A responsabilidade tributária do sócio cotista: o fim da autonomia patrimonial?

September 6, 2017 | Autor: Décio Franco David | Categoria: Direito Tributário (Tax Law), Direito Empresarial, Direito Empresarial e Tributário
Share Embed


Descrição do Produto

A responsabilidade tributária do sócio cotista: o fim da autonomia patrimonial? Décio Franco David (FAFIT) [email protected] João Irineu de Resende Miranda (UEPG) [email protected]

Resumo: O presente artigo analisa os aspectos inerentes à responsabilização tributária imputada aos sócios cotistas nos casos de dissolução irregular de sociedades limitadas. Os tribunais pátrios têm subvertido o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pois imputam aos sócios a responsabilidade tributária que pertence exclusivamente à sociedade. Tal prática se fundamenta em interpretação extensiva da norma tributária, contrariando o princípio da estrita legalidade tributária, o que resulta na destruição da autonomia patrimonial da sociedade, a qual é um dos alicerces do direito empresarial. O fundamento utilizado pelos tribunais, além de contrariar de forma grosseira o ordenamento jurídico pátrio, resulta em desincentivo à livre iniciativa, fundamento da República Federativa do Brasil. Palavras chave: Responsabilidade tributária, dissolução irregular, autonomia patrimonial.

The shareholders' tax responsibility: the end of patrimonial autonomy? Abstract: The present article analyses the aspects inherent of the tax responsibility imputed to the shareholders’ in the cases of irregular dissolution of the limited liability company. The Brazilian courts have subverted the institute of disregard doctrine, because impute to the shareholder the enterprise’s tax responsibility. This practice is based on broad interpretation of the standard tax, disagreeing the principle of strict legality tax, what results in the destruction of enterprise’s patrimonial autonomy, which is one of the business law’s foundations. The base used by the courts, besides of counter roughly the Brazilian legal, results in disincentive to free initiative, base of Federative Republic of Brazil. Key-words: Tax responsibility, irregular dissolution,patrimonial autonomy.

1 Introdução O espírito empreendedor do empresário está no cerne do desenvolvimento econômico de uma nação. A abertura de novas empresas representa um importante aspecto da capacidade empreendedora de uma sociedade. Através dos novos empreendimentos geram-se novos empregos, fomenta-se a concorrência e desdobra-se a cadeia produtiva de um setor econômico. No Brasil, entretanto, quatro em cada dez empresas abertas todos os dias encerram suas atividades em até dois anos (informação disponível em . Acesso em 26 jun. 2010). Embora esta alta taxa de desistência deva ser em grande parte atribuída à inexperiência ou à falta de preparo dos novos empresários, é inegável que a pesada carga tributária e o excesso de obrigações fiscais e administrativas impostas pela burocracia estatal contribuem grandemente para esta realidade. Infelizmente, uma tendência jurisprudencial manifestada nos últimos anos tem influído no agravamento desta situação. Esta tendência consiste na responsabilização dos sócios cotistas da sociedade limitada pelas dívidas tributárias desta, quando não ocorreu a dissolução formal da sociedade. Ou seja, alguns julgados vêm entendendo que os sócios cotistas – alheios ao cotidiano da administração da empresa - devem ser coagidos a pagar por obrigações tributárias as quais não deram causa. Este artigo tem por objetivo analisar a fundamentação dos julgados dos tribunais sobre o assunto, de forma a inferir sobre a legalidade do posicionamento adotado por estas decisões. Para tanto, o texto será dividido em três itens. No primeiro item serão estudadas as hipóteses de responsabilização ilimitada dos sócios de uma sociedade limitada, presentes no Código Civil, bem como os efeitos da dissolução irregular da sociedade limitada. No segundo item se buscará responder se a dissolução irregular da sociedade pode constituir-se, por si só, como causa para a responsabilização ilimitada dos sócios, conforme exposto em julgado recente. No terceiro e último item será apreciada outra variação jurisprudencial, a qual afirma ser a dissolução irregular da sociedade um pressuposto para a desconsideração de sua personalidade jurídica. 2 Hipóteses de responsabilidade ilimitada dos sócios na sociedade limitada A responsabilidade dos sócios da sociedade ilimitada está disposta no artigo 1052 do Código Civil, o qual determina que “a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas, quotas (...)”. Na lição de Maria Helena Diniz (2009, p. 332-333), “quotas são parcelas em que está dividido ou representado o capital social”, sendo a subscrição destas quotas que conferem àqueles que ingressam na sociedade a condição de sócios. O conjunto das quotas, sistematizado pelo contrato social, forma o capital social na sociedade limitada. O capital social é, na lição de Rubens Requião (2009, p. 404-405), “a soma representativa das contribuições dos sócios [...] o patrimônio inicial da sociedade”. Sendo, ainda nas palavras do eminente comercialista paranaense “o fundo inicial, o patrimônio originário, com o qual se tornará viável o início à vida econômica da sociedade”. Sua função precípua é a de constituir uma garantir para terceiros, isto é, uma segurança para os credores da sociedade a respeito do patrimônio formado pelos bens ou pelo dinheiro que foram destinados à empresa (REQUIÃO, 2009, p. 408). Estando o capital social corretamente integralizado, ou seja, tendo os sócios contribuído efetivamente com o dinheiro ou os bens que se comprometeram no ato da subscrição das cotas, dispõe o artigo 1052 do Código Civil que sua responsabilidade por dívidas referentes à

sociedade será limitada ao valor de suas cotas. Os sócios só responderão solidariamente por dívidas da sociedade além de suas cotas se, nos termos do artigo 1052 in fine, alguém deixar de integralizar suas cotas no capital social ou se houver diferença no valor estimado pelos bens conferidos à sociedade, nos termos do artigo 1055, §1º do Código Civil. Isto se deve, contudo, ao fato do capital social ser uma garantia àquele que contrata com a sociedade, e de possuir natureza nominal e intangível, sendo, portanto, um pressuposto à limitação da responsabilidade dos sócios. Estando o capital social corretamente integralizado, a responsabilidade limitada dos sócios cotistas está resguardada pelo princípio da autonomia patrimonial da sociedade. Este princípio, ao dispor que os sócios não podem ser responsabilizados pelas obrigações da sociedade, é fundamental para o desenvolvimento da atividade empresarial pois, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 18 e p. 39), “limita a possibilidade de perdas nos investimentos mais arriscados” na medida em que “socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno dos investimentos”. Além das hipóteses mencionadas, os sócios cotistas da sociedade limitada só poderão ser responsabilizados, nos termos do artigo 1080 do Código Civil, por deliberações que contrariem o contrato social ou a lei, quando estas tenham sido expressamente aprovadas por eles. Deste modo, as hipóteses relativas à responsabilização dos sócios cotistas por dívidas da sociedade estão relacionadas à participação destes em um ato ilícito, admitindo-se neste sentido, ainda, a fraude, o abuso de direito e a confusão patrimonial, nos termos do artigo 50 do Código Civil. Tal não ocorre, na maior parte dos casos, quando a sociedade é dissolvida de forma irregular. O termo dissolução pode ser entendido como o ato pelo qual os sócios põem fim à sociedade, mas, para que se entenda o conceito de dissolução irregular, deve-se entender dissolução no sentido do procedimento que deve ser adotado para se extinguir uma sociedade, dividido em três etapas: dissolução strictu-sensu, liquidação e extinção da sociedade (COELHO, 2007, p. 452-453). Em relação ao tema delimitado neste trabalho, será considerada a dissolução irregular na qual a atividade econômica é encerrada sem a realização do procedimento próprio, visto que a legislação tributária condiciona o registro da ata da assembléia ou o distrato ao cancelamento da inscrição da sociedade nos respectivos cadastros fiscais, invertendo a lógica estabelecida no Direito Societário, em favor da arrecadação (COELHO, 2007, p. 459). Nesta hipótese de dissolução, o responsável pela irregularidade é o administrador da sociedade limitada, pois ele é o órgão de manifestação da vontade da pessoa jurídica, nos termos do artigo 47 do Código Civil. Cabe ao administrador, nos termos do artigo 1035 do Código Civil, o dever de providenciar o processo de liquidação da sociedade, no qual as dívidas são pagas. Quando o administrador não cumpre com seus deveres está infringindo obrigação a ele prescrita em lei e implícita à seu cargo no contrato social da empresa. Assim, a responsabilidade pelo não pagamento dos tributos da sociedade caberá exclusivamente a ele, como dispõe o Código Tributário Nacional, em seu artigo 135, III, o qual determina serem “pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos [...] III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”. Mesmo com a clareza meridiana da lei no tratamento do tema, alguns tribunais de justiça têm entendido que os sócios não administradores podem ser responsabilizados pelo pagamento dos tributos da sociedade nesta hipótese de dissolução irregular, como será visto adiante.

3 A responsabilidade solidária dos sócios cotistas na dissolução irregular da sociedade limitada Primeiramente, salienta-se que as relações tributárias têm natureza bilateral, na qual figuram nos distintos pólos o sujeito ativo (ente do Estado competente para cobrar e/ou receber o tributo) e sujeito passivo (particular que ao exercer certas atividades – hipóteses tributárias – acaba por praticar condutas descritas na lei como fatos geradores de obrigação tributária, isto é, consuma o fato gerador). Todavia, há situações nas quais o legislador imputou a terceiros que não se relacionam de forma direta com o “fato gerador” a responsabilidade pelos tributos oriundos das hipóteses tributárias. Para melhor exposição do assunto, transcreve-se a ínclita doutrina de Luciano Amaro: A figura do responsável aparece na problemática da obrigação tributária principal por uma série de razões que são valorizadas pelo legislador ao definir a sujeição passiva tributária. A pós definir o fato gerador e, “naturalmente”, localizar a pessoa que deveria (ou poderia) ocupar o pólo passivo da obrigação tributária na condição de contribuinte, o legislador pode ignorar esse personagem e eleger como sujeito passivo outra pessoa (que tenha relação com o fato gerador). Esse personagem (que não é o contribuinte, nem, obviamente, ocupa o lugar do credor) é um terceiro, que não participa do binômio Fisco-contribuinte (AMARO, 2007, p. 304).

Segundo a regra contida no artigo 128, do Código Tributário Nacional, a lei pode atribuir a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da obrigação, excluindo-se a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, desde que seja de modo expresso. Como já mencionado anteriormente, o artigo 135 do Código Tributário Nacional prevê a responsabilização pessoal de terceiros a partir da ocorrência de atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, bem como ao contrato social ou estatuto. Sacha Calmon Navarro Coelho (2000, p. 319) afirma ainda que é necessário que o sócio proceda com manifesta malícia (mala fides) contra aqueles a quem representa, ou seja, à sociedade empresária. Esta ação deverá estar acrescida da infração aos poderes concedidos, ou da infração à lei ou, ainda, em descumprimento do regramento societário (estatuto ou contrato). No entanto, alguns tribunais de justiça consideraram que a dissolução irregular da sociedade limitada, por si só, é causa de responsabilidade solidária entre os sócios cotistas, imputando natureza antijurídica à simples dissolução da empresa ainda que ocorrida sem o ânimo de fraude, ad litteram: TRIBUTÁRIO - APELAÇÃO CÍVEL - EXECUÇÃO FISCAL - ICMS INCLUSÃO DOS SÓCIOS DO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO FISCAL ENCERRAMENTO IRREGULAR DAS ATIVIDADES DA EMPRESA INTELIGÊNCIA DO ART. 135 DO CTN - POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO NOS AUTOS DE EXECUÇÃO VEZ QUE SE TRATA DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO - No caso destes autos, a decisão que exclui os sócios da sociedade mostra-se em desconformidade com a Lei, sendo que o pedido de inclusão feito anteriormente e deferido deve ser mantido, haja vista a dissolução irregular da empresa. Ademais, não há que se falar em necessidade de oposição de embargos para discutir a questão acerca da legitimidade da parte uma vez que se trata de matéria atinente à ordem pública. (TJPR - AI 0436987-3 - São José dos Pinhais - 2ª C. Cív. - Rel. Des. Silvio Dias DJPR 25.01.2008)

TRIBUTÁRIO - EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO RECUSA - SÓCIO - ART. 135, CTN - NOME CONSTANTE DE CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA - LIQUIDEZ - CERTEZA - PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE - AUSÊNCIA DE CAUSA SUSPENSIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO - AGRAVO PROVIDO - 1- Como a responsabilidade fiscal do sócio restringe-se às hipóteses de prática de atos que configurem abuso de poder ou infração de lei, contrato social ou estatutos da sociedade, o não pagamento de tributos por esta, por si só, não legitima a recusa de expedição de certidão negativa de dívida em nome da pessoa daquele. 2- Nas hipóteses em que cabe ao sócio a comprovação de que na gestão dos negócios da sociedade não agiu com infração ao art. 135, do ctn, notadamente quando o seu nome consta da certidão de dívida ativa - Cda, pela presunção relativa de liquidez e certeza desta (CTN, ART. 204 C/C O ART. 3º, DA LEI Nº 6.830), e quando houver encerramento irregular das atividades da sociedade, inexistente qualquer causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário (CTN, ART. 151), é legitima a recusa da expedição de certidão negativa de dívida em nome do sócio. 4- No caso, instaurado processo administrativo fiscal em decorrência da dissolução irregular da sociedade, os sócios quedaram-se revéis, circunstância que implica confissão quanto à irregularidade do encerramento sem o pagamento dos impostos devidos, configurando hipótese de prática de atos com infração à lei, restando legítima a recusa da expedição de certidão negativa em nome daqueles. 5- Agravo inominado provido para reformar a sentença recorrida e, em conseqüência, denegar a segurança nela concedida. (TJES - AGI-Ap Voluntária-REO 024060149168 - 1ª C.Cív. - Rel. Des. Fabio Clem de Oliveira - J. 06.05.2008)

No primeiro julgado, nota-se que o Tribunal ignorou o princípio da autonomia patrimonial, corroborando a inclusão arbitrária dos sócios cotistas no pólo passivo da execução com a simples referência à matéria atinente à ordem pública. Na segunda decisão a revelia dos sócios cotistas em figurar no pólo passivo no processo administrativo fiscal – até porque, na letra da lei, estes não deveriam figurar no pólo passivo – é alegada como fundamento para a sua responsabilização pelas dívidas tributárias da sociedade dissolvida. Ora, alegar que uma matéria é “atinente à ordem pública” não autoriza o julgador a agir em detrimento do devido processo legal, conferindo a um mero incidente processual, como a revelia, o poder de anular um instituto de direito material, como a sociedade por cotas de responsabilidade limitada. As autoridades estão submetidas à lei por força do princípio da legalidade, cujo sentido desdobra-se, na seara tributária, ao princípio da estrita legalidade, na qual se estabelece um controle formal e material sobre o alcance da norma jurídica (OLIVEIRA, 2001, p. 113). Ainda, no concernente à justificativa do tribunal de agir em razão da ordem pública para imputar responsabilidade ao sócio, faz-se necessário ressaltar que toda atividade estatal deve estar vinculada a uma finalidade, qual seja: o interesse público. Contudo, ainda que aja em nome do interesse/ordem coletiva, o Estado não pode obrigar o particular a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II, Constituição Federal). Este é o corolário do princípio da legalidade, o qual objetiva combater o poder arbitrário do Estado (MORAES, 2007, p. 36). No mesmo sentido, destaca-se que o princípio da estrita legalidade tributária está expresso no artigo 150 da Constituição Federal e no artigo 9º do Código Tributário Nacional, o qual afirma que não se pode criar obrigação tributária para alguém senão em virtude de lei, verbo ad verbum: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; Art. 9º É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - instituir ou majorar tributos sem que a lei o estabeleça, ressalvado, quanto à majoração, o disposto nos artigos 21, 26 e 65;

Deste modo, a interpretação extensiva de norma que estabeleça uma obrigação tributária, de forma a alcançar pessoas que não são indicadas no texto legal, é vedada. Tal conclusão se dá em razão de que ao redigir um texto normativo abrangendo as hipóteses de incidência tributária, o legislador fará a descrição legal de um fato, o qual “é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato (é o espelho do fato, a imagem conceitual de um fato; é seu desenho)” (ATALIBA, 2000, p. 58). Sobre o assunto, aduz o insigne professor Paulo de Barros Carvalho (1998, p. 114): (...) qualquer das pessoas políticas de direito constitucional interno somente poderá instituir tributos, isto é, descrever a regra-matriz de incidência, ou aumentar os existentes, majorando a base de cálculo ou alíquota, mediante a expedição de lei. O veículo introdutor da regra tributária no ordenamento há de ser sempre a lei (sentido lato), porém o princípio da estrita legalidade diz mais do que isso, estabelecendo a necessidade de que a lei adventícia traga no seu bojo os elementos descritores do fato jurídico e os dados prescritores da relação obrigacional. Esse plus caracteriza a tipicidade tributária, que alguns autores tomam como postulado imprescindível ao subsistema de que nos ocupamos, mas que pode, perfeitamente, ser tido como uma decorrência imediata do princípio da estrita legalidade.

Em outras palavras, toda norma jurídica deve se pautar em enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, ou seja, deve buscar os princípios fundamentais que constituem sua estrutura (REALE, 1991, p. 300). Assim, para que haja responsabilização dos sócios cotistas pela dissolução da sociedade limitada, é necessário que estes tenham praticado um ato ilícito que os responsabilize, nos termos do artigo 1080 do Código Civil. Ao elucidar o assunto, Luciano Amaro (2007, p. 327) assevera que para que ocorra a incidência do artigo 135, III, “um requisito básico é necessário: deve haver a prática de ato para o qual o terceiro não detinha poderes, ou de ato que tenha infringido a lei, o contrato social ou o estatuto de uma sociedade”. Examinando a responsabilização dos sócios cotistas, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2008, p. 313) afirma que para haver irregularidade passível de alcançar o patrimônio dos sócios cotistas é necessário que seja comprovada a partilha do patrimônio da sociedade entre os sócios sem que tenha havido o procedimento da liquidação, previsto nos artigos 1102 e seguintes do Código Civil. Sem esta comprovação, é possível que os cotistas, além de perderem o patrimônio investido na sociedade limitada, sejam obrigados a pagar pelas dívidas da sociedade. Ademais, como bem assevera Alexandre de Moraes (2007, p. 36), somente por meio de espécies normativas devidamente elaboradas nos moldes legais do processo legislativo constitucional é possível criar obrigações, deveres e imputar responsabilidades para o indivíduo. No entanto, repete-se que a dissolução irregular da sociedade não é conduta prevista em lei como ensejadora da responsabilização tributária do sócio, uma vez que a própria abstenção do pagamento de tributo pode ocorrer em razão de inexigibilidade de conduta diversa, pois “a observação da realidade demonstra que qualquer pessoa, física ou jurídica, que adentre num estado de crise econômico-financeira, suspende, em primeiro lugar, o pagamento dos tributos em geral” (BEZERRA FILHO, 2009, p. 155). Em vista disto, é inaceitável a interpretação exposta pelos tribunais. 4 A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada pela sua dissolução irregular

A desconsideração da personalidade jurídica é o instituto que, em um caso concreto, permite atingir-se a personalidade jurídica de um sócio, responsabilizando-o, assim, por fraude, abuso de direito ou pela utilização da personalidade jurídica da sociedade para evitar obrigação existente, tirar vantagem de uma legislação, alcançar um monopólio ou acobertar um crime (WORMSER, 1912, p. 497). Prevista no Código Civil, no artigo 50, tem ainda como requisito para o Direito Pátrio a confusão entre o patrimônio do sócio e da sociedade. No concernente à aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se ressaltar que esta será a exceção, jamais a regra. Afinal, o reconhecimento da existência da personalidade jurídica implica, automaticamente, no reconhecimento das particularidades desta, em especial sua autonomia patrimonial. Algumas decisões, entretanto, têm se valido do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para se atingir o patrimônio pessoal dos cotistas da sociedade limitada, como transcrito abaixo: AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO FISCAL - INADIMPLEMENTO DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - CARÁTER EXCEPCIONAL - ENCERRAMENTO IRREGULAR DAS ATIVIDADES POSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA DO ART. 135, III, DO CTN - Há a determinação legal (art. 596, do CPC) de que os sócios não respondam pelas dívidas sociais, mas, isso ocorre somente quando a extinção e as obrigações sociais da empresa forem regulares, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica deve ocorrer quando houver irregularidades (abuso de poder e fraude) com a conseqüente ofensa à Lei. A prevalência do princípio da autonomia patrimonial é de suma importância e leva a aplicar a desconsideração com cautela, apenas em casos excepcionais, atendidos determinados requisitos. O não recolhimento do tributo, bem como a dissolução irregular da empresa executada, caracterizam infração à lei, legitimando a responsabilização dos sócios-gerentes pelos débitos fiscais contraídos durante o período de gerência, mesmo que seus nomes não constem da CDA. (TJMG - AI 1.0525.06.094871-4/001 - 7ª C.Cív. - Relª Heloisa Combat - J. 21.11.2008) DIREITO TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - EMBARGOS - EMPRESA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS - Demonstrado, pela prova dos autos, a existência de dívidas da empresa, bem como o encerramento irregular de suas atividades e a inexistência de bens passíveis de penhora, é de ser aplicada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com citação do sócio e penhora de seus bens particulares. Sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Responsabilidade do gerente. Hipótese do art. 135, III, do CTN configurada. Recurso provido. Voto vencido. (TJRS - Proc. 70005618855 - 21ª C.Cív. - Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro - J. 05.02.2003)

Compreendem-se como pressupostos para a aplicação do instituto a constatação de abuso de direito ou a fraude, através da pessoa jurídica, sendo a confusão patrimonial indicativo de um outro desses requisitos. Por abuso de direito entende-se o uso irregular ou anormal de um direito com a finalidade de prejudicar a outrem, sendo elementos identificadores deste uso irregular ou anormal a presença de dolo ou malícia por parte do titular do direito (GIARETA, 1989, p. 10). O segundo pressuposto da desconsideração da personalidade é a constatação de uma fraude, ou seja, de uma ação maliciosa destinada a escamotear a verdade, evitar o cumprimento do dever, burlar a lei ou contornar aplicação de sanção, através da pessoa jurídica (GASPARINI, 2007, p. 13). Por fraude, entende-se, na célebre definição de Plácido e Silva (2002, p. 379) como “o engano malicioso ou a ação astuciosa promovidos de má fé para a ocultação da verdade ou fuga do cumprimento do dever.”.

Nota-se que o primeiro julgado aplica o instituto da desconsideração sem demonstrar em que momento o não pagamento dos tributos caracterizou-se como fraude ou abuso de direito. O segundo julgado vincula o instituto da desconsideração à simples inexistência de bens passíveis de penhora, afirmando aquilo que Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 36) chama de “Teoria Menor da Desconsideração”, ou seja, uma tendência jurisprudencial ao mau uso do instituto, aplicando-o apenas porque a pretensão do credor não foi atendida, o que implica em mera denegação do princípio da autonomia patrimonial. Rubens Requião (2009, p. 521), o introdutor da doutrina da desconsideração no Direito Pátrio, defendeu a cautela na aplicação do instituto, restringindo-a a casos de comprovada fraude ou abuso de direito nos casos em que a limitação da responsabilidade dos sócios cotistas está em perigo: Concentrando a perseguição ao pessoalmente responsável pelo ato prejudicial, abusivo e doloso, preserva-se a limitação da responsabilidade dos administradores e sócios inocentes e a própria personalização da sociedade. Evita-se a generalização da aplicação da teoria a todos os sócios ou a todos os administradores, principal vício que se verifica na prática forense quando se lança mão da teoria da desconsideração da personalidade. Não verificando o elemento fraude ou abuso é impraticável a superação da personalidade.

Desta forma, a aplicação do instituto da desconsideração na seara do processo tributário sem constatação dos seus pressupostos constitui verdadeira subversão do instituto que, de elemento moralizante contra o mau uso da pessoa jurídica, subverte-se em instrumento do arbítrio e de abuso de autoridade em favor do Fisco. 5 Conclusão A despeito da jurisprudência e doutrina mais abalizadas, alguns tribunais de justiça vêm realizando, com o fito de responsabilizar os cotistas da sociedade limitada, uma interpretação extensiva do artigo 135, III do Código Tributário Nacional, o que é vedado pelo princípio da estrita legalidade tributária. Tal interpretação extensiva algumas vezes lança como fundamento uma visão completamente equivocada do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que se concretiza em um profundo desrespeito ao princípio da autonomia patrimonial em uma estrepitosa ignorância das disposições do Código Civil a ele referentes. É de se ressaltar que o próprio Código Tributário Nacional, em seu artigo 107, estabelece o respeito aos princípios gerais do direito privado, por parte do Direito Tributário. No campo da economia, esta verdadeira afronta ao devido processo legal tem como resultado o desestímulo à atividade empreendedora. Receosos de uma responsabilização ilimitada por atos os quais não deram causa, os investidores deixam de capitalizar novas sociedades limitadas, concentrando seus recursos no sistema bancário ou em imóveis, em detrimento dos setores produtivos, que sempre careceram pela falta da destinação de recursos às suas atividades. Deste modo, alguns tribunais trabalham indiretamente, junto com o Fisco, em detrimento do desenvolvimento econômico e da geração de empregos em nosso país. Referências AMARO, Luciano. Direito tributário Brasileiro. 13.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2000. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. 6ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 10ª Ed, ver. E aum. São Paulo: Saraiva, 1998. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. 10ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. COELHO, Sacha Calmon Navarro, [et al]. Código Tributário Comentado. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 20ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2002. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 8 : direito de empresa. 2ª Edição, reformulada. São Paulo : Saraiva, 2009. GASPARINI, Diógenes. Desconsideração Administrativa da Pessoa Jurídica. Revista JML, Ano I, n.2, p.4, mar 2007. GIARETA, Gerci. Teoria da Despersonalização da Pessoa Jurídica (“Disregard Doctrine”). Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, Ano 13, p. 7 e 8, abril/junho de 1989. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1195 do Código Civil. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo : RT, 2008. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007. OLIVEIRA, Yonne Dolacio de. Princípios da Legalidade e da Tipicidade. In Curso de Direito Tributário. 8ª Ed. Coord. Ives Gandra Martins. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 113. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 18ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1991. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 1º volume. 27ª Edição, rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. WORMSER, Maurice. Piercing the Veil of Corporate Entity, Columbia Law Review, vol. 12, p. 496, 1912

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.