ou não em estado terminal, no intuito de aliviar dores e outros sintomas como falta de ar, náusea, falta de apetite e fadiga. O hospice, por sua vez, é destinado aos pacientes terminais, cuja expectativa de vida seja inferior a seis meses.5 O termo paliativo é derivado do latim pallium, que significa manto, indicando a essência desse tipo de cuidado, como uma forma de proteger aqueles que sofrem de doenças incuráveis, propiciando-lhes o alívio das dores, principalmente quando não houver mais recurso da medicina curativa. O conteúdo dos cuidados que serão considerados paliativos não segue um padrão fixo, dependerá da avaliação diagnóstica e das necessidades da pessoa doente e de sua família.6 De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os cuidados paliativos constituem uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam problemas associados à doença ameaçadora da vida. São feitos por meio de prevenção e alívio do sofrimento e se utilizam da identificação precoce da doença, assim como da avaliação e do tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais.7 O alvo preferencial desse tipo de tratamento é o paciente em estado terminal para o qual já não há recursos de cura.8 A condição de terminalidade deve ser apurada pelo consenso da equipe médica, como aquele diagnóstico que progride para a morte inevitável. Mas também se aplicam os cuidados paliativos aos portadores de doenças crônicas, para os quais também não há cura possível, e sim uma demanda de atenção integral nas dimensões física, psicossocial e espiritual. O equilíbrio

PESSINI, Leo; BERTACHINI, Luciane. Novas perspectivas em cuidados paliativos: ética, geriatria, gerontologia, comunicação e espiritualidade. O Mundo da Saúde, v. 29, n. 4, p. 491-509, 2005. 5 DENNIS, Jeanne. Palliative Care or Hospice? It’s Not About Giving Up. The huffpost healthy living. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2015. 6 PESSINI, Leocir; DE BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 7 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. WHO Definition of palliative care. [200-]. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. 8 FIGUEIREDO, Marco Tullio de Assis. A dor no doente fora dos recursos de cura e seu controle por equipe multidisciplinar (Hospice). In: Coletânea de textos sobre cuidados paliativos e tanatologia. São Paulo, 2006, p. 43-46. Disponível em: . Acesso em: 09 nov. 2014. 4

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dessas dimensões da vida traz maior proximidade com o conceito de saúde aplicado pela OMS que já não é compreendida como a mera ausência de doença, e sim como o bem-estar global da pessoa, inclusive nos aspectos psicofísico e social.9 Procura-se garantir ao paciente terminal ou acometido de doença crônica uma assistência multidisciplinar e integral capaz de lhe permitir maior qualidade de vida possível, no convívio com os familiares e os amigos, reduzindo os efeitos negativos da doença sobre o bem-estar, especialmente pelo controle da dor. Essas ações são continuadas até o período mais agudo e severo de sofrimento que antecede à morte, o que pode compreender dias ou horas antes do óbito, quando passam a ser chamadas de cuidados ao fim da vida.10 Há uma proximidade entre os cuidados paliativos e a ortotanásia, muito embora não sejam termos coincidentes. O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução nº 1.805 de 2006, disciplinou a conduta médica em relação a ambas as situações. Determinou, no artigo 2º, que, quando o paciente estiver em estado terminal, deve continuar a receber os cuidados necessários para aliviar os sintomas que resultam em sofrimento, sendo-lhe assegurada a assistência integral que engloba as condições de conforto físico, psíquico, social e espiritual, incluindo-se uma possível alta hospitalar.11 O novo Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931 de 2009), ao tratar dos princípios fundamentais, determina, no item XXII, que o médico evite a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários quando em face de situações terminais, apenas propiciando os cuidados paliativos apropriados ao seu paciente.12 Essa medida do CFM constitui um movimento de humanização e de aceitação do processo de morte. Possibilita a ortotanásia como uma alternativa que sobreleva a dignidade do paciente e o seu direito de não ser submetido a um tratamento desumano ou degradante, de efeito meramente protelatório. Constitui uma alternativa à distanásia, obstinação terapêutica que somente se presta a intensificar o sofrimento da família e do paciente.

Ressalta-se a necessidade de buscar a máxima aproximação do conceito, reconhecendo-se que há críticas feitas no sentido de ser utópico e ultrapassado — por fazer separação entre o físico, o mental e o social —, além de ser um estado inalcançável e deixar espaço para paternalismo estatal, que interviria na vida das pessoas, sob o pretexto de promover a saúde (SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública, v. 31, n. 5, p. 538-542, 1997). 10 MORITZ, Rachel Duarte et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v. 20, n. 4, out./dez., p. 422-428, 2008. 11 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805. Publicada no Diário Oficial da União de 28 de novembro de 2006, Seção I, p. 169. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. 12 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931. Publicada no Diário Oficial da União de 24 de setembro de 2009, Seção I, p. 90. Retificação publicada no Diário Oficial da União de 13 de outubro de 2009, Seção I, p. 173. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: . Acesso em: 08 nov.2013. 9

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Distingue-se da eutanásia porque não implica a ação voltada diretamente para provocar a morte; mas apenas a garantia da morte em seu tempo. Nesse sentido, a ortotanásia corresponde à morte com dignidade, permitindo um processo de falecimento humanizado que se abstém do uso de mecanismos artificiais de sustentação da vida. Importa respeitar a autonomia do paciente em realizar uma escolha informada e consciente. Para tanto, a conduta do médico deve implicar a prestação de informações verdadeiras e objetivas ao paciente, solicitando-lhe sempre a permissão para intervenções em seu corpo, de sorte a respeitar-lhe a privacidade.13 Aos poucos, a conduta médica paternalista vai sendo abandonada para reconhecer espaço ao poder decisório do paciente sobre si, inclusive, sobre o seu próprio corpo.14 O consentimento do paciente é fundamental para que se possa determinar quais tratamentos deseja ou não receber quando vier a incorrer em estado terminal. Até mesmo quando o paciente não puder se autodeterminar, o médico deve prestar todas as informações necessárias e pertinentes, bem como coletar o consentimento da família, antes de proceder as intervenções. Toda a sua conduta, portanto, deve se pautar no respeito à autonomia do paciente e ainda na atenção aos princípios bioéticos da beneficência e da não maleficência.

2  Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico Os princípios bioéticos, notadamente aqueles que estão previstos textualmente no Código de Ética, devem nortear a conduta do médico que também se vê obrigado a respeitar os princípios e regras jurídicas, em geral. Merecem destaque, na presente análise, três princípios bioéticos gerais, quais sejam, a autonomia, a não maleficência e a beneficência. Todos esses princípios retiram fundamento da dignidade da pessoa humana, princípio jurídico fundamental que se erigiu como um valor crucial da sociedade ocidental, ao longo de toda a história. Em virtude de sua disposição nomogenética, a dignidade da pessoa humana constitui fonte de tantos outros princípios e regras, ao tempo em que também constitui um substrato axiológico dos direitos não patrimoniais, como os direitos fundamentais e de personalidade. A despeito de sua compleição aberta, a doutrina procurou delimitar-lhe um conteúdo a partir da conjunção de

LOLAS, Fernando. Bioética: o que é, como se faz. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, v. 10, 2001, p. 62-63. 14 FREITAS, Riva Sobrado de; BAEZ, Narciso Leandro Xavier. Privacidade e o direito de morrer com dignidade. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 1, p. 249-269, jan./abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2014. 13

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alguns interesses essenciais à pessoa: integridade psicofísica, liberdade, igualdade e solidariedade.15 Relaciona-se, por sua vez, à autonomia, que pode ser concebida de diferentes maneiras, a depender do momento histórico e do âmbito de atuação. Segundo Menezes e Feitosa,16 do ponto de vista ético-existencial, refere-se ao âmbito de liberdade no qual a pessoa realiza suas escolhas pessoais, que impactem somente na sua esfera privada. Enfatiza que não se trata de direito absoluto, mas merece ser considerada de maneira cuidadosa quando, no caso concreto, estiver em conflito com outros interesses também constitucionalmente assegurados. Autonomia deve ser aqui entendida como poder de ação em uma perspectiva relacional, de liberdade intersubjetiva. Tal entendimento tem eco nas constituições do pós-guerra, como a Constituição brasileira de 1988, que deram maior evidência às necessidades existenciais. Isso porque a dignidade da pessoa humana foi erigida a um dos fundamentos da República, o que permitiu uma inflexão axiológica no sentido de dar primazia às situações existenciais sobre as patrimoniais. Interpretada como cláusula geral de tutela da personalidade,17 impõe que a pessoa seja enxergada de maneira integral e multidisciplinar, não perdendo de vista os aspectos social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada sujeito. Sendo assim, promoveu a mudança de perspectiva da autonomia, tradicionalmente concebida segundo a patrimonialidade e passou a tratar de autonomia existencial.18 Do ponto de vista bioético, pode ser considerada como o governo pessoal de si mesmo, livre de interferências controladoras de outros e de limitações pessoais que impeçam uma escolha decorrente da intenção do sujeito, a exemplo de uma compreen­são inadequada. Exige um tratamento respeitoso na revelação de informações e um encorajamento para a tomada e decisões autônomas. Em conjunto com a beneficência e não maleficência, sustentam outras regras morais, tais como a

BODIN DE MORAIS, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 85-110. 16 MENEZES, Joyceane Bezerra de; FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. A simbiose entre o público e o privado no direito civil-constitucional: uma (re) discussão sobre o espaço a autonomia-ético existencial, intimidade e vida privada. Nomos (Fortaleza), v. 32, p. 77-90, 2012. 17 Afirma a autora que: “Assim, a dignidade da pessoa humana foi assentada na Magna Carta com status de um dos fundamentos da República, ao lado da cidadania, da soberania, do pluralismo político e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nesse contexto, a dignidade configura-se como cláusula geral de tutela e promoção da personalidade, geradora de deveres positivos e negativos, a qual pressupõe que a pessoa seja concebida a partir de uma reflexão multidisciplinar. Isto é, a dignidade, no papel de princípio unificador do ordenamento jurídico, impõe que o olhar dirigido à pessoa seja capaz de englobar a integralidade do indivíduo, levando-se em conta o contexto social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada sujeito” (BODIN DE MORAIS, 2014, p. 784). 18 BODIN DE MORAIS, Maria Celina; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo. Doi: 10.5020/2317-2150.2014.v19n3p779. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2015. 15

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necessidade de dizer a verdade, respeitar a privacidade, obter consentimento para intervenções no paciente entre outras.19 Ainda no entender de Beauchamp e Childress,20 a não maleficência constitui o comportamento de não causar danos de maneira intencional. Alguns autores tratam o princípio da não maleficência em conjunto com a beneficência, que prega a prática de atos positivos para o bem do paciente. Vai ao encontro do que dispõe o Código de Ética Médica, nos artigos 14, 22 e 24, quando veda a indicação ou a prática de atos desnecessários, bem como quando exige o consentimento esclarecido e informado do paciente ou de seu representante legal.21 A tomada de decisão livre também tem assento no artigo 15 do Código Civil, que prevê a impossibilidade de constranger alguém a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica com risco de vida. Adverte-se que o artigo não deve ser interpretado em sentido inverso, de modo a permitir que o procedimento que não ofereça risco de morte possa ser realizado de forma compulsória, sem o consentimento do paciente. Seja no âmbito da medicina curativa ou da paliativa, o dever de informação é essencial para a emissão da vontade livre, consciente e esclarecida. Tal mister constitui uma das três grandes categorias de deveres do médico, juntamente com os deveres de empregar todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente; e dever de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. Em se tratando do dever de informação, cabe ao médico fornecer todos os esclarecimentos relativos ao diagnóstico e ao prognóstico, incluindo-se as vantagens e as desvantagens dos procedimentos empregados, salvo se o paciente optar por não saber.22 O dever de empregar todas as técnicas possíveis e disponíveis inclui a obrigação de acompanhar o paciente, atendendo aos seus chamados ou indicando outro profissional, quando não puder fazê-lo pessoalmente. De igual sorte, obriga o médico a não realizar experimentações científicas com o paciente. Em se tratando do dever de buscar o melhor interesse do paciente, o médico também deve evitar excessos ou abusos que configurem comportamento paternalista, prezando sempre pelo diálogo e bom relacionamento com o enfermo. Acima de qualquer interesse ou convicção,

BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2011, p. 137-145. 20 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios...p. 210 e 281. 21 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931... 22 O Código de Ética Médica prevê o dever de informação, no capítulo que trata da relação do médico com o paciente e familiares, estabelecendo, no artigo 34, que é vedado ao médico: “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. De igual modo, veda, no artigo 35, “exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos”, bem como, no artigo 36, “abandonar paciente sob seus cuidados” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931...). 19

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cabe ao médico o dever de buscar a melhor alternativa para a integridade psicofísica do paciente e para sua dignidade, em atenção aos seus direitos fundamentais e aos fundamentos da República.23 Proíbe a prática da eutanásia, quando veda a abreviação da vida do paciente, mesmo a seu pedido ou de seu representante legal. Contudo, prevê que, nos casos de doença incurável e terminal, possa oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas. Em todo o caso, sempre respeitando a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Nesse sentido, destaca-se a importância das diretivas antecipadas de vontade,24 reguladas pela CFM/Resolução nº 1.995 de 2012. Constitui um instrumento de manifestação de vontade presente para situações futuras, relativamente aos tratamentos ou procedimentos aos quais o indivíduo deseja ou não se submeter quando estiver impossibilitado de expressar a sua vontade, fazendo-as prevalecer sobre a vontade dos familiares. Por meio dessa resolução também é possível a nomeação de um procurador de saúde, que será incumbido de tomar as decisões pelo paciente quando este já não tiver a consciência necessária para tanto.25

3  Responsabilidade civil médica Para analisar a responsabilidade civil do médico associada à ortotanásia e orientada pelos cuidados paliativos, é necessário analisar os diplomas legais que disciplinam a matéria, quais sejam, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor

TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista Jurídica, Rio Grande do Sul, ano 51, n. 311, p. 18-43, set. 2003. 24 O termo diretivas antecipadas é preferido, já que a expressão testamento vital é criticado por doutrina específica, pois é resultado de traduções do termo em inglês, living will, sem a necessária adequação ao instituto em português. Traduzido dessa maneira pode ser confundido com o sentido jurídico do vocábulo testamento no Brasil, que designa disposição de última vontade estabelecida por um negócio jurídico unilateral, solene e com eficácia condicionada à morte do titular. Por sua solenidade e efeito jurídico post mortem, difere do testamento vital. Este também é negócio jurídico de disposição de vontade, porém a ser exercida enquanto o titular estiver vivo e despido da consciência necessária para se autodeterminar. Assim, há duas classificações correntes: a primeira coloca diretivas antecipadas como gênero, do qual são espécies o mandato duradouro e a declaração prévia de vontade (PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543, 2009); a segunda, sem preterir o termo já consagrado no país, traz testamento vital como gênero, e inclui mandato duradouro e diretivas antecipadas como espécies (PENALVA, Luciana Dadalto; TUPINAMBAÍ, Unais; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. Bioética (Impr.), v. 21, n. 3, p. 463-76, 2013). Dessa forma, em um mesmo documento, é possível determinar os tratamentos aos quais deseja ou não ser submetido quando fora das perspectivas de cura, assim como o mandatário responsável por tomar decisões médicas quando o mandante estiver despido de consciência, ou por fazer cumprir tais determinações. 25 Assim dispõe a resolução sobre a nomeação de representante pelo paciente: “Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. §1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995...). 23

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e o Código de Ética Médica. O pressuposto específico, no caso, segundo Aguiar Júnior,26 será o ato médico praticado com violação de um dever profissional imposto por lei, pelo costume ou por um contrato, que haja causado um dano patrimonial ou extrapatrimonial. Importa ao presente estudo, a análise da responsabilidade civil do médico pela intervenção em face de um paciente acometido de doença grave e incurável ou em estado terminal, para o fim de verificar como se daria eventual responsabilização, na hipótese do evento morte resultar do avanço da doença associado à suspensão do tratamento e/ou procedimento de intenção curativa, por escolha do paciente, acompanhado pelo médico. A análise da responsabilidade civil médica e hospitalar requer o exame de duas perspectivas distintas: a primeira decorre da prestação de serviço direta e pessoalmente pelo médico, assim considerado um profissional liberal; já a segunda resulta da prestação de serviços médicos sob a organização empresarial, como se faz pelos hospitais, clínicas, casas de saúde, bancos de sangue, etc.27 No que concerne à responsabilidade pessoal do médico, é considerada uma responsabilidade contratual,28 quanto à fonte, que envolve uma obrigação de meio. É regulada pelo artigo 951, do Código Civil, que impõe o dever de indenização a quem, no exercício de atividade profissional e em razão da negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar lesão ou inabilitar para o trabalho. Observe-se que a atividade curativa desenvolvida pelo profissional médico não constitui atividade de risco para o paciente, mas, ao contrário, intenta afastar o risco de agravamento do estado de saúde, propiciando cura ou melhora. Qualquer tentativa de tornar objetiva a responsabilidade médica conduz à mudança na prestação devida em obrigação de resultado, o que não é aceitável. A dor, a doença, as alterações de saúde e a morte não devem ser consideradas riscos que constituem a atividade médica, porém algo inerente ao ser humano. Ademais, não é o médico, em regra, que as provoca, mas, em oposição a isso, tenta aliviar o sofrimento e restaurar a saúde.29 O CDC também faz alusão à responsabilidade pessoal desses profissionais. Nos termos do parágrafo 4º, do artigo 14, tem-se que a responsabilidade civil do

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: Direito e medicina: aspectos jurídicos da medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 133-180. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015. 27 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 403. 28 O entendimento acerca da natureza contratual da responsabilidade civil médica é compartilhado por Gustavo Tepedino, José de Aguiar Dias, Maria Helena Diniz, Rui Rosado de Aguiar Junior (TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica...p. 19). 29 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 38 e 62.

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profissional liberal será apurada mediante a verificação de culpa.30 Em sentido semelhante é o Código de Ética profissional, que veda ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão que se caracterize como negligência, imprudência ou imperícia. De toda sorte, importa a necessária demonstração de culpa para que se possa apurar a responsabilidade civil do médico. A comprovação da conduta culposa do médico é requisito inerente ao tipo de responsabilidade a ele atribuída: subjetiva. Esta, por sua vez, está relacionada à natureza da obrigação por ele assumida, que é de meio e não de resultado.31 Isso porque o médico, pelo tipo de serviço que presta e por sua natureza humana, não dispõe de meios de se comprometer com o evento cura, embora envide todos os esforços possíveis para isso.32 Para a comprovação dessa culpa, é imprescindível se demonstrar o descumprimento dos deveres relacionados ao ofício, tripartidas nas três grandes categorias mencionadas: dever de informação; dever de empregar todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente; dever de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. Relativamente aos danos decorrentes da prestação de serviços médicos de forma empresarial, como aquela que se faz pelos hospitais e clínicas, aplica-se, nos termos do artigo 14 do diploma consumerista, a responsabilidade objetiva, dispensando prova da culpa. Sendo assim, o fornecedor responde objetivamente pela eficiência do serviço de saúde prestado. Para as duas hipóteses de responsabilidade acima citadas, é indispensável a demonstração do nexo causal que correlaciona a conduta do médico e/ou a prestação do serviço pelo hospital ou pela clínica e o dano sofrido pelo paciente. A responsabilidade civil do médico ou do hospital não é absoluta, podendo ser afastada nos casos de excludentes previstas em lei. Uma vez demonstradas excludentes de responsabilidade entre o serviço defeituoso e o dano, ou seja, evidenciado que o resultado morte do paciente não foi desencadeado pela ação ou omissão médica, mas sim em virtude de um aleatório alheio ao seu controle, a exemplo da evolução natural da doença, descartado está o dever de reparar.33 Também é possível

Assim dispõe o artigo 14: “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] §4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências...). 31 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 313. 32 GONDIM, Glenda Gonçalves; STEINER, Renata Carlos. Responsabilidade civil médica: breves considerações em face da recente jurisprudência do superior tribunal de justiça. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 33, n. 1, p. 204/219, maio 2010. ISSN 0101-7187. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2014. 33 Registre-se caso na jurisprudência paulista em que a demanda indenizatória foi ajuizada em face do hospital, porém julgada improcedente e confirmada em segunda instância, em virtude da falta de comprovação de conduta culposa do médico. Tratou-se de um senhor diagnosticado com câncer de laringe que, em 2005, foi submetido a cirurgia para extração do tumor, passou por várias internações no hospital demandado, e, aproximadamente 30

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qualificar como exclusão da responsabilidade,34 aquele caso no qual se prova que o insucesso do procedimento ou do tratamento decorreu de condições próprias do paciente. Frise-se que a conduta médica associada aos deveres já citados tem por objetivo primordial o de zelar pela dignidade do paciente até quando se inicia o processo de morte, de modo a que se evite a distanásia, assim caracterizada como o prolongamento exagerado desse processo, por meio da adoção de tratamentos inúteis que somente trazem sofrimento adicional ao paciente.35 Quando a doença está em estágio avançado e irreversível, mais premente se faz o dever de cuidado, não no intuito de retirar a enfermidade a todo custo, mas de proporcionar conforto e qualidade de vida ao paciente. Requer ainda, o respeito às suas escolhas livres e conscientes, mesmo que isso implique a suspensão ou recusa do tratamento prescrito. Se, nessas hipóteses, o médico priorizar os cuidados paliativos, em respeito à vontade do paciente e este vier a óbito, não se poderá imputar responsabilidade civil ao profissional ou ao estabelecimento de saúde.

Conclusão I. A discussão sobre os cuidados paliativos e a ortotanásia, conceitos distintos de eutanásia, ganha cada vez mais espaço no meio jurídico. Deve-se ter

dois anos após a cirurgia, chegou ao nosocômio com o quadro de saúde agravado. Recebeu cuidados médicos, porém faleceu em 2007, quando a família ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais em face do hospital, alegando que a morte foi antecipada devido às altas doses de sedativos. No julgamento da demanda, entendeu-se que o paciente apresentava estado avançado da doença, sendo considerado terminal, de forma que a moléstia não poderia mais ser revertida. Nova cirurgia havia sido descartada devido ao grau avançado da enfermidade, restando-lhe apenas os cuidados paliativos para evitar ou minimizar a dor, o que foi feito por meio de sedação contínua. Essa tendência do tribunal paulista se baseia no entendimento de que, nesses casos, o que se examina é o próprio trabalho do médico (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil..., p. 199-201). O recurso de apelação nº 0003009-12.2010.8.26.0004, de relatoria do Desembargador João Francisco Moreira Viegas, bem como a sentença do mesmo processo, foram obtidos por meio de pesquisa realizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, utilizando-se “ortotanásia” como termo de busca, sem delimitação temporal, em todos os tipos de decisão e independentemente da origem. Retornaram três resultados, entre os quais o ora relatado, cuja ementa enuncia: “RESPONSABILIDADE CIVIL DANOS MORAIS E MATERIAIS Hospital - Paciente que faleceu após período de internação - Responsabilidade do hospital que decorre da comprovação de conduta culposa do médico Conjunto probatório que não logrou demonstrar a existência de negligência ou imperícia no tratamento do paciente - Morte que decorreu do avanço incontrolável da doença, e não de qualquer conduta do corpo médico Ausência do dever de indenizar Sentença mantida – Recurso desprovido” (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 000300912.2010.8.26.0004, da 5ª Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador João Francisco Moreira Viegas. São Paulo, SP, 12 de junho de 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2014). 34 Dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14: “o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro” (BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências...). 35 PESSINI, Leo. Distanásia: até quando investir sem agredir? Revista Bioética, Brasília, v. 4, n. 1, nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2014.

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em vista a necessidade de ressaltar a dignidade humana, principalmente em situações de doença incurável ou terminal. A relação entre médico e paciente deve ser pautada nos deveres profissionais de informação, emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente e de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. II. O respeito à autonomia e aos princípios da não maleficência e da beneficência legitimam o direito que tem a pessoa do paciente em tomar decisões livres, conscientes e informadas, cujos efeitos devem ser respeitados pelo médico, pela família e pelo estabelecimento de saúde. Cabe ao médico fornecer todas as informações disponíveis relativas aos tratamentos disponíveis e os riscos que acarretam, para que o paciente possa fazer a escolha sobre o tratamento mais adequado aos seus anseios, inclusive quando optar pela suspensão ou recusa de procedimentos curativos, e pela atenção paliativa pautada no controle dos sintomas negativos da doença. III. É direito da pessoa optar pela boa morte, evitando as intervenções fúteis e obstinadas, que já não proporcionem o bem-estar. A opção pelos cuidados paliativos implica o tratamento voltado para a garantia do bem-estar integral do paciente, mediante intervenções nas dimensões física, psíquica, social e espiritual. Com o fim de garantir o convívio familiar e com os amigos, é possível determinar-se até mesmo a alta hospitalar, ainda que se permita a atenção por meio dos serviços de homecare. IV. Linhas gerais, somente se poderá falar de responsabilidade civil médica pela morte do paciente que optou pelos cuidados paliativos, se o profissional houver transgredido os deveres que norteiam a sua conduta e houver nexo causal entre esta e o dano. A responsabilidade civil do médico que acompanha direta e pessoalmente o paciente será subjetiva, exigindo-se a comprovação de sua culpa, ou seja, a prova de sua negligência, imprudência, imperícia na prestação do serviço. V. Trata-se aqui, de uma responsabilidade civil subjetiva, pautada numa obrigação de meio, já que o profissional, via de regra, não pode se comprometer com o resultado cura, o que foge à natureza do serviço. A despeito disso, deve empreender todos os esforços possíveis para alcançar a cura do paciente, ou, quando não for possível, deve prezar por seu bem-estar e pela maior qualidade de existência possível ao enfermo. VI. Caso o serviço médico haja sido prestado por meio de uma atividade empresarial, na qual o fornecedor é um hospital ou uma clínica, a responsabilidade do estabelecimento de saúde é apurada de maneira objetiva. Persiste apenas em face da falha na prestação dos serviços. Para se eximir da responsabilidade, porém, o estabelecimento de saúde poderá alegar R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015

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alguma excludente de responsabilidade civil, nos moldes do disposto no Código de Defesa do Consumidor. Na hipótese, alegando a inexistência de nexo causal entre a conduta médica e a morte de paciente que já estava, por exemplo, acometido por doença em estado avançado. O óbito se daria em virtude de progressivo agravamento do quadro do enfermo.

Medical Liability on Palliative Care and Orthothanasia Abstract: The evolution of medicine enabled the development of new techniques and new drugs, increasing the time between the discovery of disease and death, extending the existence of people. In addition to revolutionary treatments for the cure of many diseases, the use of artificial maintenance of life devices and medicines that keep or minimize pain is possible, allowing delay the death of the patient stricken with serious and incurable or terminal illness. These possibilities, however, lead to the reflection on the medical procedure in relation to the care expended for the terminally ill, unveiling bioethical issues with reflection on law. Any solution should collate the principles of justice consolidated in the Constitution, notably, the dignity of the human person which is the epicenter of fundamental rights. Although terminally ill patients have no chances of a cure for his illness, they are rights holders and should have their dignity preserved in the last moments of life. In respect for these rights, especially autonomy, they can not be subjected to any treatment able to configure torture, either, those futile treatments that only increase suffering and do not generate well-being and healing perspective. Focusing on the practice of palliative care and orthothanasia in Brazil, related to the principle of human dignity and bioethical principles of respect for autonomy, beneficence and non-maleficence, this study aims to analyze the outlook of medical liability. In the methodological aspect, there was literature and documents, especially legal doctrine, laws and resolutions governing the medical management. Keywords: Palliative Care. Orthothanasia. Bioethics. Medical Liability.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): LIMA, Luciana Vasconcelos; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015.

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Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e a política de saúde mental brasileira1 Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza. Professora titular da Universidade de Fortaleza, atuando no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado). Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: .

Júlia d’Alge Mont’Alverne Barreto Graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisadora bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Integrante do grupo de pesquisa em Direito Constitucional nas Relações Privadas, do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: .

Maria Yannie Araújo Mota Graduada em Direito pela universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-Graduanda em Direito Civil e Empresarial. Mestranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: .

Resumo: Este artigo analisa a necessidade de se garantir ao usuário de drogas, pessoa em sofrimento psíquico, o respeito a sua capacidade decisional, de acordo com o que prescreve a Lei de Saúde Mental brasileira. A dependência química, por si só, não retira a possibilidade de discernimento da pessoa e sua capacidade jurídica, razão pela qual, em respeito a sua autonomia não se pode lhe impor um tratamento. Mesmo que sofra perda temporária e relativa do discernimento, deve ter respeitada a autonomia que se restabelece com o passar dos efeitos da substância que utiliza. Assim, quando estiver de posse do juízo crítico, deve ser consultada sobre seu interesse em aderir à terapêutica sugerida. Se o tratamento emergencial lhe foi prescrito pelo médico, sem o seu consentimento, no instante da crise, tão logo reestabeleça a sua capacidade decisional, deverá ser respeitada quanto ao interesse de continuar com o tratamento. Até quando praticar atos acráticos, o sujeito deve ter garantida a faculdade de responder pela própria vida. Palavras-Chave: Autonomia. Capacidade civil. Política de Saúde Mental brasileira. Toxicômano. Sumário: Introdução – 1 Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas – 2 Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano – 3 Autonomia existencial do drogadito – Conclusão

Estudo desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa intitulado: A efetivação do controle das internações psiquiátricas involuntárias no Município de Fortaleza.

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Introdução O presente artigo analisa a reforma psiquiátrica, cotejando a imprescindibilidade de se respeitarem a autonomia do paciente drogadito, de acordo com o maior ou menor grau de discernimento, ao lhes garantir a atenção especial em saúde. Por meio da Lei nº 10.216/2001 consolidou-se, no Brasil, a reforma psiquiátrica que inaugurou uma sistemática de atenção em saúde mental pautada no tratamento humanizado, extra-hospitalar, voltado para o equilíbrio e reinserção social da pessoa em sofrimento psíquico. Estabeleceu o fim do tratamento manicomial, preconizando uma atenção multidisciplinar na qual a internação psiquiátrica constitui alternativa subsidiária, in extremis e voltada apenas para a estabilização do paciente. Embora a rede de saúde mental brasileira já viesse apresentando os ajustes propostos pelo movimento de reforma que se expandia pelo mundo ocidental e já tinha previsão específica em documentos internacionais, como a Declaração de Caracas,2 a Lei de Reforma Psiquiátrica (LRP) constituiu um marco formal para as políticas públicas do país em matéria de saúde. Sob a influência dos direitos humanos reconhecidos ao paciente psiquiátrico, a capacidade decisional da pessoa passa a ter maior destaque. As pessoas que sofrem drogadição, igualmente consideradas pacientes psiquiátricos, devem ter a sua capacidade respeitada. Desse modo, na medida em que preservarem o seu discernimento, podem decidir sobre a possibilidade de se submeterem ou não ao tratamento específico. A rede de atenção em saúde mental constitui-se primordialmente de equipamentos extra-hospitalares: Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) (com foco específico em álcool e outras drogas), Residências Terapêuticas, entre outros. Os leitos psiquiátricos foram reduzidos, exatamente pela primazia que se deu ao tratamento extra-hospitalar. Porém, surgiram as comunidades terapêuticas, que são instituições privadas, sem fins lucrativos, financiadas, em parte, pelo poder público e que oferecem, gratuitamente, acolhimento para pessoas com transtornos decorrentes da dependência química. Em todo caso, o plano terapêutico ao qual a pessoa será submetida dependerá de seu próprio assentimento. Exceto nos casos de internação psiquiátrica involuntária ou internação psiquiátrica compulsória é que a pessoa poderá ser contristada ao tratamento contra a sua vontade. Porém, esses casos são regulados por lei e aplicáveis em condições extremadas.

Em 1990, com as discussões pró-reforma psiquiátrica em toda a América Latina, surge a Declaração de Caracas, assinada pelos países da região das Américas, durante a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica nas Américas, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), com o escopo de apresentar os direitos humanos das pessoas acometidas de transtornos mentais. A referida convenção foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº. 3956 de 08 de outubro de 2001.

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Os efeitos das drogas sobre a pessoa podem ser nefastos para ela própria, para a família e para a comunidade. Em razão disso, há um clamor social pelo tratamento compulsório ou involuntário que envolva, inclusive, a internação. Esse tem sido um dos conflitos corriqueiros: o choque entre a autonomia do drogadito e o desejo da família e da sociedade. A despeito dos inconvenientes e dissabores que a convivência com o drogadito pode trazer para a família, a autonomia do sujeito não pode ser ceifada. Há que se conciliar o tratamento com a autonomia volitiva da pessoa adoecida, a fim de que não apenas a sua integridade seja preservada, como também o próprio tratamento possa prosperar com algum êxito. Para avaliar a extensão da autonomia do sujeito no âmbito da atenção em saúde mental, o trabalho se subdividirá em três tópicos: o primeiro intitulado: “Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas”, em que se abordarão as principais diretrizes da Lei nº 10.216/2001 e a sua correlação com os princípios constitucionais; o segundo: “Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano”, em que se verificará o reconhecimento da capacidade jurídica do drogadito e as possibilidades de sua limitação; o terceiro e último tópico, sob o título: “Autonomia Existencial do drogadito”, em que trarão as considerações sobre a necessidade de se garantir o direito de autodeterminação ao usuário de drogas no sistema de atenção em saúde, em razão da sua dignidade e dos direitos de personalidade. No que concerne à metodologia utilizada, frisa-se que a pesquisa é do tipo qualitativa, cujo foco da análise se assentou nas fontes bibliográficas, documentais e jurisprudenciais.

1  Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas A loucura foi objeto de estudo por várias sociedades ao longo da existência humana. A ausência de discernimento e de amarras sociais sempre despertou a curiosidade e o medo das pessoas, de sorte que a preocupação com os distúrbios psíquicos não se restringiu apenas à ciência, mas alcançou também a religião e o imaginário popular. Por muito tempo, achou-se que o transtorno mental estava associado ao castigo divino ou aos pactos com entidades do mal, de modo que a loucura era vista como algo repugnante e que as pessoas acometidas por problemas desta ordem não mereciam compaixão, deveriam ser submetidas a torturas e a tratamentos degradantes (BOMFIM, 2005). Apesar de esta concepção datar do medievo, esta forma de encarar a loucura se prolongou até pouco tempo atrás. No Brasil, no início do novo milênio, ainda se podia encontrar instituições psiquiátricas com caraterísticas asilares, ultrajantes à

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condição de qualquer ser humano.3 Pacientes psiquiátricos tratados como presos, reclusos em salas frias, fétidas, sem condições de higiene, deixados nestes estabelecimentos ad aeternum, pois nem a família, nem o Estado tinham interesse de reinseri-los à sociedade (BASAGLIA, 1985). Não obstante, a despeito da triste realidade a que os pacientes psiquiátricos foram longamente submetidos, o advento da reforma psiquiátrica propulsionou grandes alterações no que concerne ao tratamento em saúde mental. O modelo manicomial, hospitalocêntrico, deu lugar ao chamado modelo assistencial multidisciplinar em saúde, respeitando a convivência familiar e comunitária. A internação, que antes era utilizada de modo indiscriminado, passou a seguir um protocolo específico, devendo ser a última opção de tratamento. Tanto é verdade que o país inaugurou um período de desinstitucionalização da loucura, com uma redução considerável dos leitos destinados às internações psiquiátricas. No Brasil, o movimento contra o sistema manicomial ganhou força em meados da década de 1970 devido à mobilização dos profissionais da saúde mental que lançavam um novo olhar para a loucura e propunham um tratamento baseado na reinserção social e no tratamento humanitário. Em 1989, chegou ao Congresso Nacional o projeto de Lei nº 3.657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT/MG). Alvo de inúmeras críticas, o projeto de lei tramitou por doze anos no Congresso Nacional, sendo aprovado apenas em março de 2001 a Lei nº 10.216/01, com o conteúdo originário bastante alterado. A esse tempo, leis estaduais e normas jurídicas secundárias já haviam implantado uma atenção extra-hospitalar no âmbito da saúde mental. Prioriza-se o tratamento extra-hospitalar, uma atenção multiprofissional, inclusiva, com a participação da comunidade e da família, sendo a internação uma medida extrema e subsidiária. Para consolidar as mudanças no setor foi sancionada em 6 de abril de 2001 a Lei nº 10.216, estabelecendo em seu preâmbulo que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. De modo a atender os direitos humanos e fundamentais da pessoa sob sofrimento psíquico, enumera, em seu art. 2º, que a pessoa portadora de transtorno mental tem direito de ser tratada com humanidade, respeito, ter acesso ao melhor tratamento (preferencialmente em serviços comunitários), sigilo nas informações, entre outros. Ao lado desses direitos, reitera que o tratamento seja acompanhado pela família e que tenha como finalidade a reinserção social.

Caso paradigmático, que culminou, inclusive, com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi o do cearense Damião Ximenes. Paciente psiquiátrico de uma clínica especializada, localizada na cidade Sobral-CE, o corpo dele foi encontrado nas dependências da clínica com sinais de maustratos, muito provavelmente ocorrido durante o período que o mesmo passou internado no estabelecimento.

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AUTONOMIA EXISTENCIAL DO PACIENTE PSIQUIÁTRICO USUÁRIO DE DROGAS E A POLÍTICA DE SAÚDE...

A nova Política de Saúde Mental Brasileira vem atender a um anseio social, reconhecendo que o transtorno e o sofrimento psíquico afetam significativa parcela da população. Seja em razão do estrese provocado pela rotina atribulada, seja pelo vício em bebidas ou em substâncias entorpecentes ou, ainda, por uma experiência traumática, muitas pessoas desenvolvem algum tipo de transtorno que afeta a sua sociabilidade e condições de existência plena. Não obstante, a pessoa acometida por alguma perturbação psíquica pode apresentar algum nível de comprometimento mental: brando, moderado ou elevado. Mas não necessariamente esse comprometimento afetará significativamente a sua vida de relação em família e na comunidade, ou mesmo, a sua capacidade decisional. Podem perseverar na vida comunitária e familiar mesmo quando estiverem realizando um tratamento específico. A convivência nesses casos pode ser ainda mais salutar do que o isolamento. Em vista disso, percebeu-se os limites da internação como alternativa prioritária de tratamento. Para cada caso, o tratamento deve ser específico. Não sem razão, a pessoa que procura um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Droga recebe um plano de atenção terapêutico adequado às suas próprias necessidades. Importante destacar que antes do advento da Lei nº 10.216/2001, muitos toxicômanos eram internados involuntariamente em clínicas especializadas em reabilitação e lá eram esquecidos, sem qualquer preocupação de inseri-los à sociedade. O que se via era a internação forçada, muitas vezes ordenada pela própria família do dependente químico, dada a incapacidade dos parentes de conviverem com o drogadito. No contexto da Lei nº 10.216/2001, cujo principal objetivo é o de garantir a proteção e a efetivação dos direitos das pessoas com transtornos mentais, a internação não pode mais ser considerada uma forma de a família ou a comunidade se livrar da pessoa. Na forma do artigo 4º, caput e parágrafo primeiro, da LRP, “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” e que “o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio”. No tocante ao uso do crack, umas das substâncias tóxicas mais devastadoras e de maior popularidade no Brasil, feita a partir da mistura da pasta da cocaína com o bicarbonato de sódio, a preocupação social é geral em virtude de já se configurar uma epidemia. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7663/2010, de autoria do Deputado Federal Osmar Terra (PMDB/RS),4 com a proposta melhorar a estrutura do atendimento aos usuários de drogas e às suas famílias e ampliar o rigor no enfrentamento de crimes que envolvem o tráfico de drogas com alto poder de dependência, como o crack. O projeto de lei propõe, inclusive, alternações em alguns dispositivos da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas).

O Projeto de Lei nº 7663/2010 encontra-se em tramitação, aguardando apreciação pelo Senado Federal.

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O projeto prevê a alteração do artigo 28, da Lei nº 11.343/2006, parágrafo oitavo, que passaria a ter a seguinte redação: “O juiz determinará ao Poder Público, a seu critério, a imediata internação do usuário do entorpecente denominado crack para tratamento especializado de recuperação.” Na justificativa do autor do projeto, o autor assim dispõe: O entorpecente conhecido como crack apresenta um potencial de dependência mais virulento e rápido do qualquer outro tipo de droga. Além de provocar efeitos danosos e quase sempre irreversíveis à saúde física e mental do viciado, a droga também é responsável pela desestruturação de famílias e por um infindável número de crimes associados, como assaltos, estupros e assassinatos. Ao ser consumida, a droga chega quase instantaneamente à corrente sanguínea e ao cérebro. Entretanto, por ter curta duração, seu efeito exige do drogado a constante alimentação, o que o transforma num escravo do vício. A relação é tão grande e desastrosa que obriga o viciado a usar a droga a cada dez ou quinze minutos, destruindo de vez suas relações afetivas, familiares e sociais. A expectativa de vida do consumidor de crack é reduzidíssima, não ultrapassando cinco anos, contados a partir da primeira experiência maléfica. Além da violência de que é vítima, o viciado sucumbe à própria droga, que se encarrega de dar fim à vida A presente proposição tem o escopo de modificar essa triste realidade, ao dar uma oportunidade de tratamento imediato ao jovem que se embrenhou neste mundo de trevas. Nas ocasiões devidas, cabe ao juiz avaliar a gravidade da situação e exigir do Poder Público, quando assim entender, que dê ao viciado um acolhimento rápido em uma instituição especializada em atender aos vitimados pelas drogas.

Diante da proposta de redação conferida ao novo parágrafo oitavo sob comento, observa-se que incumbe ao juiz, mediante livre apreciação, a decisão de internar ou não o usuário de crack, independente da vontade do toxicômano. Tal disposição afrontaria a principiologia da reforma psiquiátrica brasileira, pois culminaria no cerceamento da liberdade e da volição do usuário. Cabe avaliar a sua adequação aos direitos humanos que hoje integram o bloco de constitucionalidade. Em relação ao tratamento conferido ao toxicômano pela legislação brasileira, tem-se que o Código Civil, por sua vez, prevê em seu artigo 4º, inciso II, que, dentre outros, “são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercerem”. Essa classificação foi mantida pela da Lei nº 13.146, em 06 de julho de 2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou alguns dispositivos do Código Civil pertinentes ao regime das incapacidades. A lei garante os direitos da pessoa com deficiência em condições de igualdade com as demais, o que destaca a sua autonomia e capacidade legal, a depender do discernimento que apresenta e não do diagnóstico médico que lhe é conferido.

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Contudo, em seu artigo 114, a Lei nº 13.146/2015 manteve os toxicômanos como relativamente incapazes, incluindo-os todos num mesmo grupo. É sabido que há de ser levado em consideração o fato de que a drogadição, por si só, não é suficiente para caracterizar a incapacidade do usuário, mas tão somente para pleitear a sua interdição perante o Poder Judiciário, ocasião na qual o magistrado fixará os limites da sujeição do interditando à curatela. Assim, uma vez determinada judicialmente a existência do discernimento necessário para a prática de atos da vida civil, não há razão para classificar o toxicômano como relativamente incapaz, situação na qual observa-se verdadeiro contrassenso entre o Código Civil e a Lei nº 10.216/2001, pois o usuário deve ser tratado como capaz, de modo a fazer valer a autonomia de sua vontade em relação ao tratamento a ser realizado ou à ausência deste.

1.1  Espécies de internações psiquiátricas Importante destacar as três modalidades de internações descritas pela Política de Saúde Mental brasileira. Ressalta-se que cada internação corresponde a uma situação ético-legal vivenciada pelo paciente psiquiátrico. Assim, as internações se dividem em: voluntária, involuntária e compulsória. A primeira ocorre quando o paciente concorda com a internação, manifestando seu interesse pelo tratamento. A segunda se dá quando o paciente não consente a internação, sendo esta solicitada pelo médico ou pela família. E, por fim, a compulsória ocorre quando a internação é determinada pelo Poder Judiciário. Tanto a internação voluntária quanto a internação involuntária exigem a prescrição por médico registrado no Conselho Regional de Medicina do Estado onde se situa o estabelecimento hospitalar. A internação psiquiátrica voluntária depende da declaração assinada pelo paciente no ato de sua admissão na unidade de saúde. Nesta, deve constar a opção pela referida modalidade de tratamento. O término da internação se dará por solicitação do paciente, conforme estabelece o art. 7º da Lei nº 10.216/2001. Contudo, se ao longo do tratamento, o médico perceber a necessidade de manutenção da internação, uma vez diagnosticado o prejuízo do sistema volitivo do paciente, a internação voluntária pode se converter em involuntária. Esta última, por sua vez, merece destaque neste estudo, já que implica medida de exceção, ocorrendo à revelia do paciente. A fim de evitar que se converta em medida de segregação social, a internação involuntária somente pode ser aplicada mediante o atendimento de certas condições legais, conforme narrado. Deve ser prescrita por um médico devidamente registrado no Controle Regional de Medicina (CRM) e ainda sujeita ao controle institucional pelo Ministério Público e pelas Comissões Revisoras de Internações Psiquiátricas

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Involuntárias (CRIPIs), órgãos que serão notificados no prazo de até 72 (setenta e duas) horas do início da internação e da respectiva alta.

1.2  Direitos das pessoas em sofrimento psíquico Para atingir o fim que objetiva, a LEI enumera, em seu artigo 2º, parágrafo único, os direitos inerentes à pessoa portadora de transtorno mental, estabelecendo, ainda, que no início do atendimento, seja qual for a natureza da doença psíquica, o paciente e os seus familiares serão formalmente comunicados sobre os direitos elencados no artigo. É certo ainda que o paciente psiquiátrico tem proteção contra qualquer abuso ou exploração, o livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, o tratamento em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e a preferência por tratamentos em serviços comunitários de saúde mental. Por meio de análise acerca dos direitos, percebe-se o intuito da lei de não afastar o paciente da comunidade, mas, ao contrário, promover a manutenção de um contato entre o paciente e seus familiares e também entre pacientes que se encontram em situação semelhante. Na orientação de Ronaldo Laranjeira (2013), um dos psiquiatras brasileiros favoráveis à internação como parte da desintoxicação do dependente, o tratamento não se resume a abordagem hospitalar. Como uma das etapas do tratamento, a internação não deve, segundo ele, ultrapassar dois meses. Após este período, o paciente passa a ser submetido a tratamento ambulatorial, que requer assistência médica, psicológica e social. Reitera-se que o afastamento do dependente químico do convívio social não pode ser uma medida-fim, mas sim medida-meio, cuja finalidade precípua é a promoção da sua saúde. Destacando, ainda, que o tratamento não será exitoso sem um apoio integral e multidisciplinar, capaz de oferecer a assistência social, psicológica e ocupacional necessárias. Ademais, conforme já referido, a constrição à liberdade para tratamento de saúde somente terá validade no plano jurídico quando respeitadas as exigências legais que foram estabelecidas para evitar a repetição dos prejuízos que o alijamento manicomial já provocou na vida de muitas pessoas.

2  Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano Entendendo que o usuário de droga, a depender do nível de comprometimento cognitivo, pode ser submetido a tratamento de saúde à sua revelia, importante compreender também a consequência jurídica que advém da perda do discernimento pelo toxicômano. Sabe-se que é assegurada à pessoa, desde o nascimento, a capacidade de gozo, compreendendo esta a aptidão que todos os seres humanos têm de serem

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titulares de direitos. Decorre, pois, da própria qualidade de ser da pessoa, pois basta o nascimento com vida para o indivíduo adquirir referida capacidade, confundindo-se, portanto, com a própria personalidade. Existe ainda a chamada capacidade de fato. Esta, por sua vez, depende da implementação de certas condições, pois se refere à aptidão de exercer direitos e contrariar obrigações. Caso estas condições não sejam implementadas, a pessoa deverá ser representada ou assistida para a prática destes atos. 5 Destaca-se, desde logo, que o instituto da incapacidade civil foi construído para proteger as pessoas, seja de si mesmas ou da má-fé de terceiros. Logo, a Lei Civil enumera, em seus artigos 3º e 4º, as situações que podem levar à perda ou diminuição da capacidade. São absolutamente incapazes aqueles que a lei considera totalmente inaptos para os atos da vida civil. Existem três ordens de causa: idade, enfermidade e a impossibilidade, mesmo temporária, de discernimento. Essas pessoas agem por meio da representação. A representação pode se dar de forma automática ou por determinação da autoridade judiciária. Por outro lado, são considerados relativamente incapazes aqueles indivíduos que estão numa condição intermediária, entre a capacidade plena e a incapacidade total. Estes não são privados de participação na vida jurídica, muito pelo contrário, o exercício dos direitos só se realiza com a presença dos mesmos. Assim, os relativamente incapazes devem ser assistidos (PEREIRA, 2012). Percebe-se, pois, que a restrição à capacidade civil deve ser proporcional à deficiência de discernimento e aplicável apenas para resguardar o interesse da pessoa, nos exatos termos da lei. Pois, no Direito, a regra é a preservação da capacidade de autodeterminação, principalmente, no que tange às decisões autorreferentes. No que concerne ao usuário de drogas, o Código Civil prevê a perda relativa da capacidade para o toxicômano e alcoólatras após o devido processo legal de interdição.6 Sobre a capacidade civil dos toxicômanos, assevera Caio Mário (2012, p. 238): Mais do que qualquer outra é sujeita a incertezas, porque não existe um parâmetro preciso para distinguir a dipsômano habitual e o toxicômano de pessoas eu fazem uso da bebida e do toxico sem perderem a consciência dos atos que praticaram. Os vícios do toxico e da bebida se atingirem que gera fraqueza mental, estão abrangidos nesta hipótese;

Nas palavras de Caio Mário Pereira da Silva (2012, p. 221), “aquele que se acha em pleno exercício de seu direito é capaz, ou tem capacidade de fato, de exercício ou de ação; aquele a quem falta aptidão para agir não tem a capacidade de fato”. 6 A interdição, por sua vez, consiste num processo judicial, por meio do qual a pessoa é declarada civilmente incapaz, seja relativamente ou absolutamente, para a prática dos atos da vida civil. Essa pessoa, a partir da sentença, será representada ou assistida por um curador. 5

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mas se não ultrapassarem aquele limiar, não devem macular a declaração de vontade. Trata-se de incapacidade quem tem de ser aferida na justiça com máxima cautela, a fim de evitar distorções, e resguardar a incolumidade das relações jurídicas, máxime se não atingirem proporções de toxicomania crônica, geradora de estado permanente de falta ou deficiência de discernimento.

Entende-se, desta feita, que a interdição é uma alternativa extremada, devendo ser utilizada apenas em caso de deficiência grave, que verdadeiramente torna o sujeito inapto a governar a sua pessoa e os seus bens. Tanto é verdade que a legislação brasileira orienta, historicamente, a possibilidade de fixação dos limites da interdição pelo órgão julgador, abrindo espaço para a manutenção de alguma esfera de capacidade, antes da declaração de completa incapacidade. Essa orientação parece adequada à cláusula geral de tutela da pessoa, cujo objetivo macro é resguardar o processo de autoconstrução que decorre, especialmente, da autodeterminação ético-existencial.

3  Autonomia existencial do drogadito A dependência química não subtrai do drogadito a sua condição de pessoa, ainda que o vício possa comprometer o seu sistema cognitivo e afetar a sua capacidade decisional, seja temporária ou definitivamente. Enquanto o sujeito persistir com alguma competência volitiva, é importante considerar a sua vontade e respeitar a sua autonomia. Nestes termos, a intervenção psiquiátrica deve guardar compatibilidade com a autonomia do sujeito, respeitando as dimensões de sua personalidade. Até pouco tempo, os médicos entendiam que os usuários de substâncias psicotrópicas eram desprovidos de vontade própria em função do vício. Tratavam a dependência química do mesmo modo como lidavam com outras doenças mentais, seguindo, muitas vezes, a orientação manicomial, hospitalocêntrica e asilar. Entretanto, com a ascensão dos ideais libertários, já no final das décadas do século passado, passou a viger o entendimento de que o usuário de substância psicotrópica mantém alguma autonomia, desde que preservada sua capacidade cognitiva, ou seja, sua capacidade de querer e de entender o que se quer. Passou-se a compreender que a liberdade do sujeito é regra, e que o seu cerceamento é a exceção, aplicável ante a absoluta falta de discernimento (MENEZES; GESSER, 2010). Desse modo, alinhando-se os preceitos trazidos pela reforma psiquiátrica, a partir da publicação da Lei nº 10.216/2001, à condição real de cada usuário, tem-se que, na medida em que se verifica o discernimento do toxicômano, deve ser levada em consideração a sua autonomia, elemento inerente à personalidade e considerado uma necessidade humana. Através da manifestação de vontade, o sujeito constrói

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sua própria identidade (GUSTIN, 2009). Assim, é fundamental assegurar à pessoa o controle sobre os seus próprios atos quando identificada sua capacidade para tanto. É certo que o usuário de drogas necessita de um processo de desintoxicação e abstinência, o que requer, em certos casos, a segregação do paciente do convívio social, mesmo que por lapso temporal determinado. Todavia, urge a necessidade de ser respeitada a sua vontade, ainda que esta não se revele a melhor opção, sob o olhar de profissionais multidisciplinares, para o tratamento exitoso do toxicômano. Afinal, a concepção de autonomia centrada na integridade não pressupõe que o sujeito mantenha sempre uma irretocável coerência entre a sua conduta e os seus valores (DWORKIN, 2003). Tampouco que realize sempre as melhores escolhas ou que, invariavelmente, conduza a sua vida de modo refletido e estruturado. No processo de autocriação, é admissível que possa fazer escolhas proveitosas e acráticas. Todavia, existe dificuldade em imaginar um dependente químico fazendo essas deliberações, uma vez que os tóxicos geram efeitos nocivos ao discernimento de seu usuário. Vale lembrar que discernimento é capacidade de fazer diferença, distinção, fazer apreciação. Entretanto, apesar de as drogas trazerem consequências funestas, em maior ou menor grau, para os usuários e também para os seus familiares, não se pode retirar do indivíduo o direito de autodeterminar-se e fazer escolhas. Assim, se um toxicômano, ainda que comprovadamente necessitado de tratamento médico, não quiser se submeter ao procedimento, não se pode forçá-lo a tanto, pois isto implicaria o tolhimento ao direito de autodeterminação da pessoa. A autodeterminação, por sua vez, está estritamente relacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, valor axiológico do qual decorrem todos os direitos fundamentais, albergado como princípio fundamental pela Constituição Federal, na forma do seu artigo 1º, inciso III. Neste contexto, indo na contramão do que foi estudado, pertinente citar o julgamento do Habeas Corpus nº 0061555-96.2012.8.19.0000,7 que autorizou a internação compulsória de um adolescente usuário de crack. O Desembargador Paulo Rangel, relator do processo, fundamentou seu posicionamento favorável à medida

“EMENTA: Habeas corpus. Internação compulsória de usuário de crack. Medida de constrição à liberdade de adolescente visando à proteção à sua vida. Liberdade de locomoção que tem peso constitucional menor do que a vida. Principio da ponderação de interresses: se o princípio da proteção à liberdade de locomoção está em aparente conflito com o princípio da proteção à vida este deve prevalecer perante àquele. Não há como se proteger a liberdade se a própria vida que a movimenta não está assegurada. O Crack é sem dúvida um dos maiores e piores flagelos de nossa sociedade, retirando do indivíduo sua capacidade de se autodeterminar e, consequentemente, seu poder de escolha entre a vida saudável longe das drogas e a morte. O Estado tem o dever de agir em nome da proteção à vida das pessoas. A liberdade de locomoção será sacrificada em nome de um bem jurídico maior que é a vida, bem supremo de todo e qualquer ser humano. O Decreto-lei 891, de 25 de novembro de 1938, que autoriza a internação compulsória dos dependentes químicos está em pleno vigor. No caso dos autos o adolescente necessita de tratamento e pensar que ele, voluntária espontaneamente, irá procurar ajuda é desconhecer o poder que a droga exerce no cérebro da pessoa. Por tais motivos CONHEÇO do presente habeas corpus e, no MÉRITO, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, NEGANDO A ORDEM. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2015.

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sob o argumento de que não haveria como se proteger a liberdade do menor se a própria vida que a movimenta não estaria sendo assegurada. Este argumento, contudo, se mostra ultrapassado e incoerente com os preceitos da cláusula geral de tutela da pessoa, vez de que adianta vida se o indivíduo não pode deliberar sobre qual caminho deseja seguir? De que adianta vida sem dignidade? A existência não seria plena, não se respeitaria o direito de escolha do indivíduo, seria como se o homem se tornasse um ser sem vontade própria, cuja existência estaria subordinada a de um terceiro. Apoiar determinado posicionamento significaria reduzir a condição humana, seria reduzir o homem a uma morte civil. A capacidade volitiva, a liberdade que uma pessoa tem de tomar decisões, não pode ser questionada simplesmente pelo uso contínuo de uma substância entorpecente, é fundamental uma análise médica que determine se o discernimento da pessoa foi ou não comprometido, não se pode apenas impor um tratamento a revelia do paciente, sem existir um acurado laudo médio para tanto.8 Pelo que foi dito, tem-se que o usuário de entorpecentes pode, sim, ter a sua volição intacta e nem por isso querer se submeter ao tratamento médico. Este indivíduo não pode ser obrigado a receber tratamento apenas para satisfazer seus familiares. Tanto é verdade que existem três situações ético-legais possíveis para um dependente de substância tóxica. A primeira situação é quando o indivíduo está com sua volição claramente prejudicada. A segunda ocorre quando o indivíduo tem a sua volição preservada e solicita internamento ou tratamento. Já a terceira corrente acontece quando o indivíduo tem sua volição preservada, mas não deseja internação ou tratamento. (MENEZES; GESSER, 2010) Desse modo, são garantidos aos toxicômanos os direitos inerentes à personalidade e ao resguardo de sua capacidade volitiva. Este regramento faz com que os profissionais responsáveis pelo tratamento do indivíduo não possam adotar práticas que culminem na alteração da personalidade ou da consciência e, consequentemente, na vontade do paciente, com o objetivo de reduzir-lhe a resistência física ou mental, a fim de que seja submetido a determinado tratamento. Como forma de reinserir o usuário de crack à sociedade e de fazer valer a sua autonomia de vontade, em respeito à autodeterminação inerente às pessoas, foi criado, pela Prefeitura de São Paulo, o Programa de Braços Abertos, regulamentado pelo Decreto nº 55.067, de 28 de abril de 2014. Trata-se de importante medida, pautada na autonomia do paciente psiquiátrico, uma vez que aposta no consentimento

Para Caio Mário (2012, p.236), “a incapacidade por alienação é a que resulta de uma situação permanente. Os estados transitórios de obnubilação mental não privam o paciente da capacidade, a não ser temporariamente. Poderão, por isso, ser atacados os atos praticados durante eles, porque não se pode admitir como emissão válida de vontade a que foi proferida em tais momentos”.

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e na integração dos dependentes químicos à sociedade como meio para combater a drogadição. O projeto consiste em oferecer hospedagem em hotéis para os usuários de drogas da Cracolândia, região frequentada por usuários de crack, em São Paulo, bem como a contratação destes indivíduos para o serviço de zeladoria das ruas da capital, com carga horária de quatro horas diárias, mais duas horas de capacitação e qualificação profissional, além do oferecimento de três refeições por dia para as pessoas interessadas em integrar a operação. Apesar de muitas críticas, tais como a proximidade dos hotéis com as cracolândias, o fato de o salário ser pago por dia, circunstância que facilitaria a compra de drogas pelos assistidos e ainda a carga horária reduzida, o que geraria uma ociosidade nos beneficiados, a operação se mostra como ferramenta para o tratamento dos usuários de droga com uma proposta diferente dos abrigamentos compulsórios, visto que em oposição ao outro modelo, a última é pautada no respeito à autonomia e à dignidade da pessoa. Interessante destacar dado recente que aponta redução de 50% a 70% do consumo de crack entre os beneficiários da Operação, desde que a mesma foi inaugurada (OPERAÇÃO... 2014, online). Este programa é apenas um exemplo do que pode ser feito no âmbito extra-­ hospitalar para tentar reintegrar à sociedade os viciados em qualquer tipo de droga, que, pela sua condição de usuários, são automaticamente afastados da comunidade. Assim, vê-se como necessária a criação de mais programas que incentivem não só a cura do vício em substâncias tóxicas, mas também a reinserção no mercado de trabalho, a conquista da independência e da autodeterminação e, em último grau, a reintegração à sociedade. É imprescindível, para os pacientes, seus familiares e a própria comunidade, a compreensão de que o processo de tratamento é lento e depende de fatores externos, como, por exemplo, a oportunidade em um emprego e o afeto destinado ao usuário, os quais podem ser otimizados por meio de iniciativas como a do Programa de Braços Abertos. Deste modo, a partir da compreensão de que não se pode condenar um usuário de drogas a um tratamento asilar, haja vista a atual orientação pelo tratamento ambulatorial, é que se faz necessária a reformulação do art. 4º do CC, que, como visto, está em dissonância com o protocolo de saúde mental brasileiro, sendo, pois, vetor de injustiça e de violação de direitos fundamentais.

Conclusão Com o advento da reforma psiquiátrica brasileira, houve uma mudança no tocante ao tratamento conferido aos drogaditos, pois o modelo manicomial, fundado na internação do paciente, foi substituído pelo tratamento humanizado, o qual permite a reinserção do indivíduo com transtorno mental à sociedade. A internação, antes vista R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 123-138, set./dez. 2015

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como etapa do tratamento da dependência química, passou a ser a última opção, devendo, inclusive, seguir protocolo determinado por lei, a fim de resguardar a dignidade e a autonomia do paciente. Durante a vigência do modelo hospitalocêntrico, os toxicômanos eventualmente diagnosticados com sofrimento psíquico eram internados involuntariamente em clínicas especializadas, as quais não tinham por objetivo a reinserção do doente à sociedade, mas, apenas, o enclausuramento destes, desrespeitando, pois, a condição humana dos mesmos. A despeito do modelo referido, a política de saúde mental brasileira, inaugurada pela Lei nº 10.216/2001, trouxe ao ordenamento jurídico pátrio uma nova perspectiva de tratamento para os pacientes psiquiátricos, evidenciando a necessidade de respeito aos direitos humanos, a partir da notável preferência pelo tratamento extra-hospitalar. Seguindo esta perspectiva antimanicomial, foram abolidos, quase na totalidade, os estabelecimentos de características asilares, priorizando, desta feita, o chamado tratamento multidisciplinar, que estimula a participação da família e da comunidade no processo de recuperação do doente mental, rechaçando toda forma de isolamento. Esta nova perspectiva valoriza o ser humano, respeitando o seu poder de autodeterminação, o seu valor quanto pessoa, pois é da essência da personalidade humana o direito de fazer escolhas, de conduzir a própria vida, desde que isso não implique risco para si mesmo ou para outrem. Neste sentido, atento aos preceitos da reforma psiquiátrica brasileira, o que deve ser feito é um estudo específico de caso, a fim de determinar qual a melhor solução para cada paciente individualmente considerado. Um mesmo tipo de droga pode gerar diferentes efeitos em cada pessoa, além de existirem drogas com potencial lesivo maior do que o de outras. Por exemplo, o crack tem um efeito destrutivo, em curto prazo, bem superior ao da maconha. Deste modo, ainda que a dependência química seja uma situação patológica, que culmine em consequências graves para a pessoa, não se pode obrigar um usuário a se submeter a certo tratamento psiquiátrico, se isto não corresponde a sua vontade, sob pena de malferimento ao direito de autodeterminação da pessoa. Contudo, excepcionalmente, desde que comprovado o comprometimento psíquico do dependente químico em tempo ulterior ao efeito imediato da droga, pode-se proceder à internação involuntária. O usuário de substância entorpecente tem que ter resguardada a sua autonomia, não se pode, pois, impor um tratamento à sua revelia. Apesar de nos momento de utilização das drogas, os toxicômanos estarem com o seu discernimento comprometido, com o passar dos efeitos da substância, eles podem voltar a ter plena

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capacidade e, por conseguinte, estarem aptos a decidirem o que consideram mais conveniente para suas vidas.

The Existential Autonomy os Drug Addidtec Psychiatric Patient and the Brazilian Mental Health Policy Abstract: This paper analyzes the need to assure drug addicts the respect towards their ability to make a decision, in reference to the Brazilian Mental Health Law. Chemical addiction does not affect a person´s judgment or perception; therefore, treatment cannot be imposed. Even if the drug addict suffers from temporary loss of perception, their autonomy must be respected when they regain consciousness and the drug effect is over. Only when the person is in full exercise of their critical judgment that they must be asked about their interest in the suggested type of therapy. If emergency treatment is prescribed by doctor without patient´s consent at the moment of crisis, their capacity to decide should still be respected regarding the continuance of treatment or not. Even if drug addict has a wrong sense of perception concerning their decisions, they must be assured the right to be responsible for their own lives. Keywords: Autonomy. Civilian Capacity. Brazilian Mental Health Policy. Addict.

Referências BASAGLIA, Franco. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BOMFIM; Edilma Acioli. Razão mutilada: ficção e loucura em Breno Accioly. Maceió: EDUFAL, 2005. BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015. CRUZ, Fernanda. Brasil perde apenas para Estados Unidos em usuários de cocaína e crack. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015. DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003. INTERNAÇÃO à força de viciados divide opinião de médicos. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015. GUSTIN, Miracy B. S. Das necessidades humanas aos direitos. Ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. MENEZES, Joyceane Bezerra de; GESSER, Wagner Pinheiro. Autonomia do paciente dependente de substância no Brasil. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Dimensões jurídicas da personalidade na ordem constitucional brasileira. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. v. 1, p. 535-550. OPERAÇÃO “De Braços Abertos” verifica redução de 50% a 70% no consumo de crack. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2012. v. I.

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RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus, Processo nº: 0061555-96.2012.8.19.0000, Relator: Des. Paulo Sergio Rangel do Nascimento, Terceira Câmara Criminal. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): MENEZES, Joyceane Bezerra de; BARRETO, Júlia d’Alge Mont’Alverne; MOTA, Maria Yannie Araújo. Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e a política de saúde mental brasileira. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 123-138, set./dez. 2015.

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A força supralegal da teoria concepcionista no direito brasileiro Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior Acadêmico do Curso de Direito da UFRN. Pesquisador na base de Direito Internacional e Soberania do Estado Brasileiro: Perspectivas Regional e Universal. E-mail: .

Thiago Oliveira Moreira Professor Assistente da UFRN. Mestre em Direito pela UFRN e pela UPV/ES. Chefe do Departamento de Direito Privado da UFRN. E-mail: .

Resumo: A presente pesquisa visa suscitar a proteção jurídica da vida intrauterina no cenário tanto internacional quanto pátrio, demonstrando, pois, a necessidade de criação de um diálogo permanente entre os sistemas em pauta. Assim, é de maneira indispensável o estudo da tratativa legal e jurisprudencial do tema em foco. Desenvolvido pela metodologia bibliográfica descritiva, demonstrando como esse fenômeno de proteção da vida pré-natal encontra-se, nos dias atuais, entendido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e como o mesmo acontecimento se dá no sistema jurídico brasileiro. Surgindo assim esse diálogo, faz-se necessário encontrá-lo de forma uníssona. Na pesquisa em pauta, como instrumento legal, analisaremos a Convenção Americana sobre Direito Humanos de 1969, em especial a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no intuito de demonstrar a necessidade, dada a analogia, de ligação umbilical entre esses dois sistemas. Palavras-Chave: Direito internacional. Direitos humanos. Nascituro. Corte Interamericana de Direito Humanos. Controle de convencionalidade. Sumário: Introdução – 1 A proteção da vida intrauterina no direito regional latino-americano – 2 A proteção da vida intrauterina no direito brasileiro – 3 A necessidade de adequação convencional do direito estatal brasileiro – Conclusão – Referências

Introdução O estudo nos dias atuais sobre a proteção da vida intrauterina é certamente de um todo complexo. Isso se dá por diversos fatores que figuram o Direito como ciência e suas fontes de concretização metodológica. Sobre o tripé da legislação, doutrina e jurisprudência, o que temos a respeito do tema diverge sobre a teoria da situação jurídica do nascituro nas três citadas fontes. Não podendo ser diferente, nunca há que se olvidar a esse importante critério basilar da cientificidade que devemos ter ao aferirmos uma pesquisa de tão controverso tema. Não pretendendo solucionar a celeuma, mas estudando e buscando enxergar as variáveis envolvidas e as medidas propostas por cada divergência.

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Por isso, partimos da análise desse estudo com o intuito de promover o debate, pois julgamos importantíssimo, para qualquer nível acadêmico e ademais, como é papel do cientista do direito, para o envolvimento da pesquisa para a comunidade científica e de seu papel para a proteção e efetivação dos direitos humanos, nesse caso especialmente do nascituro. Justamente por isso ingressamos o tema no arcabouço jurídico dos direitos humanos. Como visto anteriormente à busca de um melhor entendimento, a situação jurídica do nascituro no ordenamento pátrio é de um todo divergente, portanto, a análise que melhor convém, seria direcionar o estudo da pesquisa às fontes do direito internacional. Promovendo, assim, um debate jurídico amplo. Sendo assim, sentamos nossas bases de delimitação do objeto jurídico no direito internacional dos direitos humanos, por acreditar na importância que o tema desenvolve nesse ramo do direito e pelo apontamento dado pelos princípios que dele emanam. No sentido do estudo da positivação do tema em tratados internacionais, já que essa referida pesquisa se detém ao diálogo de fontes, como já mencionado, destaca-­ se a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecido também como o Pacto de San José da Costa Rica de 1969. Já no sentido da análise de entendimento do direito no cenário mundial, deteremos nossa pesquisa no mesmo critério de regionalidade, pois motivaremos o corte epistemológico da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O que requer o estudo da jurisprudência de tal órgão. Ao referimos ao último ramo metodológico do direito, a doutrina, essa se coloca como excipiente e um pouco até minuciosa. E se dá pelo fato da controversa que envolve as teorias. Por isso esse estudo se envolve com a luz da proteção de tutela da vida intrauterina no direito regional latino-americano, principalmente pelo viés normativo e jurisdicional. E, por conseguinte, como sabedores, as implicações que essa tutela interfere no ordenamento jurídico pátrio. Em se tratando do ordenamento brasileiro, o conflito aparente entre a proteção da vida intrauterina na efetivação da tutela jurisdicional da vida pré-natal nos move a discutir as hipóteses em que esse tratamento gera conflito com interesses diversos, como o aborto e a fertilização in vitro. Por fim, nossa proposta conclusiva é suscitar o debate entre sistema normativo brasileiro e o sistema regional americano de proteção dos direitos humanos, com enfoque especial na tutela jurisdicional da vida pré-natal.

1  A proteção da vida intrauterina no direito regional latinoamericano Há sempre que ser feito um exercício de interpretação acerca da possibilidade do status do não nascido. E três são as correntes teóricas que doutrinam essa

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situação jurídica: Teoria Natalista, Teoria Concepcionista e Teoria da Personalidade Condicional. Com relação às teorias, essas tentam explicar a situação jurídica do não nascido. Podemos, então, diante dessas três teorias, enumerar duas correntes que pretendem explicar tal complexidade acerca do tema. A primeira, a Teoria Natalista, fundamenta que o início da personalidade se dá com o nascimento com vida, comprovado através da respiração, até os mecanismos, hoje, dispostos a aferir tal fato. A segunda teoria, onde há a ressalva dos direitos do nascituro, denomina-se de Teoria Concepcionista, que parte do princípio de que o direito da personalidade se dá desde a sua concepção. Entretanto, os direitos patrimoniais relativos à herança, doação e legado ficam condicionados aos nascidos com vida. A terceira via teórica, essa não expressa em lei, mas que por construção de entendimento interpretativo relata que os direitos do neonato, por ter nascido com vida, retroagem desde a nidação.1 É a chamada personalidade condicionada, que se apresenta como um desdobramento da Teoria Natalista. Sendo assim, é partindo da problemática de qual teoria melhor se adapta ao direito regional latino-americano em relação à situação jurídica do nascituro e qual melhor protege efetivamente os princípios norteadores desse ramo do direito que essa pesquisa posta sua proposta de enfrentamento. Portanto, em se tratando do sistema regional latino-americano, é necessário lançarmos base de estudo, principalmente, em dois sistemas que emanam e proporcionam o entendimento jurídico acerca de tal problemática. O primeiro é o sistema normativo de tutela, o qual constitui-se de fonte primária de estudo, pois é de onde emana a positivação do direito que ora se discute e que para essa pesquisa encontrará como instrumento jurídico internacional a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como o Pacto de San José da Costa Rica, promulgada em 1969. E que previu em seus dispositivos uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual para nós elegemos, como segunda fonte de estudo, o que se faz necessário debruçarmos sobre a sua produção jurisprudencial relativo ao tema.

1.1  Sistema normativo de tutela Como iniciado no item anterior, a situação jurídica do nascituro mostra-se um tanto complexa, pois, o entendimento diverge entre as teorias, a doutrina e a jurisprudência. Isso pelo tema em questão se apresentar como um conteúdo técnico extrajurídico. E com o avançar da nossa pesquisa, que tem por base fundamental

Nidação é o momento em que, na fase de blástula, o embrião fixa-se no endométrio.

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esgotar o tema acerca da situação jurídica do nascituro e, por conseguinte, buscar qual melhor teoria se mostra adequada à maior efetivação da proteção do neonato e qual melhor se alinha com o direito internacional dos direitos humanos, é que partimos para o estudo dessa situação de proteção da vida intrauterina no sistema regional latino-americano. Antes de discorremos o tema central, vale fazermos uma digressão acerca de como se legitima a atuação do sistema interamericano de direitos humanos dentro do contexto da Organização dos Estados Americanos (OEA). Tem como principais instrumentos jurídicos a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). Tem esse sistema nomeado a operação principal de seu funcionamento em dois organismos: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trataremos aqui, especificamente, da parte regional latino-americano, por tanto, dentro do sistema da OEA, nosso objetivo, agora, é esmiuçarmos os dispositivos do pacto se San José e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em se tratando do instrumento jurídico próprio, a CADH, tem em seu dispositivo basilar para nossa pesquisa o artigo 4º, 1, que traz uma redação muito peculiar em relação à matéria de direito a vida. Este dispõe: “Artigo 4º Direito à vida. 1.Toda pessoa tem direito de que se respeite a sua vida, esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Faz-nos saltar aos olhos a expressão “concepção” contida no dispositivo citado. Portanto, vale lembrar a necessidade de que se importa pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT),2 a qual determina que as fontes do Direito Internacional seguida explicitamente pela Corte interamericana. Tal fonte exige que os tratados sejam interpretados de boa-fé e conforme o sentido corrente que foi atribuído ao término do tratado em sua análise de precedentes3 sem olvidar do seu contexto, tendo em conta seu objetivo e fim proposto pelo instrumento. Assim, torna-­ se importante análise global da situação, onde não podemos apenas destacar a simples menção do termo concepção como o adotado pelo Código Civil brasileiro. Há a

Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados (1969). Seção 3 da INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS, Artigo 31 Regra Geral de Interpretação. 1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé e segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado e à luz de seu objetivo e finalidade. No Brasil, tal dispositivo foi aprovado pelo Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. 3 No mesmo instrumento jurídico citado na nota anterior, o artigo seguinte (art. 32) dispõe dos meios suplementares de interpretação: “pode-se recorrer a meios suplementares de interpretação, inclusive aos trabalhos preparatórios do tratado e as circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar o sentido resultante da aplicação do artigo 31 ou de determinar o sentido quando a interpretação, de conformidade com o artigo 31: a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro; ou b) conduz a um resultado que é manifestamente absurdo ou arrazoado”.

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necessidade, e isso deve ser indispensável a todo jurista, de antever as imprecisões da norma, por ser fadada esta a interpretação polissêmica de termos do vernáculo. Partiremos, então, de forma sucinta, de analisar alguns precedentes que deram forma e objetivo ao disposto artigo 4º, não na busca de julgar o conteúdo do artigo em pauta, mas pretendendo expor seu teor e significado em consideração a seu contexto, objetivo e fim. Assim, como método de interpretação complementar aduzido na CVDT e com o intuito de não levar a um entendimento absurdo nem tampouco ambíguo, devemos analisar a vontade manifesta do dispositivo. Diante desse proposto método se evidencia o apoio à ideia de que o recém-concebido é considerado pessoa no sistema interamericano. Como veremos, o marco inicial de proteção do arcabouço jurídico internacional dos direitos da personalidade se dá com o momento da concepção. Como sabedores, existiam três projetos originais da convenção onde continham a proposta que dispusera da seguinte forma o dito artigo “Este direito estará protegido pela lei a partir do momento da concepção”,4 porém para suavizar o rigor técnico, a comissão de revisão propôs intercalar entre as orações as palavras “em geral”, porém, por razões de princípio fundamental pretendido pela CADH, mantiveram o termo de referência ao momento da concepção. Durante a tramitação da convenção, a norma relevante do Pacto de San José da Costa Rica foi entendida como reconhecendo personalidade ao nascituro, não obstante todas as suas consequências. Porém, o Brasil em vista ao texto, propôs suprimir a expressão “em geral, a partir do momento da concepção”, argumentando que apesar de seu código civil proteger o nascituro desde a concepção, seu código penal permitia a prática de abortos quando a gravidez gerasse um perigo eminente de morte da mãe ou quando essa gravidez fosse consequência de um ato criminoso de estupro. Teve o país apoio dos Estados Unidos.5 Em sentido oposto, a Venezuela resistiu fortemente, argumentando que as leis internas não poderiam ser invocadas para decidir os direitos civis e políticos a nível universal. Por outra parte, a República Dominicana apresentou proposta de que não fosse feito a referência do momento da concepção. Segundo esse país, o motivo pelo qual sugeriu o suprimento da frase foi o fortalecimento de “conceitos universais dos direitos humanos”. O Equador era de opinião contrária e se manifestou na eliminação

Em letra original: “Este derecho estará protegido por la ley a partir Del momento de La concepción.” Secretaría General dela Organización de los Estados Americanos, Conferencia Especializada Interamericana sobre Derechos Humanos: Actas y Documentos, OEA/Ser.K/XVI/1.2, San José, Costa Rica, 7-22 de noviembre de 1969. Secretariat of the Inter-American Commission on Human Rights, Washington D.C., 1973, p. 121. En:
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