A RESPONSABILIDADE ÉTICA DO ARTISTA NO CINEMA DE TARKOVSKI i (Ensaio) 1

June 4, 2017 | Autor: Katia Mendonca | Categoria: Ethics, Contemporary Art, Cinema Studies
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A RESPONSABILIDADE ÉTICA DO ARTISTA NO CINEMA DE TARKOVSKIi (Ensaio)1

Kátia Mendonça Andrei Tarkovski é herdeiro da tradição legada por Tolstoi, Dostoievski e Soloviev, para os quais a arte é uma metalinguagem que tem por função a ligação com Deus, o entendimento mútuo e a comunhão entre os seres humanos. Assim, na medida em que uma realidade emocional brota do contato com a arte, esta tem uma dimensão ética inalienável da dimensão estética. O cinema – arte específica do mundo desencantado porque apoiada em uma técnica própria da modernidade – teria na sua visão possibilidades redentoras e, em uma visão salvífica distinta da Walter Benjamin, para ele a técnica não estaria a serviço de um projeto ou utopia políticos, mas antes da salvação da alma humana. Nos limites deste artigo discutiremos como Tarkovski aborda as questões do papel ético da arte e da responsabilidade ética do artista.

Palavras-chave: ética, responsabilidade, Tarkovski, artista, arte.

ABSTRACT Andrei Tarkovski is heir of the tradition bequeathed by Tolstoy, Dostoevsky and Soloviev, to whom art is a metalanguage that has the functions of connection with God, mutual understanding and communion among human beings. To the extent that an emotional reality springs from contact with art, this has an ethical dimension inalienable of the aesthetic dimension. The cinema is a specific art of disenchanted world because supported by a specific technique of modernity. The technique here, as for Walter Benjamin, has redemptive possibilities, but in a distinct salvific vision, for Tarkovski the technique will not serve the political utopia, but will serve the salvation of the human soul. Within the limits of this article will discuss the Tarkovski’s approach of the problems of ethical and social role of art and of ethical responsibility of the artist. Key-words: ethics, responsibility, Tarkovski artist, art.

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Trabalho apresentado no Avanca Cinema International Conference 2014, em Avanca, Portugal, com o apoio da UFPA/PROPESP/FADESP/PIAPA e do CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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Introdução Somos cegos, simplesmente não enxergamos nada… (Otto, personagem de “O Sacrifício” de Tarkovski)

O que tem Andrei Tarkovski a nos dizer hoje acerca da responsabilidade ética do artista e da arte em meio à profusão de tecnologias e de imagens, em meio ao espetáculo e à crescente perda da sensibilidade estética atrelada ao vazio espiritual da sociedade contemporânea? Que sociedade é essa para quem Tarkovski fala e de onde ele fala? Tarkovski fala de um mundo desencantado onde o sentido da vida foi perdido, para lembrar o diagnóstico weberiano. Tarkovski fala para este mundo e fala apesar dele. Antes de tudo, seu viés se incorpora à visão do mundo em que a arte tem uma dupla dimensão, estética e ética, e sendo ética é também social, pois o ético – na medida em que o homem vive em coletividades – não se reduz de modo algum aos limites da relação intersubjetiva, mas diz respeito também ao coletivo e ao seu imaginário social. A arte é uma dimensão do imaginário social e este não está solto no ar, mas, sempre se articulará com o que Bronislaw Backzko chama de “comunidade de imaginação” (Baczko, 1984, Mendonça, 2002): conjunto de valores, percepções, sentimentos expressos simbolicamente e que orientam as coletividades. Como dimensão do imaginário social, é inegável que a arte, além de expressar a cultura e as condições histórico-sociais específicas, nas quais foi criada e onde se encontra inserido o artista, irá contribuir para forjá-las, sendo ao mesmo tempo instituinte e instituída (Castoriadis, 1982) de comportamentos e valores sociais, ou como aponta Edgard Morin, em se reportando à arte cinematográfica, esta tem a capacidade de condicionar a personalidade e a civilização humanas, fazendo a essência humana penetrar na máquina e penetrando na essência humana, modelando-a. (Morin, 2001, p.193). A consciência desse poder de construção do imaginário é que está a nosso ver por trás do pensamento de Tarkovski acerca de temas cruciais como o da

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responsabilidade ética do artista e o do sentido da arte. Mas essa é uma consciência que nasce de uma cultura que ancestralmente vem, pela tradição bizantina e pela tradição literária, sacralizado a arte, dotando-a de sentido, vendo o mundo pelos olhos da iconografia ou, melhor, pelos olhos de Andrei Rublev, Sem a percepção dessa dimensão cultural-religiosa torna-se difícil compreender as ideias e o cinema de Tarkovski que nos arrebata, como as grandes obras de arte que são “como tempestades, escancarando as portas de nossa percepção, pressionando

a

arquitetura

de

nossas

crenças

com

seus

poderes

transformadores” (Steiner, 2006, p.1). Transformadoras e destruidoras do que se pensa ter dito e sabido, das certezas e das ilusões, porque se referem à condição humana mesma e ao mais profundo da alma e do coração humanos.Tentando uma aproximação desse universo este ensaio se constitui de três partes: a primeira aborda a questão da forma: entre a desrealização e a espiritualização; a segunda aborda o tema da responsabilidade ética do artista e por fim o convite a uma hermenêutica do texto que é o testemunho de Tarkovski.

A questão da forma: entre a desrealização e a espiritualização

À questão da crítica da forma na arte moderna se dedicará Ortega y Gasset para quem a arte não apenas não mais representa, mas chega até a deformar o real. O artista busca o seu prazer e não o da plateia e neste processo a purificação da arte resultará em uma arte para artistas e não para o público. A expressão desrealização da arte se refere ao desencantamento da arte e do próprio ofício do artista, significando que ela não mais tem o caráter salvífico que tinha até então, que não aborda mais os grandes temas e questões que angustiavam e conduziam a humanidade, se perdendo no chão das banalidades. Ainda assim, a crítica orteguiana mantém o foco na forma e seu impacto sobre a cultura, pois se da ininteligibilidade nasce o prazer estético para o artista, para o receptor nasce um sentimento de humilhação, caminho a que chegou a desumanização da arte(Ortega y Gasset, 2008, p. 43, Mendonça, 2013a). Anos mais tarde, Ernesto Sábato irá questionar o que ele chamou de pensamento falacioso de Ortega y Gasset: “para Ortega, por ejemplo, la deshumanización del arte está probada por el divorcio existente entre el artista y su público. No

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advirtiendo que pudiera ser exactamente al revés, que no fuera el artista el deshumanizado, sino el público”. (Sábato, 1963, p.56).

Ora, se para Ortega y Gasset a de-forma-ção é uma questionável desrealização, para Kandinsky, pelo contrário, ela é válida desde que expresse o que ele designa por “lei da necessidade interior”. A arte de Kandinsky é abstrata, ou no olhar orteguiano, desrealizada, porém, a abstração nele busca dar vazão ao sentido da vida do artista. Criticando o materialismo que ao se sobrepor à criação artística faz dela uma simples regra utilitária a serviço das ambições materiais do artista e do mercado, Kandinsky busca um sentido espiritual para a arte, enfatizando o fato de que é justamente em momentos de crise espiritual da sociedade que a arte, premonitoriamente, cria novas expressões oriundas do fato do artista, quando o exterior se degrada, voltar-se para o seu interior: Cuando la religión, la ciencia y la moral – esta última en virtud a la labor destructiva de Nietzsche- se ven sacudidas, y sus bases exteriores vaticinan el derrumbre, el hombre desvía su atención de lo exterior y se concentra en sí mismo”[...]. En los períodos de ideas materialistas, y como

consecuencia

dellas,

de

ateísmo

y

fines

exclusivamente prácticos, que entumecen a un alma abandonada, [...] el lazo existente entre el arte y el alma sobrevive como anestesiado. (Kandinsky, 2003, p. 41 e p. 121).

É certo que se a forma expressa a crise espiritual, ao mesmo tempo, a ela pode induzir. Desligando-se do religioso no afã de obter a perfeição formal a arte perdeu o contato com o transcendente e torna-se desencantada, perdeu o mistério e a possibilidade de ligação com o Absoluto. A arte ocidental a partir do século XVIII investe cada vez mais, e de modo inapelável, na ruptura entre conteúdo e forma até chegar à abstração pura, sendo, segundo Evdokimov, “uma arte cerebral que não busca o sentido, ou o mistério do destino, mas a função, a relação, a dependência” (Evdokimov, 1960,p. 7). O artista buscará o

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transcendental nas linhas planas e nos círculos, nas formas puras como o fez Kandinsky (que, no olhar crítico de Evdokimov, é portador um “misticismo exangue”). Perdendo o sentimento do religioso

o artista

beira o vazio, o

desespero e a morte. Ortega y Gasset, Sábato e Kandinsky ressaltam o caráter doentio da sociedade moderna ou, como escreveu Gauguin a Strindberg, "si nuestra vida está enferma también ha de estarlo nuestro arte; y sólo podemos devolverle la salud empezando de nuevo, como niños o como salvajes... Vuestra civilización es vuestra enfermedad".(Sábato, 1963,p. 84). Ora, Tarkovski se inscreve em uma vertente crítica que percebe esta enfermidade, mas que antes de se prender à questão da forma busca os fundamentos espirituais do caminho que conduziu a civilização à doença e que levou a arte ao gigantesco processo de perda de sentido cujas raízes são anteriores às técnicas de reprodução criadas no final do século XIX. A questão, assim, não reside para Tarkovski na forma, mas, no fato de que a arte e o artista moderno não têm nenhum comprometimento ético ou moral em suas determinações porque alijados estão eles do Absoluto. O artista contemporâneo busca unicamente seu prazer pessoal e sua dor é também pessoal, não consegue vislumbrar um horizonte mais além que confira sentido à sua vida e à sua obra. Em Tarkovski, reencontramos a sociedade e a cultura bizantinas no qual a relação entre forma e conteúdo atinge a perfeição no ícone sagrado. Ora, se a arte do Ocidente se pretende religiosa ela na verdade ela não tem nada de sagrado como diz Evdokimov (1960, p. 3). É o ícone que porta o sagrado posto que subordinado está ao transcendente e não ao gosto do artista. Esta perspectiva influencia o cinema de Tarkovski e sua concepção de imagem recebe clara influência de Pavel Florensky, para quem a forma icônica, mesmo que aparentemente distorcida, porque partindo de uma perspectiva invertida, é na verdade expressão da Sophia (Sabedoria) celeste que se realiza na terraiiiii. Não há formas vazias e sem sentido em Tarkovski. O seu cinema é uma espiritualização da forma que brota da espiritualização do artista. Nele a arte não está à beira do caos e do vazio porque ele, o artista, está ligado ao mistério do Absoluto. A título de ilustração lembremos um comentário de Erland Josephson, ator principal de O Sacrifício, acerca dele:

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Tarkovski não era um homem misterioso, mas sim um homem em contacto com um mistério. Se os filmes de Bergman são um desafio para os sonhos do homem, para o inconsciente. Tarkovski desafia a eternidade. Tinha uma personalidade muito rica e complicada, mas era aberto e amigável e jamais manipulava os atores. O máximo que me dizia se não gostava de um plano era uma queixa tímida ... "Como a vida é estranha, Erland ', e eu sabia que algo estava errado. Foi muito inspirador para trabalhar com ele (...)” (Josephson, 2002).

A responsabilidade ética do artista

Precedendo as questões sobre a relação entre forma e conteúdo, há em Tarkovski a percepção da íntima ligação entre a estética e uma ética ancorada e inspirada por uma religiosidade e isso se inscreve em uma realidade que extrai sua força da tradição cultural-religiosa que marcou profundamente o campo das artes na Rússia. Em meio a essa tradição de ligação entre as dimensões ética e estética, separadas no Ocidente em razão do percurso da razão e do esclarecimento, temos uma vertente crítica importante, embora esquecida, que provem dos artistas e não dos filósofos. Nela, encontramos Tolstoi, para quem, na contramão de Kant, a arte, antes que mero objeto de prazer estético é um “meio de intercâmbio humano”. Para ele, cada obra de arte faz com que o receptor ingresse em um certo tipo de comunhão com aquele que a produziu e com todos aqueles que, simultaneamente ou antes ou depois dele, receberam ou irão receber a mesma impressão artística. A arte “serve para unir as pessoas” em uma “comunhão pelos sentimentos”. A atividade da arte se baseia na capacidade que as pessoas têm de serem contagiadas pelos sentimentos de outras pessoas (Tolstoi, 2002, p. 74).

Essas pessoas que rejeitaram

toda

arte

estavam

obviamente erradas porque rejeitaram o que não pode ser rejeitado



um

dos

meios

mais

necessários

de

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comunicação, sem o qual a humanidade não pode viver. Mas não estão menos erradas as pessoas de nossa civilizada sociedade europeia, de nosso círculo e de nossa época, ao tolerar toda arte, desde que sirva à beleza - isto é, desde que dê prazer às pessoas. (Tolstoi, 2002, p. 86)

Para Tolstoi, os artistas da Idade Média que compartilhavam com as massas populares a mesma religião enquanto transmitiam através da arquitetura, da escultura, da pintura, da música, da poesia e do drama, os sentimentos e disposições que vivenciavam, “eram verdadeiros artistas, e sua atividade, baseada no mais alto entendimento possível para aquele tempo e partilhada por todos, ainda que apareça baixa para nossa época, era, entretanto, arte verdadeira, comum a todo povo” (Tolstoi, 2002, p. 85). Desse modo, “a arte não é um prazer, consolação ou divertimento, é algo grandioso. Ela é um órgão da vida da humanidade, que transmuta a consciência racional das pessoas em sentimentos” (Tolstoi,2002, p. 77). Tolstoi tem uma clara percepção da privilegiada dimensão ética e do alcance social da arte e de suas possibilidades para a construção de relações de violência ou de paz: “a arte deve eliminar a violência e somente ela pode fazer isso. A arte deveria fazer de tal forma que os sentimentos de fraternidade e amor ao próximo, hoje acessíveis a poucos, tornem-se habituais, um instinto para todos” (Tolstoi, 2002, p. 249). O propósito da arte de nossa época consiste em transferir do campo da razão para o do sentimento a verdade de que o bem-estar das pessoas reside na sua união e no estabelecimento do “Reino de Deus”– que para ele é o mais alto objetivo da vida humana. Em oposição a Kandinsky, Tolstoi critica a forma artística que, incompreensível, é apropriada apenas pelas classes cultas e a abastadas. Isso não é arte, é antes uma “perversão”, nas suas palavras (Tolstoi, 2002, p. 233) que conduz à barbárie e à selvageria as classes abastadas de onde ela provem; leva ao desperdício da mão de obra de trabalhadores que se ocupam, segundo ele, nessa “coisa desnecessária”. Essa arte-divertimento, segundo Tolstoi, permite ainda que os ricos vivam de modo não natural e contrário ao humanitarismo professado por eles mesmos, buscando ocupar a falta de sentido de suas vidas com o desregramento.

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Outro efeito identificado por Tolstoi diz respeito à dimensão ético-social de uma arte que produz confusão “nas ideias das crianças e do povo em geral” (Tolstoi, 2002, p. 230), confusão essa que diz respeito aos valores sociais privilegiados pela mesma, que antes de o bom e o bem, passa a destacar outros tipos de heróis muito distantes dos valores agregadores de uma sociedade. Aqui, a crítica de Tolstoi é verdadeiramente profética, pois escrita no século XIX não imaginava como a relação da arte com a cultura de massas iria contribuir para a quebra de valores no mundo contemporâneo e para a anomia social:

E então essas crianças e homens simples veem subitamente que, ao lado daqueles que são elogiados, homenageados e recompensados por sua força física ou moral, existem também aqueles que são elogiados, glorificados e recompensados em escala ainda maior do que os heróis da força e da bondade, simplesmente porque cantam bem, escrevem poesia ou são bons dançarinos. Eles veem que cantores, escritores e dançarinos ganham milhões, que recebem mais homenagem que os santos – e ficam perplexos. (Tolstoi, 2002, p. 233).

Como não nos lembrarmos de suas palavras quando a realidade do chamado “mercado da arte” lança milhões de euros, ás vezes em uma única obra, quando no mundo milhões e milhões de pessoas passam fome? Tolstoi causa desconforto na medida em que chama atenção para o papel moral da arte, questão tomada como aberração em um mundo cuja vida perdeu o sentido a tal ponto de a descrença ser seguida explicitamente pelo cinismo e pela indiferença. Esta é hoje a questão central, e não o ateísmo, como era no tempo dele e de Dostoievski. Mundo onde o artista não tem compromisso com nada além de si mesmo e de sua tarefa, em atitude bem semelhante a dos dirigentes de campos de concentração nazistas que colocavam orquestras compostas por músicos judeus nas estações de trem a fim de abafar os gritos que vinham dos comboios que passavam cheios de prisioneiros rumos aos campos de extermínio. Como Tolstoi, seu contemporâneo Soloviev destacará que ao perder o antigo conteúdo religioso da arte, os artistas se tornam escravos da forma (seja copiando a

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realidade, seja abstraindo-a) e da moda. Sendo assim, o artista renuncia a uma ação moral no mundo, impossível de ocorrer se desligado está ele de Deus. (Soloviev, 2004, p. 92). Esta ação moral tem seu expoente máximo em Dostoievski, influência decisiva sobre Tarkovski, ao mesmo tempo profeta e clínico da crise espiritual do homem moderno: “a arte, porém, não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade, como fez Dostoievski, o primeiro a expressar de forma inspirada o mal da época”. (Tarkovski,1998, p. 114).E será Dostoievski que, como Tolstoi, abordará a complexa relação entre a beleza, o bem e o mal. Dimitri Karamazov indica esse mistério da disjunção entre forma e conteúdo. Porque a sensualidade é uma tempestade e até mesmo algo mais. A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas. Sou pouco instruído, irmão, mas tenho pensado muito nessas coisas. Quantos mistérios acabrunham o homem! Penetra-os e volta intacto. Assim a beleza. Não posso tolerar que um homem de grande coração e de alta inteligência comece pelo ideal da Madona e venha a acabar no de Sodoma. Mas o mais horrível é, trazendo no seu coração o ideal de Sodoma, não repudiar o da Madona, arder por ele como nos seus jovens dias de inocência. Não, o espírito humano é demasiado vasto, gostaria dê restringi-lo. O diabo é quem sabe de tudo. O coração acha beleza até na vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da imensa maioria. Conheces esse mistério? É o duelo do diabo e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha (Dostoievski, 1970, p. 113).

Dois dos mais densos personagens da literatura de Dostoievski, antípodas um ao outro em termos morais, Príncipe Míchkin, de O Idiota, e Stavrogin, de Os Demônios, são belos. Ambos são dois tipos ideais construídos por Dostoievski para dar conta desse mistério: o da beleza ora vinculada ao bem, ora ao mal. Quando em O idiota se levanta a questão de que “a beleza

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salvará o mundo”, certamente estamos diante do ideal cristão de beleza nutrido por Dostoievski de que Míchkin e Aliocha Karamazov são exemplos, pois será essa a beleza que salvará o mundo e não a do Anticristo. É essa perspectiva que também orienta Tarkovski, pois a beleza nele se encontra vinculada à verdade e à fé:

O belo oculta-se aos olhos daqueles que não buscam a verdade, para os quais ela é contra-indicada(...) O artista, porém, não pode ficar surdo ao chamado da beleza; só ela pode definir e organizar sua vontade criadora, permitindo-lhe, então, transmitir aos outros a sua fé. Um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego. (Tarkovski, 1990, p. 48-49).

Em contato com essa tradição crítica do século XIX, Tarkovski, se aproximará de conclusões que opõem a razão à criação, a filosofia à arte. O cinema é uma “apelo à ultrapassagem do logos” (Governatori, 2002, p. 17) pela arte, portadora que é esta de uma “irracionalidade redentora” (Governatori, 2002, p. 15) e é o artista, e não o filósofo com seus conceitos limitadores, quem descobre a verdade. É assim que o cinema de Tarkovski rejeita o intelectualismo e racionalidade do cinema de Eisenstein, assim como a vulgaridade e oportunismo do cinema comercial, pois, ao final e ao cabo, qual a diferença entre o cinema ideológico do primeiro e o do segundo ? Em verdade, ambos são instrumentais orientados pelo objetivo concreto de manipulação da mente do expectador. Para Tarkovski, pelo contrário, as obras primas nascem da luta do artista para expressar seus ideais éticos. E o artista se expressa criando a imagem e através da imagem pode ocorrer a relação com Deus. Por meio da imagem, “mantêm-se uma consciência do infinito, o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria” (Tarkovski, 1998, 40). Deste modo, para ele, como para Tolstoi, a grande função da arte é a comunicação, uma vez que “o entendimento mútuo é uma força a unir as pessoas, e o espírito de comunhão é um dos mais importantes aspectos da criação artística” (Tarkovski, 1998, 42). É a noção de comunhão que dá sentido à arte que na verdade é uma metalinguagem com a

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ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si e “isso nada tem a ver com vantagens práticas, mas com a concretização da ideia de amor, cujo significado encontra-se no sacrifício” (Tarkovski, 1998, 43). Somente assim é que a arte pode levantar os grandes temas da humanidade, os quais estão presentes na obra de Tarkovski: paz, bem, comunhão, fraqueza e finitude dos homens:

A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor ideias, difundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltarse para o bem. (Tarkovski, 1998, p. 49).

Ao dizer isso Tarkovski aponta a fragilidade da passagem do homem pela terra, mas, ao mesmo tempo aponta para a vida eterna que surge através das inúmeras imagens de Cristo e da sua presença permanente em todos os seus filmes. Sua ética encontra-se sempre ancorada nesta percepção do Absoluto, na convicção de que há um além e, por conseguinte, na certeza da presença de Deus. Logo, é sob esta perspectiva que nele a dimensão ética é inseparável da estética. A forma pode vir a provocar reações catárticas que conduzam a alma humana para o mal ou para o bem: “a arte tem apenas a capacidade, através do impacto e da catarse, de tornar a alma humana receptiva ao bem” (Tarkovski, 1998, p. 55). Isso se dá na medida em que uma realidade emocional brota do contato com a arte e, em particular, isso ocorre com o cinema:

Um filme é uma realidade emocional, e é assim que a plateia o recebe — como uma segunda realidade. Por esse motivo a concepção amplamente difundida do cinema como um sistema de signos parece-me profunda e essencialmente errada. Percebo uma premissa falsa na própria base da abordagem estruturalista. 1998, p. 211).

(Tarkovski,

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De difícil digestão para os críticos e artistas contemporâneos adeptos da arte pela arte -- da arte unicamente como experiência estética expressão do individualismo do artista, autocentrado, girando em torno de si mesmo - a crítica de Tarkovski apela para a responsabilidade ética do artista, para o sentido moral da arte e para o seu significado social. E mais uma vez destaco, isso só é possível, com a profundidade com que apresenta a questão, porque encontramos nele uma experiência de fé, como a do seu personagem Stalker...

A mais convincente das artes requer uma responsabilidade especial por parte daqueles que trabalham com ela: os métodos através dos quais o cinema afeta seus espectadores podem ser utilizados muito mais fácil e rapidamente para sua degradação moral e para a destruição de suas defesas espirituais do que os meios das formas de arte antigas e tradicionais. (Tarkovski, 1998, p. 226).

Para Tarkovski, uma vez que a arte é uma expressão das aspirações e das esperanças humanas, ela tem um papel tremendamente importante a desempenhar no desenvolvimento moral da humanidade mergulhada hoje no vazio. E é ao vazio espiritual e solidão do homem moderno que se dirigem tanto a sua crítica quanto a sua filmografia:

Eu quero enfatizar minha própria crença de que a arte deve trazer em si a aspiração humana ao ideal, deve ser uma expressão da sua caminhada em direção a ele, de que a arte deve oferecer esperança e fé ao homem. E, quanto mais desesperançado for o mundo na versão do artista, maior talvez a clareza com que devemos enxergar o ideal que se opõe a ele — de outro modo seria impossível viver! (Tarkovski, 1998, p. 231).

De todas as formas de expressão estética será o cinema, segundo ele, que lançará na pessoa do artista, o diretor, o maior peso em termos de

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responsabilidade. Ora, na literatura, para usarmos a expressão de Ricoeur “ o texto cresce com o leitor” e este tem seu horizonte de compreensão marcado por sua experiência e pelo seu caráter, ou seja, o horizonte hermenêutico da literatura tem como limite a palavra inscrita no papel e será esta que o leitor irá ver e ler preparado pela sua experiência. Assim, o leitor participa da autoria da obra (Tarkovski, 1998, p. 213) e o autor perde o controle do texto porque, embora implique em uma realidade emocional, a literatura é uma arte mediada pelos signos gráficos. Mas o cinema é totalmente distinto:

O cinema é a única forma de arte em que o autor pode se considerar como o criador de uma realidade não convencional, literalmente, o criador do seu próprio mundo. No cinema, a tendência inata do homem para a autoafirmação encontra um dos seus meios de realização mais completos e diretos. Um filme é uma realidade emocional, e é assim que a plateia o recebe — como uma segunda realidade. Por esse motivo a concepção amplamente difundida do cinema como um sistema de signos parece-me profunda e essencialmente errada. Percebo uma premissa falsa na própria base da abordagem estruturalista. Estamos falando sobre os diferentes tipos de relação com a realidade sobre os quais cada forma de arte fundamenta e desenvolve seu sistema específico de convenções. Neste aspecto, coloco o cinema e a música entre as artes imediatas, já que não precisam de linguagem mediadora. (Tarkovski, 1998, p. 211, grifos do autor). (...) Obviamente pode-se questionar se o que aparece na tela é "verossímil" ou não, mas, no cinema, o espectador nunca perde a sensação de que a vida que está sendo projetada na tela está "real e verdadeiramente" ali. (Tarkovski, 1998, p. 214).

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O uso do tempo e do espaço pelo diretor de cinema têm um impacto emocional imenso sobre o receptor, daí Tarkovski ressaltar que o processo de dirigir uma película é, literalmente, o ato de “separar a luz das trevas e a terra das águas”( Tarkovski, 1998, p. 212). O impacto de uma arte sem mediações sobre corações e mentes pode ser devastador, pois a experiência do diretor é transmitida ao “espectador vívida e imediatamente,com precisão fotográfica, de modo que as emoções deste último tornam-se semelhantes às de uma testemunha, se não realmente às de um autor”(Tarkovski, 1998,p. 212). E a grandes tentações do diretor residem na possibilidade de ele se crer um demiurgo: são “tentações que podem levá-lo bem longe na direção errada” (Tarkovski, 1998, p. 212).

Façamos aqui uma brevíssima digressão sobre o impacto da técnica de produção de imagens (Mendonça, 2013) sobre o comportamento humano e social e lembremos das percepções de Walter Benjamin(1983) e de Kracauer (1960) acerca do impacto da técnica cinematográfica sobre a consciência humana. No início do século XX esta questão centrava-se nos efeitos do cinema e da fotografia nas relações sociais e na cultura. Benjamin estabelece um diálogo importante com Adorno nesse sentido. Benjamin indica que a obra de arte perde sua característica aurática suprimida pela banalização da cópia da fotografia e do cinema, que criam um novo padrão cultural, ou o que ele chamou de cultura choqueiforme, porque diferentemente da reflexão ou da fruição com que se posicionava diante da obra de arte aurática, o homem se vê submetido a uma regressão no sentido da visão e na percepção provocada pelo choque de imagens incessantes despejadas sobre ele. Porém, ainda que prefigurando no conceito de choque o futuro da sociedade de espetáculo, como depois abordada por Debord (1992), há em Benjamin um otimismo quanto às potencialidades libertadoras das então novas tecnologias a serviço da arte e do seu papel na educação para o socialismo (que era o real foco do interesse benjaminiano). Tal sentimento não foi compartilhado, à época, por Theodor Adorno (1983), o qual, em uma espécie de resposta a Benjamin, ressalta o caráter de barbárie, antes que de progresso, das tecnologias culturais que conduziriam a uma regressão nos sentidos humanos. Se aqui Adorno levanta a questão da regressão da audição na sociedade marcada pela indústria cultural, Benjamin (1983) o faz com

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relação ao olhar, que não reconhece mais a aura obra de arte, esvaziada que foi esta pelos meios de reprodução técnica. A questão da perda da aura claramente desbordará a questão da criação e da recepção da obra de arte para atingir os diversos domínios da vida e do imaginário social, também eles sem aura iv . Ligado ao círculo de Benjamin, Kracauer (1960) também enfatizará os impactos psíquicos do cinema sobre o espectador na medida em que faz o mundo penetrar diante dos seus olhos. Se é verdade que Benjamin e Tarkovski percebem os potenciais perigos de regressão e de redenção provocados pela imagem, há, contudo, diferenças marcantes entre suas visões. O cinema – arte específica do mundo desencantado porque apoiada em uma técnica própria da modernidade –, tem sim possibilidades redentoras para ambos, porém, a visão salvífica de Tarkovski é radicalmente distinta da de Walter Benjamin, mergulhado este nos devaneios do materialismo histórico. Para Tarkovski a técnica cinematográfica não estaria a serviço de um projeto ou utopia políticos, como para Benjamin, mas antes estaria a serviço da salvação da alma humana. Benjamin, por seu turno, caminha junto com a intelectualização e ideologização típicas do “cinema de montagem” como feito por Eisenstein, algo muito criticado por Tarkovski (1990, p. 134). A noção benjaminiana de aura também distante está da sacralidade icônica que inspira Tarkovski, pois tendo como chão o materialismo dialético e a critica ao capitalismo Benjamin não consegue escapar do campo da fruição elitista e intelectualista da arte que inspira a sua noção de aura. Tarkovski chama a atenção – e isso é absolutamente decisivo para nós no século XXI- para o poder emocional das imagens (algo também percebido por Benjamin e Kracauer) , mas destaca, por isso mesmo, a enorme responsabilidade ética do diretor. Essa é uma discussão e percepção distantes do universo benjaminiano orientado para o exterior da experiência humana, para o universo intelectual. Ao contrário, Tarkovski é orientado pela experiência interior e espiritual no sentido cristão da palavra. Outro aspecto a destacar é que, embora também critique o cinema de consumo, a posição de Tarkovski mui distante está da noção de “indústria cultural” de Adorno, ou da crítica latino-americana de Martin-Barbero, Canclini e Orozco, assim como dos recentes Anders, Flusser, Kamper, Kittler e Hartmann. Simplesmente tais análises, ricas em academicismo erudito, muito longe estão

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do universo tarkovskiano, porque muito longe estão da experiência

da

experiência espiritual buscada pelo diretor russo. Neste sentido, como criticas que brotam do solo intelectual iluminista, as conclusões desses acadêmicos acabam simplesmente por se atolar, sem conseguir escapar, nas aporias da razão instrumental que criticam.

Devido à concorrência com o cinema comercial, um diretor tem uma responsabilidade particular para com seus espectadores, ou seja, por causa do poder único que o cinema tem de afetar uma plateia — na identificação da tela com a vida — o filme comercial mais insignificante e irreal exerce sobre o espectador privado de senso crítico e instrução o mesmo efeito mágico que uma pessoa de bom gosto irá obter de um verdadeiro filme. A diferença trágica e cruel é que, se a arte pode estimular emoções e ideias, o cinema de consumo, graças ao seu efeito fácil e irresistível, elimina irrevogavelmente qualquer traço de ideias ou sentimento. As pessoas deixam de sentir qualquer necessidade de beleza ou de espiritualidade, e consomem os filmes como se fossem garrafas de Coca-Cola. (Tarkovski, 1998, p. 216). O contato entre o diretor de cinema e o público é exclusivo do cinema, no sentido de que comunica uma experiência impressa na película através de formas intransigentemente afetivas, e, por isso, convincentes. O espectador sente necessidade destas experiências substitutivas como compensação por aquilo que ele mesmo perdeu ou que lhe faltou; vai em seu encalço numa espécie de "busca do tempo perdido". E, em que medida essa experiência recém-adquirida será humana, depende apenas do autor. O que é uma responsabilidade enorme! (Tarkovski, 1998, p. 216, grifos do autor).

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Não existe, para Tarkovski, liberdade sem responsabilidade. Aquela é produto desta. A liberdade de criação está estreitamente vinculada ao autosacrifício do artista exigindo um elevado grau de autoconsciência em relação a si mesmo e aos outros. Isto é algo mui distinto da concepção ocidental de liberdade marcada pelo individualismo e pela ausência de responsabilidade:

É curioso notar que Rublev trabalhou dentro dos cânones estabelecidos. Quanto mais tempo vivo no Ocidente mais a liberdade me parece curiosa e equívoca: liberdade para tomar drogas, para assassinar, para cometer suicídio? (Tarkovski,1998, p. 216).

Esta visão é no mínimo inquietante para Ocidente e seu conceito de liberdade. A liberdade em Tarkovski é a liberdade ancorada na fé e no autosacrifício. Essa é a liberdade que encontramos no Stalker que se sacrifica para conduzir os homens à fé em Deus. A Zona nada mais é do que a terrível e incerta, traiçoeira e mutante, experiência da fé. Caminhar pela Zona, ou seja, pela fé, não implica em certezas absolutas, mas antes naquilo que Martin Buber na juventude designou como “estreita aresta”:

Je désirais exprimer par lá que je me tiens non pas sur le haut et large plateau d’un système fait de propositions sûres quant à l’Absolu, mais sur la crête étroite d’un rocher, entre les abîmes, où n’existe aucune securité de science énonçable, mais où l’on a la certitude de la recontre avec ce qui reste voilé. Buber, 1980, p. 92)

O drama da humanidade apresentado por Tarkovski é que ela se mostra indiferente ou não quer pagar o preço do sofrimento e do auto-sacrificio para experienciar a fé. Como o Professor e o Escritor de Stalker, ela prefere ficar em seu mundo de medos e conveniências a entrar no Quarto da fé, pois aceitar entrar nele implica em enorme sacrifício, em passagens traiçoeiras, em equívocos, em enganos, implica na Cruz. Caminhos esses pelos quais o Stalker conduz seus visitantes que, ao final, não querem fazer a passagem para o quarto

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dos desejos. Eles não pagam o preço. As palavras dramáticas do Stalker ao final revelam a grande preocupação e decepção do próprio Tarkovski, (polifônico como seu conterrâneo Dostoievski). Suas palavras finais são proferidas em meio às muitas lágrimas do choro dos inocentes:

STALKER: Se soubessem como estou cansado. Só Deus sabe! E se dizem intelectuais, escritores. Cientistas! A ESPOSA: Calma. STALKER: Não acreditam em nada! Têm o órgão da fé atrofiado. Não precisam dele! (...) Deus que pessoas! A ESPOSA: Calma! Eles não têm culpa. Você tem que ter pena deles e não se zangar. STALKER: Você não viu? Eles têm os olhos vazios! Só pensam em não perder...em vender-se por mais dinheiro! Querem que todo o trabalho do espírito lhes seja pago! Pensam que “nasceram para algum propósito! Que “atendem a um chamado”! Para eles vive-se só uma vez! Como podem tais pessoas acreditarem em algo? A ESPOSA: Calma, pare...Tente dormir. Durma. STALKER: Ninguém acredita. Não somente esses dois. Ninguém! Quem vou conduzir? Jesus! E a coisa mais terrível é ...que ninguém precisa disso. E ninguém precisa daquele Quarto. E todos os meus esforços são inúteis! (Tarkovski,1979)

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Naquele que foi o seu último filme rodado na Rússia, Tarkovski dirige palavras não só para seu povo, mas para o mundo. São palavras dirigidas àqueles que não querem se relacionar com Deus, que não precisam mais da fé porque apostam tudo em seu poder, que na verdade é fraqueza, como diz o Stalker. Tais palavras só tem similar em termos de dramaticidade no cinema de Tarkovski - e, diríamos, no cinema mundial, revelando a grandiosidade de sua obra e de seu testemunho - em seu ultimo filme, O Sacrifício, na passagem da oração do Pai Nosso, certamente uma das mais belas e profundas manifestações do gênio e da sensibilidade humanos. Momento em que o artista surge como o anjo que nos consola no exílio do amor de Deus, mostrando, como o ícone, a Sua face, a ser revelada totalmente no final dos tempos.

ALEKSANDER: Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos daí hoje...não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém... Deus, salve-nos neste momento terrível...Não deixe morrerem meus filhos, meus amigos, minha esposa, Viktor... ...todos que amam o Senhor, todos o que acreditam ou não acreditam no Senhor, porque foram cegos e não tiveram tempo de pensar no Senhor, porque nunca foram realmente infelizes. Salve todos que nesse minuto perdem a esperança, o futuro, a vida, a possibilidade de subjugar os pensamentos ao Senhor, que estão repletos de medo e sentem a aproximação do fim, o medo não por si próprios, mas por seus entes queridos, por aqueles que ninguém pode defender, além do Senhor. Defender porque essa é a ultima guerra, terrível, depois da qual não restarão vencedores, nem vencidos, nem cidades, nem vilas, nem ervas, nem árvores, nem água nas fontes, nem pássaros no céu. (Tarkovski, 2012a, p.135).

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A questão ética em Tarkovski está diretamente relacionada com a experiência de fé. Em seu cinema todas as questões se subordinam a esta, inclusive as de caráter técnico. Sem fé os olhos dos homens são “olhos vazios”, como lamentado por Stalker, e será impossível estabelecerem relações espirituais em profundidade capazes de salvá-los de si mesmos. Precisarão da falsa proteção das leis, da ciência e das armas para sobreviverem. Essa é a profecia de Tarkovski. Esse seu maior legado, herança recebida de Dostoievski, aquele que profetizou o lamento de Stalker.

À guisa de conclusão: o testemunho de Tarkovski.

Para Tarkovski, a arte como meio e como expressão dos sentimentos humanos pode contribuir para uma resistência que, além de ética, seja espiritual, no sentido de um fortalecimento interior que preceda às mudanças rumo à superação da violência social e do vazio existencial em que se encontra o homem contemporâneo. E a vida de Tarkovski foi justamente uma vida vivida em meio às perseguições do regime soviético, às exigências e desvalorização da obra de arte pelo mercado ocidental e à incompreensão dos seus colegas. Porém, foi uma vida devotada a uma concepção de liberdade profundamente ligada ao auto-sacrifício. Logo, profundamente cristã. Em seu cinema reencontramos o sentido da Cruz e da presença de Deus em nossas vidas, mesmo em meio ao sofrimento. No tempo final de sua vida, a força espiritual de Aleksander e de Stalker o acompanham. Lembremo-nos de uma passagem de seu Diário, no final da vida, no hospital quando submetido aos sofrimentos da quimioterapia:

Uma imensa esperança se introduziu no meu coração hoje. Eu não sei como a definir- simplesmente como felicidade. A esperança que a felicidade é possível. O sol brilha pela janela do meu quarto no hospital, mas este sentimento de felicidade não vem de lá. Andriouchka, Lara e a presença do Senhor: eu a sinto. (Tarkovski,1993, p. 413)

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. Não foram palavras vãs que ele usou em Esculpir o Tempo, em suas entrevistas e, finalmente, em seu Diário, precisamente chamado de Martirológio. E este título foi escolhido por ele antes de iniciar a sua escrita, em 1970. Mas porque Martirológio? A evocação dos primeiros cristãos perseguidos pelo império romano se faz presente com toda a força que a narrativa de testemunho é capaz. No Segundo Caderno do Diário, iniciado em 18 de dezembro de 1974, Tarkovski comenta acerca do título Martirológio:” o título pretensioso e mentiroso, mas que fique como uma recordação da minha insignificância indestrutível, movimentada e fútil” (Tarkovski,2012, p. 129). Ora, não se sabe se ele tinha clareza do fato que o documento que é o seu Diário iria se tornar uma peça no corpus, como sua vida e seus filmes, do testemunho de seus ideais, pelos quais morreria. Destaque-se, antes de tudo, que Tarkovski irá praticar através de sua arte uma objeção de consciência a tudo o que lança o homem na alienação em relação ao absoluto, tudo que afasta o homem de Deus. Jamais foi ele um autor político ou um dissidente político, como Václav Havel, por exemplo, que carrega a força da dissidência política e moral em seu trabalho artístico, embora também marcado por uma espiritualidade e pela busca de Deus. O trabalho de Tarkovski enfatiza somente a dimensão espiritual da experiência humana, algo de impossível digestão para o ateísmo ideológico soviético e, hoje, para a indiferença secular do Ocidente. Neste sentido nada mais apropriado do que o termo Martirológio. Lido isso sob o viés de uma filosofia do testemunho, como presente em Jean Nabert e Paul Ricoeur (Nabert,1966, Ricoeur, 2008), vemos que esta tem como premissa o fato que a questão do Absoluto é uma questão dotada de sentido que não se esgota no exemplo ou no signo, mas que requer a “densidade da experiência”. Ora, falar em testemunho exige, portanto, uma posição orientada para o sentido e para o Absoluto:

O vocábulo não se limita a designar o relato de uma testemunha sobre o que viu, mas se aplica a palavras, obras, ações, vidas que, enquanto tais, testemunham, no coração da experiência e da história, uma intenção, uma

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inspiração, uma ideia que vai mais além da história (Ricoeur, 2008, p. 109).

O testemunho não é simplesmente uma narração escrupulosa acerca de algo, mas quem testemunha o faz em favor de, dá testemunho de, como lembra Ricoeur (2008, p. 117), sendo “capaz de sofrer e morrer pelo que crê. Martyr em grego significa o que testemunha e o martírio decorre justamente do ato de testemunhar”. O auto-sacrifício em Tarkovski tem esse sentido profundo: de um ato de testemunho, de um relato feito com sua vida e obra, pois “a testemunha é o homem que se identifica com a causa justa detestada pela multidão e pelos grandes, é quem por essa justa causa arrisca sua vida” (Ricoeur, 2008, p. 117). O testemunho desloca-se então do ato da fala para a ação mesma que faz vir a nossos olhos, que nem sempre conseguem ler, a consagração de um homem a uma causa, e aqui o testemunho “já não significa uma simples narração das coisas vistas. O testemunho é também o compromisso de um coração puro, um compromisso até a morte” (Ricoeur,2008, p. 117). Há além de tudo isso o sentido religioso do testemunho, que como lembra Ricoeur faz irromper a dimensão profética do mesmo, tema que envolve o de martírio pois “todo profeta , na medida em que profetiza contra, é profeta para a vida e para a morte” (Ricoeur, 200, p. 119). A vida e obra de Tarkovski nos convidam ao trabalho hermenêutico sobre o seu testemunho como uma narrativa na qual tempo e memória, nossos e dele, se encontrem. Sua vida sofrida, instigante, profética e dolorosa, espera quem justifique o seu sacrifício e ouça suas palavras, profundamente atuais e necessárias neste século, pois o cinema de Tarkovski é um exemplo de resistência espiritual contra a banalização da arte e da imagem. Sua exortação convoca à responsabilidade individual do homem e do artista:

Parece-me que atualmente o indivíduo se encontra em uma encruzilhada, confrontado com a opção de uma existência fundamentada em um consumismo cego, sujeito ao avanço inexorável da tecnologia e à multiplicação infinita de bens materiais, ou então com a possibilidade de buscar um caminho que conduza à responsabilidade

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espiritual, um caminho que, enfim, pode significar não apenas sua salvação pessoal, mas também a salvação da sociedade como um todo; em outras palavras voltar-se para Deus. Esse é o passo que se transforma num sacrifício, no sentido cristão de auto-sacrifício. (Tarkovski, 1990, p. 246).

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autora é professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Da UFPA - Universidade Federal do Pará; bolsista de Produtividade do CNPQ- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ii Nos limites deste artigo é impossível entrarmos no debate imenso sobre a sophiologia que marca o pensamento russo desde o século XIX.Ver Florensky, Jakim and Gustafson, 1997 e também Florenskii,P.A, 2002. iii Em diversos momentos de seu Diário, Tarkovski evoca Florensky, principalmente nos meses finais de sua vida. Se encontram assim ctações como “’O apanágio de nossa fraqueza e de nossa grandeza, o dom da criação que torna semelhante a Deus, é o espaço-tempo’ (Padre Paul Florenski, L’Iconostase).” . Escrito em seu Diário na noite de 28-29 de janeiro de 1985. (Journal, p.367). Eu dormi tomando dois comprimidos de sonífero. Li Florenski com prazer (Tarkovski, 1993, p. 413).“’A arte é um sonho que se fez carne’ (Florenski)”(20 de abril de 1986) (Tarkovski, 1993, p. 416). iv Acerca da ampliação de sentido da questão aurática, vide: Mendonça,2002 e Rosen, 1996.

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