A responsabilidade das sociedades-mãe estrangeiras no regime dos grupos: os cinzentos do acórdão Impacto Azul (TJUE, C-186/12, 20.6.2013), in III Congresso DSR, Almedina, Coimbra (2014): 411-424 [extract]

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R ESUMO: Em junho de 2013, o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se sobre a compatibilidade do regime dos grupos de sociedades português, em particular a responsabilidade da sociedade totalmente dominante, com o direito da União Europeia. O Tribunal debr uçou-se sobre uma descrição do quadro normativo nacional que se toma por inexata; desconsiderou a discussão doutrinária em curso; e não atendeu, consequentemente, à necessária coerência do conjunto de preceitos reguladores das relações de grupo. Palavras-chave: grupos de sociedades; liberdade de estabelecimento; responsabilidade da sociedade-mãe

A BSTR AC T : In June 2013, the Court of Justice of the EU dealt with the compatibility of Portuguese corporate groups law, in particular the liability of the parent company, with EU law. The Court elaborated on what is believed to be an inaccurate account of Portuguese law; ignored the domestic scholarly debate on the subject matter; and consequently disregarded the indispensable coherence of the regulation of groups of companies in its entirety. Keywords: groups of companies; freedom of establishment; liability of parent company

RUI PEREIRA DIAS*

A responsabilidade das sociedades-mãe estrangeiras no regime dos grupos: os cinzentos do acórdão Impacto Azul (TJUE, C-186/12, 20.6.2013) 1. A (má) colocação do caso O tema ora escolhido não é novo, mas tão-pouco está exaurido. Refiro-me ao âmbito de aplicação no espaço do nosso regime das sociedades coligadas, em particular das disposições sobre a relação de grupo, que podemos encontrar no Título VI do Código das Sociedades Comerciais português.1 A razão próxima desta escolha é um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, que data de junho de 2013, a que se tem chamado Impacto Azul2.

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

O tom deste escrito conservará algumas marcas de oralidade que lhe advêm da sua origem e fi nalidade: o apoio à intervenção no III Congresso DSR, em 5.4.2014. 2 TJUE, Impacto Azul, Lda v. BPSA 9 – Promoção e Desenvolvimento de Investimentos, SA, Bouygues Imobiliária – SGPS, Lda, Bouygues Immobilier SA, Aniceto Fernandes Viegas, Óscar Cabanez Rodriguez, C-186/12 (2013.06.20). V. CHRISTOPH TEICHMANN, “Konzernrecht und Nie1

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O acórdão procura justamente responder à pergunta com que, não raras vezes, os juristas com experiência societária terão tido que lidar: qual é a posição jurídica da filial portuguesa de uma sociedade-mãe estrangeira? Aplica-se ou não, na relação entre ambas, o regime das relações de grupo, definido no Título VI, sobretudo nos seus artigos 501.º a 504.º? Vejamos então o problema partindo do caso concreto subjacente ao reenvio prejudicial ao TJUE. Tínhamos uma sociedade por quotas de estatuto pessoal português, portuguesa, de firma Impacto Azul, Lda., que se dedicava à compra e venda de imóveis. Do outro lado, um “grupo multinacional de promoção imobiliária” composto por três sociedades: duas de direito português (uma sociedade anónima e uma SGPS por quotas); e uma terceira, no topo da pirâmide societária, com sede em França. A relação entre as três sociedades – que são, todas elas, demandadas pela Impacto Azul, Lda., no Tribunal Judicial de Braga, para o pagamento de uma indemnização devida em primeira linha pela SA portuguesa, com origem em um alegado incumprimento contratual – é uma relação de participação totalitária: isto é, a referida sociedade anónima é detida a cem por cento pela SGPS portuguesa; e esta é, por sua vez, detida a cem por cento pela sociedade francesa. Por esse motivo a Impacto Azul veio demandar, “na sua qualidade de sociedades-mãe”, as outras duas sociedades (a portuguesa e a francesa) “em conformidade com a responsabilidade solidária das sociedades-mãe pelas obrigações das suas filiais, como prevista no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais, em conjugação com o artigo 491.º deste mesmo código.”3 Mas a sociedade francesa contrapôs com o artigo 481.º, n.º 2, que, nos seus dizeres iniciais, introduz uma autolimitação espacial do regime das coligações de sociedades: “O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal”. Ao que a Impacto Azul replicou que esta diferença de tratamento conferida a uma sociedade estrangeira, assim excluída do regime dos grupos e portanto da responsabilidade solidária e ilimitada aí prevista, seria uma violação do artigo 49.º

derlassungsfreiheit – Zugleich Rezension der Entscheidung EuGH, Rs. 186/12 (Impacto Azul)”, in ZGR, 2014, pp. 45 ss.; P IERRE-HENRI C ONAC, “Note sous Cour de justice de l’Union européene (ch. 9), 20 juin 2013, n.º C-186/12, Impacto Azul Lda c/ BPSA 9 – Promoção e Desenvolvimento de Investimentos Imobiliários SA, Bouygues Imobiliária – SGPS Lda, Bouygues Immobilier SA, Aniceto Fernandes Viegas, Óscar Cabanez Rodriguez”, in Revue des Sociétés, n.º 3, 2014, pp. 179 ss.; M ATTHIAS L EHMANN, “EuGH: Kein Anspruch aus Niederlassungsfreiheit auf konzernrechtliche Haftung auslä ndischer Muttergesellschaft”, in LMK, 2013, p. 352735; JESSICA SCHMIDT, “Die EuGH-Entscheidung “Impacto Azul” – Der Impakt der Niederlassungsfreiheit auf das nationale Konzernrecht”, in GPR, n.º 1, 2014, pp. 40 ss. 3 Impacto Azul, C-186/12 (2013.06.20), n.º 11. 412 Rui Pereira Dias III Congresso DSR (2014): 411-424

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do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – isto é, tratar-se-ia de uma violação do direito de estabelecimento. Assim, a questão que, em reenvio prejudicial, o juiz português colocou ao Tribunal de Justiça foi: “A exclusão da aplicação do regime previsto no art. 501.º às empresas sedeadas noutro Estado-Membro, por força do regime previsto no art. 481.º, n.º 2, é contrária ao direito [da União], designadamente ao artigo 49.º do TFUE, de acordo com a interpretação que a tal normativo vem sendo dada pelo Tribunal de Justiça”?4 A resposta do Tribunal sediado no Luxemburgo não viria a surpreender, atendendo ao modo imperfeito como a pergunta foi formulada: não, não é contrária ao direito da União. A liberdade de estabelecimento do artigo 49.º TFUE não se opõe “a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui a aplicação do princípio da responsabilidade solidária das sociedades-mãe para com os credores das suas filiais a sociedades-mãe com sede no território de outro Estado-Membro”5.

2. Crítica: a aplicabilidade intraeuropeia do regime dos grupos Sublinhe-se desde já, vivamente, como esta última asserção que serve de base ao arrazoado do TJUE não corresponde ao direito vigente em Portugal. E é possível afirmá-lo com tal ênfase porque, na ausência de jurisprudência nacional e em face das três opiniões que sobre este ponto se vão grosso modo desenhando na nossa doutrina, duas delas, entre as quais a que subscrevo, dão fundo à crítica a que dou voz. Referirmo-nos a três opiniões é naturalmente uma simplificação, mas podemos, com efeito, ressalvando as particularidades de cada contributo, dizer que a abordagem dos societaristas portugueses a este problema, perante a autolimitação espacial do artigo 481.º, n.º 2, e a introdução, em 2006, da respetiva alínea d)6, os vem dividindo entre: (i)7 os que sustentam o pleno afastamento dessa autolimitação, por vezes convocando argu-

Id., n.º 15 (parêntesis no original). Id., n.º 39. 6 “A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal.” 7 A RMANDO TRIUNFANTE , Código das Sociedades Comerciais – Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 520-521; L. A. C ARVALHO FERNANDES/JOÃO L ABAREDA , “A situação dos accionistas perante dívidas da sociedade anónima no Direito português”, in DSR, n.º 4, 2010, p. 41; A NA P ERESTRELO DE OLIVEIRA , “Questões avulsas em torno dos artigos 501.º e 502.º do Código das Sociedades Comerciais”, in RDS, IV, 2012, p. 873. 4 5

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