A Restrição de Direitos Fundamentais e o 11 de Setembro: Breve Análise de Dispositivos Polêmicos do Patriot Act The Restriction of Fundamental Rights and the September Eleven: A Brief Analysis of Patriot Act Polemic Dispositions

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DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Vol. 5 - Número 1 - jan. a jun. de 2004 ISSN 1518-1685

COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente João Rosado Maldonado

Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Graduação das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques

Capelão Geral Gerhard Grasel Ouvidor Geral Eurilda Dias Roman

EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Divisão de Publicações Periódicas a/c Paulo Seifert, Diretor Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127 92420-280 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. ENDEREÇO PARA PERMUTA: Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero Setor de aquisição Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 05 92420-280 - Canoas/RS E-mail: [email protected] O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Editor Plauto Faraco de Azevedo Editor Associado César Augusto Baldi Conselho Editorial Airton Sott (ULBRA) Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Altayr Venzon (ULBRA) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) Luís Afonso Heck (ULBRA) Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA) Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

U58u

Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral 1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas. CDU 34 CDD 340

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero ULBRA/Canoas

Índice 3

Editorial

Artigos 7.

A tutela da posse na Constituição e no novo Código Civil, de Teori Albino Zavascki

29.

A Constituição deve constituir, de Léo Brust.

49.

La percepcion occidental de los conflictos en el mundo musulmán: cultura frente a politica, de Gema Martín-Muñoz.

71.

Premissas para uma adequada reforma do Estado, de Wilson Steinmetz.

85.

Existe a única resposta jurídica correta?, de Jayme Weingartner Neto.

121. Da água: considerações jurídico-ambientais, de Plauto Faraco de Azevedo. 127. O casamento e a união estável na perspectiva do novo Código Civil Brasileiro, de Julio Cesar Garcia Ribeiro. 147. As espécies tributárias em face da Constituição Federal de 1988, de Maria Eunice de Paula.

Dossiê terrorismo, tortura e direitos humanos 169. O terror e o ataque às liberdades civis, de Ronald Dworkin 187. La tortura judicial en el antiguo régimen. Orden procesal y cultura, de Alejandro Agüero. 223. A restrição de direitos fundamentais e o 11 de setembro: breve análise de dispositivos polêmicos do Patriot Act., de Vinicius Diniz Vizzotto. 257. Qual o futuro do sistema de prevenção à guerra da Carta das Nações Unidas? Reflexões sobre a guerra do Iraque, de Richard Falk.

Documento Histórico 275. Conferência proferida na entrega do Prêmio Nobel da Paz de 2003 para Shirin Ebadi.

281. Normas Editoriais

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Editorial Uma ode à deusa Métis: prudência, serenidade e crítica da intolerância Na mitologia grega, Métis é a primeira esposa de Zeus e deu a Cronos uma poção, que o fez vomitar, junto com uma pedra, todos os filhos que engolira. Foi seduzida por Zeus que, sabedor que estava grávida e que o filho seria o senhor do universo, a engoliu, para não correr o risco de perder seu poder. Passando mal, com terrível dor de cabeça, pediu a Hefestos que lhe abrisse a cabeça, brotando desta Palas Atena, deusa da sabedoria e das artes, que tomou assento no conselho dos deuses e foi a principal conselheira do pai.1 Ao contrário da interpretação e do significado que Francis Bacon atribui à deusa - como Conselho e, portanto, representando os segredos de governo 2 , Marilena Chauí destaca que, sendo em realidade o nome grego para a prudência, Métis representa a inteligência prática, em contraposição à inteligência teórica. A pessoa dotada de “métis” é capaz de: a) “num único golpe de vista, perceber o todo: tinha o senso de oportunidade, ou sentimento de kairós, do momento oportuno”, em que a sua atuação seria eficaz; b) encontrar ou de criar “um caminho onde não havia caminho: diante da aporia, abre um caminho”; c) espreitar, “de saber observar de longe” e de “produzir uma estratégia para intervir”. 3

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Nas “Eumênides”, de Ésquilo, ao proferir o seu famoso voto de desempate - que guarda seu nome-, selando o destino e, portanto, a absolvição de Orestes pela morte da mãe, ela afirma: “Jamais, jamais, pronunciei, é certo, uma palavra, em minhas profecias, que não fosse por Zeus determinada” e, tendo em vista que “não tive mãe alguma”, “o direito paterno e a varonil supremacia que prevalece em tudo” levam seu “coração à lealdade” ( ÉSQUILO. A trilogia de Orestes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988, p. 148 e 153)

2

BACON, Francis. A sabedoria dos antigos. São Paulo: UNESP, 2002, p. 95.

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CHAUÍ, Marilena. “ Se não mudar, Lula pra quê?”, Primeira Leitura, São Paulo ( 17): julho 2003, p. 28.

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Métis remete, por sua vez, a duas variáveis. A primeira, como destaca coincidentemente Jayme Weingartner na sua contribuição sobre a questão hermenêutica da “única resposta correta” (ou da “melhor resposta possível”), é “mitezza”, o título de um livro de Norberto Bobbio, traduzido, no Brasil, pelo nome de “Elogio da serenidade”. Neste, o falecido autor italiano destacava que esta virtude tinha como opostos a arrogância, a prepotência e insolência, estando mais próxima, portanto, da compaixão e da simplicidade. A segunda é que, justamente, “direito mite”traduzido para o espanhol como “derecho dúctil”- foi a expressão escolhida por Zagrebelsky para designar os traços de um sistema jurídico mais dinâmico, plural e complexo. E é objeto de análise, ainda, por Léo Brust, que verifica a viabilidade de tal teoria no contexto de países em desenvolvimento. Prudência, serenidade e ductibilidade estão presentes nas considerações que o tema da tolerância tem despertado no mundo atual. Estas questões ficam mais candentes, ainda, nos diversos textos aqui incluídos. Gema Martín-Muñoz, por exemplo, criticando tanto uma concepção essencialista, quanto uma concepção orientalista, relativamente aos muçulmanos, destaca o crescimento da islamofobia e procura rechaçar visões etnocêntricas em relação ao outro e, desta forma, se posiciona em manifesta luta contra a intolerância. O primeiro dossiê temático da “Direito e Democracia”, centrado no terrorismo, tortura e direitos humanos, avança pontos que, até o ataque às Torres Gêmeas, seriam não somente impensáveis, mas também “intoleráveis”. Ronald Dworkin, por um lado, salienta que a luta contra o terrorismo não é incompatível com um sistema de proteção aos direitos civis. No mesmo sentido, é a contribuição de Vinicius Vizzotto ao submeter ao teste do “princípio da proporcionalidade” algumas das mais importantes restrições de direitos advindas com o “Patrioct Act”, cujo nome, inclusive, é um destacado eufemismo de um nacionalismo exacerbado e uma ode ideológica ao combate ao terrorismo. Richard Falk, por outro lado, também destaca que o sistema de proteção à guerra, tal como previsto na Carta das Nações Unidas, não necessita, necessariamente, ser totalmente reformulado, para responder às questões do megaterrorismo, da intervenção humanitária e da guerra do Iraque. Alejandro Agüero analisa a questão da tortura no “Antigo Regime”, a partir de seus aspectos processuais e culturais, o que parece evidenciar a constatação de Balakrishnan Rajagopal no sentido de que a definição do que é cruel,

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desumano e degradante, em especial a proibição da tortura, é um “conceito legal que reproduz as estruturas coloniais de poder e de cultura”, a partir de uma distinção “esquizofrênica” entre “sofrimento necessário” e “sofrimento desnecessário”4 , estigmatizando as “práticas locais’ como tortura e reforçando a centralidade do Estado, justamente ao invisibilizar determinados sofrimentos que são tidos como ”necessários”, do qual a violência contra a mulher é um dos mais gritantes. Aliás, a assimetria de tratamento jurídico, no novo Código Civil, em relação ao casamento e à união estável, tratada no artigo de Julio Cesar Garcia Ribeiro, a par de proceder, no que diz respeito à última, a uma disciplina inferior àquela reconhecida pela jurisprudência, e prejudicial, em muitos pontos, à mulher, talvez devesse, também, ser submetida ao teste do princípio da proporcionalidade, verificando-se se as distinçõestrazidas pela nova legislação- são necessárias, adequadas e proporcionais em sentido estrito. Por sua vez, a assimetria entre o Poder tributante e o contribuinte é objeto da contribuição de Maria Eunice de Paula, em que salienta a necessidade de as espécies tributárias servirem como “limitações materiais ao poder de tributar” e, desta forma, como mecanismo de controle de constitucionalidade das leis. Também no âmbito constitucional é o destaque dado por Wilson Steinmetz para a questão da reforma do Estado, que, segundo o autor, deve ter em conta a função estratégica do Estado, a crise do Estado-nação, a questão democrática no processo de globalização e a posição preferencial dos direitos fundamentais. Plauto Faraco de Azevedo, tecendo considerações jurídico-ambientais sobre a questão da água, destaca que o problema é, também, de “democracia e solidariedade”. O Min. Teori Albino Zavascki, por sua vez, analisa a questão da posse e da propriedade, tanto no aspecto civil, quanto no aspecto constitucional, para, ao final, tecer comentários sobre os novos conflitos possessórios, seja envolvendo as questões de desapropriação indireta, seja relacionados com as ocupações de áreas urbanas e rurais. Completando um número que ressalta a serenidade, a prudência, a noção de limites, a defesa dos direitos fundamentais e o pluralismo, em antípoda à intolerância, o discurso proferido pelo Prêmio Nobel da Paz, Shirin Ebadi, primeira mulher muçulmana distinguida com o prêmio, é um documento histórico da mais alta relevância. Critica, por um lado, os

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RAJAGOPAL, Balakrishnan. International law from below- development social movements and Third World Resistance. New York: Cambridge University, 2003, p. 182-183.

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Estados que, nos últimos anos, “violaram os princípios universais e as leis dos direitos humanos ao utilizar os eventos de 11 de setembro e a guerra contra o terrorismo internacional como pretexto”, mas põe, em relevo, por outro lado, que “a sina discriminatória das mulheres nos estados islâmicos, seja na esfera do direito civil ou no domínio da justiça social, política e cultural, também tem suas raízes na cultura patriarcal e dominada pelos homens que prevalece nessas sociedades, e não no islã”. Desta forma, faz coro à advertência de Abdoolkarim Vakil5 de que a lógica que “configura o discurso do Islão como problema reproduz, redefinidos agora como problemas do multiculturalismo, da governação, da tolerância e da segurança, as mesmas preocupações identitárias e securitárias geradas no contexto colonial”. Este desafio, que perpassa, incidentalmente os textos aqui reunidos, encontra eco nas palavras finais proferidas por Ebadi: Se o século XXI quiser se libertar do ciclo de violência, atos de terror e guerra, e evitar a repetição da experiência do século XX – o mais cheio de desastres da história da humanidade – não há outra forma a não ser compreender e colocar em prática todos os direitos humanos para a humanidade como um todo, independentemente de raça, gênero, fé, nacionalidade ou status social. Por fim, constitui uma das grandes ironias da história que o 11 de setembro seja lembrado pelo ataque terrorista às Torres Gêmeas e pela escalada de guerra preventiva por parte dos Estados Unidos e, portanto, pela guerra e violência, e não pela luta iniciada contra o domínio colonial britânico, na mesma data, no ano de 1906, por Mohandas Gandhi, um movimento que se denominou “Satyaragha” (“sat”: verdade; “agraha”: firmeza) e que se caracterizou justamente pela não-violência. César Augusto Baldi Editor associado

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VAKIL, Abdoolkarim. Pensar o Islão: questões coloniais, interrogações pós-coloniais. Revista Crítica de Ciências Sociais, (69): 2004.

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Artigos

A Tutela da Posse na Constituição e no Novo Código Civil Possession Protection in Brazilian Constitution and in the New Civil Code TEORI ALBINO ZAVASCKI Ministro do STJ - Professor de Processo Civil na UFRGS

RESUMO Analisando a regulação normativa da propriedade e atento aos princípios constitucionais, o autor destaca perspectivas constitucionais para os novos conflitos possessórios (desapropriação indireta e ocupações coletivas de áreas urbanas e rurais). Palavras-chave: Direito constitucional, Posse e propriedade, Conflitos possessórios.

ABSTRACT The author analyzes the property normative regulation and, considering the constitutional principles, presents constitutional perspectives to the new possession conflicts (indirect dispossession and collective occupations of urban and rural areas). Key words: Constitutional law, possession and property, possession conflicts.

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Canoas n.1 Direito e vol.5, Democracia

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INTRODUÇÃO Discorrer sobre a tutela da posse no atual sistema jurídico brasileiro pressupõe superar a noção, ainda corrente, de que ela representa, simplesmente, a exteriorização do direito de propriedade. É sabido que o instituto da propriedade, fruto de construção jurídica de muitos séculos, que teve seu caráter de inviolabilidade absoluta associado à influência de idéias fundadas no individualismo, recebeu, mais modernamente, uma configuração relativizadora, inspirada sobretudo pelo princípio da “função social da propriedade”, do qual decorre um conjunto de limitações ao exercício daquele direito. Porém, tal princípio não está, de forma alguma, confinado a mero apêndice do direito de propriedade, a simples elemento configurador de seu conteúdo. É muito mais do que isso. Por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo. Bens, propriedades, são fenômenos da realidade. Direito - e, portanto, direito da propriedade - é fenômeno do mundo dos pensamentos. Utilizar bens, ou não utilizá-los, dar-lhes ou não uma destinação que atenda aos interesses sociais, representa atuar no plano real, e não no campo puramente jurídico. A função social da propriedade (que seria melhor entendida no plural, “função social das propriedades”), realiza-se ou não, mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no mais amplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja ele detentor ou não de título jurídico a justificar sua posse. Bem se vê, destarte, que o princípio da função social diz respeito mais ao fenômeno possessório que ao direito de propriedade. Referida função “é mais evidente na posse e muito menos na propriedade”, observa a doutrina atenta, e daí falar-se em função social da posse1 . A relação de pertinência entre posse e função social permeia-se, como se verá, no atual regime da Constituição e está evidente também na orientação adotada

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- Luiz Edson Fachin, A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 19.

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no novo Código Civil. Nesse Código, conforme o testemunho qualificado do presidente da comissão que elaborou o Anteprojeto, Professor Miguel Reale, “foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da propriedade”2 . Resulta assim plenamente justificada a tutela jurídica da posse como instituto autônomo, a merecer, independentemente de sua relação com o direito de propriedade, um trato especial, apropriado à sua vocação natural de instrumento concretizador daquele importante princípio constitucional. Fenômenos jurídicos autônomos, posse e propriedade convivem, de um modo geral, harmonicamente, em relação de mútua complementaridade, refletindo, cada um deles, princípios constitucionais não excludentes, mas, ao contrário, também complementares um do outro. Direito de propriedade e função social das propriedades são, com efeito, valores encartados na Constituição como direitos fundamentais (art. 5o, XXII e XXII) e como princípios da ordem econômica (art. 170, II e III), com força normativa de mesmo quilate e hierarquia. Vistos em sua configuração abstrata, representam mandamentos sem qualquer antinomia, a merecer, ambos, idêntica e plena observância. Entretanto, não há princípios constitucionais absolutos. E uma das manifestações mais comuns desta verdade fica patenteada nas situações em que, por circunstâncias de caso concreto, se mostra impossível dar atendimento pleno a dois princípios de mesma hierarquia. Nem sempre, por exemplo, o princípio da liberdade de informação pode ser atendido plenamente sem limitar o da privacidade, e vice-versa. Nem sempre o princípio da presunção da inocência pode conviver com o da segurança pública. Nem sempre o princípio da efetividade da jurisdição pode ser assegurado plenamente sem restrição ao da ampla defesa. Ora, nos casos em que, circunstancialmente, a realidade dos fatos acarretar fenômenos de colisão entre princípios da mesma hierarquia, outra alternativa não existe senão a de criar solução que resulte em concordância prática entre eles, o que somente será possível a partir de uma visão relativizadora dos princípios colidentes. Ou seja: a solução do caso concreto importará, de alguma forma e em alguma medida, limitação de um ou de ambos em prol de um resultado específico. Daí porque se afirma que os princípios têm força normativa, mas não absoluta. São, na verdade, “mandados de otimização, que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida ordenada do seu cumprimento depende não só das possibilidades

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- Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, 2a ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 8.

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práticas, mas também das possibilidades jurídicas”, sendo certo que “o campo das possibilidades jurídicas está determinado pelos princípios e regras que operam em sentido contrário”3 . Assim também pode ocorrer, eventualmente, entre direito de propriedade e função social da propriedade. Não obstante sua inegável relação de complementaridade e, quando vistos no plano normativo, da natural aptidão para sua convivência harmônica, pode ocorrer que, em determinadas situações concretas, não seja possível o pleno atendimento de um deles sem comprometer, ainda que em parte, o outro, ou vice-versa. É o que ocorre, por exemplo, quando, em relação a determinado bem, o detentor da titulação jurídica é omisso no desempenho da função social, a qual, todavia, vem sendo exercida por longo tempo e em sua plenitude por outrem, possuidor não-proprietário. Em casos tais, atender pura e simplesmente a eventual reivindicação do bem pelo proprietário representará, certamente, garantir seu direito de propriedade, mas significará também, sem sombra de dúvida, comprometer a força normativa do princípio da função social. Já a solução contrária aos interesses do reivindicante operará em sentido inverso: atenderá a função social, mas limitará a força normativa do princípio norteador do direito de propriedade. Para situações concretas dessa natureza, o legislador, como se verá, tem buscado soluções harmonizadoras, formulando regras de superação do impasse que, sem eliminar do mundo jurídico nenhum dos princípios colidentes, fazem prevalecer aquele que, segundo o critério de política legislativa, se evidencia preponderante em face do momento histórico e dos valores jurídicos e sociais envolvidos. As normas disciplinadoras das várias formas de usucapião representam exemplos paradigmáticos de mecanismos de solução de conflitos da espécie. Todavia, a lei, criada para atuar no futuro, nem sempre consegue intuir os múltiplos fenômenos de colisão de princípios, até porque a vida é dinâmica, apresentando a cada dia novidades que o legislador, que atuou no passado, não imaginava pudessem surgir. Ora, nesses casos, em que há falta ou insuficiência de regra legal de harmonização de princípios colidentes, cumpre as juiz, ele próprio, criar a norma apta eliminar o conflito. A chamada desapropriação indireta constitui, conforme se demonstrará, fórmula tipicamente pretoriana de resolver o fenômeno concreto de colisão entre o princípio ga-

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- Robert Alexy, Derecho y Razon Práctica, trad. Manuel Atienza, México, DF, Distribuciones Fontanara, 1993,

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rantidor do direito de propriedade e o que impõe às propriedades uma destinação compatível com a função social. À luz dessas premissas fundamentais melhor se compreenderá (a) a dimensão constitucional da tutela da posse e (b) a legitimidade dos novos institutos, a ela relacionados, constantes do Código Civil, temas objeto da Parte I destas considerações. São premissas que, ademais, fornecem base sólida para compreender e legitimar soluções pretorianas de antigos e novos conflitos possessórios, temas que serão enfrentados na Parte II.

Parte I: A tutela da posse na constituição e no código civil 1. Posse na Constituição a) Autonomia pela funcionalidade: A Constituição Federal, que estabelece enfaticamente ser “garantido o direito de propriedade” (art. 5o, XXII), não tem dispositivo semelhante em relação à posse. A disciplina da posse, e a correspondente tutela jurídica, se dá implícita e indiretamente, na medida e em consideração àquilo que ela representa como concretização do princípio da função social das propriedades. Com efeito, já se afirmou que tal princípio diz respeito à utilização dos bens e, como tal, refere-se a comportamentos das pessoas – proprietários ou não proprietários – que detém o poder fático, a efetiva disposição dos bens, assim considerados no seu mais amplo sentido. Ou seja: é princípio que se dirige ao possuidor, independentemente do título da sua posse. Sob tal ponto de vista, é possível detectar no ordenamento constitucional diversas maneiras de tratamento do tema: tutela da posse que importa limitação ao direito de propriedade, tutela da posse paralelamente ao direito de propriedade e, finalmente, tutela da posse como modo de aquisição do direito de propriedade. Veja-se, por exemplo, a disciplina do meio ambiente, estabelecida no artigo 225. Definido como direito de todos, “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” o meio ambiente é tutelado pela Constituição mediante regras destinadas a “preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, que são impostas como deveres do Poder Público e da coletividade. Portanto, são limita-

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ções, não ao direito de propriedade, mas à utilização das propriedades, e têm como destinatários todos os possíveis “usuários” dos recursos ambientais, vale dizer, todos os que estejam, de alguma forma, habilitados a utilizá-los, a “possui-los”, independentemente da sua condição de proprietário. No seu parágrafo 4o, o dispositivo constitucional trata especificamente da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Pantanal Mato-Grossense e da Zona Costeira, definidos como “patrimônio nacional”, cuja “utilização” deve ocorrer dentro de condições que assegurem a preservação ambiental. Não é despiciendo insistir, inclusive pelas repercussões práticas que daí advém, que se trata ali de forma especial de disciplina do uso do bem, da posse em sentido lato, e não do direito de propriedade, dessas extensas áreas do território nacional. As conseqüências práticas dessa distinção são percebidas, por exemplo, nas inúmeras questões judiciais, relativas ao Parque Estadual da Serra do Mar, no Estado de São Paulo, envolvendo o Poder Público e os proprietários, estes reclamando indenizações milionárias, por suposta “desapropriação indireta” em face das limitações visando a preservação da área4 . Significativa, também, a disciplina constitucional dada às terras ocupadas pelos povos indígenas, cuja propriedade é da União (CF, art. 20, XI): “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” (art. 231, § 2o), sendo vedada a sua remoção daqueles locais “salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe que ponha em risco a sua população, ou no interesse da soberania do País, após a deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco” (§ 5o). É modo especialíssimo de tutela da posse em favor de não-proprietário, e paralelamente ao direito de propriedade, com a finalidade de atingir a peculiar função social por ela desenvolvida, já que se trata de condição indispensável para preservar e assegurar aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, compromisso decorrente do artigo 231 da Constituição.

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- Sobre o tema: Manoel de Queiroz Pereira Calças, “Desapropriação indireta e o Parque Estadual da Serra do Mar”, Revista de Direito Ambiental, n. 6, p. 62.

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b) Casos de proteção específica Além da tutela da posse com a finalidade de concretizar objetivos expressamente enunciados, como nos exemplos acima, a Constituição estabeleceu duas hipóteses específicas de tutela do possuidor em face do proprietário, viabilizando, por meio dela, aquisição do direito de propriedade. São formas especiais de usucapião. Num primeiro caso, a posse é tutelada para valorizar a função social representada pelo trabalho rural e pela moradia do pequeno agricultor. É a usucapião pro-labore, prevista no artigo 191: “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirirlhe-á a propriedade” . Com semelhante finalidade, agora para fazer preponderar, contra o direito de propriedade, o princípio da função social representado pela posse do bem utilizado como moradia de pessoa carente, é a espécie de usucapião de que trata o artigo 183: “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural” . Evidencia-se, do exposto, que a tutela constitucional da posse operase pela funcionalidade, vale dizer, em vista da obtenção de objetivos especiais, enunciados de forma expressa ou compreendidos, genericamente, no princípio da função social das propriedades. Este mesmo desiderato está presente no novo Código Civil, como adiante se verá.

2. Posse no novo Código Civil a) Posse simples: As regras sobre posse encartadas no antigo Código Civil estão reproduzidas, sem maiores alterações de conteúdo, pelo novo Código. Manteve-se inclusive a estrutura do respectivo Livro (III), referente ao Direito das Coisas, que, em ambos é a seguinte: “Título I – Da posse; Capítulo I – Da posse e sua classificação; Capítulo II – Da aquisição da posse; Capítulo III – Dos efeitos da posse; Capítulo IV – Da perda da posse”. O anterior artigo 485, básico para a definição do instituto, tem correspondência no atual 1.196,

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nos seguintes termos: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio”. Segundo a exposição de motivos da Comissão que elaborou o Anteprojeto, a manutenção das principais regras que atualmente regulam a posse como simples poder manifestado sobre uma coisa (a que se pode denominar “posse simples”, em contraposição à posse qualificada de que adiante se tratará), representa “demonstração cabal da objetividade crítica”, que assim buscou “salvaguardar o cabedal da valiosa construção doutrinária e jurisprudencial resultante de mais de meio século de aplicação”5 .

b) Posse qualificada: Porém, sem comprometimento dos ganhos doutrinários e jurisprudenciais enunciados, o novo Código traz avanços importantes, a começar pela nova configuração do instituto da usucapião. Assim, no que se refere à usucapião extraordinária (fundada em posse independentemente de justo título e boafé), reduz-se o prazo (CC/16, art. 550) de vinte para quinze anos (art. 1.238), em se tratando de posse simples; e reduz-se mais ainda, para dez anos, “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizar obras ou serviços de caráter produtivo” (§ único). E, no que diz respeito à usucapião ordinária (posse com justo título e boa fé), cujo prazo exigido era de quinze anos entre ausentes e dez entre presentes (CC/16, art. 551), o novo Código fixa o prazo em dez anos (art. 1.242), se de posse simples se tratar, reduzindo-o para cinco “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base em transcrição constante do registro próprio, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem a sua moradia, ou realizado investimento de interesse social e econômico” (§ único). Já aí se percebe a notável tutela que se passa a dar à chamada “posse qualificada”, marcada por um elemento fático caracterizador da função social: é a posse exercida a título de moradia e enriquecida pelo trabalho ou por investimentos. Surge, assim, um novo conceito de posse, decorrente do que Miguel Reale denominou “princípio da socialidade”, distinta da que decorre dos “critérios formalistas da tradição romanista, a qual não distingue a posse simples, ou improdutiva, da posse acompanhada de obras e serviços realizados nos bens possuídos”6 . 5

Diário do Congresso Nacional de 13.06.75, Seção I, Suplemento B, p. 120.

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Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, cit., p. 33.

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E essa mesma posse qualificada que fundamenta as espécies de usucapião, agora incorporadas ao Código, de que tratam os artigos 191 e 183 da Constituição Federal, a saber: a usucapião de imóvel rural fundada em posse qualificada pelo trabalho e pela habitação (art. 1.239) e a usucapião de imóvel urbano fundada em posse qualificada pela habitação (art. 1.240).

c) O § 4o do artigo 1.228 do Código Civil Considerado o ponto alto do novo Código, no que se refere à tutela da posse, é o instituto da chamada “desapropriação judicial”. Segundo dispõe o § 4o, do artigo 1.228, “o proprietário pode também ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas houverem nela realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”. E o § 5o: “No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para a transcrição do imóvel em nome dos possuidores”. Para Miguel Reale, é “inovação do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo posse-trabalho (...). Na realidade, a lei deve outorgar especial proteção à posse que se traduz em trabalho criador, quer este se corporifique na construção de uma residência, quer se concretize em investimentos de caráter produtivo ou cultural. Não há como situar no mesmo plano a posse, como simples poder manifestado sobre uma coisa, ‘como se’ fora atividade do proprietário, com a ‘posse qualificada’, enriquecida pelos valores do trabalho. Este conceito fundante de ‘posse-trabalho’ justifica e legitima que, ao invés de reaver a coisa, dada a relevância dos interesses sociais em jogo, o titular da propriedade reivindicada receba, em dinheiro, o seu pleno e justo valor, tal como determina a Constituição. Vale notar que, nessa hipótese, abre-se, nos domínios do direito, uma via nova de desapropriação, que se não deve considerar prerrogativa exclusiva dos Poderes Executivo ou Legislativo. Não há razão plausível para recusar ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casos concretos, como o que se contém na espécie analisada”7 . 7

- Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, cit., p. 82.

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Segundo resulta do dispositivo transcrito, são os seguintes os requisitos mais importantes do novel instituto: a) quanto ao bem: há de se tratar de imóvel consistente de “extensa área”, objeto de ação de reivindicação; b) quanto à posse: há de ser ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, qualificada pela realização de obras e serviços considerados de interesse social e econômico relevante; c) quanto aos possuidores: devem ser em “considerável número”. A aquisição da propriedade pressupõe o pagamento de um preço, correspondente à justa indenização fixada pelo juiz. Embora não seja expresso a respeito o dispositivo, não há dúvida de que tal pagamento deve ser feito pelos possuidores, réus na ação reivindicatória. Dogmaticamente, a instituto desafiará a argúcia da doutrina e, sobretudo, dos juizes. Fundado em diversos conceitos abertos (“extensa área”, “considerável número de pessoas”, “obras e serviços de interesse econômico e social relevante”, “justa indenização”), haverá de ter sua finalidade social bem compreendida para que possa ser adaptado às variantes circunstanciais do cada caso concreto. Por outro lado, o conflito de interesses poderá surgir não apenas no âmbito de ações reivindicatórias, como suposto no dispositivo, mas também em interditos possessórios, não sendo plausível negar-se, nessas situações, a utilização, pelos possuidores demandados, das prerrogativas asseguradas pelo instrumento agora proposto. O que se quer, em suma, enfatizar, é que a interpretação teleológica do dispositivo haverá de presidir a sua aplicação, seja para preencher valorativamente os conceitos abertos, seja para acomodar sob seu pálio as possíveis variantes análogas que a realidade vier a apresentar no futuro. A legitimidade constitucional do novo instituto foi objeto de questionamento, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado. Seus opositores sustentam haver nele inconstitucionalidade evidente, por ofensa ao direito de propriedade, que não pode ser comprometido a não ser pelas formas desapropriatórias que a Constituição prevê. Os pareceres emitidos na Câmara, pela constitucionalidade, têm por base o argumento de que se está diante de desapropriação por interesse social8 . Bem se vê que as duas orientações, pró e contra, partem da suposição, influenciada certamente pela exposição de motivos, de que o instituto em causa é espécie de desapropriação. Ora, não se pode negar a fragilidade de tal afirmativa. A desapropriação é ato de natureza administrativa e, no caso, o ato do

8

Ver, a propósito: Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil,, p. 34.

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juiz é tipicamente jurisdicional: ele simplesmente resolve um conflito de interesses entre particulares, decidindo num sentido ou em outro, segundo estejam atendidos ou não os pressupostos legais. O juiz não poderá “desapropriar” sem que os interessados o peçam expressamente, até porque eles é que sofrerão os ônus correspondentes, de pagar o preço e serão eles, e não o Poder Público, que adquirirão a propriedade. O Estado sequer é parte no processo, atuando nele como órgão jurisdicional Se fôssemos comparar com algum instituto já formado e sedimentado em nosso sistema, haveríamos de fazê-lo, não com o da desapropriação, mas com o da usucapião. Pelos seus requisitos (“posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos”) assemelha-se à usucapião, com a única diferença de que, para adquirir a propriedade, os possuidores-usucapientes ficam sujeitos a pagar um preço. Ou seja: é espécie de usucapião onerosa. Todavia, comparações à parte, o que o novo instituto faculta ao juiz não é desapropriar o bem, mas sim converter a prestação devida pelos réus, que de específica (de restituir a coisa vindicada), passa a ser alternativa (de indenizá-la em dinheiro). Nosso sistema processual prevê várias hipóteses dessa natureza, notadamente em se tratando de obrigações de fazer e de obrigações de entregar coisa. É de se mencionar, pela similitude com a situação em exame, o caso em que há apossamento de bem particular pelo Poder Público, sem o devido processo legal de desapropriação (desapropriação nula). Também nesse caso nega-se ao proprietário a faculdade de reivindicá-lo – seja por ação reivindicatória, seja por interditos possessórios – convertendo-se a prestação em perdas e danos. É o que estabelece a Lei das Desapropriações (Decreto Lei n. 3.365, de 21.06.41), art. 35: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”. No mesmo sentido: Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30.11.64), art. 23 e a Lei Complementar n. 76, de 06.07.93, art. 21, tratando da desapropriação para fins de reforma agrária. No caso da denominada “desapropriação judicial”, ora em comento, a situação fática valorizada no Código é também a “incorporação” do imóvel a uma função social, representada pelas obras e serviços relevantes nele implantados. Solução em tudo semelhante, atribuindo ao juiz a possibilidade de converter prestação específica em alternativa – e cuja constitucionalidade não é posta em questão - é dada pelo novo Código no § único do artigo 1.254, nos casos em que alguém edifica ou planta em terreno alheio. Nesses casos, diz o dispositivo, “se a construção ou a plantação exceder con-

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sideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou adquirirá a propriedade do solo, mediante indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”. Como se vê, é situação assemelhada à do § 4o em comento: lá como aqui, converte-se a prestação específica de restituir a coisa em prestação alternativa de repô-la em dinheiro. Se de desapropriação não se trata. como justificar, então, a constitucionalidade de normas como a do § 4o do artigo 1228 do Código Civil? Em nosso entender, o fundamento da legitimidade pode ser buscado a partir das premissas aludidas na parte introdutória do presente estudo. Com efeito, o dispositivo do Código constitui forma de solucionar um fenômeno de colisão entre o princípio do direito de propriedade (que inclui a faculdade de utilizar a ação reivindicatória e os interditos possessórios para haver a coisa de quem injustamente a possua – Código Civil, art. 1.228, caput), e o princípio da função social da propriedade (considerado atendido, nas circunstâncias, pela forma e pelo modo como o bem está sendo utilizado pelos possuidores não-prorietários). Ponderando os valores constitucionais em conflito, o novo Código opta por solução que privilegia o princípio da função social. Aliás, o próprio Professor Reale, em passagem referida, deixou claro que “não há como situar no mesmo plano a posse, como simples poder manifestado sobre uma coisa, ‘como se’ fora atividade do proprietário, com a ‘posse qualificada’, enriquecida pelos valores do trabalho. Este conceito fundante de ‘posse-trabalho’ justifica e legitima que, ao invés de reaver a coisa, dada a relevância dos interesses sociais em jogo, o titular da propriedade reivindicada receba, em dinheiro, o seu pleno e justo valor, tal como determina a Constituição”9 . Nessa linha também as observações do Professor Luiz Edson Fachin, ao analisar as emendas apresentadas pelos Senadores Gabriel Hermes (Emenda n. 135) e Álvaro Dias (Emenda n. 141) propondo a supressão do dispositivo, por ofensa à garantia do direito de propriedade. Salientou ele que a manutenção da proposta se justificava constitucionalmente por guardar coerência “com o sentido de função social da propriedade”, sendo que a “alegada ‘garantia’ não pode estar acima do princípio constitucional da função social”10 . As citadas emendas foram rejeitadas no Senado justamente pela razão, constante do parecer do relator geral, Senador Josa-

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- Miguel Reale, O Projeto ..., cit., p 82.

10

- Sugestões encartadas em “O Projeto de Código Civil no Senado Federal”, Brasília, Senado Federal, 1998, vol. II, páginas 311 e 317.

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phat Marinho, de que o instituto constante do Projeto “é uma decorrência da ‘função social’ da propriedade, proclamada na Constituição”11 . É justamente isso que ocorre também nas chamadas “desapropriações indiretas”, a seguir vistas. A ação de desapropriação indireta, segundo o entendimento assentado no Supremo Tribunal Federal, “tem o caráter de ação reivindicatória, que se resolve em perdas e danos, diante da impossibilidade do imóvel voltar à posse do proprietário, em face do caráter irrecorrível da afetação pública que lhe deu a Administração Pública”12 .

Parte II: Os novos conflitos possessórios: Perspectivas constitucionais para sua soluçâo 1. Desapropriação indireta O instituto da usucapião, já sedimentado em nosso direito, e o da chamada “desapropriação judicial”, agora desenhada no novo Código Civil, constituem, conforme se acabou de demonstrar, formas encontradas pelo legislador para dirimir crises de tensão concreta entre o direito de propriedade e o princípio da função social das propriedades, ambos de estatura constitucional. Colisões semelhantes, todavia, podem ocorrer em circunstâncias novas, para as quais não se terá em mãos a fórmula previamente estabelecida em lei para solucionar o impasse. Diante da omissão legal, cabe ao juiz criá-la. Afinal, “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei” (CPC, art. 126). Terá como parâmetro a analogia – que lhe permite adotar para o caso solução dada pelo legislador a caso semelhante – e os princípios gerais de direito, estes aplicados com a devida ponderação, à luz das circunstâncias e dos valores colidentes em concreto. É o que tem ocorrido nos casos de desapropriação indireta. Conceitua-se como tal a ocupação, pela Administração, de propriedade privada, sem observância de prévio processo de desapropriação, para implantar

11

- Parecer publicado em “O Projeto de Código Civil no Senado Federal”, Brasília, Senado Federal, 1998, vol. I, p. 386.

12

- Cláudia de Resende Machado de Araújo, “Desapropriação indireta”, Revista de Informação Legislativa, 131/ 277.

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obra ou serviço público. O ato inicial constitui, no entendimento maciço da doutrina e da jurisprudência, típico esbulho possessório. Ocorre que, implantada a obra ou o serviço – e, portanto, afetado o bem a destinação de interesse público – surge conflito de interesses entre o proprietário (esbulhado) e a Administração. A solução dada pelo Judiciário é a de converter a prestação específica (de restituir o bem) em prestação alternativa, de pagar o equivalente em dinheiro, um “justo preço”. Daí a denominação de desapropriação indireta. Quem examina essa solução pretoriana à luz, exclusivamente, do direito de propriedade, chega à conclusão de sua manifesta inconstitucionalidade. Isso porque, dizem os arautos dessa tese, a Constituição teve “um propósito radical, que foi o de acobertar a propriedade particular contra as arremetidas do poder político. Para tanto, desenhou com milimétrica precisão o seu perfil jurídico e, de parelha, indicou de modo exauriente as possibilidades tanto do seu despojamento definitivo quanto provisório”, e nesse sentido qualificou a propriedade como “direito subjetivo inviolável”, (....) bem jurídico equiparável à vida, à liberdade e à segurança, que são os valores da mais alta hierarquia, no sistema constitucional pátrio”13 . Entretanto, olhada sob o prisma do interesse público e da destinação social do bem, pode-se legitimar constitucionalmente a solução judicial. Não teria sentido algum, com efeito, em nome do direito de propriedade, comprometer a obra pública já realizada e já incorporada a uma destinação comunitária. Aqui, o princípio da função social, tomada no sentido amplo, deve ser privilegiado em face do estrito interesse particular do proprietário. A solução adotada, que se traduz pela conversão da prestação específica (restituição do bem) em prestação alternativa de perdas e danos, representa, assim, criação pretoriana de regra para dirimir a colisão, no caso verificada, entre o princípio do direito de propriedade e o da função social. Privilegia-se o segundo, mas sem comprometer inteiramente o primeiro, cuja satisfação in natura é substituída pela obrigação de indenizar.

2. Ocupações coletivas de áreas urbanas e rurais Fenômeno quase diário de nossa moderna realidade social é a ocupação, por parte de pessoas carentes, quase sempre organizadas em grupo, 13

- Carlos Ayres de Britto e José Sérgio Monte Alegre, “Desapropriação indireta – inconstitucionalidade”, Revista de Direito Público, 74/244.

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de terrenos ou prédios urbanos, particulares e públicos, para ali fixar sua moradia. Fatos idênticos têm ocorrido no campo, patrocinados também por movimentos sociais organizados, nomeadamente o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, em que áreas rurais são ocupadas por famílias de camponeses, que nelas se instalam com suas barracas e seus instrumentos de trabalho agrícola. São os modernos e graves conflitos possessórios, que geralmente redundam em demandas judiciais de iniciativa dos proprietários, a busca de tutela do seu direito de propriedade. Não raro, os fatos são até objeto de processos de natureza criminal, sob acusação de prática do delito de esbulho possessório e de formação de quadrilha para a prática de tal crime. Em nosso sistema, com efeito, o esbulho possessório está tipificado no art. 161, § 1o, II, do Código Penal, sujeitando à pena de detenção, de um a seis meses, e multa, quem “II – invade, com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante o concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório”. E o crime de quadrilha ou bando (pena de reclusão, de um a três anos), tem, à sua vez, a seguinte tipificação no artigo 288 do Código Penal, art. 288: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”. Como solucionar juridicamente tais conflitos, é a questão que desafia juristas e juizes. O exame da jurisprudência permite verificar que as decisões levam em especial consideração as peculiares circunstâncias do caso concreto, e não há como ser diferente, dadas as múltiplas facetas que tais espécies de conflito apresentam. Todavia, pode-se afirmar que, no que se refere às demandas de natureza cível, têm-se privilegiado, de um modo geral, a garantia do direito de propriedade. É que, diferentemente do que ocorre nas hipóteses de desapropriação indireta, ou nas de usucapião especial pro-labore ou urbano (em que a tutela do possuidor ocorre quando a afetação do bem ao patrimônio público, ou a sua destinação à moradia ou ao trabalho produtivo, já está plenamente consolidada, o que legitima o privilégio ao princípio da função social), no caso das ocupações, a reação do proprietário ocorre imediatamente, de modo que não se pode afirmar a existência, naquele momento, de uma situação fática por si só valiosa, do ponto de vista social ou jurídico, em favor dos ocupantes, a ponto de permitir a limitação das faculdades decorrentes dos direito de propriedade em benefício de outro princípio constitucional. Aliás, nem é isso, aparentemente, o que os movimentos sociais organizados esperam obter com as ocupações. O que buscam, na verdade, é a criação de um fato político, apto a desencadear conseqüências de natu-

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reza também política, mais especificamente a da sensibilização dos governantes no sentido de implantar políticas públicas que privilegiem o acesso à moradia, à terra e à reforma agrária. Há de se registrar, entretanto, a existência de corrente jurisprudencial em outro sentido, minoritária, reconhecendo a legitimidade da permanência, ainda que provisória, dos ocupantes da área, em nome “da garantia a bens fundamentais como mínimo social” das pessoas carentes14 . Da mesma forma, no campo doutrinário, não se pode também deixar de considerar os valiosos posicionamentos, cada vez mais incisivos, na defesa da relativização sempre maior do princípio do direito de propriedade. Reage-se, assim, ao quadro histórico do direito brasileiro, que deixa a impressão, já anotada com perplexidade, de que “tanto o constituinte quanto o legislador ordinário se preocupam mais com as técnicas de garantir a proteção da propriedade do que em resguardar o direito à vida”15 . São nessa linha, por exemplo, as posições de Fábio Konder Comparato, a sustentar: “Quando a Constituição declara, como objetivos fundamentais do Estado brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3o), é óbvio que ela está determinando, implicitamente, a realização pelo Estado, em todos os níveis – federal, estadual e municipal – de uma política de distribuição eqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à exploração agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradias. A não-realização dessa política pública representa, indubitavelmente, uma inconstitucionalidade por omissão” .(...). “O descumprimento do dever social de proprietário significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade, reconhecido doravante pelo sistema constitucional. Nessa hipótese, as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente à da exclusão das pretensões possessórias de outrem, devem ser afastadas (...). Quem não cumpre a função social da propriedade perde as garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes

14

- Nesse sentido: Tribunal de Justiça do RGS, 19a Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 598 360 402, relator para o acórdão Des. Guinther Spode, julgado em 06.10.98, em cuja ementa constou: “Garantia a bens fundamentais como mínimo social. Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de agasalho, casa e refúgio do cidadão”.

15

- Isabel Vaz, Direito Econômico das Propriedades, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 1.

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à propriedade (Código Civil, art. 502) e as ações possessórias. A aplicação das normas do Código Civil e do Código de Processo Civil, nunca é demais repetir, há de ser feita à luz dos mandamentos constitucionais, e não de modo cego e mecânico, sem atenção às circunstâncias de cada caso, que podem envolver o descumprimento de deveres fundamentais”. Ora, transposta tal doutrina do plano do discurso ao plano real, “nada impede, por exemplo, que a Administração Pública, quando de uma desapropriação, ou o Poder Judiciário, no julgamento de uma ação possessória, reconheçam que o proprietário não cumpre o seu dever fundamental de dar ao imóvel uma destinação de interesse coletivo, e tirem desse fato as conseqüências que a razão jurídica impõe”16 . Essa bipolarização de pensamento fica ainda mais nítida quando se examina a questão sob o ponto de vista da repressão penal das condutas antes referidas, cuja jurisprudência parece não ter encontrado um rumo mais definido. Há julgados privilegiando sobremaneira o direito de propriedade, e, por isso mesmo, sustentando a legitimidade da prisão cautelar dos líderes dos movimentos sociais, acusados de formar quadrilha para a prática do crime de esbulho. Sustentou-se, em precedente sobre o tema, que o ato de invasão constitui “ação delituosa a atentar contra a paz social”, sob todos os aspectos injustificável, porque “as sociedades civilizadas vivem em função de um ordenamento jurídico que estabelece e limita as ações de seus integrantes. Nele figura o preceito constitucional que garante o direito de propriedade. Admitir-se que terceiros passem a acometer o patrimônio alheio, a pretexto de questão social, será o esfacelamento de todo o ordenamento jurídico do País. Hoje invadem as propriedades rurais (...). Amanhã poderão invadir indústrias, fábricas e estabelecimentos comerciais, assegurada a impunidade a pretexto de ‘problemas sociais’. Isso representaria o óbito do Estado e da sociedade juridicamente organizada. E isso o Poder Judiciário não pode admitir”17 . Em sentido exatamente oposto, já se decidiu que a implantação da reforma agrária é obrigação imposta ao Estado pela Constituição, a ela correspondendo o “direito público subjetivo de exigência de sua concretização”, sendo que “na ampla dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais (...). A postulação por reforma agrária (...) não pode ser confundida com o esbu16

- Fábio Konder Comparato, “Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, v. 1, n. 3, p. 97.

17

- STJ, 6a Turma, Habeas Corpus 4.399, LEX-JSTJ e TRF 84/311.

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lho possessório ou a alteração de limites (...). Não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania”18 . Subjaz aqui também, à toda evidência, o conflito aqui reiteradamente enunciado, entre princípios constitucionais, cada qual a refletir valores jurídicos distintos, mas de mesma estatura. Não há, para tais situações, solução que se possa considerar como predeterminada. Cabe ao juiz, mediante a devida ponderação do caso concreto, criar regra de solução que comprometa o mínimo possível os valores colidentes e faça prevalecer aquele que, nas circunstâncias, puder ser considerado objetivamente preponderante.

CONCLUSÃO O que se pode retirar como suma conclusiva do exposto é que posse e propriedade são institutos autônomos, tutelados sob enfoque de distintos princípios constitucionais. Harmônicos no plano normativo, os princípios do direito de propriedade e da função social das propriedades podem envolver-se em situações concretas de tensão, quando tracionam em direção oposta, a exigir solução de concordância prática que, fatalmente, importará a necessidade de limitação de um deles em benefício do outro, ou de ambos, em benefício comum do sistema. A Constituição, embora não assegure, explicitamente, um genérico “direito à posse”, inegavelmente tutela a posse quando necessário para atingir finalidades específicas, entre as quais a da concretização do princípio da função social das propriedades. Das suas disposições normativas e dos seus princípios é que se deve extrair os marcos norteadores, fundantes e legitimadores (a) das normas infraconstitucionais que tutelam a posse, nomeadamente nos casos em que há comprometimento do direito de propriedade (como ocorre na usucapião e na denominada “desapropriação judicial”, do novo Código Civil); e (b) das soluções pretorianas para outros conflitos entre posse e propriedade, de natureza cível e penal, para os quais não há regramento positivado, ou este se mostra inadequado ou insuficiente, quando então cumpre ao juiz, ele próprio, formular a solução harmonizadora, o que fará 18

- STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus 5.574, LEX-JSTJ e TRF 100/215.

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à luz daqueles mesmos princípios, ponderando-os adequadamente e fazendo prevalecer o que, nas circunstâncias do caso, melhor representar a concretização dos bens e valores constitucionais.

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A Constituição Deve Constituir Constitution Should Constitute LÉO BRUST Doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Salamanca - Espanha Mestre em Ciência Política pela Universidade Técnica de Lisboa – Portugal Professor de Direito Constitucional da ULBRA e Advogado [email protected]

RESUMO Partindo da consolidação do constitucionalismo na Europa, é abordada a ductilidade da constituição em sociedades plurais, defendida por G. Zagrebelsky, sua viabilidade em países desenvolvidos e a necessidade de uma constituição dirigente em países em desenvolvimento como o Brasil. Palavras-chave: Constituição, pluralismo, ductilidade.

ABSTRACT From the consolidation of constitutionalism in Europe, it is approached the constitution ductility in plural societies, defended by G. Zagrebelsky, its viability in developed countries and the necessity of a directive constitution in developing countries as Brazil. Key words: Constitution, pluralism, ductility.

INTRODUÇÃO A supremacia da constituição dos Estados Unidos da América man-

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p.29-48 29

tém-se há dois séculos e, praticamente, confunde-se com a conquista de sua independência. Na Europa foram necessárias duas guerras sangrentas no Século XX, para que a constituição passasse a ser considerada suprema. O fim do colonialismo na América Latina fez surgir novos Estados e novas constituições, que inicialmente sofreram influência norte-americana, em particular na implantação do controle difuso de constitucionalidade, e européia, no que se refere à supremacia do Parlamento apregoada pela Revolução Francesa. Atualmente, as cartas latino-americanas têm em comum a baixa efetividade, pois parte de suas normas – especialmente os princípios – acabam não sendo aplicadas, por serem consideradas meramente programáticas ou carentes de regulação em lei. O Brasil não foge à regra, apesar de o controle da constitucionalidade das normas remontar à primeira constituição republicana (1891). A história constitucional européia teve um desenvolvimento vertiginoso na segunda metade do Século XX, após o advento das constituições de Alemanha e Itália, que levou à constitucionalização plena de seus diversos ordenamentos jurídicos. A ampla supremacia da constituição teve por conseqüência o aumento do poder dos juízes encarregados de controlar a constitucionalidade das normas. Nos últimos vinte anos têm surgido algumas concepções teóricas que procuram mitigar esse poder, como é o caso da chamada constituição dúctil, desenvolvida por Gustavo Zagrebelsky. Essa teoria parte do pluralismo das sociedades atuais e da perda do centro ordenador do Estado, para defender a coexistência de leis, direitos e justiça, entendendo que deve haver equilíbrio entre os princípios fundamentais da constituição, apenas possível se for reservado amplo espaço para a apreciação política do Parlamento através de lei. Numa época em que se defende a ductilidade do direito constitucional na Europa, a Constituição Brasileira de 1988 contém princípios e objetivos fundamentais a serem observados pelos três poderes do Estado, independentemente da ideologia do governante ou da maioria parlamentar do momento. São princípios de justiça inscritos pelo poder constituinte originário, que visam erradicar a pobreza e as desigualdades, construindo uma sociedade livre e desenvolvida. Um verdadeiro programa dirigente transformador da sociedade. Com tais objetivos, uma constituição dirigente parece ter perdido o sentido em países que já alcançaram ou, mesmo, ultrapassaram o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). E no Brasil?

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1. A constituição se impõe Nos Estados Unidos da América, a disputa entre o Poder Legislativo, como expressão da vontade geral do povo, e o Poder Judiciário, que tinha a pretensão de controlar constitucionalmente o acerto da interpretação dessa vontade concretizada na lei, foi vencida pelos magistrados. A emblemática decisão do caso Marbury v. Madison pela Suprema Corte, em 1803, consagrou a supremacia da Constituição, como fator básico de garantia dos direitos e do equilíbrio do sistema político, possibilitando ao Poder Judiciário declarar a inconstitucionalidade das leis e de outros atos do Poder Público contrários às normas constitucionais. O modelo norteamericano exige que o juiz, nos casos concretos, aplique diretamente a Constituição, quando a lei ordinária lhe for incompatível. Se a questão chegar à Suprema Corte, o princípio do stare decisis permite que a decisão passe a ter efeito vinculante para todos os órgãos judiciais e erga omnes. Se for declarada inconstitucional, a lei passa a ser considerada nula para todos os fins legais. A história jurídica da Europa, por outro lado, foi contada por suas leis praticamente até o segundo pós-guerra. A Revolução Francesa se caracterizou pela imposição das leis como veículos da vontade popular e limites aos governantes, que, assim, ficaram impedidos de governar baseados somente em sua própria autoridade. Haveria de ser respeitada a reserva legal. Rousseau em seu “Contrato Social” chegou a dizer que “a Lei não pode ser injusta, posto que ninguém é injusto em relação a si próprio” e que “cada um, unindo-se a todos, não obedece mais que a si mesmo e permanece tão livre como antes”.1 O primado da lei ficou sacramentado no art. 4 da Declaração de Direitos de 1789, cuja redação prevê que a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica aos outros, cabendo à lei estabelecer os limites dos direitos naturais. Nesse contexto, a constituição era considerada um texto meramente programático e, portanto, sem qualquer efetividade. Os acontecimentos ocorridos na Alemanha, cujo sistema constitucional/legal (Weimar) permitiu a um partido político instalar legalmente uma ditadura e levar aquele país às atrocidades da 2ª Guerra Mundial, fez com que no pós-guerra as renascentes democracias européias passassem a dotar suas constituições de valores indisponíveis pelo Parlamento e 1

apud GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Justicia y seguridad jurídica en un mundo de leyes desbocadas. Madrid: Civitas, 2000, p. 25,

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pelo Executivo. Os direitos fundamentais passaram a ser conteúdo essencial das constituições, assim como já o era a organização do Estado, e definir o direito deixou de ser uma prerrogativa exclusiva da lei. Esta passou a estar condicionada pelos termos da constituição – agora rígida e foram instituídos mecanismos de controle para aferir a sua constitucionalidade. Esse movimento ocorreu na Europa continental, não chegando a afetar o Reino Unido, que permaneceu com o seu tradicional sistema common law e uma constituição não-escrita (flexível). Grécia, Suécia, Noruega e Dinamarca possuem sistemas de justiça constitucional inspirados no modelo norte-americano. A França - de Rousseau e da Revolução - possui um sistema que procura preservar o valor da lei e, por conseguinte, prestigiar o Parlamento. Sua peculiaridade é a de impedir a anulação de uma lei já vigente. O controle é feito por um Conselho da Constituição de forma totalmente preventiva (a priori), isto é, no decurso do processo legislativo e antes de sua promulgação. O sistema francês, obviamente, não garante a constitucionalidade futura da lei, pois seus efeitos inconstitucionais quase sempre são percebidos apenas quando de sua aplicação a um caso concreto. Se tal ocorrer, como inexiste um controle a posteriori, o vício apenas poderá ser sanado com a feitura de uma nova lei pelo Legislativo. José Afonso da Silva2 o considera um controle de natureza não-jurisdicional, com o que não concorda Louis Favoreu.3 A maioria dos países europeus, contudo, aderiu às idéias de Kelsen que as tinha posto em prática na constituição da Áustria (1920) - e atribuiu a fiscalização da constitucionalidade das normas a um tribunal único e independente dos três poderes (ad hoc), mas normalmente integrado por seus representantes, com o acréscimo de advogados e professores universitários. Possuem um controle concentrado num Tribunal Constitucional: Áustria (1945, restabelecimento), Itália (1948), Alemanha (1949), Portugal4 (1976), Espanha (1978), Bélgica (1983) e vários países do antigo bloco comunista. É conhecido como modelo ou sistema europeu de controle da constitucionalidade (concentrado e abstrato), por contrapor-se ao norte-americano (difuso e concreto), e, segundo Cruz Villalón5 , “baseia-se num processo autônomo de constitucionalidade ante um órgão 2

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51.

3

FAVOREU, Louis. Los Tribunales Constitucionales. Barcelona: Ariel, 1994, p. 102 e seg.

4

Portugal possui também um controle difuso.

5

CRUZ VILLALÓN, Pedro. La formación del sistema europeo de control de constitucionalidad (1918-1939). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1987, p. 35.

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jurisdicional único e específico, encaminhado por um órgão constitucional ou fração do mesmo, ou então por um juiz ou tribunal por ocasião da resolução de um processo concreto, com efeitos imediatos ou ‘gerais’ sobre a validade ou, quando menos, a vigência da norma submetida a controle, a partir de uma sentença6 declaratória de inconstitucionalidade”. Para Cruz Villalón, a legitimidade dos Tribunais Constitucionais como órgãos de jurisdição constitucional é fruto de sua função, de sua origem e de seu exercício. A legitimidade da função provém: a) da aceitação da legitimidade da própria constituição; b) da garantia dos direitos fundamentais a todos os cidadãos, independentemente da vontade da maioria; e c) da neutralidade do Tribunal perante os demais órgãos. A legitimidade da origem é garantida pelo sistema de escolha de seus componentes pelos três poderes do Estado e pela permanência do Tribunal para além dos mandatos dos governos e das maiorias parlamentares. A legitimidade do exercício ocorre por conta de um procedimento jurisdicional baseado em decisões fundamentadas, argumentadas e racionalizadas, distintas de um ato de natureza política.7 É necessário frisar que o Tribunal Constitucional idealizado por Kelsen - fora da estrutura do judiciário, mas com as mesmas garantias de seus magistrados – deveria atuar exclusivamente como “legislador negativo”, isto é, suas sentenças deveriam limitar-se a anular as leis incompatíveis com a constituição, cabendo ao Parlamento desenvolver uma nova. Sua “pirâmide legislativa”, portanto, a par de garantir em seu ápice a supremacia da constituição, “salvava” a lei como ato criador de direito. Todavia, a possibilidade de o Tribunal Constitucional anular leis, com efeito vinculante aos três poderes e erga omnes, determinou o fim da supremacia do Parlamento na Europa. Decorre daí a gradual ampliação de sua atuação jurisdicional, imediatamente constatável na efetividade plena dos direitos fundamentais - sem intermediação de lei - e nas técnicas de interpretação conforme à constituição8 (declarar a interpretação da lei considerada constitucional) e de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto (declarar a interpretação considerada inconstitucional), e a conseqüente emissão de sentenças interpretativas, manipula-

6

Designa na Europa também as decisões dos Tribunais (Portugal usa acórdão).

7

CRUZ VILLALON, Pedro. “Legitimidad de la justicia constitucional y principio de la mayoría”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 86 e seg.

8

A lei não deve ser declarada nula quando puder ser interpretada em consonância com a Constituição.

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tivas ou aditivas.9 Ainda assim, por paradoxal que possa parecer, o tribunal ad hoc configura um privilégio ao legislador, que tem, deste modo, o seu próprio juiz, não correndo o risco de ser desautorizado por um outro poder, como ocorre no sistema norte-americano e no brasileiro. É, pois, uma concessão, mas não deixa de ser também um fruto contemporâneo da Revolução Francesa e a sua notória desconfiança em relação ao Poder Judiciário. O sistema europeu permite a apenas alguns legitimados a interposição de ações diretas de inconstitucionalidade, que devem limitar-se a um questionamento abstrato das normas. Em alguns países há a chamada “questão de inconstitucionalidade”, que possibilita ao juiz, no decurso de uma ação concreta, submeter diretamente à apreciação do Tribunal Constitucional a lei aplicada ao caso, que considere inconstitucional. Na Espanha e na Alemanha os cidadãos têm legitimidade para interpor recurso ao Tribunal Constitucional, se autoridades públicas vulnerarem os seus direitos fundamentais (respectivamente, Recurso de Amparo e Verfassungsbeschwerde). No que se refere ao Poder Judiciário, este deixou de ser o poder nulo apregoado por Montesquieu. Os juízes europeus estão, cada vez mais, dizendo o direito que deve estar contido na lei e a jurisprudência dos tribunais de há muito é ferramenta indispensável aos operadores do direito. Essa maior participação do Judiciário é apontada por alguns autores, como sintoma de uma certa aproximação com o sistema norte-americano. Por outro lado, a Suprema Corte dos Estados Unidos é hoje - um autêntico juiz especial das grandes questões de constitucionalidade, a exemplo do Tribunal Constitucional. A ampla rede de controles de constitucionalidade existentes nos diversos ordenamentos jurídicos demonstra a supremacia alcançada pela constituição. A soberania do legislador cedeu passo à supremacia da constituição, aduz Vital Moreira10 : “a idéia base é a de que a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei fundamental. A limitação da vontade da maioria ordinária decorre da supremacia de uma maioria mais forte.” Luigi Ferrajoli11 , ao referir-se à superação do estado legis9

A polêmica existente na Europa sobre os efeitos desses tipos de sentença, não ocorre no Brasil. O art. 28, parágrafo único, da lei 9868/99 estabelece que elas têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

10

MOREIRA, Vital. “Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 179.

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lativo de direito, pelo estado constitucional de direito, esclarece que “as constituições, e os princípios e direitos fundamentais por elas estabelecidos, passaram a configurar-se como pactos sociais em forma escrita que delimitam a esfera do indecidível, isto é, tudo aquilo que nenhuma maioria pode decidir ou não decidir: por um lado, os limites ou as proibições, para garantia das liberdades, por outro, os vínculos ou as obrigações, para garantia dos direitos sociais.” Ou seja, a constituição – pacto social escrito - delimita previamente o que pode ou não ser decidido pelo Parlamento. A simples existência da lei não garante a sua validade, na medida em que também o Poder Legislativo está sujeito ao paradigma constitucional. Além da subordinação a uma norma superior, a lei padece de outros “males”, que a fazem afastar-se ainda mais da época em que os códigos reinavam de forma absoluta na Europa. Garcia de Enterria 12 entende que a sua multiplicação incontida é o mais grave: “a velha idéia de uma sociedade livre movendo-se no quadro de vários Códigos e Leis, claros, concisos e tendencialmente estáveis, que deixavam à liberdade cidadã todo o amplo espaço da vida social enquadrada com precisão e rigor, tem dado passagem à situação atual em que a sociedade se mostra inundada por uma maré incontida de Leis e de Regulamentos, não somente não estáveis, mas também em estado de perpétua ebulição e de cambio frenético.” Outro mal, provavelmente conseqüência do anterior, é a falta de técnica legislativa, que se traduz em textos pouco claros, tortuosos e que podem conduzir a verdadeiros labirintos legais. Ao pretender regular todas as situações, o Parlamento provoca uma inflação legal que, longe de valorizar a lei, acaba por deixá-la numa situação de inferioridade ainda maior, contribuindo para a sua reduzida generalidade e baixo grau de abstração. Essa situação leva Enterria a decretar que “o legalismo exacerbado matou o positivismo! Conseqüência inesperada do predomínio formal absoluto das Leis, com o que se pensou chegar a eliminar a todas as demais fontes do direito.”13 Como os direitos fundamentais não podem ficar a mercê de uma infinidade de leis altamente cambiantes e sujeitas a maiorias ocasionais, a constituição passou a ser indispensável também pela sua estabilidade, pois qualquer modificação que se lhe queira impor depende de um quo11

FERRAJOLI, Luigi. Garantias. Revista do Ministério Público. Ano 22º, n. 85. Lisboa, Janeiro-Março 2001, p. 12.

12

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Op. cit. p. 47 e 48.

13

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Op. cit. p. 103.

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rum privilegiado. Além disso, garantir os direitos fundamentais a partir do próprio texto constitucional permite que sejam interpretados de forma mais ampla. A regulação em lei envolve sempre o risco de diminuir o seu âmbito de aplicação, para além de converter o Parlamento (poder constituído) numa espécie de poder constituinte de fato e permanente. A efetividade plena dos direitos fundamentais constitucionais é aceita na Europa, em particular na Alemanha, há várias décadas. Em alguns países, no entanto, é um fenômeno recente. Ángela Figueruelo14 informa que, na Espanha, ocorreu somente alguns anos após o advento da constituição de 1978: “a tradição judicial espanhola era marcada pelo mais puro jacobinismo, no qual o juiz era considerado um mero aplicador da lei. Havia a crença de que os direitos fundamentais eram meras normas programáticas que exigiam a interpositio legislatoris para adquirir plena eficácia e assim poderem ser alegadas ante os tribunais de justiça.” Em síntese, os direitos fundamentais têm aplicabilidade direta e imediata, e “se antes valia dizer: direitos fundamentais só no marco das leis, agora se quer dizer leis só no marco dos direitos fundamentais”.15 No que tange à amplitude da proteção aos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional alemão admite não apenas declarar a inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais, como também de dispositivos da própria constituição, se desrespeitarem em medida insuportável os postulados fundamentais da justiça. Ainda que esta seja uma hipótese bastante rara, implica a aceitação de um direito “suprapositivo” ao qual devem estar sujeitos os próprios constituintes.16 O tema dos princípios e valores superiores vem sendo utilizado por Ronald Dworkin17 , para criticar pesadamente o positivismo jurídico. O autor norte-americano sustenta que as leis não dão resposta a todas as situações, até porque a vida é complexa demais para caber em normas pré-definidas. Quando a lei apresenta lacunas, contradições ou não se aplica diretamente a uma determinada situação – os chamados casos difíceis - os positivistas deixam a decisão à discricionariedade judicial. Esta

14

FIGUERUELO BURRIEZA, Ángela. El Recurso de Amparo: Estado de la Cuestión. Madrid: Biblioteca Nueva, 2001, p. 31.

15

apud ALEXY, Robert. “Los derechos fundamentales en el Estado constitucional democrático.” In Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 34.

16

BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994.

17

DWORKIN, Ronald, Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1984.

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liberdade habilitaria o juiz a ditar normas, até mesmo de forma retroativa, pondo em risco a própria democracia. Dworkin defende que o magistrado não deve ter uma função criadora, mas garantidora, devendo utilizar princípios que informem as normas jurídicas concretas, de forma a construir teorias capazes de justificar a sua decisão. Isso implica que o juiz pode, inclusive, desatender a literalidade da norma se esta violar um princípio importante para o caso específico.18 Em definitivo, a lei perdeu o poder que a Revolução Francesa lhe havia outorgado. Seja em função de existir uma norma superior chamada constituição; seja porque os direitos fundamentais conquistaram efetividade plena; seja porque a fúria legislativa a tem aviltado; seja porque princípios e valores superiores a podem condicionar, a lei deixou de ter o significado e a importância que lhe atribuía Rousseau.

2. A constituição se suaviza As constituições européias do segundo pós-guerra (como Itália e Alemanha), dos últimos fascismos europeus (Portugal e Espanha) e do pós-comunismo (antigos integrantes do bloco soviético), pretenderam dar aos direitos fundamentais uma proteção, que as leis de seus Estados não haviam sido capazes de proporcionar. O advento dessas novas constituições coincidiu com o início de um processo de integração econômico-social, que se aprofunda e se expande há mais de meio século. As instituições dos Estados membros da atual União Européia se formaram durante o processo de integração. Vale dizer, a consolidação da supremacia constitucional e da soberania de cada Estado é concomitante à sua relativização, pois os tratados firmados assim o exigem. Adicionalmente, as novas constituições foram redigidas sob o signo do pluralismo, uma vez que as Assembléias Constituintes – democraticamente eleitas – refletiam as ideologias dos diversos segmentos da sociedade. Integração entre Estados e pluralismo estão na base de algumas das teorias da constituição surgidas no final do século passado, como ductilidade, responsividade, reflexividade e processualização.19 Tais propostas

18

Há quem o acuse de praticar um jusnaturalismo disfarçado. Cfr. RICHARDS, David A. J. The Moral Criticism of Law. Encimo: Dickinson, 1977 e MACCORMICK, Neil. Legal Right and Social Democracy. Oxford: Clarendon Press, 1982.

19

CANOTILHO, José J. Gomes. Teoría de la Constitución. Madrid: Dykinson, 2003, p. 59 e seg.

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têm em comum a relativização da supremacia constitucional a partir do enfraquecimento da soberania do Estado e a não aceitação da idéia de constituição como centro de um conjunto normativo regulador e dirigente da sociedade. Defendem, pois, um direito constitucional não-intervencionista. A tarefa básica da chamada constituição dúctil (ou suave) de Gustavo Zagrebelsky20 , por exemplo, é simplesmente assegurar a possibilidade de uma vida em comum, internamente e na relação com os demais Estados, sem impor um projeto predeterminado. As diferentes idéias nela contidas são um ponto de partida para a realização de políticas também diferenciadas. Um compromisso de possibilidades a exigir que cada um dos seus valores e princípios informadores não se assuma com caráter absoluto, para garantir a sua coexistência. A constituição não é executada, mas torna-se efetiva num desses cambiantes princípios e valores em equilíbrio, cuja extensão e limites serão dados pela lei. Seu caráter aberto e cooperativo possibilita a conexão entre direito interno e internacional, integrando Estados que permaneceriam isolados, se a soberania estatal fosse tomada de maneira absoluta. Em suma, os elementos constitutivos do direito constitucional são plurais e, para poderem coexistir, devem ser relativizados entre si. Isto é, devem tornar-se suaves (dúcteis). Para entender o surgimento de concepções como a da ductilidade, é importante lembrar que o Estado constitucional europeu tem origem na superação do jusnaturalismo - ocorrida a partir do segundo pós-guerra -, que aproximou a concepção norte-americana dos direitos individuais (que a lei não pode vulnerar) da concepção francesa Rousseauniana da lei (como o único instrumento de afirmação de direitos). A inclusão de princípios de justiça, como deveres aos poderes públicos, e de direitos humanos nas constituições européias fez com que as duas concepções antagônicas não mais pudessem ser tomadas de forma absoluta. O legislador europeu viu-se obrigado a observá-los na feitura das leis, o que levou ao controle da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional e ao fortalecimento do papel dos juizes, a exemplo dos norte-americanos. A positivação de princípios fundamentais determina que as atuais constituições estejam compostas por princípios e regras. Os princípios, esclarece Canotilho21 , “são normas jurídicas impositivas de uma optimização,

20

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 5. ed. Madrid: Trotta, 2003.

21

CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1145.

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compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion).” Ou seja, às regras se obedece e aos princípios se presta adesão. Exemplificando, as normas que prevêem os direitos à greve ou ao livre exercício de qualquer profissão são princípios. As que dispõem sobre a garantia de execução de serviços públicos considerados essenciais durante a greve ou sobre a exigência de qualificação profissional para o exercício de determinados trabalhos são regras. Para Zagrebelsky22 , as regras prevalecem entre as normas legislativas, enquanto os princípios prevalecem entre as normas constitucionais sobre direitos e justiça. Quando uma regra aparece na Constituição, nada mais é do que uma “lei reforçada”, pois sua função não é constitutiva. Deve ser cumprida integralmente e se esgota em si mesma. Em caso de conflito, apenas uma pode ser aplicada, pois as regras não permitem qualquer grau de relativização. Já os princípios, por refletirem valores de uma sociedade heterogênea, são tendencialmente contraditórios e podem ser ponderados em caso de conflito, pois precisam coexistir. Prieto Sanchís fornece um bom exemplo: “na freqüente colisão entre o direito à honra e a liberdade de expressão não existe uma fronteira nítida, de maneira que uma certa conduta deva ser incluída necessariamente no âmbito da liberdade ou no tipo penal protetor da honra alheia; ao contrário, a conduta pode ser simultaneamente ambas as coisas, exercício de direito e ação delitiva, sem que entre ambas exista uma relação de preferência com caráter geral e abstrato.”23 É por isso que os princípios não podem ser concebidos de forma absoluta numa constituição pluralista. Se isso acontecesse, um deles fatalmente se tornaria o dominante, convertendo-se em autêntico tirano dos demais. Seria como optar pelo princípio direito à honra, desenvolvendo-o cabalmente, ignorando a existência do princípio liberdade de expressão. Na falta de lei, cabe ao juiz garantir o equilíbrio, fazendo uso de princípios jurisdicionais como os da proporcionalidade e da razoabilidade. Se decidir optar por um dos princípios na solução de um caso concreto, havendo ou não lei, provavelmente estará servindo à sua própria ideologia. 22

ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 110.

23

PRIETO SANCHÍS, Luis. Ley, principios, derechos. Madrid: Dykinson, 1998, p. 3.

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No mesmo sentido, ao decidir uma “questão de inconstitucionalidade” – submetida per saltum pelo juiz ordinário europeu no curso de uma ação concreta -, o Tribunal Constitucional deve limitar-se a eliminar a lei inconstitucional, sem impor qualquer regra extraída diretamente da constituição, permitindo ao legislador a aprovação de nova lei. Do contrário estará dando uma interpretação fechada do marco constitucional e reduzindo o papel do Parlamento a mero produtor de normas facultativas. O pluralismo exige respeito à liberdade da dinâmica política e à competição entre propostas alternativas. A extremada importância do magistrado no Estado constitucional traz o receio de que a existência de princípios substantivos seja uma porta aberta ao ativismo judicial. Os limites da atuação do juiz e do legislador são uma questão controvertida. “Constitucionalistas” e “legalistas” têm argumentos respeitáveis e vem mantendo um longo debate. Para o constitucionalismo: a) a legislação está envolta numa rede de vínculos jurídicos que deve ser considerada pelos juízes, sobretudo pelos juízes constitucionais; b) sob a ótica da doutrina das fontes, a constituição é um programa positivo de valores a ser “atuado” pelo legislador; c) os juízes devem sentir-se autorizados a realizar um controle de fundo e ilimitado sobre todas as decisões do legislador e em todos os seus aspectos. Para o legalismo: a) o controle da jurisdição sobre o legislador deve ocorrer dentro de limites compatíveis com sua autonomia; b) sob a ótica da doutrina das fontes, a constituição é uma referência orientadora que há de ser simplesmente “respeitada” pelo legislador; c) os juizes devem ser induzidos a reconhecer ao legislador amplos âmbitos de liberdade não pré-julgados por normas constitucionais.24 Zagrebelsky25 considera que “em ausência de leis, excluir a possibilidade de integração judicial do ordenamento teria como conseqüência o esvaziamento de direitos reconhecidos na constituição”. Entende, porém, vital a apreciação política realizada pelo Parlamento, pois vê na constituição um contexto aberto de elementos, no qual a lei tem fundamento constitucional próprio e está no mesmo plano de outros direitos e princípios. Vale por ser lei e não pelo que dispõe. A lei expressa as combinações possíveis entre os princípios constitucionais, que se limitam a estabelecer os pontos irrenunciáveis de qualquer combinação. A lei mantém assim seu caráter de ato criador de direito e não vem degradada a mera execução da constituição.26

24

ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 151.

25

ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 153.

26

ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit. p. 97.

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Em suma, a lei volta a valorizar-se como ato criador de direito, deixando de ser um mero ato executor da constituição. Contudo, o legislador deve resignar-se a vê-la tratada como “parte” do direito e não como “o” direito, como ocorria até o início do Século XX na Europa. Por outro lado, o constitucionalismo deve passar a aceitar um maior protagonismo do Parlamento na mediação política efetuada através da lei. E aos juízes cabe a tarefa de garantir o equilíbrio entre os princípios constitucionais e a necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos e justiça.

3. A constituição dirigente ainda é necessária As normas de uma constituição dirigente - concepção de direito constitucional desenvolvida por Canotilho27 - ademais de oferecer esquemas de regulação do poder político e dos vários status dos indivíduos, aspiram a ter uma força normativa e planificadora ou, ao menos, reitora da transformação política, econômica e social. “Esta perspectiva de direito constitucional – que temos investigado e que tem influído decisivamente em nossa formação – está hoje ante uma encruzilhada,”28 assegura o mestre de Coimbra. Entre as novas teorias que divergem da constituição dirigente e podem ser apontadas como causa dessa encruzilhada, está a constituição dúctil de Zagrebelsky. Esta teoria revela um tipo de pensamento próprio das sociedades européias ocidentais, que alcançaram ou, mesmo, ultrapassaram o chamado Estado do Bem-Estar Social (Providência) e estão em processo de integração com outros Estados. Parece evidente que leis, direitos humanos fundamentais e princípios de justiça possam conviver em harmonia e equilibradamente numa sociedade desenvolvida. Afinal, teria sentido uma constituição que pretendesse transformar política, econômica ou socialmente um desses países? Logo após a 2ª Guerra a resposta com certeza teria sido positiva. Atualmente, essas sociedades atingiram um grau de constitucionalização de seus ordenamentos jurídicos e um desenvolvimento econômico-social, que até lhes permitiria viver o pluralismo nos termos de uma constituição dúctil - delegando ao legislativo a escolha do princípio a ser priorizado -, sem que isso representasse necessariamente

27

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra, 1982.

28

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoría… p. 25 e 26.

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um retrocesso. Nesses casos, uma constituição dirigente, por admitir a auto-execução dos princípios, poderia eventualmente provocar um desnecessário desequilíbrio em favor de determinado princípio de justiça, considerado prioritário pela constituição, num momento em que a sociedade já está a exigir outras prioridades. E se essa mesma pergunta fosse feita relativamente aos dez paises da Europa Oriental, que passaram a integrar a União Européia em maio de 2004? Ou a um país latino-americano? Se a consolidação de um Estado Democrático de Direito for o objetivo constitucional desses ordenamentos, a resposta deverá ser sim. O motivo é simples: para alcançá-lo, os países em desenvolvimento devem priorizar certos princípios de justiça, necessários ao enfrentamento de problemas sociais crônicos. Isso exige que o programa positivo de valores econômico-sociais contido na constituição deva ser seguido pelos três poderes estatais nas atividades que lhe são inerentes. O pluralismo, nos termos de uma constituição dúctil, poderia aprofundar esses problemas, pois dá total liberdade aos governantes e ao legislador - maioria ideológica do momento - para escolher o princípio prioritário. Num país desenvolvido e sem problemas fundiários, poderia ser considerado até certo ponto normal - próprio do pluralismo democrático - a aprovação de uma lei que, por exemplo, reduzisse a níveis baixíssimos os índices de produtividade definidores do cumprimento da função social de uma propriedade rural. A relativização entre os princípios “direito à propriedade privada” e “exigência de que a propriedade cumpra a sua função social” traduziria a ideologia do grupo parlamentar conservador majoritário do momento, permitindo a necessária apreciação política preconizada por Zagrebelsky (ductilidade). Num país em desenvolvimento, com latifúndios improdutivos e milhares de trabalhadores sem acesso à terra, poderia ser um desastre. A ductilidade estaria corroborando uma injustiça, o que não ocorreria com uma constituição dirigente, pois ela proporciona previamente os parâmetros sociais de observação obrigatória pelo legislador. No caso do Brasil, esses parâmetros foram estabelecidos pelo poder constituinte originário nos princípios e objetivos fundamentais da Constituição de 1988. A consolidação do Estado Democrático de Direito depende da efetividade da constituição, como um todo, e exige que os fundamentos da República (art. 1º) - particularmente os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana - e os objetivos fundamen-

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tais (art. 3º) sejam considerados substantivos e não meramente programáticos: Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O cumprimento desses objetivos é fundamental para tornar o país socialmente mais justo e fortalecer o pluralismo democrático consagrado no art. 1º, V, pois são as ferramentas para a conformação dos demais princípios e regras constitucionais e da legislação infraconstitucional. Para que a sociedade brasileira logre atingi-los, é necessário que os três poderes os levem em consideração: o Executivo, em suas políticas governamentais; o Legislativo, na feitura das leis; e o Judiciário, no controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A constituição dirigente, como é evidente, não contém apenas normas de organização do Estado e direitos do cidadão frente ao Estado, mas, também, obrigações ao Estado. Neste sentido, voltando ao exemplo acima, a lei brasileira que reduzisse a um patamar insignificante os índices indicativos do atendimento à função social da propriedade, haveria de ser considerada inconstitucional, quanto mais não seja, por ferir o art. 3º. Numa sociedade desequilibrada (injusta) os objetivos fundamentais servem para condicionar a lei no sentido de buscar o equilíbrio social de um Estado Democrático de Direito (democracia, liberdade, igualdade, justiça social). Mesmo sendo alcançados, como ocorre em grande parte da Europa, podem sempre ser invocados, pois são substantivos e configuram mais uma garantia ao cidadão. A vulnerabilidade da população sob uma constituição considerada dúctil é maior, justamente por depender de decisões extra-constitucionais. A função desempenhada pelos objetivos fundamentais numa constituição dirigente é idêntica à desempenhada pela maioria parlamentar numa constituição dúctil: condicionar a interpretação da constituição e o conteúdo das leis. Porém, enquanto os objetivos

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fundamentais condicionam para garantir democracia, liberdade, igualdade e justiça social a toda a população (com a legitimidade do poder constituinte originário), a maioria parlamentar do momento condiciona para ver refletida a sua ideologia ou os seus interesses específicos (apenas com a legitimidade do poder constituído).

Constituição dirigente Objetivos Fundamentais (CF Art. 3º): Condicionam a interpretação dos demais artigos da Constituição e o conteúdo das Leis.

Constituição dúctil Maioria Parlamentar: Condiciona a interpretação da Constituição e o conteúdo das Leis. A função dos objetivos fundamentais numa constituição dirigente é assumida pela maioria parlamentar numa constituição dúctil. Uma situação sui generis ocorre na Europa. Enquanto a doutrina discute as novas teorias da constituição – quase todas muito próximas à ductilidade -, um programa dirigente transformador em nível internacional está em curso. A entrada na União Européia obrigou, por exemplo, Espanha, Portugal, Grécia e a própria Itália de Zagrebelsky a adaptar-se a normas comunitárias nos mais variados setores, com o objetivo de atingir níveis aproximados aos dos demais componentes, inclusive através de programas de incentivo ao desenvolvimento econômico-social baseado em fundos estruturais. A efetividade das normas comunitárias concernentes à modernização da economia, meio-ambiente, trabalho, respeito ao consumidor, erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais, entre outras, jamais foi questionada. Os dez novos sócios passarão por um período semelhante e deverão cumprir idênticos objetivos. Ora, se esses Estados cumprem um programa supraconstitucional e supranacional de modernidade, que os leva a modificar suas leis e, até mesmo, suas constituições, com muito mais razão o Estado brasileiro deve cumprir o programa contido em sua própria constituição. Um programa com a legitimidade de ter sido instituído por uma Assembléia Nacional Constituin-

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te em 1988 e que representa o consenso da sociedade brasileira: um verdadeiro “pacto constituinte-fundante de uma nova ordem” 29 Por conseguinte, o que está em jogo é a efetividade de todas as normas constitucionais (princípios e regras). A constituição somente terá condições de dirigir a sociedade e, inclusive, transformá-la, na medida em que detenha, de forma substantiva, a supremacia do ordenamento jurídico. Quanto a esse aspecto, Riccardo Guastini30 aduz que “um dos elementos essenciais do processo de constitucionalização é precisamente a difusão, no seio da cultura jurídica, (….) da idéia de que toda norma constitucional – independentemente de sua estrutura ou de seu conteúdo normativo – é uma norma jurídica genuína, vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos”. No mesmo sentido, Vital Moreira31 esclarece que o órgão jurisdicional, ao aferir a legitimidade constitucional das decisões dos poderes públicos, deve ter claro que, “em princípio, todos os preceitos constitucionais detêm uma função normativa. Incumbe ao juiz constitucional, em sede de interpretação da lei fundamental apurar o sentido e o alcance de cada preceito, mas não lhe assiste o direito de desqualificar como norma não constitucional nenhum preceito da constituição.” E o próprio Canotilho 32 corrobora: “os princípios ou são princípios materiais ou não são nada. Não são apenas esquemas de um regime qualquer, não são esquemas de um proceder qualquer, não são esquemas de um processo qualquer, são verdadeiras dimensões materiais.” Portanto, se todas as normas constitucionais produzem efeitos jurídicos, é inconcebível a virtual não aplicação do art. 3º e dos demais princípios dirigentes da Constituição de 1988. Cabe ao Poder Judiciário o desafio de fazer valer a constituição em sua integralidade. A não-efetividade de parte dos dispositivos constitucionais, inclusive por alegada falta de regulação em lei, é um problema que persiste no sistema brasileiro, contribuindo para uma sensação de não obrigatoriedade do texto constitucional. Como visto, até mesmo Zagrebelsky, um ardoroso defensor da mediação do Parlamento, não admite que um artigo da constituição dei29

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 379.

30

GUASTINI, Ricardo. “La ‘constitucionalización’ del ordenamiento jurídico: el caso italiano”. In: Neoconstitucionalismo(s), Madrid: Trotta, 2003, p. 53.

31

MOREIRA, Vital. Op. cit. p. 193.

32

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In: Canotilho e a Constituição Dirigente, COUTINHO, Jacinto Nelson (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 24.

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xe de ser aplicado por falta de lei. Por isso, o Supremo Tribunal Federal precisa rever a sua jurisprudência de normas constitucionais consideradas sem aplicabilidade imediata33 e todos os juízes devem passar a julgar as causas com a constituição – substantiva - em suas mesas, pois “o texto infraconstitucional somente pode ser aplicado depois de passar pelo processo hermenêutico-constitucional”.34 A vigência da lei deve deixar de ser confundida com a sua validade. E se esse “filtro” constitucional trouxer o infundado receio de vulneração da segurança jurídica, tenha-se presente que “o jurista deve manter a ordem jurídica, atento ao valor da segurança jurídica, sem, no entanto, confundi-la com a manutenção cega e indiscriminada do statu quo. Não há que confundir o valor da segurança jurídica com a ideologia da segurança, que tem por objetivo o imobilismo social.”35

CONSIDERAÇÕES FINAIS As constituições têm sido o sustentáculo das democracias, graças à organização que proporcionam aos Estados, aos princípios de direitos humanos e de justiça que contêm e à supremacia que desfrutam em seus respectivos ordenamentos jurídicos. A ductilidade constitucional procura resgatar o papel da lei, como concretização da mediação do Parlamento no seio de sociedades plurais. Caberia à maioria parlamentar definir o conteúdo dos princípios constitucionais, que, por refletirem o pluralismo da sociedade, são contraditórios, não se prestando à aplicação direta. É possível afirmar que a função da maioria parlamentar do momento numa constituição dúctil é idêntica à dos objetivos fundamentais de uma constituição dirigente, como a brasileira: condicionar a interpretação dos artigos da própria constituição e o conteúdo das leis. As finalidades é que são diferentes, pois enquanto a maioria do parlamento (poder constituído) procura impor a sua ideologia ou os seus interesses específicos, os 33

O Tribunal Constitucional espanhol é um bom exemplo: “Deve assinalar-se que a reserva de lei que efetua (...) a Norma Fundamental, não tem o significado de diferir a aplicação dos direitos fundamentais e liberdades públicas até o momento em que se edite uma lei posterior à Constituição, já que, em todo o caso, seus princípios são de aplicação imediata (BCJ, 1981, n. 3, p. 214).” In: PEREZ LUÑO, Antonio. Los Derechos Fundamentales, 8. ed. Madrid: Tecnos, 2004, p. 64 e 65.

34

STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 385.

35

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e hermenêutica material no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 74.

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objetivos fundamentais constitucionais procuram impor os parâmetros de democracia, liberdade, igualdade e justiça, estabelecidos pelo poder constituinte originário para toda a sociedade. A ductilidade constitucional parece adequar-se ou, ao menos, não causar maiores danos, a países em que o Estado do Bem-Estar Social já se encontra consolidado. Sociedades que ainda não o atingiram, não podem ficar a mercê de maiorias parlamentares, que, eventualmente, agravem seu desequilíbrio social. No caso do Brasil faz-se necessário que os princípios e objetivos fundamentais da constituição vinculem os três poderes: o Executivo, na execução de suas políticas; o Legislativo, na feitura das leis; e o Judiciário, no controle da constitucionalidade das leis e dos atos governamentais. A constituição brasileira não pode ser vista como meramente programática, mas como um programa dirigente substantivo, com condições de levar o país à modernidade. Este é o requisito para o fortalecimento do pluralismo garantido em seu art. 1º, V. A questão básica de que se trata, portanto, é o reconhecimento da efetividade plena de todos os artigos da constituição (pacto constituintefundante de uma nova ordem). A constituição constituir ainda é condição indispensável para o Estado Democrático de Direito atingir a sua plenitude no Brasil.

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La Percepcion Occidental De Los Conflictos En El Mundo Musulmán: Cultura Frente A Politica1 Western Perception of the Conflicts in Islam World: Culture in face of Politics GEMA MARTÍN-MUÑOZ Profesora de Sociología del Mundo Arabe e Islámico de la Universidad Autónoma de Madrid. Es autora de El Estado Arabe. Crisis de legitimidad y contestación islamista (Barcelona, Bellaterra, 2000) y de Iraq, un fracaso de Occidente (1920-2003) (Barcelona, Tusquets, 2003).

RESUMO Criticando as visões essencialistas e etnocêntricos relativamente ao mundo muçulmano e tendo em conta os acontecimentos de 11 de setembro, a autora analisa as raízes da atual islamofobia e a necessidade de revisar as políticas internacionais e a guerra contra o terrorismo. Palavras-chave: Política internacional, terrorismo, islamofobia, mundo islâmico.

ABSTRACT By criticizing the essentialist and ethnocentric visions on the Islam world, and considering the happenings of September 11, the author analyzes the roots of 1

Este texto fue impartido como Conferencia inaugural del curso “Poder y Violencia” de la Universitat Internacional de la Pau el 17 de julio de 2003.

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the present islamphobia and the need to review international politics and the war against terrorism. Key words: International politics, terrorism, islamphobia, Islam world. La proximidad geográfica e histórica siempre implican relaciones de vecindad complejas y competitivas entre los conjuntos geopolíticos que las representan. Este ha sido sin duda el caso del mundo europeo y el musulmán desde la Edad Media y ha traído consigo la transmisión de una memoria histórica en conflicto. La rivalidad entre Islam y cristianismo, entre Al-Andalus y los reinos cristianos, entre los imperios europeos y turco otomano, generaron conflictos de intereses e ideologías de demonización del otro. No hay más que leer el libro de Amin Maalouf Las Cruzadas vistas por los árabes o ver la película del cineasta egipcio Yusuf Shahin, Saladino, para darse cuenta de la representación inversa que nos dan de unos acontecimientos que desde el imaginario cristiano y europeo tienen una simbología bien opuesta. Pero los trastornos que esta situación ocasionó no impidieron una realidad muy interpenetrada: el Imperio bizantino mantuvo una estrecha relación con el oriente omeya y ‘abbasí (incluso mayor que con los reinos cristianos europeos), entre Al-Andalus y los reinos cristianos habrá continuos intercambios económicos y culturales, y la islamización del occidente medieval fue un hecho incontestable en términos históricos (en Sicilia, la Península Ibérica y los Balcanes). La expulsión de musulmanes y judíos de España junto al descubrimiento de América van a significar el punto de arranque de una concepción en que Europa se percibe como una identidad cerrada que se proclama la única depositaria de los atributos de la humanidad, inferiorizando a los otros pueblos. Durante el Renacimiento se llevó a acabo la elaboración ideológica que sustenta esa concepción europea que se prolonga hasta la actualidad: haciendo una interpretación selectiva de la Historia, en la que el Oriente desaparece del pensamiento europeo, se asienta el mito de que éste se basa en una sola fuente original greco-romana. Es decir, el mito fundador del pensamiento europeo expulsó autoritariamente la aportación oriental, y en ella el determinante papel que tuvo el pensamiento musulmán, a quien se debe el rescate del pensamiento helenístico y su relectura, así como toda una aportación filosófica racional. Esta «expulsión» alimentará la concepción de dos universos aislados y sin un patrimonio común. Entre los siglos XIX y XX se llevó a cabo un intensivo proceso histórico

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que reforzó este pensamiento etnocéntrico, cuando Europa vino a representar tanto el universo de las ideas de la Ilustración como el de un mercantilismo expansivo que buscaba colonizar el mundo exterior. El pensamiento colonial europeo se vio en la necesidad de elaborar la justificación moral y ética del ejercicio de dominación política y explotación económica que llevaba a cabo fuera de sus fronteras. Así surgió la dualidad entre « civilización » y « barbarie », el concepto de raza y el principio de la superioridad cultural europea frente a « los otros » apropiándose de la representación universal de la modernidad y la civilización. El colonialismo se convertía un una obligación moral y una misión histórica : llevar la civilización a los pueblos « salvajes » o retrasados. A partir de ese momento se presentaban argumentos culturales para justificar lo que en realidad eran acciones políticas. Con ello, para colocar lo cultural al servicio de la política, se elaboraba un pensamiento que inferiorizaba a las otras culturas y, sobre todo, las negaba cualquier capacidad para evolucionar y progresar. Esos valores se adjudicaban en exclusiva al modelo europeo. A partir de ese momento, la cultura europea será considerada superior a la de los otros, considerando las culturas de los pueblos colonizados como inferiores. Desde entonces, el profundo etnocentrismo europeo mirará a las demás culturas de manera esencialista (es decir, como si fueran entes cerrado, inmutables y monolíticos, incapaces de progresar y evolucionar, determinando así todo su devenir histórico). En consecuencia, la perspectiva europea tenderá a considerar que las nociones de progreso, dinamismo y modernización son valores propios de la cultura europea, y deberían ser universalmente imitados. Así, por ejemplo, el acta de la Conferencia de Berlín de 1885, con la que los europeos se repartieron el continente africano, decía que las potencias europeas debían “instruir a los indígenas y hacerles comprender y apreciar las ventajas de la civilización»”. En consecuencia, cuando éstos se “empecinen” en conservar sus tierras o su estatuto serán “justificadamente” castigados y diezmados. El Ministro británico responsable de las colonias entre 1895 y 1903 afirmará la superioridad de la raza blanca y su civilización asegurando que “nuestra dominación es la única que puede asegurar la paz, la seguridad y la riqueza a tantos desgraciados que nunca antes conocieron esos beneficios. Llevando a cabo esta misión civilizadora es como cumpliremos nuestra misión nacional en beneficio de los pueblos bajo la sombra de nuestro ámbito imperial”. Por su parte, el francés Jules Ferry procla-

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maba en el parlamento el 28 de julio de 1885 el deber “de las razas superiores de civilizar a las inferiores”2 . En aquellas geografías como la china, la india o la islámica donde se habían erigido grandes civilizaciones, la catalogación de “pueblos salvajes” no era posible y frente a ellos se levantó el discurso de su agotamiento e incapacidad para salir del oscurantismo que vivían frente al avance civilizacional europeo. De esta manera se llevaba a cabo un proceso de denigración del legado cultural, histórico y civilizacional islámico, presentado como incapaz de progresar y modernizarse. Es decir, todos los elementos culturales pertenecientes al ámbito islámico, incluida la lengua árabe, eran catalogados como regresionistas y bloqueadores de la evolución moderna. Con ello, se forjaba un imaginario europeo lleno de prejuicios hacia lo islámico y se volvía a expulsar autoritariamente al legado intelectual y cultural islámico del mundo de la modernización, apropiada en exclusiva por el modelo europeo. Y lo que es enormemente importante es que, cuando más tarde, se desarrolle el pensamiento europeo anticolonial, éste denunciará los métodos políticos de dominación y económicos de explotación utilizados por la experiencia colonial, pero no cuestionará la vocación occidental de ser el modelo cultural universal. Progreso y desarrollo no podían ser fruto más que de la reproducción mimética occidental. En realidad, el término Occidente, se forjó cuando de la Segunda Guerra Mundial nació un nuevo orden internacional dividido en dos bloques de poder: el occidental y el soviético, coincidiendo con una pérdida de influencia europea a favor de los EEUU, pero sin que ello modificase el sentimiento de superioridad cultural que hasta entonces había prevalecido. Por el contrario, siguieron dominando las visiones esencialistas y etnocéntricas con respecto al universo cultural del mundo islámico. Esencialismo, porque la explicación de los hechos históricos tiende a quedarse en “el determinismo islámico”, de manera que frecuentemente se da a entender que los acontecimientos ocurren en esa parte del mundo simplemente “porque son musulmanes”, prevaleciendo la explicación “teológica” (manifestaciones de extrema religiosidad consideradas inherentes

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Citados por Sophie Bessis L’Occident et les Autres. Histoire d’une suprématie. Paris, La Découverte, 2002.

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a la cultura islámica) sobre la explicación desde las ciencias sociales. De esa manera, frecuentemente en la búsqueda de un marco interpretativo o paradigma (frame) en el que situar los acontecimientos interviene no sólo la naturaleza del conflicto en sí sino también explicaciones centradas en establecer una supuesta diferencia cultural islámica incompatible con el progreso global. Un significativo ejemplo lo constituye la cuestión de “la mujer en el islam”. Existe una percepción sobredimensionada y sobreideologizada con respecto a la cuestión de la situación de las mujeres en tierras islámicas que, sobrepasando lo que es la legítima denuncia e información sobre situaciones de discriminación inaceptables, es el instrumento a través del cual nuestras sociedades confirman los prejuicios anidados en nuestro viejo imaginario cultural, corroborando así las diferencias entre el Oriente y el Occidente. La manera en que se transmite la imagen de la mujer musulmana y cómo se tratan las cuestiones relativas a ella, muestran que en muchas ocasiones, lejos de interesarse por las mujeres en sí, son sobre todo el instrumento a través del cual se incide en el desprestigio de un mundo cultural enorme y muy diverso. Así, se generaliza irresponsablemente, se ocultan realidades mucho más diversas, se ignoran las dinámicas de cambio que sin duda existen, se seleccionan los actores y los testimonios, y se presenta el patriarcado en el mundo islámico como un caso extremo e inmutable3 . La representación dominante de la mujer musulmana es la que la presenta en actitud pasiva4 , papel de víctima y como mujer velada. De hecho, las mujeres musulmanas son frecuentemente una “imaginería cultural” vinculada al islam en vez de fuente de información sobre acontecimientos cruciales en sus comunidades. Se reproduce reiterativamente la imagen de la mujer oriental como una figura subordinada sufriendo por la opresión religiosa, donde el velo, la reclusión o la marginación son temas comunes, símbolos de las relaciones y limitaciones de la mujer en tierras del islam. Así hemos podido constatarlo a través de una investigación realizada en 1997 analizando la prensa europea y su tratamiento de los temas relativos a las mujeres musulmanas: Gema Martín-Muñoz, Julia Hernández Juberías & Mª Angeles López Plaza, La imagen de la mujer musulmana a través de los medios y sus implicaciones para la integración de las inmigrantes en España. Madrid, CAM, 1997.

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Cuando decimos actitud pasiva nos referimos al criterio establecido así en el ámbito mediático para definir a aquellas personas que no aparecen como individuos desempeñando una capacidad relacionada con el trabajo o buscando la atención de los medios. Por el contrario su papel pasivo significa que aparecen como víctimas, en relaciones familiares o ilustrando un paisaje cultural determinado.

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La representación de la mujer velada es una constante que se interpreta o bien en clave orientalista (el velo como signo de misterio), o bien en clave tradicionalista (de sumisión y opresión). Así la imagen habitual de la mujer musulmana alimenta el paradigma culturalista que quiere ver entre el Islam y el Occidente dos modelos sociales antagónicos: uno retrasado, otro moderno. Representada sin atributos individuales o personales, se da a entender que la mujer velada no desempeña responsabilidades o no tiene filiaciones profesionales ignorando no sólo el carácter multidimensional del significado del velo (como una posición política, una afirmación religiosa y una práctica social) sino también que numerosas mujeres instruidas y trabajadoras están poniéndose el velo voluntariamente en los últimos años 5 . Esta imagen es difícilmente aceptable por Occidente e incluso provoca cierta irritación porque desarma la visión tradicional a la que se aferra. Que las mujeres después de estar discriminadas y postergadas opten voluntariamente por asumir la doctrina islámica y se pongan y reivindiquen el velo es algo que resulta inasimilable para Occidente y, por tanto, se desinteresa o lo ignora. Etnocentrismo, porque se parte insistentemente de una metodología comparativista que eleva a modelo universal nuestra experiencia histórica occidental. De ahí que se identifique con demasiada rapidez occidentalización con modernización cuando si bien ésta reviste, en efecto, una significación que caracteriza a Occidente, también le sobrepasa. En consecuencia, occidentalización no cubre toda la noción de modernización. Como tampoco es comparable la relación histórica existente entre Razón e Islam con la que en Europa han tenido religión e interpretación racional. En el primer caso no se dio el radical conflicto entre Razón y Fé (la existencia del idjtihad –la interpretación racional para hacer jurisprudencia islámica- es una prueba concluyente) que sin embargo caracterizó al segundo. La experiencia europea se ha conformado a partir de una concepción lineal de la modernización, según la cual la marginación de la pertenencia religiosa va unida al avance hacia la modernidad. Sin embargo, esta constatación es sólo fruto de la experiencia histórica occiden-

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Entre el velo haïk (tradicional), el niqab (fundamentalista: negro y que cubre todo el rostro) y el hiyab (versión islámica moderna que, a diferencia de los demás, cubre la cabeza pero deja la cara descubierta de manera que el velo pierde su misión tradicional de hacer invisible y anónima a la mujer en el espacio público) hay todo un lenguaje sociológico que expresa la diferencia entre la nueva generación y la precedente, entre la que estudia y sale y la recluida, entre la que se afirma y la que se somete. Ver Gema Martín Muñoz “Mujeres islamistas y sin embargo modernas” en Mercedes del Amo (ed) El imaginario, la referencia y la diferencia: siete estudios sobre las mujeres árabes. Universidad de Granada. Granada, 1997.

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tal en tanto que en otras áreas geográficas, donde la religión ha desempeñado otra función, no se pueden negar a priori dinámicas sociopolíticas que, porque integren la identidad islámica en su proyecto, estén necesariamente abocadas al tradicionalismo e inmovilismo. Por el contrario, todo ello no es sino reflejo de la revalorización de «lo autóctono» y la negación de «lo importado», experiencia que caracteriza hoy día al mundo musulmán, consecuencia de una doble vivencia fruto de la experiencia histórica colonial: la de la relación con el Otro, Occidente, y la de la relación consigo mismo y su necesidad de promover una realidad propia. Se ha asumido demasiado dogmáticamente el silogismo: “ser civilizado” = “ser occidental” (luego moderno), lo que nos dificulta para entender que pueden existir dinámicas socioculturales que integren la búsqueda del “ser moderno” conservando el islam. Asimismo, la construcción histórica occidental en torno a la cual se ha generado el laicismo como un valor de modernidad y democracia no se ha reproducido en el mundo árabe e islámico, donde el laicismo no ha sido fruto de una modernización “desde abajo” de la sociedad (que no ha experimentado un proceso social extensivo de secularización) sino “desde arriba” (fruto del voluntarismo modernista de los líderes nacionalistas poscoloniales), y dado que en el mundo musulmán el secularismo ha sido a menudo asumido e impulsado por elites dirigentes patrimonialistas y autoritarias, existe pues un potencial conflicto de interés entre democracia y laicismo en esta región. Sin embargo, hay que decir, que el debate occidental sobre la democratización en el mundo árabe ha fracasado ampliamente a la hora de admitir esto. Finalmente, habría que señalar otro significativo ejemplo que nos ayuda a constatar esa tendencia etnocentrista en nuestra mirada hacia el mundo árabe e islámico. Se trata de la arraigada tendencia a seleccionar como fuentes de información creíble y como interlocutores válidos a las élites occidentalizadas de esos países. De ahí el cúmulo de incomprensiones porque nuestro conocimiento sobre esas sociedades se reduce a una sola representación, y además a una representación que si bien necesaria de tener en cuenta no es la más representativa. Es éste un reflejo que nos muestra nuestra tendencia a querer dialogar siempre con nosotros mismos y por ello nuestros interlocutores son aquellos que son los más fieles a nuestro modelo y a nuestra imagen. En consecuencia, mientras desde la perspectiva occidental existe un imaginario social que está dominado por prejuicios de tipo cultural y re-

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ligioso hacia los musulmanes, entre estos la evocación de Occidente está centrada en la política que rigen los gobiernos occidentales al servicio de sus intereses en diversas partes del mundo árabe e islámico, sentida como acumulativamente injusta.

LA TEORIA DEL « CHOQUE DE CIVILIZACIONES » Y EL 11 DE SEPTIEMBRE No fue en absoluto casual que tras la guerra del Golfo surgiese la teoría del “choque de civilizaciones” firmada por el politólogo estadounidense Samuel P. Huntington6 . Este escrito de Huntington se iba a convertir para muchos en la nueva ideología de la posguerra fría. Lo que el profesor de Harvard planteaba inicialmente entre interrogaciones, ¿Choque de civilizaciones?, y tres años después sin interrogante alguno, El choque de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial7 es que “la fuente principal de conflicto en este mundo nuevo no va a ser en primer lugar ni ideológica ni económica. Las grandes divisiones del género humano y la fuente predominante de conflicto van a estar fundadas en la diversidad cultural” (...). E identificaba como civilizaciones competitivas y en conflicto con la occidental a la islámica y confuciana. Su falta de rigor científico debería haber hecho pasar sin pena ni gloria este pequeño artículo sino hubiese sido porque respondía a la necesidad de aportar una nueva ideología (curiosa contradicción para una tesis que afirmaba el fin de las ideologías) para justificar moralmente la reestructuración mundial, cargada de hegemonía económica y política, que aspiraba a presidir EEUU. Lo cultural y religioso se va a convertir de manera aún más intensiva en el instrumento a partir del cual cegar a las sociedades occidentales ante la fuerte carga política de la actuación occidental fuera de sus fronteras. La fórmula podría definirse en algo así como: si la explicación de lo que ocurre se basa sobretodo en un determinismo cultural y religioso anti-occidental se consigue eludir las responsabilidades de la acción política y militar de Occidente en el exterior.

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“Clash of civilizations”, Foreign Affairs, 1993, no.3, pp. 22-49. Ha sido publicado en español por Tecnos, 2002.

7

The Clash of civilizations and the remaking of world order. New York: Simon & Shuster, 1996. Publicado en España por Paidós en 1997

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En realidad, la aportación de Huntington venía principalmente del hecho de haber sabido articular en una teoría política lo que ya existía desde hacía mucho tiempo: el sentimiento de superioridad cultural occidental y su imaginario anti-islámico, en un momento en que una buena parte de la atención internacional se centraba en el Medio Oriente. Así, al igual que ocurrió con la empresa colonial europea, esta concepción alimenta el vínculo entre cultura e imperialismo, de manera que la primera sirve para proteger e incluso justificar al segundo. Todo este universo mental occidental se ha reforzado de manera preocupante desde los atentados del 11 de septiembre y, aunque el presidente Bush ha afirmado en sucesivas declaraciones que la política americana está guiada por un profundo respeto hacia el islam y que no existe una guerra contra el islam, que es “una fe basada en la paz, el amor y la compasión”, la observación de los hechos no lo confirman, dada la manera en que EEUU está interpretando y presentando las causas de la violencia en el mundo islámico y las respuestas que se están dando para acabar con dicha violencia. En realidad, estas afirmaciones “bienpensantes” están siendo contradichas por asesores y miembros del partido de Bush que proclaman sin reparos su convicción de todo lo contrario. Kenneth Adelman, miembro del Consejo político del Pentágono, declaraba: “cuanto más se examina esta religión, más militarista aparece. Después de todo, su fundador, Muhammad, fue un guerrero, no un abogado de la paz como Jesús”; Eliot Cohen, del Consejo asesor del Pentágono, también afirmaba que “aunque es muy incómodo decir (....) que una de las mayores religiones del mundo tiene una profunda tendencia a la agresividad, sin embargo atreverse a hacerlo es una de las cosas que definen al liderazgo”; Paul Weyrich, influyente activista de la Casa Blanca, decía a su vez que “el islam está en guerra contra nosotros” y se quejaba de la promoción que la administración americana hace del islam como religión de paz y tolerancia al igual que el judaísmo y el cristianismo, “cuando no es así”8 . Por otro lado, el simple hecho de tener que hacer estas afirmaciones a favor del islam, tener que demostrar si el Corán justifica el terrorismo o no, si el suicidio forma parte de la cultura islámica o no, si el yihâd significa esto o aquello, obligando a todo musulmán a tener que defenderse

8

Washington Post, 1/12/02.

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diariamente ante la sospecha generalizada de que representa un potencial fanatismo inherente a su cultura y religión, es la prueba misma de que el islam y los musulmanes no son juzgados con los mismos estándares que el judaismo y el cristianismo. Al igual que prueba que existe una obsesión enfermiza por explicar todo lo que ocurre en los países musulmanes en función de lo “cultural-religioso” en detrimento de “lo político”, lo cual en absoluto se hace con otras religiones, otras culturas u otras experiencias históricas donde la violencia ha estado enormemente presente también (porque cuando el terrorismo procede de grupos de pertenencia cristiana o judía nadie busca en la Biblia o en la cultura la explicación de esa violencia). Esta visión, además, va unida a la expresión de un arrogante chovinismo religioso y cultural americanos. El presidente Bush no ha cesado de manifestar que “Dios está de nuestra parte”, de cantar “God bless America”, de definir de “cruzada” y “justicia infinita” su guerra contra el terrorismo (hasta que le dijeron que era políticamente incorrecto) y, para gran manifestación de prepotencia cultural, aseverar en el Congreso norteamericano que lo que motiva a los terroristas “es su odio a la libertad y a la democracia”. Estas actitudes se anclan rígidamente en la explicación “culturalista”, con la que se engloba y estigmatiza a todo el universo del islam y a todos los musulmanes, a la vez que evidencian el deseo explícito de no afrontar la verdadera explicación: que el fenómeno Ben Laden es una reacción convulsiva y extrema de la pax americana impuesta desde la Guerra del Golfo en el Medio Oriente, y particularmente en Arabia Saudí y el Golfo, que tiene su propia estrategia de poder totalitario como respuesta. Ben Laden nunca ha hablado de la libertad y democracia americanas sino de su intervencionista política exterior en los países musulmanes y el análisis no debe ser escamoteado por el hecho de que provenga de un personaje detestable por su inaceptable acción terrorista. Como se ha dicho sin cesar la lucha contra el terrorismo es muy compleja y sobre todo muy difícil. No existe un remedio evidente, pero, junto con las estrategias policiales y de fuerza, se debe también luchar contra sus causas y es ahí donde la política entra decididamente en juego. Y en el Medio Oriente se han acumulado multitud de problemas, conflictos y lamentables situaciones humanas cuyas raíces son profundamente políticas. Ningún movimiento clandestino puede operar sin apoyo popular y sin un entorno que esté dispuesto a aportar reclutamientos, apoyos económicos y medios pro-

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pagandísticos. Asimismo, busca ganar popularidad y comete sus atentados en el momento en que cree que se dan las condiciones para conseguir adhesión a su causa. Este es también el caso del turbulento y turbio grupo de Ben Laden. La prueba está en el contenido completamente político de su mensaje. Ben Laden hizo una declaración que lejos de representar simplemente al «loco de Alá» que casi todos esperaban en el mundo occidental -reduciéndose a imprecaciones culturalistas, fanatismo irracional, y menciones ultrarreligiosas- puso el dedo en la yaga de los conflictos y tragedias humanas que asolan la región y que están diariamente presentes en el sentir de las poblaciones musulmanas, con el fin de manipularlas a su favor. No porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser una realidad que desde el reparto colonial tras la Primera Guerra Mundial el Medio Oriente ha vivido una desgracia tras otra, en muy buena parte consecuencia de la injerencia y los intereses externos: la división artificial de Estados al servicio de las potencias extranjeras, la manipulación de esas potencias de las minorías cristianas orientales generando conflictos confesionales, la instalación de elites gobernantes al servicio de las mismas potencias para desgracia de sus poblaciones, el abandono de los derechos palestinos, el apoyo y consolidación de sátrapas como Saddam Hussein que, antes de convertirle en 1991 en el «Hitler» del Medio Oriente, fue durante una década el hombre de occidente en contra del Irán de Jomeini (lo mismo que ha ocurrido con el propio Ben Laden en el marco afgano)... Tampoco porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser una realidad que la dependencia que Arabia Saudí tiene de protección militar exterior le haya llevado a caer en la contradicción de permitir que se instalen bases norteamericanas en un territorio que los propios saudíes han convertido intensivamente en símbolo sagrado del islam, si bien al servicio de su propia legitimidad para mantener un régimen despótico y tribal que no tiene capacidad para alzar la voz y defender las injusticias que castigan a las poblaciones del mundo musulmán al que pretende representar en exclusiva. Y no porque lo dijese Ben Laden dejaba de ser cierto que existe un silencio culpable ante la muerte y sufrimiento de los niños iraquíes sometidos a un embargo internacional injusto y letal cuyos objetivos políticos de derrocamiento del régimen iraquí fueron probadamente ineficaces, y que existe una inaceptable insensibilidad ante la violencia diaria que

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sufre la sociedad civil palestina porque el apoyo incondicional de EEUU a Israel ha prevalecido sobre el derecho internacional y el sufrimiento humano. La manipulación y oportunismo de Ben Laden de ese sufrimiento en beneficio de su espúria causa no hace irreal ese sufrimiento. Existe, y es la raíz del problema, y en tanto que no se resuelvan esos problemas con un cambio de la política internacional en esta zona no se podrá luchar verdaderamente contra el terrorismo que representa este personaje. No se trata de una lucha entre civilizaciones y culturas, sino de afrontar la solución política de los problemas. Marginando el análisis racional y político se están eludiendo las verdaderas actuaciones que pueden eficazmente luchar contra la extensión de esa violencia. La batalla contra el terrorismo trasciende totalmente el paradigma civilizacional y su éxito a largo plazo. Se basa tanto en superar una amenaza como un desafío: conocer y entender la diversidad del mundo musulmán para debilitar a los extremistas y alentar a los reformistas; dar salidas políticas y no militares a los conflictos en esa región y contribuir a mejorar la terrible existencia que llevan la mayor parte de las poblaciones civiles en esos países. La mayor parte de las acciones y medidas asumidas en pro de la lucha contra el terrorismo tras los atentados del 11 de septiembre de 2001, si bien han sido presentadas como en defensa y protección de los ideales democráticos, no pueden ser consideradas de naturaleza democrática. Las nuevas legislaciones “anti-terroristas” puestas en práctica en EEUU, y en buena medida imitadas por otros Estados democráticos occidentales se han aplicado en un marco ambiguo en el que deliberadamente ni se ha definido qué es el terrorismo ni qué criterios se establecen para verificar como terroristas a todos aquellos que los respectivos miembros de la heterogénea coalición internacional acusan como tales. La ambigüedad sobre quienes son verdaderamente terroristas ha traído como resultado la consolidación de los regímenes represivos, predominantes en la gran mayoría de los países árabes y musulmanes. Una prueba de que esa ambigüedad no es sólo permitida sino buscada, es que se han rechazado todas las propuestas para establecer mecanismos internacionales de supervisión de la acción de los Estados en el marco de la lucha contra el terrorismo.

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Como indicaba el conocido opositor tunecino Moncef Marzuki, “nunca las dictaduras han estado mejor situadas en el mundo como desde el 11 de Septiembre”, sin embargo, señalaba con lucidez que los dirigentes occidentales tenían que comprender que lo que más miedo les da de los países árabes e islámicos: la emigración y el terrorismo “son consecuencia directa de la dictadura y la corrupción”9 . La cooperación en materia anti-terrorista puesta en práctica desde el 11 de Septiembre, va a dejar de lado la cuestión de los cambios políticos que necesariamente hay que promover para lograr la verdadera estabilización de esta volcánica parte del mundo y su consiguiente desarrollo económico, y, por el contrario, ha consolidando la impunidad de unos regímenes que tienen bajo una presión socio-económica y política insoportable a la gran mayoría de sus poblaciones. La situación en los países del Norte de Africa y Medio Oriente es de una gran gravedad: los gobernantes padecen una gran crisis de legitimidad, sus sistemas políticos están minados por la corrupción y el nepotismo y dirigen sus sociedades con puño de hierro. Enormes injusticias sociales y totalitarismo político son los dos principales elementos que caracterizan a esos Estados, y son la causa de la prolongación de otros males que bloquean la modernización (desigualdad entre los sexos, intolerancia y conservadurismo social, rechazo del pluralismo). Este contexto se ha visto agravado por los efectos devastadores que la situación de los palestinos y el embargo contra la población civil iraquí han causado en las opiniones públicas árabes y musulmanas, sentidas como dos ilustraciones de una actitud discriminatoria de la comunidad internacional. En este contexto, la alteración de las relaciones internacionales que ha engendrado la política de “guerra contra el terrorismo” ha resultado muy provechosa para el totalitarismo de los gobernantes en esta región. Para todos aquellos regímenes sumidos en una lucha intensiva contra sus oposiciones internas, la oferta americana de cooperación antiterrorista les ha permitido legitimar sus políticas represivas de seguridad y sus “leyes anti-terroristas” al margen de todo estado de derecho y se han encontrado con que, para gran satisfacción suya, el marco internacional ha legitimado esa amalgama buscada intencionadamente para no definir quién es quién en esta parte del mundo y por tanto utilizarla a su conveniencia, que es el “terrorismo islámico”10 . 9

Le Monde, 11/12/2001.

10

Gema Martín Muñoz, El Estado Arabe. Crisis de legitimidad y contestación islamista. Barcelona, Edicions Bellaterra, 2000.

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Por otro lado, tras el 11 de septiembre la política del gobierno israelí se ha dirigido tajantemente a querer reducir el conflicto con los palestinos a una cuestión de terrorismo y beneficiarse de la impunidad que se deriva de esa nueva lucha contra el terrorismo, para que se ignore que la raíz del problema es la ocupación de los territorios palestinos, su sistemático incumplimiento de las resoluciones de la ONU, y sus violaciones continuadas de la Convención de Ginebra. Todo ello nos lleva a plantear varias cuestiones claves: ¿la alianza mundial contra el terrorismo que EEUU ha instaurando es capaz de afrontar las causas profundas que producen esa violencia, o corre el riesgo de alimentarlas más? ¿El concepto de seguridad se va a orientar en la búsqueda de paz y estabilidad para la región árabe y musulmana, teniendo en cuenta que eso exige favorecer la democracia y las libertades, o se va a limitar a mantener el tan arriesgado statu quo existente? El análisis de lo ocurrido desde el 11 de septiembre hasta la actualidad invita a un gran pesimismo.

LAS RAÍCES DE LA NUEVA ISLAMOFOBIA OCCIDENTAL Todo ese universo mental occidental anti-islámico que se ha reforzado de manera preocupante desde los atentados del 11 de septiembre, está teniendo una repercusión determinante para los musulmanes y árabes viviendo en suelo occidental. Las fuentes principales que han realimentado los prejuicios contra los nacionales procedentes de países de adscripción musulmana han sido sustantivamente dos: las nuevas leyes “preventivas” aplicadas en el mundo occidental con respecto a los residentes procedentes de esas nacionalidades; y el tratamiento dado a esta cuestión por los medios de comunicación. Nada más ocurrir los atentados contra las Torres Gemelas se desencadenó una ola racial de ataques contra personas originarias de Oriente Medio y los países del sudeste asiático, lo que motivó que la sección de Derechos Civiles del Dpto. de Justicia el mismo 13 de septiembre emitiese un comunicado en el que se decía que “cualquier amenaza de violencia o discriminación contra Arabes y Musulmanes Americanos, no sólo era antiamericano sino perseguible por la ley”. El presidente Bush visitó

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el Centro Islámico de Washington el 17 de septiembre y una resolución de condena fue emitida por el Congreso. Pero lo más significativo de todo ello es que sólo se mencionaba a Arabes y Musulmanes « americanos », y esta distinción se plasmó, de hecho, en una política de doble rasero desde el momneto en que se empezó a legislar en pro de la “seguridad nacional”, de manera que los doce meses siguientes el Dpto. de Justicia había dirigido una persecución indiscriminada o “preventiva” hacia Arabes del Medio oriente y musulmanes del sudeste asiático (detenciones, expulsiones, interrogatorios). La American Patriot Act de octubre de 2001, que concede poderes de vigilancia e investigación sin precedentes, ha sido el instrumento con el cual se ha llevado a cabo esta persecución contra residentes de esas nacionalidades. En septiembre de 2002 la National Security Entry-Exit Registration System incluyó la toma de huellas dactilares a todos los visitantes a US considerados “de alto riesgo”, obligándoles a registrar su residencia ante las autoridades y confirmar su salida. Fueron los nacionales de Iran, Iraq, Libia, Sudán y Siria los principalmente sometidos a esta ley, si bien esos países nada tenían que ver con el 11/9. Y todos los residentes extranjeros procedentes de esas nacionalidades al ir a registrarse fueron masivamente detenidos. Es decir, de los 20 cambios legislativos producidos desde el 11 de sept. 15 van destinados específicamente a Arabes y musulmanes. Y de hecho, más de 60.000 personas se han visto afectadas por esta reglamentación gubernamental. Todas estas medidas se han puesto también al servicio del cierre a la inmigración de gente procedente de los países del Medio oriente y el sudeste asiático musulmán. El Dpto. de Justicia deportó a 6000 Middle east people por irregularidades en sus papeles o visas. Es decir, el 11/9 ha sido también aprovechado para cerrar la inmigración y limpiar de Arabes y Musulmanes los US, siguiendo las recomendaciones del conservador Centre for Inmigration Studies, que en un informe sobre “The Open Door: How militant Islamic terrorist Entered and Remained in US 1993-2001”, lejos de remitirse al análisis del fenómeno terrorista, hacía la amalgama con la inmigración y recomendaba una reducción determinante de la misma. En el caso de Europa, la tendencia es similar y la prueba de ello es que se está avanzando en el establecimiento de una legislación anti-terrorista «sólo para extranjeros» y completamente estigmatizadora contra los inmigrantes -y dirigida hasta ahora concretamente a Arabes y musulmanes-. Este ha sido el caso de Inglaterra, por ejemplo, que para aplicar su Antiterrorism, Crime and Security Act ha tenido que retirar su adhesión al

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artículo 15 de la Convención Europea de Derechos Humanos, uno de los grandes logros del humanismo europeo. Así mismo, el carácter arbitrario del celo policial hacia dicho grupo étnico y religioso se va constatando a medida que muy buena parte de los detenidos como presuntos individuos vinculados a al-Qaeda no han podido ser acusados en firme por falta de pruebas (lo cual puede que no sea ajeno al celo policial que se ha puesto en la «caza contra el terrorista islámico» cuando lo que hay, lógicamente, es muchos opositores políticos contra los regímenes dictatoriales de sus países de origen, los cuales les designan ante sus aliados políticos europeos como «terroristas» para lograr también su persecución en Europa). Es decir, se ha puesto en práctica una política claramente racial. Se está usando la raza, el aspecto étnico, y la adscripción religiosa, como el elemento clave que puede predecir quien puede estar implicado en un acto terrorista. Así, el perfil racial ha prevalecido sobre el principio de inocencia hasta probar la culpabilidad, relegando la sospecha razonable para justificar detenciones e interrogatorios arbitrarios. En consecuencia, el perfil racial se ha convertido desde el 11/9 en un fenómeno de criminalización global de todo un grupo en el mundo occidental y en el mecanismo preventivo de la lucha contra el terrorismo en dicho suelo, ocasionando multitud de detenciones arbitrarias entre los musulmanes y originarios de Oriente Medio que residen en EEUU y Europa. Esto ha traído consigo la tendencia a identificar al potencial terrorista por lo que es (la adscripción religiosa-étnica) en vez de por lo que hace, incrementado de manera preocupante el racismo a través de la islamofobia. Esa nueva islamofobia, basada en el sentimiento de sospecha hacia todo musulmán como una posible “arma oculta” de Osama Ben Laden, se ha justificado en función del patriotismo o la autodefensa, y, por tanto, ha adquirido un importante nivel de legitimación y desculpabilización social. Es decir, esas leyes raciales preventivas son la contraparte en la política interior de lo que en la política exterior está siendo el “ataque preventivo”. Esta situación está centralizando el fenómeno del terrorismo en el estatuto de extranjería (como si no necesitasen la misma atención los terrorismos nacionales y locales; o como si no se concediese la misma importancia a los demoledores terrorismos de Estado que aún siguen existiendo en una muy importante parte del planeta). Por otro lado, se ha vulgariza-

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do el término “terrorismo islámico”, lo que es un atentado a la dignidad de millones de musulmanes, como lo sería para otros si se hablase de terrorismo católico, protestante o judío. Y todo ello está creando un profundo sentimiento reactivo contra Arabes y Musulmanes en suelo occidental, percibidos globalmente como el “arma oculta de Ben Laden”, cuyo resultado es la extensión de la islamofobia. 19 individuos en un avión se convierten en la representación global de más de mil millones de musulmanes; y a los que viven en suelo occidental, los autóctonos les recuerdan su presencia ilegítima, obligándoles a justificar su lealtad y fiabilidad. Y, en este sentido, habría que decir que los principales discriminadores son los gobiernos con esas nuevas legislaciones anti-terroristas de tipo racial preventivo de gran impacto mediático y sobre las opiniones públicas. Ya en noviembre de 2002 un informe de Human Rights Watch señalaba que en US las agresiones sufridas por la población musulmana habían aumentado en un 1700% desde el 11/9. Y las encuestas transmiten ese imaginario social creado: la mayoría norteamericana se expresa a favor de crear una carta de identificación especial a los Arabes, inlcuidos los naturalizados, y a favor de tomar medidas policiales y de seguridad especiales para ellos. En Agosto del 2002 otra encuesta sacaba a la luz una mayoría que pensaba que “hay demasiados árabes en US” y un 60% era partidario de tomar medidas restrictivas hacia ellos. Y todo este ambiente ha liberado las voces racistas, como por ejemplo los populares líderes evangelistas, Franklin Graham y Jerry Vines que no han cesado de decir que el Islam es una amenaza para America y Occidente, pidiendo que los Musulmanes sean “incitados a dejar el país porque son una quinta columna en los EEUU”. En Europa, el Summary Report on Islamophobia in the EU after 11/9, elaborado por el European Center against racism and xenophobia en Mayo de 2002, prevenía sobre el alarmante aumento del sentimiento de sospecha y los estereotipos contra los musulmanes en los países de la UE y resaltaba que las nuevas medidas gubernamentales se basaban en acciones policiales indiscriminadas hacia las asociaciones árabes y musulmanas, así como ha aumentado la intransigencia y la agresión contra las mujeres musulmanas que usan el pañuelo en la cabeza (hiyab). Y, lo que es muy importante, frente a esta situación, las iniciativas gubernamentales e institucionales para atajar este problema han tenido un nivel muy bajo o casi inexistente.

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Consecuencia de todos estos factores, se ha ido enraizando el sentimiento occidental de que de todos los muy diversos colectivos de inmigrantes que están llegando a nuestros países, el de los musulmanes es el que plantea un potencial conflicto para nuestras sociedades, sus valores e identidad. Se establece la divisoria entre “culturas conflictivas” y “culturas integrables”. Identificado entre las primeras, el islam se convierte en factor de distanciamiento y amenaza y de ahí que, de hecho, se establezca el sentimiento social de inmigrantes “deseados” e inmigrantes “intrusos”. Por ejemplo, en España, cronistas, destacados políticos y responsables de la política migratoria han desarrollado un discurso público basado en la necesidad de orientar nuestra demanda laboral de inmigración hacia las comunidades latino-americanas o de la Europa del Este porque su condición de cristianos es un factor clave de integración. Se reclama públicamente que debemos seleccionar inmigrantes “con afinidades de lengua, religión y cultura”. Consecuencia de todo esto es que el colectivo marroquí inmigrante (el principal de origen árabe y musulmán en españa) se ha convertido en “el otro más significativo”, y es el más rechazado por la sociedad española. Es una inmigración “no deseada”11 . No obstante, el estudio de la presencia musulmana en Europa occidental llegada a través de las migraciones contemporáneas desde hace ya varias decenas de años, lleva a la constatación de que esa presencia es definitiva, que se está desarrollando un islam de Europa porque los musulmanes europeos se van insertando en las instituciones y en el espacio público europeo, porque se definen cada vez más por su pertenencia a los países, a las ciudades donde viven y a Europa, y que lo hacen en tanto que musulmanes a través de una dinámica voluntaria y pacífica que no ha dado lugar a tensiones agudas o innegociables. Es decir, es un problema construido y no real. También querría suscitar aquí el papel clave que desempeñan los medios de comunicación occidentales y que repercute en la situación de Arabes y Musulmanes en Occidente. Quizás el elemento más importante sea que dichos medios construyen permanentemente “la imagen de la distancia” con respecto a todo lo que procede de Arabes y musulmanes. Siempre seleccionan lo más extremo y extraño y le dan toda la centralidad, dando a entender que eso representa a todos. Siempre representan imágenes de

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Ver Gema Martín Muñoz (dir), Marroquíes en España. Estudio sobre su integración. Madrid, Ediciones de la Fundación Repsol YPF, 2003.

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masas, y es muy difícil identificarse con las masas, sobre todo, como es lo más frecuente, si aparecen en el momento de la “emoción”. No suele representarse al individuo que puede dar coherencia a ese momento emotivo o violento. Por el contrario, se pone al servicio del estereotipo dominante en la mentalidad occidental de que no son los individuos quienes hacen su historia sino que es el islam el que marca y determina a los individuos; así, se representa a un mundo que evoluciona (el occidental) y otro (el musulmán) condenado a un ciclo repetitivo de miseria y violencia sin esperanza de salir de él. Esos ciudadanos parecen no tener acceso a la Historia, a construirla como individuos. No son más que correas de transmisión pasiva de un destino comunitario prescrito. Todos son uno, y a partir de ahí se identifica a todos con la noticia más sensacionalista del momento: un atentado terrorista, un actor extremista, un acto de violencia o fanatismo… Y esa construcción mediática de la distancia se refleja en un proceso de deshumanización que hace diferentes las víctimas de unos y de otros. La construcción mediática de la proximidad se reserva a las víctimas del 11 de sept., a los ciudadanos israelíes, a los soldados norteamericanos en Iraq; en tanto que domina la distancia cuando las víctimas son palestinas, iraquíes. ¿Por qué en algunos casos se siente la necesidad de crear proximidad y por qué en otros, cuando sin embargo se vive desde hace décadas con ellos, son nuestros vecinos y conciudadanos, se sigue construyendo una imagen marcada por la distancia y la diferencia? Esta es una de las más importantes cuestiones sobre las que debe reflexionar el mundo occidental.

LA INVASION DE IRAQ La invasión americana de Iraq es un acontecimiento de gran magnitud porque, entre otras razones, por primera vez desde la Segunda Guerra Mundial la opinión pública europea y la estadounidense han reaccionado de manera opuesta y, al mismo tiempo, ese alejamiento ha ido unido a una reacción común de las opiniones públicas europeas que en algunos casos está en abierta oposición a sus gobiernos, cuando éstos han apoyado y participado en la ocupación de Iraq enviando contingentes militares (como es el caso de Inglaterra, España e Italia)12 . 12

Gema Martín Muñoz, Iraq, un fracaso de Occidente (1920-2003). Barcelona, Tusquets, 2003.

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Así mismo, se ha dado una importante circunstancia como es que las opiniones públicas europeas y las árabes y musulmanas han coincidido por primera vez en su común rechazo a la política, sin que las primeras se dejasen arrastrar por la obsesión culturalista. En ambos casos, la percepción es común : las causas de lo que está ocurriendo en Oriente Medio procede eminentemente de factores políticos, resaltando que el factor más pernicioso es la ocupación, ya sea de Iraq como de los territorios palestinos. La incidencia de dicha circunstancia es difícil de analizar dado su carácter tan reciente pero puede ser un significativo paso para « desvelar » la mirada occidental hacia el mundo musulmán y se dé cuenta de que la raiz de los conflictos y la violencia son políticos y no culturales. Por otra parte, la realización de algunas significativas encuestas de opinión en los países árabes y musulmanes circundantes de Iraq han permitido dar a conocer una visión más real del imaginario de dichas poblaciones sobre Occidente y constatar que el conflicto procede de la política y no de la cultura o los valores democráticos occidentales. La última encuesta de opinión realizada por la prestigiosa institución americana The Pew Research Center for the People and the Press en siete países árabes, Turquía e Israel a finales de 2003 para conocer las opiniones sobre EEUU y su política tras la invasión de Iraq, es muy significativa al respecto. Excepto en Israel, en todos estos países los ciudadanos se manifiestan “arrolladoramente opuestos a EEUU» y en algunos casos, como en Jordania y Palestina, esta posición antiamericana alcanza al 99 y 98% de los encuestados respectivamente. Incluso en Turquía, país no árabe y con una gran tradición pro-occidental, el apoyo a EEUU se ha reducido drásticamente con respecto a las encuestas realizadas en 2000-2002, de manera que hoy día sólo el 15% de los encuestados turcos expresan sentimientos positivos hacia EEUU y la gran mayoría rechaza incluso el limitado apoyo que su gobierno ofreció a los estadounidenses para su invasión de Iraq. Frente a esta posición casi unánime, la mayoría de los israelíes (79%) expresan posiciones favorables a EEUU y su política. Asimismo, si se compara con la situación de 2002, la lucha contra el terrorismo liderada por Washington ha perdido de manera radical crédito

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en estos países: menos de un cuarto de los encuestados la apoya hoy día. Es decir, la “guerra contra el terrorismo”, tal y como la formula y aplica EEUU, no tiene base social en buena parte del mundo donde se tiene que llevar a cabo con éxito dicha “guerra”. Pero es de gran importancia señalar que estas consideraciones contrarias a EEUU proceden de valoraciones estrictamente políticas y no sobre su cultural o modelo. Es más, la encuesta muestra que, lejos de replegarse en actitudes “culturalistas” frente a la amenaza externa, existe entre los ciudadanos árabes y musulmanes “un enorme apetito por las libertades democráticas ». Incluso defendiendo muchos de ellos un papel prominente del islam en la vida política, “no por ello disminuye su apoyo a favor de un sistema de gobierno que garantice las mismas libertades civiles y derechos políticos que gozan las democracias”. Aún más significativo es el hecho de que “quienes defienden un mayor papel para el islam en la política son los que expresan un mayor interés por las libertades y las elecciones libres y competitivas”. De ahí que los estereotipos sobre la imposibilidad de acomodar interpretaciones islámicas a modelos democráticos deban cuando menos ponerse en cuarentena. Todo ello viene a constatar que, en contra de lo que muchos piensan desde el mundo occidental, el desencuentro existente entre dicho mundo y las poblaciones árabes y musulmanas tiene una raíz profundamente política y se alimenta de un sentimiento creciente de injusticia y arbitrariedad producidas por la política internacional liderada por EEUU, quien, lejos de favorecer la democratización y el respeto de los derechos humanos, otorga impunidad a sus gobernantes locales; y quien, lejos de contribuir al fin de la ocupación israelí de los territorios ocupados palestinos, imita el comportamiento de Israel ocupando a su vez Iraq. Sentimiento que, además, comparten en muy buena medida las opiniones públicas europeas, tal y como también muestra esta encuesta realizada al mismo tiempo en los países de Europa. Todo ello está promoviendo actitudes nuevas que cuestionan la política internacional en Oriente Medio, que denuncian la manera en que se está poniendo en práctica la guerra contra el terrorismo; reaccionan contra las mentiras y empiezan a percibir que han sido manipulados para ver al mundo árabe y musulmán como un enemigo global y con ello desculpabilizar a sus gobernantes de la responsabili-

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dad de la violencia que está estallando en esta región del mundo. Quizás, después, pasen a replantearse sus relaciones con sus vecinos árabes y musulmanes.

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Premissas para uma Adequada Reforma do Estado Premises for a Proper State Reformation WILSON STEINMETZ Professor e pesquisador do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS) e do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS/RS).

RESUMO Argumenta-se que a função estratégica do Estado, a crise do tipo Estadonação, a questão democrática na era da globalização e a posição preferencial dos direitos fundamentais no Estado constitucional contemporâneo são temas relevantes para uma adequada condução das reformas do Estado – ou para a construção de um novo modelo de Estado, como desejam alguns. Supõe-se que a desconsideração desses temas como premissas para a definição e execução de reformas do Estado – ou de construção de um novo modelo de Estado – limita as possibilidades de superação duradoura da crise. Palavras-chave: Reforma do Estado, crise do Estado-Nação, democracia, direitos fundamentais.

ABSTRACT It is argued that the strategic function of the State, the State-nation type crisis, the democratic issue in the globalization era and the preferential position of the fundamental rights in the contemporary constitutional state are relevant topics for a

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proper management of the State reformation, or for the construction of a new State model, as wanted by some. It is supposed that the disregard for these topics as premises to the definition and execution of State reformations, or the construction of a new state model, limits the possibilities of lastingly overcoming the crisis. Key words: State reformation, State-nation crisis, democracy, fundamental rights. Neste início do século XXI, a crise e a reforma do Estado, bem como a necessidade e as possibilidades de um novo modelo de Estado são temas que ainda atraem o interesse dos intelectuais (da academia e de fora dela) e ocupam posição de destaque na agenda política, nacional e internacional. Assim tem sido desde o início da crise do Estado do Bem-Estar (Welfare State) europeu, na década de 70, e da crise do Estado Desenvolvimentista latino-americano, na década de 80, do século XX. Aqui, não analiso as causas da crise do Estado nem as reformas já executadas nos últimos vinte anos, as ainda em curso e as que estão sendo anunciadas para o próximo período, na Europa e na América Latina. Em relação a isso, a literatura especializada existente é abundante e de muito boa qualidade. O que faço aqui é argumentar sobre temas que considero premissas relevantes para uma adequada condução das reformas do Estado – ou para a construção de um novo modelo de Estado, como preferem alguns –, tomando como referência a América Latina, sobretudo o caso brasileiro. Suponho que a desconsideração desses temas como premissas para a definição e execução de reformas do Estado – ou de construção de um novo modelo de Estado – limita as possibilidades de superação duradoura da crise. Esses temas são a função estratégica do Estado, a crise do tipo Estado-nação, a democracia ante a globalização e a posição preferencial (preferente, reforçada) dos direitos fundamentais no Estado constitucional contemporâneo.

1 A FUNÇÃO ESTRATÉGICA DO ESTADO A partir dos anos 70, o Estado do Bem-Estar, nos países europeus desenvolvidos, e a partir dos anos 80, o Estado Desenvolvimentista,

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nos países latino-americanos em desenvolvimento – ambos produtos do “grande consenso keynesiano”1 –, entraram em crise.2 Como ano1

O “grande consenso keynesiano” – em referência ao pensamento e às propostas de John Maynard Keynes – é assim resumido por Giannetti da Fonseca (1994, p. 10):

“1º) a defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na produção de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio de legislação específica; 2º) a montagem e ampliação do ‘Estado do Bem-Estar’, baseado na transferência de renda para certos grupos da sociedade (idosos, crianças, deficientes e desempregados) e buscando promover algum tipo de justiça distributiva; 3º) uma política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada através de estímulos fiscais e monetários e voltada acima de tudo para a manutenção do pleno emprego no curto prazo” [sem grifo no original]. 2 O Estado do Bem-Estar, o Welfare state, é definido por Wilensky (apud Regonini, 1992, p. 416) como o Estado que garante “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade mas como direito político”. Segundo Regonini (1992, p. 417), historicamente, é na Inglaterra dos anos 40 do século XX que se consolida o princípio básico do Welfare state: “independentemente da sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de ser protegidos – com pagamento de dinheiro ou com serviços – contra situações de dependência de longa duração (velhice, invalidez...) ou de curta (doença, desemprego, maternidade...) [...] Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, todos os Estados industrializados tomaram medidas que estendem a rede dos serviços sociais, instituem uma carga fiscal fortemente progressiva e intervêm na sustentação do emprego ou de renda dos desempregados”. Já os Estados desenvolvimentistas são descritos por Evans (1993, p. 117) como aqueles Estados que “extraem excedentes mas também fornecem bens coletivos. Fomentam perspectivas empresariais de longo prazo entre elites privadas mediante o aumento de incentivos ao engajamento em investimentos transformadores e a redução dos riscos envolvidos em tais investimentos”. Para autores como Offe (1984) e Vacca (1991), a crise do Welfare state manifesta-se como crise fiscal, de legitimação e de governabilidade. A crise fiscal decorre da dificuldade de o Estado fazer frente ao aumento progressivo dos gastos públicos. Sobre o Estado há uma demanda crescente, incompatível com a evolução de suas receitas. À crise fiscal soma-se a de legitimação. Isso porque quem faz a filtragem política das demandas são os partidos políticos e as “organizações de interesse”. Para Vacca (1991, p. 156), a crise de legitimação pode ser vista como “[...] crise de representação das classes trabalhadoras [...]”. “Os debaixo” já não se vêem representados adequadamente pelos partidos e sindicatos. Ainda segundo Vacca (1991, p. 157-158), “[...] os órgãos da administração pública e do Estado são ‘enfeudados’ pelos partidos [...] Estes estendem o seu domínio sobre os órgãos públicos e estatais, mas mostram-se cada vez mais incapazes de conferir unidade de objetivo e funcionalidade aos órgãos do Estado”. Assim, a crise fiscal que fragiliza o Estado também respinga nessas instituições responsáveis pela produção da legitimidade. A conseqüência é a crise de governabilidade. Uma das interpretações mais influentes da crise do Estado Desenvolvimentista é a de Bresser Pereira. Sua hipótese “[...] é que a crise dos anos 80 e 90 do Estado [brasileiro e latino-americano], é uma crise fiscal do Estado, é uma crise do modo de intervenção do Estado Social, é uma crise da forma burocrática e ineficiente de administrar um Estado que se tornou grande demais para poder ser gerido nos termos da ‘dominação racional-legal’ analisada por Weber” (Bresser Pereira, 1996, p. 15). Para Bresser Pereira (1996, p. 19-20), naquilo que ele denomina a interpretação da crise do Estado, “a crise fiscal caracteriza-se pela perda do crédito público. Pelo fato de que a elevada dívida pública, combinada com altas taxas de inflação, déficit público crônico, altas taxas de juros internas, taxas declinantes de crescimento, torna ela própria explosivas as expectativas com relação ao seu crescimento. E também pela existência de poupança pública negativa. A crise do modo de intervenção é definida pela exaustão das formas protecionistas de intervenção, pela multiplicação de subsídios e pelo excesso de regulação em uma economia onde se tornou predominante o comportamento do tipo rent-seeking. A crise da forma burocrática de administração, pela rigidez e ineficiência do serviço público”. [Segundo Bresser Pereira, a interpretação da crise do Estado é uma síntese entre os antigos paradigmas interpretativos do subdesenvolvimento da América Latina, para os quais o Estado tinha um papel decisivo, e o paradigma neoliberal. Os antigos paradigmas interpretativos são estes: interpretação da vocação agrária ou interpretação liberal-oligárquica, que, a partir de 1930, concorre com a interpretação nacionaldesenvolvimentista (1930-1980) e a interpretação autoritário-modernizante ou burocrático-capitalista (1964meados de 70). Nas décadas de 80 e 90, predomina a interpretação neoliberal. Sobre as interpretações da crise do Estado ver Bresser Pereira (1996, parte 1, p. 25-74).]

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tou Evans (1993), o Estado, que fora a solução nas décadas anteriores, passou a ser visto como problema. Ainda segundo Evans, o Estado tornou-se um problema porque houve uma mudança na agenda do desenvolvimento e uma mudança no clima ideológico e intelectual. O Estado já não dava conta da agenda do desenvolvimento. O que se viu foi a elevação dos índices de inflação, a queda nas taxas de crescimento e o aumento do desemprego. Combinado com isso, a chamada “segunda onda” de reflexão sobre o Estado tornou-se hegemônica. A “primeira onda” de reflexão sobre o Estado caracterizara-se por um “otimismo irrealista” (o desenvolvimentismo). A “segunda onda” constituiu-se pela ascensão das teorias minimalistas do Estado, articuladas por neoconservadores, pela “nova direita”, pelos neo-utilitaristas e pelos neoliberais. 3 Contudo, a proposta de um Estado minimalista agora já é vista como utópica e, sobretudo, indesejável. Dada a complexidade da sociedade contemporânea, um Estado restrito a suas funções clássicas não é mais factível. A sociedade necessita de uma estrutura institucional e política consistente e estável. É verdade que o Estado é parte do problema, mas é igualmente verdadeiro que o Estado faz parte da solução (Evans, 1993). É simplista demais a afirmação de que o Estado perdeu total e irreversivelmente sua capacidade de ação. Aliás, a reforma do Estado, condição para superação de sua crise, só pode ser conduzida pelo próprio Estado. Nesse mesmo sentido, Lechner (1996, p. 37) identifica o que chama de “paradoxo neoliberal”: “uma liberalização econômica bem sucedida pressupõe uma intervenção ativa do Estado para levar a cabo tais reformas”. As reformas neoliberais, dos anos 80 e 90, foram possíveis graças a uma forte intervenção do Estado. Dizendo de outro modo, sem a atuação do Estado muito provavelmente não teria havido reformas (neoliberais) econômicas e institucionais. “De fato, a própria reforma do Estado foi deixando de lado a ortodoxia neoliberal; na medida em que a privatização das empresas públicas e a racionalização da burocracia administrativa avançam, o próprio processo exige novas formas de regulação estatal [...] É hora de enfocar o Estado como ‘solução’ que decide o rumo e o ritmo dessa reorganização da sociedade” (Lechner, 1996, p. 38). Ainda na mesma direção, Grau argumenta (1994, p. 9) “[...] que o 3

Para Evans (1993), agora está em curso a “terceira onda” de reflexão sobre o Estado; é a onda que propõe a

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Estado do nosso tempo – o Estado contemporâneo – é, fundamentalmente, Estado implementador de políticas públicas”, com forte intervenção na ordem social e na ordem econômica. O simples fato de o Estado produzir o direito já configura sua atuação interventiva. O mercado não se viabiliza sem uma legislação que o garanta. A “regulação espontânea” ou a “auto-regulação” do mercado é mera crença. Para melhor fundamentar a tese de que sem o Estado o mercado é inviável, vale relembrar as “quatro categorias de atividade governamental” – melhor seria dizer atividade estatal – identificadas por Habermas (1980, p. 72-73). 1ª) O Estado cria pré-requisitos necessários à constituição e manutenção do modo de produção, tais como: garantia da propriedade e da liberdade de contrato; introdução de leis trabalhistas, legislação que assegure a concorrência, estabilidade monetária, para evitar efeitos auto-destrutivos do mercado; oferta de educação, transporte e comunicação; estímulo à economia nacional diante da competição internacional; garantia da integridade nacional externa e interna. 2ª) O Estado faz adaptações complementadoras do mercado, porque “o processo de acumulação de capital requer adaptação do sistema legal a novas formas de organização comercial, competição, financiamento, etc. (por exemplo, por meio da criação de novos arranjos legais em direito bancário e comercial e na manipulação do sistema fiscal)” (Habermas, 1980, p. 72). 3ª) Há também as ações substitutivas do mercado pelo Estado, por meio das quais criam-se “[...] novas situações econômicas e negócios, seja através da criação e da melhora de oportunidades de investimentos (demanda governamental de progresso científico-tecnológico, qualificação ocupacional de forças de trabalho, etc.)” (Habermas, 1980, p. 73). 4ª) Por fim, o Estado compensa conseqüências danosas e indesejadas do processo acumulativo que provocam reações políticas; responsabiliza-se pela proteção do meio ambiente (dano ecológico) por meio de ações concretas e legislação, impede o desaparecimento de setores econômicos ameaçados (por exemplo, a agricultura) e cria leis e instrumentos visando melhorar a situação social dos trabalhadores. vol.5, n.1, 2004

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“A atividade governamental, nas duas últimas categorias, é típica do capitalismo organizado”, segundo Habermas (1980, p. 73). É pouco crível que o Estado abdicarḠin totum – mesmo que ainda não se possa prever todos os possíveis efeitos da globalização4 sobre o Estado nacional –, das atividades identificadas por Habermas. Basta que se olhe para o capitalismo brasileiro, no qual o Estado continua garantindo infra-estrutura, incentivos fiscais, subsídios, proteção de setores econômicos que poderiam desaparecer se expostos à concorrência internacional, etc. Certamente o Estado continuará exercendo as referidas atividades, porém em grau diferenciado. Provavelmente, com menos intensidade em umas e com mais em outras. Grau (1996, p. 94) tem razão ao dizer que “[...] a destruição do Estado, hoje, no momento histórico presente, pelo capitalismo, consubstanciaria uma estratégia suicida, na medida em que deixa abandonados os mercados, à mercê dos capitalistas...”. Sem Estado ou com um Estado reduzido às funções de polícia e caridade, a continuidade do capitalismo estaria exposta a todo tipo de riscos. Portanto, no processo de reforma do Estado, ou na formulação de um novo modelo de organização estatal, é imperioso considerar a função estratégica do Estado para a sociedade e para a economia. Nessa perspectiva, o Estado não só é objeto da reforma, mas também agente da sua própria reforma.

2 A CRISE DO ESTADO-NAÇÃO Outro tema relevante para os rumos do processo de reforma do Estado é o do Estado-nação. Tornou-se lugar-comum dizer que o Estado-nação

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Embora muito analisado e debatido nos meios acadêmicos, políticos e midiáticos, o fenômeno da globalização ainda produz mais dissensos do que consensos. Aqui, penso na globalização como produto da terceira revolução tecnológico-científica (processamento, difusão e transmissão, em grande escala e com rapidez, de informações, viabilizados pela informática, microeletrônica e telecomunicações). A globalização materializa-se (i) pelo crescimento sem precedentes do comércio internacional de bens e serviços e a formação de áreas de livre comércio e blocos econômicos integrados (União Européia, Nafta, Mercosul); (ii) a transnacionalização das grandes empresas multinacionais; e (iii) a criação dos mercados financeiros globais (interligação e interdependência dos mercados físicos e financeiros, em escala planetária).

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está em crise. Para Vacca (1991, p. 158-159), “a crise do welfare [State] (crise fiscal, crise de legitimação, crise de governabilidade) surge, pois, na conclusão do longo ciclo do desenvolvimento nacional e mistura-se com a crise do Estado-nacão”; e “o declínio do Estado-nação na Europa data de há mais ou menos um século”, acentuando-se significativamente com a guerra fria, quando os Estados europeus perderam a autonomia para decidir sobre a guerra e a paz. Dos anos 30 aos 60 do século XX, houve um capitalismo autárquico, no qual economia nacional e Estado nacional mantiveram relação umbilical. Com a globalização, modifica-se “[...] o paradigma das relações entre mercados nacionais e [entre] mercados nacionais e mercado mundial [...] A difusão do desenvolvimento não é mais (ou é sempre menos) mediada pelas economias e pelos Estados nacionais. As diferenciações nacionais do desenvolvimento dependem cada vez menos das possibilidades de escolha dos Estados” (Vacca, 1991, p. 160). É a crise da economia nacional. 5 Conseqüentemente, o Estado-nação não poderia mesmo ficar incólume à crise. Lechner (1996) aponta para a tensão entre as dinâmicas de globalização e o âmbito nacional. Cita, como um dos aspectos dessa tensão – para nós brasileiros, talvez um dos mais significativos –, a independência dos capitais financeiros em relação ao mundo da produção e às regulações nacionais, em razão da internacionalização dos mercados financeiros. Para agravar a crise, os Estados têm dependido cada vez mais desses mercados financeiros para cobrir seus déficits fiscais. A crise mexicana, em 1994, a crise asiática, em 1997 e 1998, e a brasileira em 1999 evidenciaram o tamanho do impacto da globalização no âmbito nacional. Além disso, como bem anotou Lechner (1996, p. 34), “[...] o problema não é só econômico: a globalização altera a agenda pública dos países, que acaba sendo ditada por eventos externos, fora do controle dos atores nacionais”. Nesse contexto, o tema da soberania do Estado-nação torna-se inevitável. Reinicke faz uma distinção entre soberania legal e soberania operacional. Para ele, a globalização desafia a soberania, não a soberania legal dos Estados, mas “[...] a soberania operacional de um governo, isto é, sua capacidade de exercer a soberania nas questões políticas corri-

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Vacca (1991, p. 160) chama a atenção não só para a crise, mas para o fim da economia nacional.

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queiras” (Reinicke, 1997, p. 27). Portanto, é a soberania interna que está ameaçada. 6 Como a soberania interna (operacional) é afetada? A descrição de Reinicke (1997, p. 27) é precisa: As redes empresariais globais afetam a soberania interna de um estado pois alteraram o relacionamento entre o setor público e privado. Ao induzir as empresas a abolir os limites entre os mercados nacionais, a globalização cria uma geografia econômica que inclui múltiplas geografias políticas. O governo deixa de deter o monopólio do poder legítimo sobre o território no interior do qual operam as empresas, como atesta o crescente deslocamento das operações das empresas na busca de regimes tributários e reguladores mais favoráveis. De forma nenhuma isso significa que os agentes do setor privado estejam solapando deliberadamente a soberania interna. O que ocorre é que eles seguem uma lógica organizacional diferente daquela dos estados, cuja legitimidade deriva de sua capacidade de preservar as fronteiras estabelecidas. Os mercados, contudo, não dependem da existência de fronteiras. Assim, ao mesmo tempo que integra os mercados, a globalização fragmenta a vida política. É precoce falar no fim do Estado-nação. Até porque não está dado que ele tenha perdido de maneira irreversível a soberania operacional. Drucker (1997), por exemplo, menciona o fato de que os diversos Estados surgidos nos séculos XIX e XX têm conseguido manter a unidade nacional e para o fato de que apenas o Estado nacional, até hoje, conseguiu garantir a integração política e a participação na comunidade internacional. Drucker aposta na sobrevivência do Estado nacional, embora reco-

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Segundo Reinicke (1997, p. 27), “a soberania tem dois aspectos, um interno e outro externo. O primeiro referese ao relacionamento entre o estado e a sociedade civil. Segundo Max Weber, um governo é internamente soberano quando detém o monopólio de poder legítimo sobre uma gama de atividades sociais, incluindo as econômicas, nos limites de um território definido. Esse poder é expresso nas estruturas nacionais jurídicas, administrativas e políticas que determinam as políticas públicas. Com relação à economia, a soberania interna é exercida quando os governos cobram impostos ou regulamentam atividades do setor”. O aspecto externo da soberania refere-se ao relacionamento entre os Estados no âmbito internacional.

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nheça que será um Estado substantivamente diferente, “[...] sobretudo no que se refere às políticas fiscais e monetárias internas, às políticas econômicas externas, ao controle das transações internacionais e, talvez, ao modo de conduzir a guerra” (Drucker, 1997, p. 7). O certo é que Estado-nação e economia globalizada operam segundo lógicas diferentes e por vezes contraditórias. Ainda não há um quadro institucional adequado ao novo momento por que passa a economia mundial. Assim, no processo de reforma do Estado a questão do Estado-nação em um cenário de globalização merece especial atenção.

3 A QUESTÃO DEMOCRÁTICA Nota-se que não tem merecido a devida atenção, sobretudo dos condutores políticos e operacionais da reforma do Estado nos países latinoamericanos, a questão da democracia. Como constatou Lechner (1996, p. 43), “[...] a reforma do Estado guia-se por um enfoque tecnocrático, sem fazer referência à ordem democrática. Poucas vezes se coloca a questão do Estado democrático”. Não há um vínculo entre democratização e reforma do Estado. Lechner cita como paradigmático o caso do México. Podese também citar como exemplos o Peru, no governo Fujimori, a Argentina, no governo Menem, e mesmo o Brasil, no governo Cardoso. “Freqüentemente as reformas [nos países latino-americanos] tiveram como único propósito incrementar a eficiência do Estado em função da economia capitalista de mercado” (Lechner, 1996, p. 53) e não a democratização do Estado. Além do viés tecnocrático das reformas, há a já mencionada perda de soberania operacional do Estado em virtude da globalização. “A ameaça à capacidade de um governo exercer sua soberania interna traz consigo uma ameaça à democracia” (Reinicke, 1997, p. 27). O voto já não tem o mesmo peso na definição das políticas internas. Um “ataque especulativo” à moeda nacional ou uma crise financeira regional com efeitos internacionais pesa muito mais nas decisões de um governo do que os votos e a vontade majoritária dos governados. Veja-se o caso do Brasil. Para fazer frente aos efeitos das crises internacionais dos últimos anos, os governos foram obrigados a elevar taxas de juros, definir arrojadas metas inflacionárias e praticar medidas fiscais fortemente restritivas. Como conseqüên-

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cia, houve redução da atividade econômica, aumentou o desemprego, baixou o nível médio da renda salarial e proliferou a miséria e a violência. É provável que a perda progressiva da soberania interna acarretará uma crescente desconfiança em relação às instituições democráticas, podendo gerar até mesmo crises de legitimidade e, ato contínuo, de governabilidade.7 Portanto, um dos desafios na construção do novo Estado será a conciliação entre eficiência econômica e legitimidade política. Offe8 sustentou que o tamanho do Estado deve ser negociado politicamente. Não há um tamanho ideal que possa ser técnica e previamente definido. Se isso for verdadeiro, então a questão democrática é decisiva. O processo e o conteúdo da reforma do Estado não devem ser pensados apenas do ponto de vista tecnocrático e/ou da eficiência econômica. A questão democrática, sobretudo a democratização do Estado, deve ser ponto obrigatório da agenda reformista.

4 A POSIÇÃO PREFERENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Do ponto de vista jurídico, o Estado em crise e a ser reformado é um Estado constitucional. No caso brasileiro, este Estado constitucional qualifica-se como um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput) com forte conteúdo social. A democracia e os direitos fundamentais são os elementos nucleares do Estado Democrático de Direito. Da democracia já tratei acima. Uma das grandes conquistas do homem moderno são os direitos fundamentais. São instrumentos jurídicos, políticos e éticos a serviço da liberdade, da igualdade e da dignidade humanas. São direitos aos quais a civilização não deve renunciar, porque representam a garantia da própria

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Lechner (1996) aponta para a tensão entre democracia e governabilidade democrática como um dos dilemas enfrentados pelos Estados latino-americanos no atual contexto. Segundo ele, essa é uma das lições da crise financeira do México que teve início em 20 de dezembro de 1994, sendo resolvida apenas com ajuda internacional (de modo especial, do governo americano e do FMI).

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Seminário internacional “Sociedade e Reforma do Estado” promovido, em São Paulo, nos dias 26, 27 e 28 de março de 1998, pelo então Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, do governo brasileiro.

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civilização contra a barbárie. O esforço permanente deve ser no sentido de ampliar os direitos fundamentais e torná-los cada vez mais efetivos. Na maioria das constituições democráticas contemporâneas, os direitos fundamentais ocupam posição preferencial (preferente, reforçada) na ordem jurídica (e.g., CF, art. 60, § 4º, IV). Ademais, além de uma função jurídico-subjetiva, atribui-se a esses direitos uma função jurídico-objetiva. Dizendo de outro modo, além de direitos subjetivos, são princípios jurídicos objetivos que devem projetar-se sobre toda a ordem jurídica, ora incidindo diretamente, ora influenciando mediante recursos hermenêuticos. Assim, no processo de reforma do Estado, a posição preferencial dos direitos fundamentais deve ser respeitada e as funções desses direitos potencializadas. A reforma do Estado deve também servir para elevar o patamar civilizatório e não para reduzi-lo ou fragilizá-lo.

5 ESTADO REGULADOR: O NOVO MODELO? Depois da crise dos anos 80 e 90, como bem anotou Roth (1996, p. 15), os países latino-americanos e do leste europeu, pertencentes ao antigo bloco socialista, enfrentaram o mesmo problema: “que papel outorgar ao Estado?” Ainda que sem muita precisão, já há referências a um novo modelo: o Estado regulador. Bresser Pereira (1996, p. 285), por exemplo, prevê que o Estado moderno do século XXI “[...] deverá ser um Estado regulador e transferidor de recursos, que garante o financiamento a fundo perdido das atividades que o mercado não tem condições de realizar”. Um Estado que não será próximo do mínimo (século XIX) nem executor (século XX). Puceiro (1996), analisando a reforma do Estado argentino, também faz referência à necessidade de fortalecimento do papel regulador do Estado. Segundo ele, a privatização de empresas estatais resolve determinados problemas, mas pode criar outros, tais como: abusos dos monopólios; continuidade, na gestão privada, de hábitos da anterior gestão estatal; não atendimento das necessidades sociais, atendo-se, exclusivamente, ao critério da rentabilidade; desrespeito aos direitos dos usuários; distorções na

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competição. “A culminação bem-sucedida do processo de reforma requer uma legislação adequada que possibilite neutralizar tais riscos, e uma ação moderna, profissional e dinâmica por parte do poder público, expressado agora nos novos entes reguladores” [sem grifo no original] (Puceiro, 1996, p. 125). Ainda segundo Puceiro, para que o Estado exerça com sucesso seu poder regulador, são necessários quadros regulatórios claros – que estabeleçam as regras que irão reger as relações entre o Estado e as empresas prestadoras de serviços públicos e entre estas e os usuários – e poder de polícia que garanta aos beneficiários e aos usuários a prestação dos serviços. “Ao mesmo tempo [os quadros regulatórios] devem assegurar a existência de mecanismos de informação e controle, especialmente importantes quando se trata de casos de monopólios naturais, garantir plena competição nos setores onde esta é possível, assegurar a proteção dos usuários e estabelecer mecanismos claros para a fixação de tarifas” (Puceiro, 1996, p. 126). Tomando o caso do Brasil, ao se falar em Estado regulador, vários aspectos problemáticos devem ser considerados. Um dos mais importantes diz respeito ao grau de independência dos entes reguladores (e.g., agências reguladoras) ante o próprio núcleo estratégico do Estado e os grupos políticos e de interesse que dão sustentação (aos) e pressionam os governos. No caso das agências reguladoras, o mandato fixo dos diretores e o contrato de gestão serão suficientes para elidir as pressões políticas e econômicas? Outra questão diz respeito ao comportamento dos usuários. É notório o desconhecimento, por parte da maioria da população brasileira, dos seus direitos, seja como cidadãos, em um sentido mais amplo, seja como consumidores, em um sentido mais restrito. Há falta de informação e, mesmo quando ela existe, há a tendência à passividade. Assim, como viabilizar o controle social, que é, por definição, o mais democrático? Como produzir ações no seio da sociedade civil que impeçam eventuais abusos das empresas prestadoras de serviços públicos? Também há que se considerar uma característica histórica do Estado brasileiro: ser forte contra os fracos e ser fraco contra os fortes. Ora, as empresas prestadoras de serviços públicos pertencem a grandes grupos econômicos, nacionais e internacionais, com alta capacidade de barganha na arena institucional.

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Há, ainda, a crise do Poder Judiciário. Certamente, muitos dos conflitos entre o Estado, as prestadoras de serviços e os usuários acabarão nos tribunais. É notória a morosidade da prestação jurisdicional no Brasil. Esse é um óbice importante a ser considerado quando se pensa em um Estado de tipo regulador. Parece-me que a proposta de um Estado regulador no Brasil se defronta com duas grandes questões: (i) qual deve ser o desenho institucional desse Estado e quais funções lhe outorgar? (ii) é viável a transformação do Estado brasileiro em um Estado regulador eficaz e eficiente que garanta, às pessoas, os direitos fundamentais e a redução das desigualdades sociais e regionais?

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Existe a única resposta jurídica correta? Is There the Only Correct Juridical Answer? JAYME WEINGARTNER NETO Promotor de Justiça no RS, Mestre em Ciências Jurídico-Criminais (Coimbra, Portugal), Doutorando em Instituições de Direito do Estado (PUC/RS), Coordenador do Curso de Direito da ULBRA/Cachoeira do Sul.

RESUMO Depois de percorrer as discussões sobre o estado das ciências e o paradigma de Kelsen e Hart para a hermenêutica jurídica, discute-se a tese dworkiana da «única resposta correta » e as reformulações de autores posteriores, defendendo-se, ao fim, a busca da « melhor resposta possível». Palavras-chave: Filosofia do direito, Hermenêutica, Dworkin.

ABSTRACT After going through the discussions on the state of sciences and Kelsen’s and Hart’s paradigm to the legal hermeneutics, the author discusses Dworkin’s thesis of ‘the only correct answer’ and the reformulations by subsequent authors, defending, as a conclusion, the search for the ‘best possible answer’. Key words: Legal philosophy, hermeneutics, Dworkin. O presente texto foi apresentado como relatório à disciplina “Interpretação Constitucional e os Fundamentos do Direito Público e do Direito Privado I (Temas Avançados de Interpretação Constitucional)”, no âmbito do Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da PUC/RS, Coordenador Professor Doutor Juarez Freitas. 1

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(...) ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” – a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos dos conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; – tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?... (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Terceira dissertação: o que significam ideais ascéticos?, aforismo 12); (...) E aqui toco outra vez em meu problema, em nosso problema, meus caros, desconhecidos amigos ( – pois ainda não sei de nenhum amigo!): que sentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade toma consciência de si mesma como problema? (idem, ibidem, aforismo 27).2

1. INTRODUÇÃO Em sua célebre “Oração de Sapiência” proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86, Boaventura de Sousa Santos, depois de apresentar as fissuras no paradigma dominante, procurou caracterizar a mundivisão emergente (o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente), tendo destacado quatro teses, postulando a terceira que todo o conhecimento é auto-conhe-

2

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 3ª reimpressão, 2001, pp. 108-9 e 148, respectivamente.

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cimento.3 O sujeito concreto destas reflexões inicia, então, de modo retrospectivo, pois já respondeu, noutro exercício dogmático, à indagação vestibular. Precisamente na nota 614 do trabalho, ao criticar a solução judicial de um caso difícil e uma vez apresentados os parâmetros da investigação para decidi-lo, consignou: “É de se reconhecer, com lisura, que não existe uma solução correta. Partindo de outros tópicos argumentativos, também razoáveis, viável defender-se que (...) Não é a posição do texto (...).”.4 Percebe-se que o problema foi apresentado em nível de crença, talvez no contexto de descoberta. Trata-se, agora, de avançar ao contexto de justificação, percorrer um procedimento ao cabo do qual a premissa possa considerar-se embasada, justificada. Sinala-se, com Atienza, que a teoria padrão da argumentação jurídica situa-se no contexto de justificação dos argumentos (em geral com pretensões descritivas e prescritivas), opondose tanto ao determinismo metodológico quanto ao decisionismo metodológico.5 Rejeita-se, desde já, pelas razões que seguem, a idealizada resposta correta, o que não significa renunciar tout court à busca da melhor resposta possível. Confluem, para tanto, razões paradigmáticas (negativas e positivas) e argumentos jurídicos, de cerne hermenêutico. Ao cabo, pretende-se densificar o discurso da melhor resposta, um mapa útil para que se não caia no “pântano cinzento” do ceticismo ou do irracionalismo, uma orientação “em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o optimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada.”.6 Em nível paradigmático, tópicos negativos apontam para o esgotamento de uma vertente, hegemônica, da modernidade, de um cientificismo tecnológico exasperado e tendencialmente estático e determinista. De sinal contrário, a mundivisão que se vai instalando, seja o pós-modernis-

3

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 11ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 1999, pp. 50-5. “A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistémico mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeito empírico.” (...) Assim ressubjectivado, o conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático.”

4

WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Item 5.5.2 – o caso Lula-Pelotas, pp. 313-8.

5

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy Editora 2000, pp. 21-6.

6

SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências, p. 35.

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mo de oposição (Boaventura) ou o topos da complexidade (Morin), valoriza a pluralidade, a dinâmica não-linear. Na teoria da argumentação jurídica, a interpretação é tópico-sistemática (Juarez Freitas), superado o positivismo reducionista. À tessitura argumentativa.

2. RAZÕES PARADIGMÁTICAS Nosso lugar, hoje, é ambíguo, em “sociedades que são simultaneamente autoritárias e libertárias”, é “multicultural, um lugar que exerce uma constante hermenêutica de suspeição contra supostos universalismos ou totalidades”. 7

2.1. Negativas No início do século XIX, a ciência moderna já se convertera numa espécie de religião (Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Bacon, Descartes estabeleceram seus fundamentos). Sua profissão de fé foi a racionalidade que emergiu a partir da revolução científica do século XVI e desenvolveu-se nos séculos seguintes basicamente segundo o modelo das ciências naturais, que servem, portanto, de padrão para as incipientes ciências sociais. Um modelo totalitário, “na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Só existe uma forma de conhecimento verdadeiro e é com indisfarçada arrogância que os cientistas se medem com seus contemporâneos. Kepler, numa única ilustração, Harmonia do Mundo (1619, sobre as órbitas dos corpos celestes): “Perdoai-me, mas estou feliz; se vos zangardes eu perseverei; (...) O meu livro pode esperar muitos séculos pelo seu leitor. Mas mesmo Deus teve de esperar seis mil anos por aqueles que pudessem contemplar o seu trabalho.”.8 Os grandes avanços técnicos baseiam-se na observação e na experi-

7

SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum. A ciência, o Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto: Afrontamento, 2000, p. 26.

8

SANTOS, Boaventura, A Crítica da razão indolente, p. 58, donde extraiu-se a citação de Kepler.

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mentação, presididas pelas idéias matemáticas. O que não é quantificável passa ao estatuto de “cientificamente irrelevante”. Claramente, “o método científico assenta na redução da complexidade”. O pressuposto metateórico de um conhecimento baseado na formulação de leis é a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, o mundo da mecânica de Newton, estático e eterno, a matéria a flutuar num espaço vazio, decomposto analiticamente pelo racionalismo cartesiano. “Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que vai transformar-se na grande hipótese universal da época moderna”.9 Como conseqüência, “Por volta de 1900, a filosofia está gravemente afligida. As ciências naturais, ligadas ao positivismo, empirismo e sensualismo, roubam-lhe o ar que ela respira. A sensação de triunfo das ciências apóia-se no conhecimento exato da natureza e no domínio técnico da natureza.”. A época, desde meados do século XIX, impressionada com os resultados práticos das ciências empíricas, “desenvolve uma verdadeira paixão por reduzir, por expulsar o espírito do campo do saber”. Depois dos altos vôos idealistas do espírito absoluto, começa a surgir “por toda parte a vontade de ‘diminuir’ o ser humano. Naquela ocasião começava a vida da seguinte figura de pensamento: O homem não é senão...”.10 A crítica ao paradigma da modernidade, com seu misto de ingenuidade epistemológica e arrogância metodológica, já está feita. Em parte, pelo próprio aprofundamento do conhecimento, que desvelou a fragilidade de seus fundamentos. As rachaduras parecem irrecuperáveis: a relatividade da simultaneidade (Einstein), alteração do objeto pelo observador (física quântica, Heinsenberg), o teorema da incompletude de Gödel, a teoria das estruturas dissipativas, a ordem através de flutuações (Prigogine).11 Recupera-se a irreversibilidade da flecha do tempo (turbilhões, oscilações químicas, radiação laser) e fere-se de morte a física tradicional, que “unia conhecimento e certeza: desde que fossem dadas condições iniciais apropriadas, elas garantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retrodizer o passado. Desde que a instabilidade é incorporada, a signi-

9

Idem, ibidem, p. 61.

10

SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000, pp. 53 e 56-7. “O projeto da modernidade começa com a disposição de rejeitar tudo que é excessivo e fantasioso. Mas mesmo a fantasia mais excessiva não teria podido imaginar, naquele tempo, as coisas incríveis que o espírito da sobriedade positivista ainda produziria.” (p. 57).

11

A literatura neste sentido é farta. Veja-se, para ilustrar, SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências, pp. 23-35; A crítica da razão indolente, pp. 65-70.

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ficação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem possibilidades.”.12 Não uma única verdade, uma certeza que estaria no âmago da matéria esperando ser descoberta por um sujeito independente e por meio de um método asséptico que, percorrido, garantiria a correção da conclusão/ solução. É preciso, ao revés, aproximar-se de uma realidade que se apresenta como um território livre, prenhe de vida instável e difícil, que parece melhor retratada nos traços dinâmicos de Miró do que no ponto fixo de perspectiva cristalizada.13

2.2. Positivas Explicar tal realidade, intui-se, significa simplificar, o que é inexorável, desde que se atente para o fato de que a análise da complexidade não elimina a tessitura complexa, embora possa elaborar modelos aproximativos de padrões simplificados da dinâmica. Podem-se elencar algumas características do emergente paradigma da complexidade:14 a) ela é dinâmica (campo de forças contrárias, em que eventual estabilidade é sempre rearranjo provisório); b) não-linear (um modo de ser em que pulsa a relação própria entre o todo e as partes, “feitas ao mesmo tempo de relativa autonomia e profunda dependência” – para continuar existindo é mister mudar não linearmente, de modo previsível e controlável, “mas criativo, surpreendente, arriscado”); c) reconstrutiva (é devir intrinsecamente marcado pela flecha do tempo, irreversível, não se passa do depois para o antes, nem o

12

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da UNESP, 1996, p. 12.

13

Desenvolveu-se a metáfora em Honra, privacidade e liberdade de imprensa, pp. 93 a 101, propondo que a pintura renascentista (e sua conquista da perspectiva tridimensional) está para os movimentos artísticos contemporâneos (o horizonte estético foi a obra de Miró) na mesma relação que se estabeleceu entre a centralidade legal cristalizada na codificação burguesa e o atual estágio de reflexão jurídica. Confiram-se, ainda, a dinâmica da elipse barroca no centro da Praça de São Pedro em Roma, e os plúrimos pontos de vista da pintura de Cézanne e dos cubistas (pp. 97 e 100, respectivamente).

14

Segue-se DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 13 a 31.

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depois é igual ao antes – a “natureza, a não ser em seus códigos formais, jamais se repete”, pelo que é “tipicamente produtiva”); d) é um processo dialético evolutivo (ao contrário do computador, que é máquina reversível); e) irreversível (também é impossível ir para o futuro permanecendo o mesmo, “acarreta inovação intrínseca, em maior ou menor grau, de tal forma que os produtos sempre são, também e essencialmente, processos. Fazer-se incessantemente é sua condição. Nada está propriamente feito, porque a incompletude não é defeito, mas modo de ser, sobretudo vir a ser. Todo o fenômeno complexo possui sua individualidade”, como condição própria distintiva); f) intensidade (a causalidade linear como tendencialmente residual na natureza – questão, ainda, da pesquisa qualitativa, que “busca ir além de indicadores empíricos mensuráveis diretamente” e correlata à problemática da participação); g) ambigüidade/ambivalência (a ambigüidade é estrutural, típica da dialética unidade de contrários “de algo que é, ao mesmo tempo, relativamente unitário (forma um todo) e naturalmente aberto (ultrapassa seus limites)”; a ambivalência refere-se à “processualidade dos fenômenos complexos” – a complexidade é “campo de força”, com dupla marca: “por ser ‘campo’, apresenta limites de espaço, relativamente discerníveis; mas, por ser ‘força’, aparece sua marca indomável, fazendo e desfazendo limites, por conta da criatividade intrínseca de fenômenos não lineares”. À pergunta ontológica (que é o real?), responde-se, com humildade, que é indefinível e indevassável. Os dados que a ciência manuseia são constructos teóricos, nunca elementos originais. Não se lida com a realidade diretamente, mas com a realidade interpretada, reconstruída. Não se sabe bem nem o que é a realidade,15 nem como tal

15

“Na realidade, não há fundo último, porque se dilui ou expande em novas dimensões cada vez mais complexas, para cima (astronomia) e para baixo (microfísica), não parecendo haver algum ponto final. Na explicação, não há fundo último, pois toda explicação não começa do começo, é cultural e hermeneuticamente contextuada, bem como não acaba, porque já não existiria último questionamento já inquestionável.” (DEMO, op. cit., pp. 33-4).

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realidade é captada – e aqui se chega à questão epistemológica. Morreu a coincidência entre realidade e realidade pensada. Não se tem, na cabeça, a realidade externa tal qual ela é, mas interpretação biológica e historicamente contextuada. O xeque à epistemologia moderna, nas humanidades, derivou de discussões de estilo hermenêutico, exemplar Gadamer. Destronou-se a lógica, “porque é impossível erigir edifício completo que não seja também circular, eivado de pressupostos cujos fundamentos permanecem estranhos ou obscuros. O caráter lógico da explicação científica continua certamente de pé, mas desbancou-se a expectativa de que, sendo lógica, também seria verdadeira ou real.”. 16 O olhar crítico, essencial, “não elide o caráter intrinsecamente interpretativo da captação do real, dentro da tradição hermenêutica. (...) O real não desapareceu, o que dasapareceu é a confiança ingênua em linearidades tranqüilamente visíveis e manipuláveis. (...) a hermenêutica bem conduzida não se afasta da modéstia da convivência com outros saberes, por conta de sua própria inserção cultural e do reconhecimento da trama implícita na linguagem.”. Disso não segue o relativismo e a fragmentação desconstrutiva do discurso (o “vale tudo” em ciência pós-moderna),17 pois, ao “ter sido desbancada a verdade única e impositiva, permanece a pretensão de validade, historicamente contextuada, obtida por esforços formalizantes, ao lado de políticos, para que exista algum consenso.”.18 Há, portanto, que se livrar da armadilha pessimista da incredulidade pós-moderna, “resgatando a crença em verdades objetivamente verificá-

16

“Por isso, prefere-se hoje como critério de cientificidade a discutibilidade, formal e política (...) ele reconhece [o critério] que a ciência não vive só de formalização, mas igualmente de consensos políticos, como a problemática dos paradigmas fartamente documenta.” (DEMO, op. cit., p. 40).

17

Confira-se PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. “Nessa moldura lábil, uma vez que todo o significado faz sentido, qualquer leitura assume, automaticamente, um topos privilegiado e exclusivo, tornando inútil o trabalho hermenêutico. Quando o relativismo serve de disfarce à astúcia da vontade, a conveniência do intérprete ganha o status de sentido inquestionável. Numa frase, concede-se ao impulso a licença para legitimar a força do arbítrio.” (pp. 28-9) “(...) os desconstrutivistas cometem a inominável soberba de serrar o galho onde se acham acomodados. Usam a razão para destruir (desconstituir) o próprio horizonte de racionalidade em que, desde o início, se movimentam.” (p. 30 e ss.).

18

DEMO, op. cit., pp. 45-6. “Como não podemos ver a realidade de fora ou de cima o que vemos de dentro nunca será suficiente para exararmos qualquer palavra final.” (p. 47).

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veis”, visto que não há “ordem social sem confiança, e não há confiança sem verdade ou, no mínimo, sem procedimentos aceitos para apuração da verdade”.19 Socorre, ainda, Miguel Reale, numa visão filosófica que é vedado aprofundar neste trabalho, mas cuja natureza crítica é infensa a privilegiar tanto o pólo do sujeito como o do objeto do conhecimento (a procurar compreender sua essencial correlação) e que indaga, através de lente metafísica, acerca do pensamento conjetural – já que a conjetura tem desempenhado “função das mais relevantes na história das idéias, às vezes reduzido ao ‘pensamento problemático’, outras ao ‘metafórico’, quando me parece constituir um gênero abrangente de distintas formas de pensar segundo presunções, ou razões de plausibilidade”.20 Dá, assim, suporte filosófico para que se não confunda “mais verdade com certeza, conforme se dá quando se considera científico tão somente o que é verificável ou possa ser objeto de teste experiencial”.21 Esta vertente pode arrastar, por sua vez, para o que se tem chamado de

19

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Verdade. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 23 e 17, respectivamente.

20

REALE, Miguel. Verdade e Conjectura. 2ª ed. rev. e actual. Lisboa, Fundação Lusíada, 1996, pp. 13-4.

21

REALE, Verdade e Conjectura, no prefácio à edição portuguesa, onde cita (da 3ª ed. alemã da obra de Karl Popper “A lógica da pesquisa científica”) velho escrito de mais de 2.500 anos, de Xenófanes: “No início, os deuses não revelaram tudo aos mortais; / com o correr do tempo, todavia, procurando, encontramos o melhor. / Verdades indubitáveis, o homem não alcança e nenhuma virá a alcançá-las, acerca dos deuses e das coisas a que me refiro. / E se alguém viesse a proclamar a Verdade, em toda a sua perfeição ele próprio não saberia disso: tudo é uma teia de suposições.” (pp. 11-2). Preciosa síntese da original abordagem de Reale forneceu o próprio autor, em conferência intitulada “A semiótica e o pensamento conjetural” e proferida na abertura do XIII Colóquio Internacional de Semiótica Jurídica (São Paulo, agosto de 1997). Os estudos semióticos redundaram no abandono da rígida separação entre asserções dotadas de sentido ou sem sentido (meaningless) – sequer na matemática há linguagem plenamente segura (há proposições plausíveis mas indemonstráveis), a par da lógica paraconsistente que abstrai do princípio da não-contradição (a respeito das limitações da lógica aristotélica, vide também FERNÁNDEZ-ARMESTO, Verdade, pp. 123-30) – donde “a atenção dispensada à ‘vaguidade’ ou à ‘indeterminação’, como algo de insuperável na cognição científica”. Assim, ao invés de ignorar essa realidade, a semiótica “se esmera em dar-lhes estatuto próprio na teoria da linguagem, apurando-lhes cuidadosamente o sentido, para que, não obstante sua indeterminação, sejam objeto de rigorosas cautelas lógico-lingüísticas em sua aplicação”. Neste contexto, “não há como confundir conjeturar com mero devaneio ou uma suposição gratuita”, pois na conjetura “a razão, aliada à imaginação criadora, visa a ir além da experiência, formulando suposições plausíveis porque fundadas na experiência, e jamais em contradição com ela, a fim de responder a perguntas que emergem necessariamente da experiência mesma, o que faz parecer, em relação a esta, um pensamento paralelo e metafórico”. Enfim, trata-se “de uma forma de pensar que, sem abandono do rigor plausível, nos liberta das retortas do que é certo ou certificável, reconhecendo-se o valor também do verossímil” (REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3ª ed. rev. e aum., São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 173-9).

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“viragem lingüística” (linguistic turn), nas tensas relações entre a filosofia e a linguagem ao longo da história do pensamento ocidental.22

3. O ESPAÇO JURÍDICO Quid juris, neste embate de paradigmas?

22

Em linha de rápida resenha, segue-se STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999. Parte, o autor, do “Crátilo” Platônico (388 a.C.), que defendia o naturalismo (cada coisa tem seu nome por natureza, o logos está na phisys) contra a posição sofística do convencionalismo (tal ligação é arbitrária, pp. 97-102). Em Aristóteles, a questão está na adequatio (conformidade entre a linguagem e o ser), a pressupor uma ontologia – acreditava “que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma essência” (p. 103). Assim, tanto no idealismo platônico quanto no essencialismo realista aristotélico, a verdade está preservada da corrupção e da mudança: o absoluto preside o esforço filosófico da metafísica, do século IV a.C. ao século XIX de nossa era (p. 105). O embate prossegue, com a continuidade da tradição metafísica e com reações à busca da essência e da coisa em si – cabível referir, ao menos, a originalidade da concepção de Santo Agostinho das palavras como signos (p. 107), do nominalismo de Ockham (para quem só há individuais particulares, não passando os universais de palavras (p. 108). Locke, no seu Ensaio sobre o entendimento humano, oferece uma classificação tripartida para as ciências: física, prática e semiótica (signos, palavras e idéias, como instrumentos de outras ciências) - pp. 110-11. Também o nominalismo de Berkeley insere-se nas relevantes contribuições para a discussão da linguagem. Hume iria desferir outro golpe na metafísica, ao negar a realidade objetiva da causalidade, do mundo e do sujeito (p. 113). Kant continua a conferir um caráter auxiliar/subsidiário à linguagem (p. 115). Com Nietzche haveria uma ruptura do paradigma metafísico-essencialista (numa de suas célebres frases, “fatos é o que não há: há apenas interpretações” (p. 117), uma ruptura entre o conhecimento e as coisas. O “primeiro” giro lingüístico ocorreria com os trabalhos de Hamann-Herder- Humboldt, precursores do “rompimento com o paradigma instituído pela filosofia da consciência” (p. 119), ao reconhecer que a linguagem tem um papel constitutivo em nossa relação com o mundo – a linguagem como abertura e acesso ao mundo (fontes gadamerianas). Seguir-se-iam a semiologia de Saussure (a inaugurar a lingüística moderna, pp. 125-9) e a semiótica de Peirce com sua “ideoscopia”: primeiridade, secundidade e terceiridade (o signo como mediação de suas redes de classificações triádicas, pp. 130-6). A “viragem lingüística” passa pelo rompimento com as concepções metafísico-ontológicas, de modo que a linguagem não é mais vista como uma “terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, formando uma barreira que dificulta o conhecimento humano de como são as coisas em si mesmas” (pp. 137-8). Na segunda metade do século XX, a passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem traz vantagem objetiva, segundo Habermas: romper o círculo aporético em que o pensamento metafísico choca-se com o antimetafísico (p. 140). Dentre as principais correntes, o autor destaca o neopositivismo lógico do Círculo de Viena; Wittgenstein, para quem não existe um mundo em si, independente da linguagem, “somente temos o mundo na linguagem” (p. 144); e a filosofia da linguagem ordinária (comum). O giro lingüístico generaliza-se, sendo a linguagem tema comum de reflexão das diversas abordagens filosóficas contemporâneas: a hermenêutica de Heidegger; a pré-compreensão de Gadamer; a teoria da ação comunicativa de Habermas. Liberta da ontologia (já que não se acredita possa o mundo ser identificado com independência da linguagem), a hermenêutica é concebida como “uma incômoda verdade”, que nem é uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta, mas “uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem” (p. 153). Inexorável, pois, a mediação lingüística, “onde a hermenêutica e a pragmática passam a ocupar o centro do palco” (a feliz expressão é de Manuel Maria Carrilho).

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3.1. A matriz Kelsen-Hart dissolve a questão Sem a pretensão de uma abordagem histórica, Kelsen, que já em 1911 esboçava sua “teoria pura do direito”, alertava que sua concepção de interpretação contrapunha-se à “teoria usual da interpretação”, que “quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada) e que a ‘justeza’ (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei.”. Adiante, volta a pugnar contra tal “ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica”.23 E por que Kelsen vai se opor à tradição? Por vislumbrar a aplicação do direito como um exercício a um tempo limitado, dentro de um quadro ou moldura, e indeterminado, pois, nestes lindes, há uma pluralidade de opções. Com notável probidade científica, o corifeu do modelo hierárquico-piramidal reconhecia que a determinação do escalão superior ao inferior nunca é completa, nem pode vincular em todas as direções, inafastável uma margem de livre apreciação.24 Passando ao largo da indeterminação intencional, programada pelo legislador ao utilizar cláusulas gerais, para Kelsen a aplicação do direito é indeterminada também num espaço involuntário, seja pela pluralidade de significações da linguagem (o sentido verbal da norma não é unívoco), seja em face da discrepância constatada entre a expressão verbal da norma (o texto, dir-se-ia hoje) e a vontade da fonte legislativa, ou, finalmente, como conseqüência de contradições entre duas normas que pretendem valer simultaneamente. Do que decorre a abertura de um leque, “oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica”. Dito de forma lapidar: “O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste ato ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” Por conseguinte, a interpretação “não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor (...)”.25

23

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 391 e 396, respectivamente.

24

KELSEN, op. cit., p. 388.

25

KELSEN, op. cit., p. 390.

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A visão de Kelsen liga-se, ainda, a outros dois postulados: a) não há um critério de preferência (questão do método), “não há absolutamente qualquer método” jurídico-positivo capaz de discernir, dentro da moldura, “a significação correta”; b) a escolha do intérprete seria um problema de política ou de justiça, não resultaria do direito positivo – fora do qual não há direito, já que o edifício kelseniano ergue-se, no que tange à relação entre a ciência jurídica e a política, “pela rigorosa separação entre uma e outra”. Daí, segundo o corifeu, o ódio à sua teoria, referido no prefácio à 1ª edição (em 1934, escrito na “neutra” Genebra), posto que teria afetado o interesse corporativo do jurista, desnudado, perante a sociedade, a quem tentara impingir “que possui, com a sua ciência, a resposta à questão de saber como devem ser ‘corretamente’ resolvidos os conflitos de interesses dentro da sociedade, que ele, porque conhece o Direito, também é chamado a conformá-lo quanto ao seu conteúdo, que ele, no seu empenho de exercer influência sobre a criação do Direito tem em face dos outros políticos mais vantagens do que um simples técnico da sociedade.”. 26 Seja como for, no que ultrapassar a atividade cognoscitiva (o conhecimento do Direito positivo e sua moldura), o aplicador deixa o campo jurídico e invade a seara de outras normas – sobre as quais exercerá ato de vontade –, de Moral, de Justiça, e a criação jurídica, neste último estágio (em que escolherá uma das figuras dentro do quadro), estará desvinculada, é livre, “isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato.”.27 Certo que o aplicador é livre (cria o direito) ao superar a “pura deter-

26

KELSEN, op. cit., pp. XII e XIII. Interessante seria verificar o quanto tal assertiva contraria a idéia da interpretação como ato cognoscitivo (obtida por uma operação de conhecimento) e ato de vontade, em que o aplicador escolhe dentre as possibilidades reveladas, esclarecido, de todo modo, que o juiz é “um criador de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre.” (p. 393).

27

KELSEN, op. cit., p. 393. Repare-se na pista que segue: não seria assim, o aplicador não seria livre, se o próprio “Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo.” (p. 394). Seria possível aventar que, em face da constitucionalização e positivação da moral (fenômeno da substancialização do direito), Kelsen repensaria o “non liquet” jurídico? Diante, por exemplo, da redação do caput do artigo 37 da Constituição brasileira? A hipótese é aceita por Hart (infra). Alexy refere que as teorias positivistas, por diversos motivos, concebem o sistema jurídico sempre como um sistema aberto. Parece-nos, todavia, que o conceito mais adequado seria o de indeterminação. Visto que fora do direito positivo não se põe mais a questão jurídica, vale dizer, não há resposta estritamente jurídica, tratar-se-ia, pois, de um sistema fechado, que nega aos fatores “externos” (morais, políticos) a possibilidade de conhecimento jurídico. Vide ALEXY, Robert. “Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), p. 139.

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minação cognoscitiva” (trava da interpretação científica, que se limita ao ato de conhecimento). O que leva às lacunas, que só podem ser preenchidas, numa função criadora, pelos aplicadores, em ato de vontade, pois “esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente.”28 Trata-se, então, de problema político ou moral, infenso à crítica jurídica, o que é coerentemente apontado como cabal demonstração da pureza de sua teoria, não escapando a Kelsen que seu formalismo servia como invólucro para fascistas, comunistas, capitalistas-nacionalistas, bolchevistas crassos, escolásticos católicos, protestantes, ateus. Suspeita de todas as orientações políticas, a teoria pura, imaculada, não se compromete com nenhuma.29 A posição “moderada” de Hart talvez seja ainda hoje o padrão-ouro do positivismo contemporâneo. Ao buscar o conceito do direito, deixa claro que se trata de uma abordagem descritiva, moralmente neutra, uma teoria jurídica descritiva e geral.30 Certo que a tese central da “regra de reconhecimento” sofistica-se e supera um positivismo meramente factual, podendo muitos sistemas de direito (“tal como nos Estados Unidos”), ao pedigree (a expressão é de Dworkin, para referir-se ao modo como as leis são adotadas ou criadas por instituições jurídicas, independente de seu conteúdo) agregarem princípios de justiça e valores morais, “critérios últimos de validade” que podem integrar o conteúdo das restrições jurídico-constitucionais.31 Nada obstante, deliba-se o cerne da polêmica com Dworkin, inegável a textura aberta das regras jurídicas, que podem ter “penumbra de incerteza”. Hart é expresso: “Mas a exclusão de toda a incerteza, seja a que preço for, sobre outros valores não é um objectivo que eu tenha alguma vez encarado para a regra de reconhecimento. (...) Deveria tolerar-se uma margem de incerteza e, na verdade, deveria considerar-se a mesma bem-vinda, no caso de muitas regras jurídicas, de forma que pudesse tomar-se uma decisão judicial inteligente quando a composição do caso 28 KELSEN, op. cit., p. 395. 29

KELSEN, op. cit., prefácio, p. XIII. Conulte-se AZEVEDO, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do Estado. Petrópolis: Vozes, 1979, pp. 182-200.

30

HART, Herbert L A. O conceito do Direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, p. 301. Já Dworkin, infra, postulará uma teoria justificativa e interpretativa, “um empreendimento radicalmente diferente” da concepção de Hart.

31

HART, pp. 309-11. “É verdade, claro, que uma função importante da regra de reconhecimento consiste em promover a certeza com que o direito deve ser declarado.” (p. 312)

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não previsto fosse conhecida e as questões em jogo na sua decisão pudessem ser identificadas e, assim, resolvidas racionalmente.”. Diante de casos difíceis, Hart responderá que o direito é incompleto e não fornece qualquer resposta. Segue-se que os tribunais têm poder discricionário para criar direito.32

3.2. A certeza combativa de Dworkin Força de uns, miséria de outros. A partir deste ponto, cunha-se a crítica veemente de Ronald Dworkin, que, com a tese da “única resposta correta”, pretende romper a perigosa malha do relativismo. Se a pecha de neojusnaturalista sempre é problemática (pese a influência de Rawls), parece menos duvidoso considerar Dworkin um apologista do sistema americano e um crítico implacável do positivismo e do utilitarismo. Sua concepção ancora-se em direitos individuais “fortes” (contramajoritários) e no rechaço da separação entre direito e moral como postulado metodológico. Ao invés de um sistema estruturado apenas por regras, Dworkin oferece um modelo de princípios jurídicos, o que deveria permitir que exista uma única resposta correta mesmo nos casos em que as regras não possam determiná-la.33 Tal solução, a verdadeira, é a que melhor se justifica por uma teoria material que incorpora ao sistema jurídico princípios e ponderações que, novamente, melhor correspondam à Constituição, às regras jurídicas e aos precedentes. Pese reconhecer que não há procedimento que leve, necessariamente, à única resposta correta, adverte que a indisponibilidade de um método infalível não impede a existência da 32

HART, pp. 313-5. O autor, além de afirmar que a diferença entre regras e princípios é apenas de grau (quantidade de generalidade e abstração), sustenta a tese fundamental da separação entre direito e moral (p. 331 – “daí que possam ter validade, enquanto regras ou princípios jurídicos, disposições moralmente iníquas”). Justamente a “one right answer” de Dworkin considera tal poder discricionário antidemocrático e injusto (pp. 336-8). Hart encara tal poder como “o preço necessário que se tem de pagar para evitar o inconveniente de métodos alternativos de regulamentação desses litígios”, por exemplo o reenvio da questão ao órgão legislativo; por fim, o injusto fraudar das expectativas daqueles que agiram em confiança de que “as conseqüências jurídicas de seus actos seriam determinadas pelo estado conhecido do direito estabelecido, ao tempo dos seus actos” (problema da criação jurídica ex post facto), parece bastante irrelevante nos casos difíceis – em que não haveria tal confiança justificada (p. 339).

33

DWORKIN, Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Há diferenças qualitativas (lógicas) entre regras e princípios, os conflitos entre as primeiras resolvendo-se pela lógica do “tudo ou nada” (pp. 39-40), a par da dimensão de peso, presente nos segundos – embora apresentem-se sem hierarquia estabelecida (pp. 42-3)

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resposta verdadeira, que sempre poderia ser encontrada por um juiz ideal, Hércules, meta da qual o juiz real deve aproximar-se.34 Se para resolver os “hard cases” o juiz criasse normas, que seriam aplicadas retroativamente, Dworkin adverte que se não estaria tomando a democracia e seu sistema de legitimação a sério. O juiz, então, mesmo nas contradições e nas lacunas, está determinado por princípios, para que os indivíduos não estejam à mercê dos juízes. A função judicial é de garantia de direitos, não de criação. Com a resposta correta, a intenção é reduzir a irracionalidade da resposta jurisdicional, até porque, no litígio, há um direito a vencer.35 Chega-se, nesta quadra, a alternativas pouco alentadoras: 1) um modelo silogístico da função judicial, de transbordante formalismo, gostaria de acreditar numa única resposta (a rigor, nem se colocaria a questão da resposta correta, pois a conclusão silogística é necessária); 2) uma visão dita realista não forneceria ferramental crítico, pois as decisões judiciais decorreriam de preferências pessoais, em nível de consciência subjetiva, sendo a justificação mero “a posteriori”; 3) a linha positivista, que não ultrapassa a constatação das várias respostas juridicamente indistintas (a textura aberta no âmbito da moldura); 4) a única resposta correta de Dworkin.

3.3. As versões esmaecidas da única resposta Alexy abraça uma versão fraca da única resposta correta. Ao apontar méritos na distinção entre regras e princípios esgrimida por Dworkin, considera, entretanto, que a teoria dos princípios, por si, não logra sustentar a tese da única resposta correta. Acaso conjugada com uma “teoria da argumentação jurídica” (orientada pelo conceito de “razão prática”), só assim poderia embasar-se uma versão débil da tese da única resposta. Rediscute, para tanto, os critérios de distinção propostos por Dworkin 34

Seguiu-se ALEXY, “Sistema jurídico, principios juridicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), pp. 139-40.

35

DWORKIN, op. cit., pp. 165-203. Repare-se que, mesmo nos casos difíceis, “os juízes são injustos quando cometem erros sobre os direitos jurídicos. (...) cometerão tais erros em algumas ocasiões, pois são falíveis e, de qualquer modo, divergem entre si.” (p. 202) – o que não configura, por si, “argumento contra a técnica de decisão judicial de Hércules, ainda que sem dúvida sirva, a qualquer juiz, como um poderoso lembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir os casos difíceis com humildade.” (p. 203)

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para diferenciar princípios de regras, que são bem conhecidos: regras aplicam-se na forma do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion) – se é válida aplica-se, senão se ignora –, ao passo que os princípios não determinam necessariamente uma decisão (caberia perguntar se as regras determinam), mas proporcionam razões a favor de uma ou outra solução, exibindo uma dimensão de peso notável na colisão entre princípios. Alexy avança e afirma que o núcleo da diferença está no “mandato de otimização” dos princípios, que podem ser cumpridos em diversos graus (conforme possibilidades fático-jurídicas), ao contrário das regras, que exigem pleno cumprimento, restando a disjuntiva cumpridas/descumpridas – contêm determinações no campo fático-jurídico. Do mandato de otimização Alexy chega à vinculação entre argumentação jurídica e moral (rejeita, pois, a tese positivista da separação). Vale dizer, a incorporação constitucional dos princípios da dignidade humana, liberdade, igualdade, transmuda-os de “normas vagas” e apresenta uma tarefa de otimização, que tem forma jurídica, mas conteúdo (fundo) moral. Enriquecido, agora, o conceito de princípio cabe reperguntar sobre a capacidade da teoria dos princípios alicerçar uma única resposta para cada caso.36 Uma teoria forte dos princípios, que elencasse de forma completa todos os princípios de um dado sistema, e catalogasse todas as relações de prioridade, abstratas e concretas, entre eles, determinaria, de forma unívoca, a decisão para cada caso e, com isso, consagraria a posição de Dworkin. Alexy, contudo, agrega outro dado: a “teoria dos valores”. Princípios e valores são intercambiáveis, a colisão de princípios (deontológica) é também uma colisão de valores (axiológica). Portanto, as relações de prioridade entre princípios revelam um problema de “hierarquia de valores”, que não comportam um ordenamento estrito, expressável numa escala numérica, de maneira “calculável”. Seria possível, contudo, uma “ordem débil” de valores, fazendo notar que uma relação de prioridade estabelecida para um caso concreto é importante para a solução de novos casos, assomando a fórmula de uma lei de colisão: “as condições, segundo as quais um princípio prevalece sobre outro, formam o suporte fático de uma regra que determina as conseqüências jurídicas do princípio prevalecente”. O programa da única resposta estaria salvo, sem prejuízo de reconhecer (por isso a debilidade), que a emergência de novos casos, 36

Cf. ALEXY, Doxa, pp. 141-4.

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com combinações originais de características, impede a construção de “uma teoria que determine para cada caso precisamente uma solução”.37 Avultam, ainda, sempre com Alexy, as “estruturas de ponderação” – derivadas do princípio da proporcionalidade, cujos subprincípios consideram tanto as possibilidade fáticas de otimização (adequação e necessidade) quanto as jurídicas (proporcionalidade “stricto sensu”, o sopesamento entre o menoscabo de um princípio e a importância do cumprimento de um outro) – , a conduzir a estruturas de argumentação racional, e a possibilidade de existirem prioridades “prima facie”, que se não determinam o resultado final, obviamente estabelecem cargas diversas de argumentação. Neste ponto, conectando argumentação jurídica e razão prática, Alexy vai localizar seu modelo triádico de sistema jurídico, de duas dimensões: uma passiva, o nível dos princípios (1) e das regras (2): outra ativa, a teoria da argumentação jurídica (3), que diz como, atuando sobre o nível passivo (lidando com princípios e regras), é “possível uma posição racionalmente fundamentada”.38 Nesta perpectiva, Alexy não vê motivo para abandonar a idéia da única resposta correta. Certo que a argumentação jurídica é um caso especial da argumentação prática em geral (diante dos vínculos institucionais, jurídicos, à lei, aos precedentes e à dogmática), também é pacífico que tais vínculos não levam “em cada caso precisamente a um resultado”, observação que vale tanto para as regras (subsunção) quanto para os princípios (ponderação), esta última categoria prenhe de questões morais. Importa que nos casos problemáticos são necessárias valorações que se não podem extrair obrigatoriamente dos vínculos fixados (da autoridade da lei, dos precedentes e da dogmática). Assim, para que se mantenha a racionalidade da argumentação jurídica é preciso verificar: se, e em que medida, as “valorações adicionais são suscetíveis de um controle racional”. Ou, dito de outra forma, verificar a “possibilidade de fundamentar racionalmente os juízos práticos ou morais em geral”.39 Chegados à encruzilhada do tudo-ou-nada? Subjetivistas-relativistasdecisionistas versus objetivistas-absolutistas-cognoscitivistas-racionalistas? Não para Alexy, que admite a impossibilidade de uma teoria moral mate-

37

ALEXY, Doxa, p. 147.

38

ALEXY, Doxa, pp. 148-9.

39

ALEXY, Doxa, p. 149.

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rial (com uma resposta concludente, segura intersubjetivamente, para cada questão prática), ao mesmo tempo em que ressalva a possibilidade de teoria morais procedimentais (que formulam regras ou condições do discurso prático racional). No núcleo, um sistema de regra e de princípios do discurso, “cuja observância assegura a racionalidade da argumentação e de seus resultados” – consabido que Alexy formulou um sistema de 28 regras, algo com um “código da razão prática”.40 Isso posto, Alexy pergunta: o discurso prático leva a uma única resposta correta para cada caso? Sob condições ideais, o exercício do discurso prático levaria sempre a um consenso, a uma única resposta correta (sem embargo, recorrendo a cinco idealizações: tempo, informação, clareza lingüística e conceitual ilimitados; capacidade e disposição ilimitadas para a troca de papéis; e ausência de qualquer preconceito).41 Claro que na realidade não existe nenhum procedimento que permita, com a segurança intersubjetivamente necessária, encontrar a única resposta correta. Isto não obriga Alexy a renunciar à idéia da única resposta correta, desde que precisado seu status. Postula que, independente de existir ou não, os participantes do discurso devem “pretender que a sua resposta é a única correta”, o que significa pressupor “a única resposta correta como idéia regulativa”.42 Bastaria acreditar que, em alguns casos, pode dar-se uma única resposta correta e, não se sabendo quais casos serão esses, valeria a pena procurar encontrá-la (a única resposta correta) em todo e qualquer caso. As respostas alcançadas por tal via, ainda que não sejam as únicas corretas, respeitam as “exigências da razão prática e, neste sentido, são ao menos relativamente corretas”.43 Em instigante estudo, o jurista finlandês Aulis Aarnio também enfrenta o tema.44 Depois de apresentar o conceito de única resposta correta, em sua versão forte (existe uma resposta correta que pode ser detectada – jusnaturalismo racionalista, jurisprudência dos conceitos), e débil (embo-

40

ALEXY, Doxa, p. 150.

41

Deixa sem resposta se, mesmo no quadro ideal, as diferenças antropológicas entre os participantes do discurso poderiam redundar em casos sem uma única resposta correta (ALEXY, op. cit., p. 151).

42

Vislumbram-se traços do “idealismo do como-se, cultivado pelos neokantianos nas cátedras alemãs” no início do século XX (SAFRANSKI, op. cit., p. 77).

43

ALEXY, Doxa, p. 151.

44

AARNIO, Aulis. “La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico”, Doxa 8 (1990), pp. 23-38.

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ra exista, nem sempre pode ser encontrada – algumas doutrinas positivistas, notável o postulado ideológico de que existam lacunas no sistema jurídico e a meta para alcançar a resposta como guia do juiz ou doutrinador), Aarnio esclarece a postura crítica que vai defender: uma resposta negativa. Não pode haver respostas corretas no discurso jurídico (tese ontológica), do que segue que tampouco tais respostas podem ser detectadas (teses epistemológica e metodológica). Aarnio move-se no contexto de justificação. O Estado de Direito liberal prometia o máximo de certeza jurídica para as partes de um processo (a previsibilidade como negação da arbitrariedade), e a realização de tal desiderato ampara-se na divisão de poderes, na igualdade formal, na separação entre direito e moral e num modelo formal de argumentação jurídica (o silogismo). Já o Welfare State orienta-se na busca da igualdade material (qualidade de vida, proteção do mais fraco), sendo impossível separar direito e moral e tornando-se justiça, razoabilidade e eqüidade conceitos chaves – critérios, portanto, das decisões jurídicas. Na síntese, o raciocínio jurídico evitará a arbitrariedade (princípio do Estado de Direito) e o resultado final deve ser apropriado, isto é, de acordo com o direito (aspecto formal) e satisfazer critérios de certeza axiológica (aspecto moral ou material). Nas atuais sociedades, o processo de decisão (proceso de razonamiento) há de ser racional e justo, e os tribunais (com a especial responsabilidade social de maximizar a certeza jurídica) precisam justificar suas decisões recorrendo não apenas às fontes formais, mas também ao demonstrar suas razões (o que envolve a utilização de argumentos apropriados). Posto que um dos traços mais importantes de uma “democracia madura é seu caráter aberto”,45 as razões apropriadas conectam-se ao controle externo das decisões judiciais, vale dizer, o controle social depende de que os tribunais realmente argumentem, justifiquem suas decisões, demonstrem que suas razões são juridicamente aceitáveis e públicas (irrelevante o contexto de razões reais de descobrimento da solução). Aarnio destaca, no contexto da justificação, que não só o catálogo de fontes é importante, mas também a maneira de usá-las. Distingue justificação interna e externa. A primeira refere-se à estrutura interna (lógica) do arrazoado, calcado seu modelo clássico no silogismo aristotélico, no qual a inferência é necessária em relação à premissa. Observa, e bem: “Toda 45

AARNIO, op. cit., p. 27.

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decisão jurídica pode ex post ser escrita na forma de um silogismo, independente da forma com que foi alcançada.”.46 Entretanto, notadamente nos casos difíceis, sempre podem-se questionar as premissas da inferência (por que esta no lugar daquela?). Argumentar sobre a premissa é a tarefa da justificação externa. Pode-se lançar mão de outro silogismo, em que a premissa problemática aparecerá como conclusão, “construir cadeias de silogismos que dão suporte argumentativo à decisão (interpretação)”,47 cada ramo desta “árvore silogística” versando sobre uma fonte diferente. Nos casos difíceis, nenhuma cadeia silogística, isoladamente, suporta de modo suficiente o resultado final. “O fator decisivo é a totalidade dos argumentos. (...) o ‘melhor’ resultado [semelhante a um quebra-cabeças] é a totalidade mais homogênea que se pode construir.” As premissas últimas de uma árvores silogística, resultando de sopesamentos e ponderações, “não são auto-evidentes ou empiricamente verdadeiras”. Outra vez decisivo será “o grau de coerência do conjunto de premissas que se pode construir” – a coerência como “medida última”.48 A justificação externa, noutra linha, vista como diálogo, não se compadece com a manipulação, pois a meta da argumentação racional é o convencimento (não a persuasão do poder), já que a noção mesma do direito liga-se ao comportamento previsível das autoridades – o que afasta a arbitrariedade ou a tomada de decisões ao acaso. Entretanto, a expectativa de Aarnio concerne à “melhor justificação possível”, não a “soluções absolutamente corretas”.49 A melhor justificação possível pressupõe uma “situação ideal de fala” (Habermas, racionalidade comunicativa), sendo critérios decisivos a liberdade e a igualdade na discussão, além do acordo fundamental de seguir os padrões do discurso racional. Embora ideal, tal situação pode servir como medida para a correção do discurso jurídico. Assim Dworkin, que personificou o ideal judicante em Hércules (capaz de encontrar uma resposta correta para cada hard case), e, mesmo, Alexy – na versão debilitada (a única resposta correta como pressuposto ideológico, mesmo que Hércules seja eventualmente incapaz nalgum caso). Aarnio, nesta paragem, introduz o argumento da duplicação. E se hou-

46

AARNIO, op. cit., p. 28.

47

AARNIO, op. cit., p. 29.

48

AARNIO, op. cit., p. 30.

49

AARNIO, op. cit., p. 31.

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vesse dois Hércules, ambos racionais, resolveriam da mesma forma problemas axiológicos? Visto que teriam pontos de vista diversos, calcados em interesses diferentes, “podem alcançar várias respostas não equivalentes mas igualmente bem fundadas.”. Como estabelecer qual a correta ou a melhor? Recorrer a um metaHércules conduziria ao regresso “ad infinitum” e, portanto, fracassa o argumento.50 Superada, pois, a crença na resposta correta, Aarnio pergunta pela melhor resposta possível e chega ao problema do “princípio regulativo”, sempre conectado ao diálogo ou ao procedimento discursivo. Interessa, agora, o auditório. Num caso difícil, o intérprete dirige-se a um auditório, que tanto pode ser uma comunidade jurídica concreta (e que envolve elementos persuasivos, porque “somos demasiado humanos”, inclinados à manipulação) quanto uma comunidade jurídica ideal (em que todos comprometem-se com os princípios da racionalidade discursiva). Esta comunidade ideal será o critério para avaliar a melhor resposta. Repare-se que, ainda que todos disponham das mesmas fontes materiais, chega-se a mais de uma resposta, visto que no discurso jurídico “muitas das eleições decisivas têm carga valorativa.”.51 No próximo passo, focada a divergência entre respostas na valoração de um determinado ponto de vista, é possível comparar as soluções? Não há, segundo Aarnio, uma medida comum e nenhuma resposta “é em termos gerais a melhor possível”. Uma pode ser, todavia, mais relevante que a outra – e, nesta perspectiva, a melhor. A melhor possível, no momento, será a que alcançar maior aceitação possível no auditório ideal. O critério, em suma, deságua no princípio majoritário.52 Aarnio sinala que a aceitação da mais de uma resposta possível é “teoricamente necessária”, partindo a assumida visão relativista do pressuposto de que “não há respostas corretas no ordenamento jurídico ex ante”, pelo que “todas as soluções bem fundadas (...) são ‘corretas’ ex post, no

50

AARNIO, op. cit., p. 32.

51

AARNIO, op. cit., p. 34. A comunidade jurídica ideal, por conseguinte, não é um “auditório universal” no sentido de Perelman, salvo na pressuposição da racionalidade do discurso, o que não elide a presença de códigos valoarativos diversos.

52

AARNIO, op. cit., p. 35. Violar-se-ia, com isso, o direito das minorias? Não para o autor, visto que na comunidade ideal o uso do poder (discriminatório) não é um problema; o discurso racional leva em conta todas as razões (inclusive a opinião minoritária); mesmo a minoria, “a priori”, aceitou o princípio majoritário, fora do qual só poderia cogitar-se do sorteio.

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sentido de que elas são respostas apropriadas dentro de uma segura armação justificatória”. Não há, doravante, como agregar argumentos de ordem “racional”. Trata-se, então, de introduzir a idéia de “cooperação social”, que pressupõe que se possa estar de acordo em certas soluções – o permanente desacordo provocaria incerteza sobre o que é correto ou errôneo, pois as autoridades necessitam de uma solução final para ser posta em prática.53 Aarnio admite que o princípio majoritário não suplanta o desacordo. Todavia, aceitas a racionalidade discursiva e a cooperação social (que supõe previsibilidade e rejeita o sorteio), servem de argumento para outra tese: “cada caso difícil teria uma resposta” (ainda que quase imperceptível, a crença “numa” resposta parece aflorar, como num ato falho), não a “única correta”, mas a “mais operativa” em relação aos pressupostos. Essa resposta mais operativa será considerada, para o momento, “a melhor possível”.54 Aarnio propõe, ao cabo, a seguinte diretriz: “ Na decisão de um caso difícil deve-se tratar de alcançar uma solução tal e uma justificação tal que a maioria dos membros racionalmente pensantes da comunidade jurídica possa aceitar essa solução e essa justificação.”.55 Posto seu princípio regulativo, repara que serve para incitar quem decide à justificação racional e previne o objetivismo valorativo típico, por exemplo, de Dworkin. É de gizar que a aceitação da maioria é buscada na comunidade jurídica ideal. Encerra com uma prescrição, ao afirmar que a “aceitabilidade” como meta da argumentação jurídica “é suficiente para os seres humanos” e que a utilização do princípio regulativo proposto pode “maximizar as expectativas de certeza jurídica”.56

53

AARNIO, op. cit., p. 36.

54

AARNIO, op. cit., p. 37, sem prejuízo de que a opinião minoritária, dada a dinâmica social, acabe alçandose à condição de “melhor solução possível”.

55

AARNIO, op. cit., p. 37.

56

AARNIO, op. cit., p. 38. Pressupor “uma resposta correta” não ajuda a “servir melhor à sociedade”, pois do que realmente necessita-se é de “justificação racional”. Fica por demonstrar que o recurso ao auditório ideal garante o máximo de certeza possível, pois a solução majoritária não virá com “selo de garantia” aposto por juristas angelicais, o que significaria uma nova ordem de problemas: depois de alcançada a melhor solução possível, reabre-se o campo discursivo para estabelecer que tal resposta seria a mais adequada no diapasão da comunidade jurídica ideal. Ainda que com as vestes da razão, permanece um quê de sacerdotal nesta intermediação entre as comunidades.

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3.4. Intervalo para um viés crítico Importante contribuição é ofertada por Manuel Atienza, que inicia justamente por criticar a “teoria padrão” da argumentação jurídica (Alexy), insuficientemente crítica “com relação ao Direito positivo, considerado tanto estática, quanto dinamicamente”.57 Um de seus maiores defeitos é não ter conseguido representar, adequadamente, “como os juristas fundamentam, de fato, suas decisões”, sendo a lógica formal instrumento insuficiente para tal desiderato, já que “o processo de argumentação não é, por assim dizer, linear, mas antes reticular; seu aspecto não lembra uma cadeia, e sim a trama de um tecido.”.58 O processo de argumentação que se realiza num caso difícil envolve, segundo Atienza, cinco passos: 1) a identificação do problema a resolver; 1.a) problemas de pertinência (dúvidas sobre qual norma aplicável); 1.b) problemas de interpretação; 1.c) problemas de prova; 1.d) problemas de qualificação (dúvida sobre se um determinado fato, que não é discutido, recai ou não no âmbito de aplicação de um conceito, contido no caso concreto ou na conseqüência jurídica da norma); 2) determinar se o problema a resolver surge por (2.a) insuficiência de informação (lacuna) ou por (2.b) excesso de informação;59 3) construir hipóteses de solução para o problema, construir “novas premissas, para criar uma nova situação informativa que contenha a uma informação necessária e suficiente com relação à conclusão”; 4) justificar as hipóteses de solução formuladas, apresentar argumentos a favor da interpretação proposta (no caso de insuficiência de informação os argumentos serão analógicos “lato sensu”;

57

ATIENZA, op. cit., p. 314. Ademais, a teoria padrão ocupa-se quase exclusivamente de questões normativas, ao passo que a argumentação jurídica calca-se em grande parte “sobre fatos” (p. 315). Ignora, ainda, o âmbito da produção da lei (para Alexy, é o respeito a lei que o torna o discurso jurídico um caso especial, em relação ao discurso prático em geral), seria preciso “partir de alguma teoria da legislação” (p. 316). Salienta o autor, em terceiro lugar, que a teoria padrão descura da “racionalidade estratégica”, que deve ser combinada com a racionaldade discursiva num modelo complexo de racionalidade prática, já que “a resolução de problemas jurídicos é, com muita freqüência, resultado de uma mediação ou de uma negociação” (p. 318 – pense-se nos termos de ajustamento de conduta celebrados pelo Ministério Público no âmbito da legislação brasileira). Por quarto, uma teoria “há de ser também descritiva (...) capaz de dar conta dos argumentos que ocorrem de fato na vida jurídica”, seria importante que se estendesse também ao contexto da descoberta (pp. 318-9).

58

ATIENZA, op. cit., p. 320.

59

“Quando as premissas contêm toda a informação necessária e suficiente para chegar à conclusão, argumentar é um processo de tipo dedutivo. Mas normalmente precisamos argumentar naquelas situações em que a informação das premissas é deficiente ou, então, excessiva”, no sentido de contraditória (ATIENZA, op. cit., p. 326).

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no de excesso, incidirá a reductio ad absurdum, determinada interpretação é impossível porque levaria a conseqüências inaceitáveis – trata-se, propriamente, de “estratégias de argumentação); 5) justificação interna, “a última passagem com que termina o modelo é a que vai das novas premissas à conclusão”.60 Desemboca-se na pergunta-título, ao indagar dos critérios de correção para avaliar o processo argumentativo. Atienza destaca o mérito da teoria padrão, ao trabalhar com a noção de “racionalidade prática” (Alexy), todavia insuficientemente desenvolvida, pois os critérios fornecidos são mínimos, “só permitem descartar como irracionais determinadas decisões ou formas de argumentação”. Entretanto, nos casos difíceis, as “diversas soluções presentes (...) são aprovadas nesse teste de racionalidade”. Para discutir qual a mais correta seria preciso ampliar a noção de racionalidade prática, para abarcar uma “teoria da eqüidade, da discricionalidade ou da razoabilidade” que oferecesse algum critério (por mais discutível que seja) – uma teoria que não pode ter caráter puramente formal, mas que incorporaria necessariamente “conteúdos de natureza política e moral”.61 Para tanto, Atienza distingue três funções que uma teoria da argumentação jurídica deveria cumprir: 1ª) cognoscitiva (permitir uma compreensão mais profunda do fenômeno jurídico e da prática de argumentar) – aqui faltaria desenvolver o aspecto dinâmico do sistema estruturalnormativo e procedimental-argumentativo de Alexy; 2ª) prática ou técnica (oferecer uma orientação útil nas tarefas de produzir, interpretar e aplicar o direito) – neste ponto, estabelecer uma “série de critérios para fazer um julgamento sobre sua correção (...) é uma tarefa que, em considerável medida, ainda está para ser cumprida”;62 3ª) política ou moral (a ideologia jurídica na base de uma concepção argumentativa) – Alexy, por exemplo, parte de “uma valoração essencialmente positiva de o que é o Direito moderno (o Direito dos Estados democráticos)”, e, embora não aceite o postulado dworkiano de uma única resposta correta, continua considerando que “o Direito positivo sempre proporciona pelo menos uma

60

ATIENZA, op. cit., p. 329.

61

ATIENZA, op. cit., pp. 330-1.

62

ATIENZA, op. cit., p. 333. Outra finalidade prática refere-se ao encino jurídico, que teria como objetivo central “o de aprender a pensar ou a raciocinar ‘como um jurista’, não se limitando a conhecer os conteúdos do direito positivo” (p. 334).

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resposta correta”, a hipótese última de Alexy é a de que “sempre é possível ‘fazer justiça de acordo com o Direito’.”.63 Aqui um divisor de águas, sendo mais realista e crítica a visão de Atienza com relação ao direito dos estados democráticos, a notar que a argumentação não esgota o funcionamento do direito, “que consiste também na utilização de instrumentos burocráticos e coativos”. Assim, ao lado dos casos fáceis (para os quais “o ordenamento jurídico fornece uma resposta correta que não é discutida”), há os difíceis – em que é possível propor mais de uma resposta correta “que se situe dentro das margens permitidas pelo Direito positivo” – e uma terceira categoria: a dos casos trágicos, nos quais a decisão não se coloca em nível de alternativas, mas de dilema, “quando, com relação a ele, não se pode encontrar uma solução que não sacrifique algum elemento essencial de um valor considerado fundamental do ponto de vista jurídico e/ou moral.”.64

4. A MELHOR RESPOSTA DA INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA A pergunta-título recebe acurada e importante reflexão na obra de Juarez Freitas.65 Já no primeiro capítulo, o autor deixa claro que o “Direito Positivo é aberto, vale dizer, a idéia de um suposto conjunto autosuficiente de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja no plano teórico, seja no plano empírico.”.66 Sendo, pois, um sistema geneticamente aberto,67 é visto como “potencialmente contraditório, normativa e axi63

ATIENZA, op. cit., p. 334.

64

ATIENZA, op. cit., p. 335. Argumentar, aqui, implica elementos trágicos.

65

Aliás, no prefácio, Eros Roberto Grau, pp. 17-8, assinala que “a alusão, no texto, a uma melhor significação possível entre as várias possíveis não significa adesão, dele [Juarez Freitas], à concepção dworkiana da one right answer. Essa melhor significação, no texto de JUAREZ, é aquela alcançada no campo da prudência, no sentido aristotélico, que a interpretação é.” – FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

66

FREITAS, op. cit., pp. 32-3, o que implica rejeitar as teorias auto-suficientes que postulam sistemas fechados (nota 8).

67

Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 1996, pp. 101-26. Abertura entendida como “incompleitude, a capacidade de evolução e a modificabilidade do sistema” (p. 104), vinculada diretamente à “incompleitude e a provisoriedade do conhecimento científico” (p. 106) bem como à “modificabilidade da própria ordem jurídica” (p. 109) – o “Direito positivo como um fenómeno colocado no processo da História e, como tal, mutável” (p. 110), sendo a formulação do sistema jurídico “um processo infindável” (p. 111).

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ologicamente”, tal complexidade revelando-se um dos pontos centrais de seu edifício conceitual. Lacunas e antinomias, derivadas da abertura (epistemológica, que decorre da indeterminação semântica da matéria jurídica), supõe a preexistência de soluções admissíveis (não completude, mas completabilidade).68 A suplantar (não a desconsiderar) a lógica-formal, Juarez consigna que a escolha das premissas “determina a construção lógica”, pelo que o “silogismo jurídico deve ser reconhecido como dialético, isto é, pertencente ao democrático e pluralista reino da persuasão”, não podendo dispensar “argumentações baseadas em premissas contraditórias, tampouco deixar de conduzir a conclusões prováveis, hipotéticas.”. 69 Adiante, o “círculo tópico-sistemático da compreensão”, proposto pelo autor, une engajamento e reflexão crítica, assumida a “identidade essencial da Tópica e do pensamento sistemático (...) para que o ser e o dever-ser tendam à aproximação”, provavelmente a maior missão da interpretação sistemática. Em síntese: a) toda hierarquização revela conteúdo tópico, o que é próprio da raciocínio sistematizador (e foi descurado por Canaris) “que advém da circularidade hermenêutica e da abertura cognoscitiva inerente ao diálogo do intérprete com o sistema objetivo; b) as visões unilaterais não dão conta dessa unidade dinâmica; c) a vocação integradora do pensamento sistemático demonstra-se no “ato de combater antinomias axiológicas”. A perspectiva, então, será dialética, imbricando-se a lógica formal ou “sistêmica” e a argumentação material ou sistemática. E a compreensão operacional da interpretação sistemática dá-se na vertente hermenêutica.70 Ao postular um paralelo entre a identidade essencial tópico-sistemática e uma criativa “convergência viável” entre a hermenêutica filosófica e a crítica das ideologias, Juarez provoca frutífero diálogo entre Gadamer e Habermas, ao cabo do qual é possível (re)afirmar: “O ‘metacritério’ da hierarquização axiológica apresenta-se como um resultado vivo da necessidade de fazer preponderar tanto o logos crítico como o logos tradici-

68

FREITAS, op. cit., pp. 49 e 50. “A Dialética, por outro lado, não peca contra a lógica formal. Simplesmente a supera, dado que é uma lógica da vida real. É a concepção da análise como parte integrante do processo social analisado, como sua consciência crítica possível, na certeza de que as coisas, em si mesmas, são contraditórias.” (p. 169).

69

FREITAS, op. cit., p. 51.

70

FREITAS, op. cit., pp. 159-60.

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onal, de molde a encontrar a melhor universalização sistemática no caso concreto, vale dizer, topicamente.”, desde que assente que “o processo de compreensão requer participação na práxis comunicativa, sem neutralidade axiológica, dado que o próprio anelo de universalização, a despeito de objetivo, pressupõe a subjetivação do intérprete, marcadamente ao lidar com as antinomias jurídicas”.71 Da “identidade essencial” advém a mais relevante conclusão: “convivem variadas soluções no bojo do sistema jurídico e apenas a partir dele devem ser procuradas” (o direito positivo é um sistema aberto e completável topicamente). 72 A partir de tais alicerces, vão-se cruzando vigas que culminam por rejeitar a “única resposta correta” e apostar na “melhor resposta possível”. (a) Jurista “é aquele que, acima de tudo, sabe eleger diretrizes e hierarquizar princípios”. Todavia, “na fixação ou no desvelamento de tais diretrizes, impende combater a concepção anacrônica de Carta Maior como se fosse um conjunto normativo em relação ao qual o exegeta seria capaz de inferir validamente soluções de modo dedutivo. (...) silogismos jurídicos são dialéticos e a operação hermenêutica é eminentemente circular. (...) importa, em sede de decisão jurídica, a qualidade de eleição das premissas.”;73 (b) O segundo preceito da ilustração prescritiva no direito público apresentada no capítulo 9 assume, verbis: “As melhores interpretações são aquelas que sacrificam o mínimo para preservar o máximo de direitos fundamentais”;74 (c) O sexto preceito considera que uma “boa interpretação constitucional é aquela que se sabe, desde sempre, coerente e aberta”;75 (d) O oitavo preceito refere que as “melhores leituras sistemáticas da Constituição visualizam os direitos fundamentais como tota-

71

FREITAS, op. cit., p. 165.

72

FREITAS, op. cit., p. 170.

73

FREITAS, op. cit., pp. 187-9.

74

FREITAS, op. cit., p. 194. O terceiro preceito também refere-se “a maior tutela jurisdicional possível” (p. 196) e o quarto “a maior otimização possível do discurso normativo” (p. 197).

75

FREITAS, op. cit., p. 200.

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lidade indissociável”, procuram restringir ao máximo as eventuais limitações (conferindo, ao núcleo essencial, eficácia direta e imediata);76 (e) Na síntese conclusiva, modo expresso, o autor assevera que, “sem que se adote a idéia da única interpretação correta, crêse na possibilidade de melhor compreender a rede de princípios, regras e valores numa lógica que não é a do ‘tudo-ou-nada’, mas que haverá de ser dialética sempre, no campo dos princípios e no campo das regras”;77 (f) Em conseqüência, Juarez sugere “uma melhor interpretação tópico-sistemática dentre as ‘n’ possibilidades interpretativas, isto é, aquela que hierarquizar sistematicamente de modo o mais universalizável no enfrentamento das contradições ou incompatibilidades, contribuindo para o primado do respeito à hierarquia mais ética do que formal, numa intelecção apta a promover uma hierarquização de soluções sem quebra do sistema”;78 (g) Explicitando: “a interpretação sistemática deve ser concebida como uma operação que consiste em atribuir, topicamente, a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas estritas (regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto (...) tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação”;79 (h) A noção de rede hierarquizada, com máxima referência à Constituição, conduz à lógica jurídica necessariamente dialética, “porquanto são vastas e, não raro, contraditórias as possibilidades hermenêuticas conferidas ao intérprete/aplicador”;80 (i) A operação de atribuir “a melhor significação sistemática, dentre várias possíveis (...) revela que o objeto da interpretação sistemática não se confunde com mera coisa destacável do in-

76

FREITAS, op. cit., p. 206.

77

FREITAS, op. cit., p. 273. Mesmo porque “jamais haverá um conflito de regras que não se resolva à luz dos princípios” (p. 272).

78

FREITAS, op. cit., p. 274.

79

FREITAS, op. cit., p. 275.

80

FREITAS, op. cit., p. 276. A hieraquização axiológica nunca será somente jurídica, pois a “interpretação opera como ‘descoberta’ e, ao mesmo tempo, como uma construção intersubjetiva da própria sistematicidade”.

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térprete, tampouco com o resultado cego de forças ou de processos.”;81 (j) A unidade dialética e a completabilidade do sistema impedem “a erupção de decisionismos subjetivistas maculados pela irracionalidade arbitrária” – pelo que, ao revés do sustentado pelo positivismo, mesmo o de combate de Bobbio, “a zona indeterminada entre o regulamentado e o não-regulamentado não configura (...) uma ausência de condições jurídicas para decidir (...) [pois] o princípio da hierarquização axiológica reveste-se também de conteúdo eminentemente jurídico.”;82 Ao cabo, o autor parece tomar posição na tensão entre “bons homens ou boas leis”, destacando “a importância de robustecer a formação axiológica do intérprete para a suprema tarefa ético-jurídica que consiste, em face das antinomias de avaliação, em alcançar o melhor e mais fecundo desempenho da interpretação sistemática”,83 um espaço para a virtude.

5. NA SENDA DA MELHOR RESPOSTA Afinadas com os câmbios paradigmáticos mencionados, outras posições alinham-se na trilha da melhor resposta. Avulta, pela clareza e originalidade de sua obra, o contributo de Zagrebelsky, para quem a aplicação judicial do direito confere unidade às separações experimentadas entre leis/direitos/justiça e princípio/regras, numa resoluta oposição à subsunção reducionista do positivismo.84 Para o autor, a dialética do caso/normas (integrada no círculo herme-

81

FREITAS, op. cit., p. 277.

82

FREITAS, op. cit., pp. 282-3.

83

FREITAS, op. cit., p. 290. Na mesma linha da melhor interpretação, também PASQUALINI, op. cit., p. 24, o vôo hermenêutico como a “perene e intersubjetiva procura do melhor sentido da lei ou, em termos mais concretos, da melhor solução sistemática para os conflitos jurídico-sociais.”. A procura das melhores exegeses é meta fiadora e inarredável da hermenêutica (p. 51).

84

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 131. Não escapa ao autor a contradição entre concepção e prática positivistas, assente no lema paradoxal da “lei mais perspicaz que o legislador”, pelo qual pretendiam a “objetivação” do direito legislado (uma ficção sem fundamento teórico), em que pese a “visão objetivista” da vontade da lei ter-se revelado um véu debilíssimo para quem quisesse rasgá-lo.

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nêutico), nem pode resvalar para a pura casuística (excesso de concreção, mera tópica) nem para a ciência teorética inútil (excesso de abstração, algumas vertentes sistemáticas). Tal concepção prática orienta a interpretação jurídica na busca da norma adequada tanto ao caso quanto ao ordenamento, conjugando ambas vertentes até lograr resultado satisfatório. A interpretação está na atividade mediadora entre o caso tópico e o sistema normativo, situada na “linha de tensão” que vincula a realidade com o direito.85 Ao asseverar que o ordenamento jurídico não oferece ao intérprete uma só e única resposta para regular o caso, Zagrebelsky insere a questão do método. A busca da regra não está determinada pelo método, é o método que está em função (na direção) da busca, dependendo do que se queira encontrar. O método é só um expediente argumentativo para mostrar que a regra extraída do ordenamento é possível, justificável nesse ordenamento dado. Principalmente, não existe um só método, mas vários, sem hierarquia, sendo o “pluralismo metodológico” traço essencial da atual cultura jurídica.86 Sendo o caso, para o juiz, um acontecimento problemático que deve ser resolvido, antes é preciso compreendê-lo, o que pressupõe que se entenda seu “sentido” e que se lhe dê um “valor”. Por sentido, Zagrebelsky entende a conexão entre uma ação e seu “resultado” social (com os efeitos que se considera que pode produzir). Embora a compreensão de sentido dirija e condicione a compreensão de valor, são momentos logicamente distintos que se condicionam reciprocamente. É evidente “que uma determinada compreensão de sentido pode propiciar, melhor que outras, diversos valores, e que a assunção de certos valores, melhor do que outros, pode fazer ver nos casos certos significados antes que outros”. Sentido e valor, juridicamente, têm significado objetivo, referência ao contexto cultural, pelo que se pode falar de “solução adequada ao caso”.87 A dinâmica e a mudança dos sistemas jurídicos são traços inescondíveis e o correlato déficit de certeza “não se pode remediar com uma teo-

85

ZAGREBELSKY, pp. 132-3.

86

ZAGREBELSKY, pp. 134-5.

87

ZAGREBELSKY, pp. 136-7. Interessante que, aproximando-se de Atienza, o autor, adiante (ao descrever o caso Serena, um caso difícil), fale de outros casos “iguais ou mais trágicos”. De toda sorte, o direito por princípios mostra sua dimensão concreta e à ineludível chamada à “prudência” do intérprete (p. 144).

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ria da interpretação mais adequada”. Caminha-se para um direito da eqüidade, que exige uma particular atitude espiritual do operador jurídico, de estreita relação prática: razoabilidade, adaptação, capacidade de alcançar composições “em que haja espaço não só para uma, e sim para muitas ‘razões’. Trata-se, pois, não do absolutismo de uma só razão e tampouco do relativismo das distintas razões (uma ou outra, iguais são), e sim do pluralismo (uma e outras de uma vez, na medida em que seja possível). Retornam, neste ponto, as imagens de ductibilidade (...)”.88 Também a vislumbrar na instabilidade e na incerteza oportunidades para novas respostas estruturadas de acordo com um paradigma mais complexo, insere-se a hipótese literária de Massimo Vogliotti – na imagem dos “rapsodos gregos” e na figura da rede, ao invés da pirâmide.89 Diante da crise ilustrada pelo escandaloso protesto de cerca de quinhentos magistrados franceses, que, em 19 de janeiro de 2001, jogaram seus códigos penais nas janelas da Chancelaria, aos pés do poder político, denunciando falta de meios para aplicar uma nova lei sobre presunção de inocência e contra a lógica produtivista exigida diante da explosão de litígios – um gesto que afrontou a idéia moderna de Código, obra da razão, coerente e completa, de linguagem clara e precisa (lógica linear e binária, que separa criação e aplicação do direito, direito substancial e processual etc.) –, é possível reagir dentro do paradigma oficial, como pretende o garantismo de um Ferrajoli, de assumida raiz positivista e a apostar na clareza da lei como fonte única, ou aceitar a bondade da reacomodação paradigmática.90 O autor evoca a metáfora da rapsódia, cuja etimologia já sugere a formação progressiva e pluralista do texto: “Esta antiga forma literária [a rapsódia] evoca, ao contrário [de uma obra escrita, do alto, por um único autor], a idéia do direito como uma rede tecida, de maneira contínua, por vários autores, tendo margens de criatividade diferentes, a partir de

88

ZAGREBELSKY, pp. 146-7. A relação de tensão entre o caso e a regra “introduz inevitavelmente um elemento de eqüidade na vida do direito” (p. 148).

89

VOGLIOTTI, Massimo. “La ‘rhapsodie’: fecondité d’une métaphore littéraire pour repenser l’écriture juridique contemporaine. Une hypothèse de travail pour le champ pénal”. Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques, 2001, nº 46, pp. 1-47.

90

VOGLIOTTI, op. cit., pp. 12-5. Preconiza o autor que a reação da comunidade jurídica deve ultrapassar a hipótese “ad hoc” (interpretando a crise como deformações contingentes, passível de superação pelo ajuste do paradigma da modernidade – certo que identicado na vertente positivista) e investir numa “rupture épistémologique”. Ao revés, para Ferrajoli, o Poder Judiciário está legitimado na medida em que exerça somente função cognitiva (p. 21, nota 47).

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uma multiplicidade difusa de contextos, por meio de procedimentos e técnicas diversas, mas unificada por uma mesma tensão unitária, que é a de escrever a epos da sua comunidade, que, em nosso sistema jurídico, é representada pelos valores da Constituição (...).”.91 Sob ponto de vista epistemológico, a metáfora da rapsódia desloca o acento das propriedades substanciais para as propriedades relacionais do sistema jurídico, uma epistemologia reticular, em que o conceito fundamental é o de conexão. Aqui, “os significados não preexistem completamente ao jogo de relações, mas se constituem nas conexões entre os nós da rede”. 92 O fundamento, portanto, passa a ser dinâmico e pluralista. Importa que a idéia de limites também muda. Não há fronteiras rígidas nem impermeáveis – o limite não está posto antes de começar o jogo, mas assume a natureza de um projeto que, para concretizar-se, precisa da colaboração ativa e responsável de todos os atores do campo jurídico (resultante do jogo relacional recursivo).93 A figura da autoridade também deve ser repensada, nesta perspectiva dinâmica (mais que ser, a autoridade deve fazer-se) – a legitimação pela justificação permanente. Vogliotti ainda destaca a autorevolezza, um poder que se faz respeitar principalmente pelo seu prestígio (o que envolve decisões de qualidade, que forneçam boas razões).94 O que se liga, segundo o autor, à “reabilitação da figura humana” no direito, e seu papel central na rapsódia, que não prescinde da qualidade dos homens que se conectam à reda jurídica. A modernidade concentrou-se sobre os problemas de formação da lei, ao invés de debruçar-se sobre a “formação do homem de leis” (uma desvalorização ligada a uma antropologia negativa, em que as regras não são concebidas pelos homens, mas contra eles – uma estratégia, de resto, ineficaz).95 Preferível aceitar, sem mistificação, a fragilidade do fundamento epistemológico do direito – e renunciar à hybris da razão jurídica moderna –

91

VOGLIOTTI, op. cit., pp. 18-9. É conhecida a imagem do “romance em cadeia” ou elos de Dworkin.

92

VOGLIOTTI, op. cit., p. 29.

93

VOGLIOTTI, op. cit., p. 32. O limite resultará de relações recursivas entre o horizonte do passado (tradição) e o do futuro (a representação, pelo intérprete, de uma decisão “justa”, que possa ser aceita pela comunidade interpretativa como uma prossecução legítima da rapsódia jurídica, sempre em conformidade com os cânones constitucionais) – p. 33.

94

VOGLIOTTI, op. cit., pp. 36-8.

95

VOGLIOTTI, op. cit., pp. 41-2.

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e insistir na modéstia, privilegiar a virtude da mitezza. A prioridade da agenda jurídica, então, passa a ser a ética do jurista e sua deontologia (a paideia jurídica necessita de intentio ética). O dever da coerência, aqui, será ditado pela necessidade, por ser o único meio de que se dispõe para ligar/conectar os sujeitos. Vogliotti figura um sujeito grave e responsável, consciente da fragilidade íntima (da légèreté) do direito e privado das ilusões da mitologia jurídica moderna, que sabe encontrar os limites em si mesmo. Ainda assim, tal condição do direito contemporâneo não deve projetar uma sombra de pessimismo sobre o porvir. O declínio do paradigma tradicional não significa a inevitável condenação do direito à fragilidade e à impotência, a um estado de insegurança e de relativismo radical. O direito não perde sua capacidade de instituir o social. Todavia, reconhecer sua fragilidade epistemológica e aceitar sua modéstia axiológica parece ser a verdadeira força do direito em rede – a vida dos habitantes deste direito rapsódico pode tornar-se menos incerta que a de outros que supõem modelos mais pretensiosos e, apenas na aparência, mais sólidos (os autores da rapsódia devem saber que a resistência da rede tem um limite).96 O direito mite foi a expressão escolhida por Zagrebelsky para configurar os traços de um sistema mais dinâmico, plural e complexo. A tradução espanhola utilizou o termo dúctil. Bobbio escreveu o Elogio della mitezza (cuja primeira edição italiana remonta a 1994), tendo optado o tradutor português pelo substantivo serenidade. Importa que o pensador italiano considera a “mitezza” uma virtude fraca, a mais impolítica das virtudes. 97 Interessa, ademais, a constatação de Bobbio, no sentido de que além do tema da virtude ter sido exumado, o final do século passado retomou o tema das paixões (e sua relação com a razão). O que é sintomático, depois da doutrina da virtude, de raiz aristotélica, ter sido abandonada na “modernidade”, na qual prevaleceu a ética das regras, com o binômio direi-

96

VOGLIOTTI, op. cit., pp. 42-9.

97

Não a virtude dos fracos, pois que se não confunde com submissão, mas como oposta às virtudes “fortes” dos estadistas, do homem de governo. Antes, com valores próprios de um homem privado, “insignificante”. Trata-se de uma distinção analítica, não axiológica. Bobbio assume que o fundamento de uma república, mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2002, pp. 9 e 37).

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tos/deveres. Bobbio considera artificial a contraposição entre virtudes e regras, sendo mais sábio analisar a relação entre as duas categorias. O adjetivo mitezza aplicado ao direito insere-se neste pano de fundo. 98 A serenidade, como postulada por Bobbio, é uma virtude ativa e uma virtude social (ao passo que temperança e coragem seriam virtudes individuais). Numa definição lapidar: “Sereno é o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si”, serenidade como potência, que consiste em “deixar o outro ser aquilo que é”.99 No oposto da serenidade estão a arrogância, a insolência e a prepotência, vícios/virtudes (conforme o ângulo) do homem político. Daí outra característica da serenidade, que chega a ser a “outra face da política”, e ajuda, pois, a definir os limites entre o político e o não político.100 Adiante, Bobbio vai mesmo justificar sua escolha por uma virtude que é a antítese da política, aproximando a serenidade de duas outras virtudes complementares: a compaixão (que se conecta à misericórdia) e a simplicidade, vista como a capacidade de fugir intelectualmente das complicações inúteis e praticamente das posições ambíguas.101 Algo que calharia bem para a melhor resposta. Ao cabo, arrisca-se alinhavar algumas pistas, para ulterior aprofundar, como ensaio de conclusão. Não há, pelo que ficou dito, uma única resposta correta. Na vida prática, todavia, é preciso escolher a melhor resposta possível, mesmo pela aspiração tópica do direito, que há de ser, ao mesmo tempo, a mais sistemática. Os problemas avultam quando se indaga acerca dos critérios para preferir uma resposta à outra. Assim como a pluralidade metodológica está posta, é possível afirmar uma pluralidade de critérios que, conjugados, concretizam orientações, sinalizam a melhor resposta. Parece que é preciso, mantido o topos da racionalidade argumentativa (e da universaliza-

98

BOBBIO, op. cit., p. 34, considera uma categoria inusitada e, expresamente em relação à obra de Zagrebelsky, aponta que caberia uma questão preliminar: Mite, por quê?

99

BOBBIO, op. cit., p. 35.

100

BOBBIO, op. cit., p. 39. A política não é tudo, afirma Bobbio. A serenidade é o contrário da arrogância (a opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência), não porque se desestime, mas por ser mais propensa a acreditar nas misérias que na grandeza do homem – o sereno se vê como um homem igual aos demais. Implicações interessantes podem derivar daí, a solução jurídica demarcando-se, pela serenidade, das decisões políticas. De toda sorte, resvala-se, aqui, para o território da tolerância e do respeito pelas idéias e modos dos outros (p. 42).

101

BOBBIO, op. cit., pp. 43-6.

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ção), 102 densificar tanto o sujeito (que responde) quanto o auditório (que aprova). Boaventura, na sua crítica da razão indolente, observa que só pode haver discurso argumentativo dentro de “comunidades interpretativas”, os auditórios relevantes da retórica. Por outro lado, “o fim dos monopólios de interpretação é um bem absoluto da humanidade”, embora o perigo, igualmente temível, da “renúncia à interpretação”. Contra ambos, a estratégia é a proliferação de comunidades interpretativas, que são comunidades políticas. O produto de tais comunidades (o conhecimento emancipatório pós-moderno) será retórico, uma verdade retórica, “uma pausa mítica numa batalha argumentativa contínua e interminável travada entre vários discursos de verdade; é o resultado sempre provisório de uma negociação de sentido realizada num auditório relevante”.103 Daí que o autor proponha uma novíssima retórica, que parte das conseqüências, das “últimas coisas” (a intersecção entre retórica e pragmatismo – um conhecimento prudente para uma vida decente).104 Na visão de Boaventura, o auditório “está em permanente formação. (...) É a fonte central do movimento, a polaridade orador-auditório em constante rotação. (...) o auditório é um processo social (...).”.105 No que tange ao sujeito, vale lembrar que a transição paradigmática é dupla: epistemológica e social. “A unir as duas transições, existe o conceito de subjectividade – simultaneamente individual e colectiva –, o grande mediador entre conhecimentos e práticas.”.106

102

O próprio Habermas, todavia, perguntado sobre se a sua teoria crítica do capitalismo avançado teria utilidade para as forças socialistas do terceiro mundo e se essas forças poderiam ser úteis às lutas pelo socialismo democrático nos países desenvolvidos, respondeu ter consciência “do fato de que esta é uma visão limitada e eurocêntrica” – apud SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 341.

103

SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 90-1.

104

SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 97. Há de se privilegiar o convencimento em lugar da persuasão, “acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados” (p. 98), sendo a dimensão dialógica entre orador e auditório um princípio regulador da prática argumentativa (p. 99).

105

SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 99. Entretanto, o “potencial emancipatório da retórica assenta na criação de processos analíticos que permitam descobrir por que é que, em determinadas circunstâncias, certos motivos parecem ser melhores e certos argumentos mais poderosos do que outros” (p. 100).

106

SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 319. A exploração das possibilidades emancipatórias deve ser guiada por três grandes topoi: a fronteira, o barroco e o Sul (pp. 321-54).

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Quem sabe um sujeito revitalizado, imerso no círculo virtuoso de uma comunidade político-interpretativa determinada, possa encontrar a melhor resposta, a exasperação da alteridade e da emancipação. De forma prudente. Uma resposta decente.

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Da água: considerações jurídico-ambientais Water: Legal-Environmental Considerations PLAUTO FARACO DE AZEVEDO Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain. Professor titular do Curso de Pós-Graduação/ Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil.

RESUMO Considerando a escassez da água, analisam-se as conseqüências jurídicoambientais da questão. Palavras-chave: Lei ambiental, água.

ABSTRACT Considering water scarcity, the legal-environmental results of the issue are analyzed. Key words: Environmental law, water. Na questão ambiental, há que se destacar o problema da água, em escala planetária. Desde o começo dos anos 70, o mundo sofreu diversos choques petrolíferos. Este século poderá “conhecer conflitos geopolíticos e comerciais de ainda maior envergadura, ligados ao domínio de um recurso indispensável à vida, não substituível, e existente em quantidade fixa”. A água tem-se ressentido da demanda incon-

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trolada da indústria, da agricultura, do turismo e do uso doméstico nos países ricos, tudo antecipando a possibilidade de sua severa escassez futura. Hoje, 1,4 bilhão de pessoas estão privadas do acesso à água potável. A utilização da água está a demandar a existência de uma autoridade capaz de regulamentá-la, em conformidade com os interesses do conjunto dos habitantes do planeta, harmonizando-os com os interesses particulares. “O mercado, acelerador das desigualdades, não poderia desempenhar tal papel. O tempo urge, clamando pela a adoção de um outro ponto de vista – cooperativo e internacional – da gestão de um recurso que deve permanecer ou voltar a ser um bem comum da humanidade.” A liberdade de mercado forneceu exemplos concretos de sua inaptidão a conduzir ao seu uso razoável. Assim, o Acordo de Livre Comércio (Alena), torna competitivos, nos mercados dos Estados Unidos e do Canadá, os frutos e legumes mexicanos, cuja produção consome muita água, justamente num país que dela tem falta, o que provoca graves tensões sociais.1 Para assegurar a durabilidade deste recurso, é preciso afastar a confusão entre valor e preço, ‘e promover uma ética da água”, conforme propõe Vandana Shiva. 2 Federico Mayor fala, por seu turno, de uma ética, “fundada sobre a solidariedade e a subsidiaridade ativa, em que as decisões sejam tomadas no nível mais baixo possível – privilegiando um ponto de vista de ampla cooperação, dando a palavra a todos os atores – notadamente às mulheres -, atentando às tecnologias apropriadas e aos saberes locais”.”3 Reconhecendo a gravidade do assunto, a ONU, recomendou, ao final de sessão especial, em 1997, que se concedesse “prioridade absoluta aos graves problemas de água doce, com que se vêem confrontadas numerosas regiões do mundo. Para isto, faz-se necessária a colaboração

1

BOUGUERRA, Mohamed Larbi. Bataille planétaire pour l’“or bleu”. Le Monde Diplomatique, Paris, nov. 1997. n. 524, p. 24-25.

2

SHIVA, Vandana. “Values beyond price”, Our Planet, programme des Nations Unies pour l’environnement (Pnue), Genève, v. 8, n. 2. Cf. BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25.

3

As leis francesas sobre a água, de 1964 e 1992, instituíram “uma certa forma de controle democrático, uma vez que em cada uma das seis grandes bacias, os eleitos, os usuários, os representantes da administração e os industriais... devem por-se de acordo. Uma diretiva da União Européia deveria alargar esta forma de acordo a toda Europa. BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25. O grifo é nosso.

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multilateral dos Estados e recursos financeiros adicionais provenientes da comunidade internacional.4 Não há dúvida de que há uma conscientização crescente da necessidade de preservar a água doce, mantendo sua qualidade e racionalizando seu uso. O problema é que a conscientização tem-se dado, nos planos nacional e internacional, por instituições, pessoas e governos que não dispõem, isoladamente, ou mesmo em conjunto, de meios econômicos e de persuasão conducentes à efetividade das propostas. Se, nos próximos 10 ou 15 anos, não se chegar a alguma solução política concertada, o domínio da água “provocará múltiplos conflitos territoriais, conducentes a ruinosas batalhas econômicas, industriais e comerciais. A principal fonte de vida da humanidade vai se transformar em um recurso estratégico vital e, portanto, em uma mercadoria rara, particularmente lucrativa nos novos mercados”. A tese privatista, segundo a qual só o livre mercado poderia garantir “a paz da água”, tem encontrado muitos adeptos nos últimos anos. A prática, porém, não tem produzido provas neste sentido. Na Inglaterra, o preço da água “aumentou 55%, entre 1990 e 1994, sem que os investimentos das companhias privadas tenham crescido nas mesmas proporções”. Em conseqüência, as falhas no seu fornecimento aumentaram, enquanto as companhias obtiveram enormes margens de lucro. Por outro lado, na província de Québec, no Canadá, a tendência privatizante foi revertida, reafirmando o governo que “a água é um bem público, que deve permanecer sob controle público”. Neste mesmo sentido, os países-membros do Grupo de Lisboa pretendem criar um movimento de opinião internacional para o estabelecimento de um contrato mundial da água. Tal contrato “partiria do princípio que o acesso à água potável – bem comum da humanidade – constitui um direito econô-

4

BOUGUERRA, Mohamed Larbi, op. cit., p. 25. A gravidade do problema é assinalada por várias organizações internacionais – Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento, Programa da Nações Unidas para o Meio Ambiente, Banco Mundial, Instituto de Recursos Mundiais, Instituto de Energia e do Meio Ambiente da Francofonia, Agência Intergovernamental da Francofonia,Comitê 21 –, as quais assinalam, em relatório conjunto que já em 1995 mais de 40% da população do mundo vivia em dificuldades, no que tange a água, ou mesmo na sua penúria, situação que tende a atingir 50% da população em 2025. Dentre as causas que degradam sua qualidade enumeram-se: os dejetos provenientes da indústria alimentar e do papel, os fertilizantes, os metais pesados, os agentes microbianos, os solventes industriais, os compostos tóxicos como o óleo e os pesticidas, os sais da irrigação, as precipitações ácidas e os próprios dejetos humanos carentes de tratamento. RESSOURCES MONDIALES 2000-2001.Washington: World Resources Institute; Paris: ed. Eska, 2000. p. 110-12.

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mico e social fundamental de toda pessoa assim como um direito coletivo de toda comunidade humana”.5 Não há dúvida, exceto para os senhores do dinheiro, que a água deve ser tratada “como um patrimônio humano comum”, visto que a saúde humana “está intimamente ligada ao acesso básico e seguro à água”. Nos países pobres, 85% das doenças humanas relaciona-se com a quantidade ou qualidade da água.6 Apesar de as primeiras privatizações de sua produção, distribuição e uso não terem sido bem sucedidas, no século XIX, nas cidades européias e americanas, visto que as empresas privadas acabaram por transferir tal responsabilidade ao Estado7 , volta-se hoje a insistir em sua privatização. O Banco Mundial entende que o papel do Estado deve ser o de estabelecer as regras do jogo, promovendo os mecanismos de mercado, sem envolvimento direto com o gerenciamento da água. “Gerenciamento e/ ou propriedade devem ser deixados inteiramente nas mãos do setor privado”, devendo o Estado propiciar “a segurança da lei para as transferências de propriedade e direitos da água, bem como para definir e fazer cumprir os padrões de qualidade para uma água potável segura”.8 Segundo John Barham, em artigo publicado no Financial Times, intitulado “Como vender a indústria mundial da água”, o número de privatizações do setor ainda é modesto. Todavia, transformando-a “em um bem econômico, em um recurso comerciável, os governos estão fazendo com o que o setor seja tão atraente para o mercado quanto os demais”. Tais idéias acabaram por influenciar a Declaração de Dublin, “aprovada em

5

PETRELLA, Ricardo. Pour un contrat mondial. Le Monde Diplomatique, Paris, nov. 1997. n. 524, p. 25. O grifo é nosso. – À margem da irresponsabilidade dos que detêm as rédeas do poder mundial, há inúmeras experiências em curso e debate crescente sobre o assunto, como o demonstram escritos sobre a situação da água na Argélia, no Marrocos, no Brasil, no México e na Tunísia, relativos à sua dimensão institucional, à contraposição dos modelos mercantis frente à pobreza, às desigualdades no acesso à água, aos sistemas de irrigação e direitos de propriedade, à gestão compartilhada dos rios internacionais, na África, à sua planificação estratégica a longo prazo, etc. Revue Tiers Monde: Les nouvelles politiques de l’eau. Enjeux urbains, ruraux, régionaux. Paris, Institut d’Étude du Développement Économique et Social, avril.-juin 2001. Trimestrielle. Presses Universitaires de France.

6

PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água: argumentos para um contrato mundial. Tradução Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 88-9. Título original: The Water manifesto. Arguments for a world contract.

7

Ibid., p. 88.

8

Ibid., p. 93-5.

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uma das conferências intergovernamentais mais significativas da década de 90”. Nela foi consignado que “a água tem um valor econômico em todos os seus vários usos e deveria ser reconhecida como um bem econômico”. O seu desperdício e o prejuízo ao meio ambiente derivariam do não reconhecimento de seu valor econômico, no passado. A Declaração de Dublin acresce que “gerenciar a água como um bem econômico é um passo importante para a obtenção de um uso eficiente e igualitário, e para o encorajamento da conservação e proteção dos recursos hídricos”.9 A partir desta afirmativa, consagrada, ardilosamente, na Declaração, prevaleceu a lógica do dinheiro, abrindo-se a porta para a privatização. Os resultados da privatização na França e na Inglaterra precisam ser aferidos. Na França, o preço da água “aumentou constantemente nos últimos anos”. Em Grenoble, o preço triplicou; em Paris, aumentou 154%. Defeito grave no sistema francês, conforme relatório parlamentar, achase na “falta de transparência na outorga de concessões de gerenciamento”, além dos “inúmeros escândalos de corrupção que vêm ocorrendo com o passar dos anos, fazendo com que se reflita sobre a ética de uma política que permite “que sujeitos privados lucrem com um patrimônio comum, vital e não substituível pertencente à sociedade como um todo. Não é isso uma expropriação legalizada de um bem social em favor de um número pequeno de pessoas?”10 Esta pergunta ganha relevo, na Inglaterra, onde os lucros foram tão altos que Tony Blair – “que não tem qualquer intenção de questionar a privatização da água – impôs um imposto especial sobre ‘lucros excessivos’”, tendo as companhias de água sido condenadas a pagar 1,6 bilhão de libras esterlinas, em 98 e 99. Po outra parte, os investimentos prometidos para o setor foram negligenciados. O desperdício, devido a vazamentos em canos, aumentou em 30%, tornando-se as interrupções do abastecimento uma ocorrência comum, embora os preços tenham aumentado 55%, entre 1990 e 1994.”11 Como sempre, para defender os interesses dos poderosos, encontramse sibilinas distinções jurídicas, no caso, entre propriedade e gerenciamento, argumentando-se que o modelo francês é de gerenciamento pri-

9

PETRELLA, Riccardo, op. cit., p. 95-8.

10

PETRELLA, Riccardo, op. cit., p. 107-9.

11

Ibid., p. 109-10.

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vatizado de serviços de água, enquanto a sua propriedade continua sob o controle público. Apesar desta distinção formal, verdade é que, na prática, “a propriedade – em qualquer significado real da palavra -, já foi levada de roldão”. Também, mostra a experiência francesa que as empresas privadas gradualmente expulsaram a política do processo decisório, “com relação a normas, padrões e outras coisas mais. E puderam fazê-lo graças ao domínio tecnológico e às técnicas gerenciais, financeiras, e outras, que adquiriram quando se tornaram ‘os encarregados’”. O problema da água é, sobretudo, um problema de democracia e de solidariedade.12

12

Ibid., p. 110-11, 149-50..

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O Casamento e a União Estável na Perspectiva do Novo Código Civil Brasileiro Marriage and Stable Union according to the New Brazilian Civil Code JULIO CESAR GARCIA RIBEIRO Mestre em Direito pela UNISC, Professor de Direito de Família, de Sucessões e Temas Emergentes da ULBRA, Unidade de São Jerônimo, RS.

RESUMO A edição de um novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), vertido com o objetivo de afastar a mora legislativa ao processo de efervescência das demandas sociais, na esteira da Constituição vigente, justifica o exame comparativo da formação e dos efeitos jurídicos decorrentes da família matrimonial e convivencial. Palavras-chave: Família, direito matrimonial e convivencial, família e sucessões.

ABSTRACT A new edition of Brazilian Civil Code, (Law nº 10.460/02), structured with the finality to move away the legislative estrangement from the process of social demands, and following the latest Brazilian Constitution, justifies a comparative analysis on the formation and the juridical effects resulting from the matrimonial and the convivial family. Key words: family, matrimonial and convivial law, family and succession.

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INTRODUÇÃO O País, passado quase um século da promulgação da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, ganha um novo Código Civil. Pela Lei nº 10.406/ 02, vigente desde 11 de janeiro de 2003, retoma-se a trajetória da codificação, em substituição à fase estatutária, que permeou esse intermédio, através da qual pretendeu incorporar os diversos textos esparsos e as alterações decorrentes dos recentes avanços sociais e tecnológicos. O tema é vasto, limitar-nos-emos a incursionar em relação ao Casamento e à União Estável no novo Código Civil Brasileiro; o texto legislativo é recente, colocá-lo-emos em perspectiva, considerando as disposições da Constituição Federal de 1988, o Código anterior de 1916 e a legislação complementar, em consonância com a efervescência das demandas sociais, sujeitando-nos aos riscos imanentes às conclusões apressadas; o trabalho, sob a forma concentrada e, sem dúvida, às limitações do autor, procura seguir uma linha didática, mediante subdivisão dos temas, visando facilitar a apropriação das suas idéias centrais.

I. HISTÓRICO BREVE DA FAMÍLIA Os registros históricos estão a demonstrar, como fenômeno social e político de clara aceitação, que a família ocidental viveu largo período sujeita ao sistema patriarcal, organizada sob o princípio da autoridade do pater, ao mesmo tempo chefe político, juiz e sacerdote, e em função do ideário religioso, a que nós, herdeiros intelectuais da civilização romana, retratamos como padrão institucional.1 É de destacar que na Grécia, organizada por classes sociais, o concubinato não implicava desonra, podendo derivar de uma união regular entre pessoas somente impedidas de casar em virtude da condição social, enquanto em Roma, até o período pós-clássico, quando não havia formalidade burocrática, a estrutura familiar se fazia assentada na posse de estado de casados.2

1

PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 11a. ed., 2001, vol. V, ps. 16 a 19.

2

BORGHI, Hélio, União Estável e Casamento: Aspectos Polêmicos, São Paulo: Editora Juarez Oliveira, 2ª ed., 2003, p. 03.

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As transformações havidas gradativamente, já prenunciadas na fase final do Império Romano, através do Direito Canônico, foram inspiradas no direito germânico, tendo como suporte a concepção cristã de família, com a substituição da organização autocrática por uma orientação democrática-afetiva, deslocando o princípio da autoridade paterna para o da compreensão e do amor.3 Entretanto, para os canonistas o concubinato era visto como ato atentatório à integridade da família, capaz de ensejar aos concubinos sanções civis e penais4 . No que diz com a família brasileira, como dito antes, detém origem remota nas instituições romanas, de estrutura tipicamente patriarcal, com forte influência do Direito Canônico, transportadas até nós pelas mãos dos portugueses. 5 Traz-se à colação recorte da obra de Orlando Gomes, agregando subsídios explicativos acerca das origens diretas e imediatas da família no Direito Pátrio: Fontes históricas do Direito de Família brasileiro são, principalmente, o direito canônico e o direito português, representado este, sobretudo, pelos costumes que os lusitanos trouxeram para o Brasil como seus colonizadores. A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada até a lei de 1890, que instituiu o casamento civil. ... O Direito de Família do país é dominado realmente pelas concepções religiosas e éticas do catolicismo, das quais, entretanto, vem se afastando ultimamente. 6 No Brasil, até 1890, somente eram celebrados casamentos religiosos; com o Decreto nº 181, passou o Estado a exigir o casamento civil, e, pelo Decreto nº 521, também de 1890, obrigava o sacerdote, sob pena de prisão de até 6 meses, a só realizar casamento religioso precedido do civil.7 3

PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 19.

MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, 2º volume, São Paulo, Ed. Saraiva, 1993, p. 16. LUZ, Valdemar P. da, Curso de Direito de Família, Caxias do Sul: Mundo Jurídico, 1996, p.14, idem FACHIN, Rosana Amara Girardi, Em busca da Família do Novo Milênio, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, ps. 26/7. 6 GOMES, Orlando, Direito de Família, Rio de Janeiro: Forense, 12a. ed., 2000, ps. 9 e 10. 7 LUZ, Valdemar P. da, op. cit., p. 25. 4 5

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A força do cristianismo se fez sentir, de forma cristalina, na luta secular pela implementação do divórcio, só fecundada pela Emenda Constitucional nº 09, em 28 de junho de 1977, regulamentada pela Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. A propósito da União Estável, como significado da convivência sólida e duradoura entre pessoas desimpedidas e de sexo diverso, com objetivo de formar família, despertou a atenção inicial do Direito Previdenciário, como fundamento de amparo à família do trabalhador, no primeiro momento exclusivo à mulher e mediante comprovação da dependência econômica efetiva, Decreto nº 20.465/31, Lei Orgânica da Previdência Social; posteriormente, considerada por presunção e a ambos os sexos, como assente no art. 16, § 4º, da Lei nº 8.213/91, bastando fazer a prova da união estável; e, de igual sorte, veio a ser objeto de tratamento pelo Direito Tributário, com a edição da Lei nº 4.242/63, art. 44, atualmente indistinto aos companheiros, art. 35, II, da Lei nº 9.250/95, possibilitando o abatimento na declaração de renda na categoria de encargos familiares 8 . E, no plano do Direito Civil, limitado, na sua primeira fase, às demandas indenizatórias à concubina por serviços domésticos prestados, fundamentado em impedir o enriquecimento sem causa de uma pessoa em relação à outra, evocando o art. 1.216, do revogado Código de 19169 , foi galgando espaço, gradativamente, mercê dos avanços jurisprudenciais, caso da Súmula 380, do STF, admitindo a partilha entre os concubinos de bens adquiridos pelo esforço comum; a Lei nº 8.971/94, que assegura direito aos alimentos e a partilha, inclusive na herança, onde assume o 3º lugar na ordem de vocação hereditária; e, enfim, a Lei nº 9.278/96, a introduzir direitos e deveres recíprocos, de diversas ordens e, à semelhança do casamento, remeteu a matéria à competência do juízo da Família, na esteira do disposto no art. 226, § 3º, da Carta Magna. A Lei nº 10.406/02, que institui o novo CCB, incorpora as disposições anteriores, especialmente as da Lei nº 9.278/96, que regulamentou o § 3º, do art. 226, da CF, inscritas no Título III, Livro IV, Parte Especial, arts. 1.723 até 1.727.

8

PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa, Efeitos Patrimoniais do Concubinato, São Paulo: Editora Saraiva, 1997, ps. 246/ 8. Idem, a propósito da previdência, em RIBEIRO, Julio Cesar Garcia, A Previdência Social do Regime Geral na Constituição Brasileira, São Paulo: LTr, 2001, p. 133.

9

PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa, op. cit., p. 121.

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II. DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL 1. Considerações introdutórias Realizado o registro, em breves pinceladas, das bases históricas de formação da família e estabelecidos os pilares estruturais do Direito de Família, passaremos ao exame da sua fonte formal de estrutura: Código Civil editado pela Lei nº 10.406/02, com ênfase no casamento e na união estável, Livro IV, repercutindo efeitos sucessórios, objeto do Livro V, integrantes da Parte Especial. O objeto do Direito de Família é a própria família, assim consideradas as pessoas vinculadas pelo Direito Matrimonial, pela União Estável e pelo Parentesco, além de integrar institutos afins, Tutela e Curatela, uma vez que a Ausência foi incorporada à Parte Geral, Livro I, Título I – Das Pessoas Naturais. No particular, o Direito Matrimonial e a União Estável, em situação símile, como entidades familiares legítimas, constituem-se no centro de irradiação das normas básicas do Direito de Família, com proteção especial do Estado (CF, art. 226, §§ 1º e 3º e CCB, arts. 1.511 a 1.590 e 1.723 a 1.727).

2. Do casamento 2.1. Formalidade Essenciais ao Casamento: Preenchidos os requisitos do processo prévio de habilitação (arts. 1.525 a 1.532, CCB) e não havendo o oferecimento de oposição de impedimentos matrimoniais (circunstância que vede o casamento, casos de infração ao art. 1.521, CCB) ou de causas suspensivas (art. 1.523, CCB), ou julgada improcedente a oposição, e, com efeito, de posse da certidão de habilitação expedida pelo oficial do Registro Civil, os nubentes encaminharão petição à autoridade competente para designar dia e hora para a celebração do casamento (art. 1.533, CCB). A cerimônia nupcial é ato formal por excelência, revestida de publici-

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dade (art. 1.534 e §§ 1º e 2º, CCB), contando com a presença real e simultânea dos contraentes, admitida a representação de um deles mediante procuração pública, com poderes especiais e expressos, resulta coroada com a livre, espontânea e sucessiva manifestação de vontade dos contraentes e a decorrente declaração de casados pelo juiz (art. 1.535, CCB), completando-se com a lavratura do termo de registro, assinado pelos cônjuges, testemunhas e oficial/juiz (art. 1.536, CCB).

2.2. Efeitos decorrentes do casamento: O casamento produz efeitos de diversas ordens: sociais, pessoais e patrimoniais, entre os cônjuges e entre pais e filhos, dando origem a direitos e deveres recíprocos. 2.2.1. Na esfera social, podemos alinhar que o casamento: (a) cria a família matrimonial, tanto que o Estado, embora proteja a união estável, indica que a lei deve facilitar sua conversão em casamento (CF, art. 226, §§ 1º, 2º e 3º; CCB, art. 1.565), proibindo a intervenção de qualquer pessoa na vida da família (art. 1.513, do CCB); (b) estabelece vínculo de afinidade entre cada cônjuge ou companheiro com os parentes do outro (art. 1.595, §§ 1º e 2º, CCB); (c) emancipa o cônjuge menor de idade (art. 5º, § único, II, CCB); (d) constitui o estado de casado, com a assunção da condição de consortes, responsáveis pela manutenção da família (art. 1.565, CCB).

2.2.2. Quanto aos efeitos pessoais, estabelece deveres recíprocos entre os consortes e em relação aos filhos, de diversas ordens, devidamente especificados no art. 1.566, do CCB: (a) mútua fidelidade (art. 1.566, I, CCB; art. 240, CP), importando registrar que o adultério de qualquer dos cônjuges constitui causa para fundamentar a separação judicial litigiosa, por representar ofensa grave à honra do outro cônjuge (art. 1.573, I, CCB); (b) vida em comum, no domicílio conjugal (art. 1.566, II, idem art. 1.511,CCB); (c) mútua assistência: difere do socorro econômico, é tido como o mais importante dever matrimonial, consistente em ajuda e cuidados, tem um conteúdo eminentemente ético10 (art. 1.567, III, CCB); (d) sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, IV), incluído como 10

DINIZ, Maria Helena, op. cit., 5º Vol., Direito de Família, p. 128.

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deveres recíprocos entre os cônjuges, têm sentido próprio ao tratarmos dos deveres dos pais em relação aos filhos; e, enfim, (e) respeito e consideração mútuos (art. 1.566, V), transportado da legislação pertinente à união estável (Lei nº Lei nº 9.278/96, art. 1º).

2.2.3. Os efeitos patrimoniais referem-se às relações econômicas no âmbito matrimonial, representadas pelo regime de bens que deverá viger, partindo do pressuposto de que a regra indica que é livre aos nubentes, antes da celebração do casamento, pactuarem quanto ao regime de bens, suscetível de alteração somente motivada e em juízo (art. 1.639, §§ 1º e 2º, CCB). No silêncio das partes, ou sendo nula ou ineficaz a convenção realizada, vigorará o regime da comunhão parcial (art. 1.640, caput, CCB). Existem casos, contudo, em que o regime de Separação é obrigatório (art. 1.641, CCB). (a.) Regime da Comunhão Parcial de Bens: não havendo pacto antenupcial, prevalece o regime da comunhão parcial ou limitada, que indica a comunhão apenas de aqüestos, i. é, dos bens adquiridos na constância do casamento; excluem-se, assim, os anteriores, os sub-rogados e os de causa anterior (arts. 1.659 e 1.661, do CCB), introduzido como regime comum (art. 1.640), em substituição ao universal, desde a chamada Lei do Divórcio (nº 6.515/77). (b.) Da Comunhão Universal de Bens: é regime advindo de pacto antenupcial, pelo qual os bens que cada um possui, mais os que forem adquiridos na constância do casamento, pertencerão a ambos, passando cada cônjuge a deter metade ideal do patrimônio indiviso e das dívidas comuns (art. 1.667, CCB), cujas exceções, em decorrência do personalismo ou devido à natureza, acham-se arroladas no art. 1.688, cc. art. 1.659, V a VII. Em circunstância excepcionada da comunhão, como são os bens doados ou testados com cláusula de incomunicabilidade, essa não atinge os frutos percebidos ou vencidos no curso do casamento (art. 1.669, CCB). (c.) Regime da Separação de Bens: é o regime em cada consorte conserva os bens anteriores e os que forem adquiridos após o casamento, como também respondem separadamente pelas dí-

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vidas contraídas, podendo livremente alienar e gravar de ônus real (art. 1.687, CCB), respondendo ambos pelas despesas domésticas (art. 1.688, CCB). Deriva, quanto à origem, de imposição legal ou obrigatória, nos casos de casamentos celebrados com inobservância de causa suspensiva, do maior de sessenta (60) anos e daqueles autorizados ao casamento por suprimento judicial (art. 1.641, CCB), ou de pacto antenupcial (art. 1.639, CCB). (d.) Regime da Participação Final nos Aqüestos: diz-se daquele, também decorrente de pacto antenupcial, em que cada cônjuge possui patrimônio pessoal, integrado pelos bens que possuía ao casar e os adquiridos na constância do casamento, cabendolhes a metade dos adquiridos a título oneroso na constância do casamento à época da dissolução da sociedade conjugal, nos casos de morte, separação ou divórcio (arts. 1.672 a 1.686, CCB).

2.3. Dos Alimentos Alimentos constitui-se em prestação de caráter assistencial destinada a atender as necessidades de vida de uma pessoa por outra, considerando a relação necessidade de quem reclama e a capacidade da pessoa obrigada (art. 1.694, § 1º, CCB), podendo ser fixados: a) na ação de alimentos em decorrência do parentesco, entre pais e filhos e parentes em linha reta e colateral até 2º grau (CCB, art. 1.694, cc. 1.696/7, e Lei nº 5478/68, art. 4º); b) de ação de separação judicial, divórcio, de anulação de casamento e de dissolução da união estável, reciprocamente aos cônjuges ou conviventes e aos filhos (art. 1.694, c.c. arts. 1.703/4, CCB); e, c) na ação de reparação para ressarcir vítima por ato ilícito (arts. 948, II e 950, CCB). O dever de assistência entre os cônjuges, previsto no art. 1.566, III, do CBC, diversamente dos demais (fidelidade, comunhão de vida, respeito e consideração), pode ter continuidade após a dissolução da sociedade conjugal sob a forma de pensão alimentícia, nos termos do art. 1.694, 1.702 e 1.704. O divórcio não extingue a obrigação alimentar, nem o novo casamento do cônjuge devedor dos alimentos (art. 1.709), embora tal circunstância possa prestar-se à revisão da pensão paga ao ex-cônjuge, com vistas à redução do valor.

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Não obstante, mantida a obrigação alimentar em caso de divórcio, o texto deixa evidenciado, no nosso entendimento, que, divorciando-se os cônjuges, ou dissolvida a união estável, sem que tenha havido fixação prévia ou na sentença de dissolução do casamento, não são mais devidos os alimentos, muito embora devesse tê-la incluído dentre as causas de cessação arroladas no art. 1708.

2.4. Do Direito Sucessório Os efeitos sucessórios, condizentes com a transferência de bens ao cônjuge sobrevivente em virtude da morte do outro, já no campo do Direito das Sucessões, estão arrolados pelo art. 1.829, incisos I, II e III. Havendo herdeiros necessários ou legitimários (descendentes, ascendentes ou cônjuge), o testador só pode dispor de metade da herança, uma vez que a outra metade, dita legítima, pertencerá àqueles (art. 1.789, c.c. o art. 1.845). O Código inova incluindo o cônjuge na categoria de herdeiro necessário. Pertinente à Sucessão Legítima são contemplados, pela ordem, excluindo-se uns aos outros, ressalvada a concorrência do cônjuge com os descendentes ou ascendentes (arts. 1.829, I e II, cc. 1.832 e 1.837) e do convivente com todos os parentes sucessíveis (art. 1.790), em decorrência da proximidade, segundo a linha e o grau, os parentes consangüíneos ou civis descendentes, havidos ou não do casamento; ascendentes; cônjuge sobrevivo; os colaterais até o 4º grau (art. 1.839). Específico quanto à concorrência do cônjuge com os descendentes e ascendentes no patrimônio particular ou exclusivo do falecido e, assim, sem qualquer relação com o direito próprio à eventual meação em bens comuns adquiridos na constância do casamento, este concorrerá: (a) com os descendentes, se ao tempo da morte não estava separado judicialmente ou nem tenha agido com culpa em separação fato de mais de 2 anos (art. 1.830) e, ainda, não for caso de regime de comunhão de bens ou de separação obrigatória (art. 1.829, I e 1.641), cabendo ao cônjuge sobrevivente, na concorrência com os descendentes (art. 1.829, I): (a.1) quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça e, (a.2) havendo filho comum, sua quota não pode ser inferior a ¼ da herança (art. 1.832);

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(b) com os ascendentes do falecido (art. 1.829, II, se forem de 1º grau (pais), independente do regime de bens adotado no casamento, o cônjuge terá direito a 1/3 da herança, mas em concurso com um só ascendente ou de grau superior haverá ½ do acervo (art. 1.837); (c) na falta de descendentes ou ascendentes, será deferida integralmente a sucessão ao cônjuge sobrevivo, seja qual for o regime de bens (art. 1.829, III, c.c. art. 1.838). Não havendo cônjuge, segue aos colaterais até 4º grau (art. 1.839) e, sem parente sucessível, ou tenham renunciado a herança, esta se devolve ao Município (art. 1.844).

3. Da união estável Virgílio de Sá Pereira (Direito de Família, Cap. VIII, 2ª ed., 1959), referenciando por Zeno Veloso, a propósito do processo de evolução do reconhecimento das uniões e, diante do fato social, o trabalho desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência à frente da lei, lapidou o seguinte parágrafo: ... o legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera; soberano não é o legislador, soberana é a vida, e a família é um fato natural, o casamento é uma convenção social: a convenção é estreita para o fato e este, então, se produz fora da convenção. Agora diz-me, pergunta o mestre pernambucano: “que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequeno ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isto? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural.” 11

11

VELOSO, Zeno, União Estável, Belém: Ed. Cejup e Min. Público do Estado do Pará, 1997, p. 14.

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3.1. Da Configuração da União Estável Vencida a resenha histórica, doravante ter-se-á como porta de ingresso no tema a Constituição de 1988, no § 3º do art. 226, reconhecendo a União Estável entre homem e mulher como entidade familiar. Primeiramente, é importante considerar que a União Estável, diferente do Casamento, constituído por solenidade e comprovado por certidão cartorária, é fato, dependente, como tal, de comprovação efetiva, tanto com vistas ao reconhecimento como à dissolução. Entretanto, dado que única referenciada pelo novo texto, temos que à sua configuração bastante será a apresentação de contrato escrito válido dispondo quanto às relações patrimoniais (art. 1.725, do CCB). Acerca da União Estável, a Lei nº 10.406/02, que institui o novo CCB, incorpora as disposições anteriores, Lei nº 8.971/94 e, especificamente, os pressupostos contidos na Lei nº 9.278/96, que regulamentou o § 3º, do art. 226, da CF, inscrita no Título III, Livro IV, Parte Especial, arts. 1.723 até 1.727. Em síntese, é reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher desimpedidos ao casamento ou que se acharem separados judicialmente ou de fato, sem prejuízo das causas suspensivas (art. 1.523 = equivalentes aos impedimentos dirimentes privados), configurada de forma pública, contínua e duradoura (art. 1.723 e §§ 1º e 2º).

3.2. Efeitos Advindos da União Estável 3.2.1. A União Estável, como entidade familiar reconhecida pelo texto constitucional e pelo novo Código Civil (CF, art. 226, § 3º; CCB, arts. 1.723 a 1.727), uma vez configurada, livre da interferência de qualquer pessoa na comunhão de vida da família (art. 1.513, do CCB), também produz efeitos sociais, na vida de relação dos conviventes com os demais familiares, criando vínculo de afinidade de cada convivente com os parentes do outro (art. 1.595), constituindo-se em legítima unidade familiar objeto de proteção do Estado.

3.2.2. Atinente aos efeitos pessoais, seguindo a moldura da Lei nº 9.278/ 96, art. 2º, que informa as relações entre os cônjuges, estabelece aos conviventes os deveres pessoais de lealdade, respeito e assistência, suprimin-

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do a terminologia consideração mútua, e de guarda, assistência e educação dos filhos (art. 1.724, do CCB). 3.2.3. Relativo aos efeitos patrimoniais, isto é, as relações econômicas vigentes no curso da União Estável, não havendo contrato escrito, aplica-se, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725, CCB), na esteira do que preconizava a Lei nº 8.971/94, art. 3º, e a Lei nº Lei nº 9.278/96, art. 5º. O Código não faz referência, no âmbito do Direito de Família, de estarem as relações comunitárias patrimoniais restritas aos bens adquiridos a título oneroso; todavia, no âmbito das Sucessões, isto é, na dissolução da União Estável em decorrência da morte de um dos consortes, faz incidir a sua participação apenas em relação aos bens adquiridos onerosamente na sua vigência (art. 1.790, caput).

3.3. Do Direito Alimentar Ultrapassada a fase remota e pós Constituição de 1988, a Lei nº 8.971/ 94, art. 1º., caput, disponibilizava à(o) companheira(o) a Lei de Alimentos, nº 5.478/68, e, por igual, a Lei nº 9.278/96 ratifica este direito ao convivente. O novo texto incorpora as disposições anteriores no mesmo patamar da relação matrimonial (1.694, CCB).

3.4. Das Decorrências Sucessórias Importa considerar, preliminarmente, que a legislação ordinária anterior, a começar pela Lei nº 8.971/94, art. 2º. e seus incisos, assegurava ao companheiro sobrevivo participação na sucessão do outro, a saber: I. usufruto legal de ¼ dos bens, se o de cujus tiver filhos; II. Usufruto de ½ dos bens, não existindo filhos, mas sobrevivam ascendentes do de cujus; III. na falta de descendentes ou ascendentes terá direito à herança (integral); e, ademais, no art. 3º, comprovando que os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a) companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens. Agora, o novo Código, art. 1.790 e seus incisos, atribui ao convivente sobrevivo participação na sucessão do outro, restrito aos bens adquiridos a título oneroso na sua constância, (I) em parte igual àquela atribuída ao filho comum; (II) concorrendo com descendentes só do autor da herança tocar-lhe-á a metade do que for atribuído à cada um deles; (III) concor-

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rendo com outros parentes sucessíveis, inclusive colateral de 4º grau, haverá 1/3 da herança; e, (IV) só na falta de parente sucessível, a integralidade da herança. Com efeito, o convivente deixa o 3º lugar da ordem de vocação hereditária, ficando em último; não ingressa, como herdeiro necessário, aos efeitos de limitar a testamentária; concorre com todos os parentes sucessíveis, apenas em relação aos bens adquiridos onerosamente e na constância da convivência, em percentuais inexpressivos; e, finalmente, não participa do acervo particular do extinto.

III. EXAME CRÍTICO DO NOVO DIPLOMA CIVIL Desde logo, as conclusões mais salientes, quanto aos efeitos dos casados e dos conviventes, apontam para uma equivalência de deveres; simetria nas relações econômicas, pertinente ao regime de bens e à pensão; e, ao Direito Sucessório, verificamos um importante desequilíbrio, retrocesso ao instituto convivencial. De outra parte, resta excluído da esfera de proteção especial o concubinato, a união livre de pessoas impedidas ou sem ânimo familiar, não por isso como uma ilha deserta, a desafiar os operadores do direito (art. 1.727, CCB). Ao encerramento de um ciclo, um novo se abre, tanto que, não raro, pipocam decisões judiciais reconhecendo direitos aos concubinos e à união de pessoas de mesmo sexo, não só na esfera previdenciária como também no âmbito do direito civil, no mínimo de natureza indenizatória, visando reprimir o enriquecimento ilícito, ou sem causa, seguindo os ditames dos arts. 884 a 886, do Código Civil Brasileiro.

1. Do direito de família Nesse campo do Direito Civil não constamos alterações essenciais, constituindo-se o texto reformador mera sistematização da legislação complementar ao Código anterior, considerando as disposições da Constituição Federal de 1988. Repisamos com certa recalcitrância, fê-lo um adequado trabalho de

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sistematização da legislação complementar ao Código de 1916, considerando que a própria Constituição Federal de 1988, pelo Capítulo VII do Título VIII, especial os §§ 3º, 4º e 5º do art. 226 e § 6º do art. 227, respectivamente, reconhece como entidade familiar, além do casamento, a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, igualando, em direitos e deveres, homem e mulher e, ainda, nivelando, ao proibir a discriminação, os filhos havidos ou não do casamento, ou por adoção. Com efeito, a União Estável, como evolução da sociedade de fato, inscrita no Título III, do Livro IV, Parte Especial, artigos 1.723 a 1.727, como já preconizava a Lei nº 9.278/96, ganha status de entidade familiar, incorporando-se em definitivo ao âmbito do Direito de Família em posição símile à decorrente do casamento, como opção dos conviventes sem impedimentos de constituir família, salvo a possibilidade de sua configuração havendo simples separação de fato da família matrimonial, por essa forma também legitimada, que não se confunde com a união concubinária. Quanto aos efeitos sociais, o Casamento e a União Estável, um constituído por solenidade e comprovado por certidão cartorária, a outra como fato dependente de comprovação, criam a família legítima, a entidade familiar matrimonial ou convivencional, estabelecendo vínculos de afinidade entre cada cônjuge ou companheiro com os parentes do outro (art. 1.595, §§ 1º e 2º, CCB). Pertinente aos efeitos pessoais, verificamos uma equivalência absoluta de deveres entre cônjuges e conviventes: fidelidade, vida em comum, mútua assistência, responsabilidade com a filiação, respeito e consideração (arts. 1.566 e 1.724, CCB). Os efeitos patrimoniais, referentes às relações econômicas no curso da comunidade de vida, afora a supressão do Regime Dotal e a introdução do Regime Matrimonial de Participação Final nos Aqüestos, nenhuma novidade em comparação à legislação anterior, ao Casamento o Código de 1916 e a legislação complementar, especialmente a nº 6.515/77 (Lei do Divórcio), e, relativo à União Estável, as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96, tendo como regra básica a comunicação dos bens adquiridos na constância da comunhão, permitindo, respectivamente, o pacto antenupcial ou a convenção contratual (arts. 1.639 e 1.640 e 1.725, CCB). No que diz com a pensão alimentícia, também matéria de natureza

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patrimonial, verificamos identidade nos beneficiários em virtude de Casamento e de União Estável, extintos por separação judicial ou de fato, divórcio e dissolução. A crítica vai para o sistema, o conservadorismo com que se comportou o legislador. Ao invés de limitar os seus tentáculos, ampliou o âmbito de abrangência, contraditoriamente às tendências jurisprudenciais e doutrinárias. Caminhava-nos no sentido de admitir a renúncia de alimentos pelos cônjuges em separação judicial ou divórcio, limitando a irrenunciabilidade preconizada pelo art. 404, do Código revogado, às relações de parentesco12 . Todavia, o diploma reformador não abraçou a hipótese da renúncia dos alimentos pelos cônjuges, e por extensão aos conviventes; ao contrário, reafirma no art. 1.707, embora genericamente, a impossibilidade, o que não significa calar a tendência dos tribunais e da doutrina. Fez mais o diploma sob comento, pelo § único do art. 1.704, combinado com o § 2º, abre a possibilidade da fixação judicial de alimentos indispensáveis à sobrevivência, os naturais, mesmo ao cônjuge declarado culpado da separação judicial litigiosa, desde que necessite e não tenha parente em condição de prestá-los e nem aptidão ao trabalho. Não obstante, mantida a obrigação alimentar em caso de divórcio (art. 1.709), o texto deixa evidenciado, ao nosso entendimento e consonante com a jurisprudência até então predominante, que a dissolução do Casamento, ou da União Estável, sem que nela haja fixação prévia (na separação ou em ação própria de alimentos), ou na própria sentença de decretação ou homologação do divórcio, afasta a possibilidade entre os cônjuges ou companheiros de reclamar alimentos entre si, muito embora devesse tê-la incluído dentre as causa de cessação arroladas no art. 1708.

2. Do direito sucessório No âmbito do direito sucessório, tomada a literalidade do texto civil em vigor, observa-se decisivo retrocesso, amesquinhando os direitos do convivente, com simultânea ampliação dos direitos do cônjuge sobrevivo.

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RODRIGUES, Silvio, op. cit., Direito de Família, Vol. 6, ps. 420/1.

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A propósito, Silvio Rodrigues enfrenta a questão e não deixa por menos: No entanto, ao regular o direito sucessório entre os companheiros, em vez de fazer as adaptações e consertos que a doutrina já propugnava, ... o Código Civil coloca os partícipes da união estável, na sucessão hereditária, numa posição de extrema inferioridade, comparada com o novo “status” sucessório dos cônjuges.13 Primeiro, tal o comando do art. 1.790, a participação de um convivente na sucessão do outro está limitada exclusivamente aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, de sorte que a transmissão da herança se faça em concorrência com os parentes sucessíveis do falecido no que exceder à sua meação e, assim, os bens particulares rumarão àqueles. Nessa linha de raciocínio, tão absurda quanto irreal, faz crer que, havendo somente bens particulares e sem herdeiros sucessíveis, esses serão devolvidos ao Município (art. 1.844). Sendo assim, se durante a união estável dos companheiros não houve aquisição, a título oneroso, de nenhum bem, não haverá possibilidade de o sobrevivente herdar coisa alguma, ainda que o “de cujus” tenha deixado valioso patrimônio, que foi formado “antes” de constituir união estável.14 Verdadeiro disparate, que deverá esbarrar no crivo do Poder Judiciário, dando à norma interpretação integrada, especialmente nos casos de inexistência de outros herdeiros sucessíveis e havendo patrimônio particular, de modo a permitir sua arrecadação pelo convivente remanescente à morte do outro. Não obstante, Maria Helena Diniz qualifica de solução humana haver o texto acolhido a presunção de colaboração mútua à formação de patrimônio15 . Nada mais natural, ultrapassada a fase primária, obrigacional,

13

RODRIGUES, Silvio, Direito Civil: Direito das Sucessões, SPaulo: Saraiva, v. 7, 25ª, 2002, p. 117.

14

Ibidem, p. 118.

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DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 6º Vol., Direito das Sucessões, São Paulo: Saraiva, 16ª

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de repressão ao enriquecimento ilícito ou sem causa, objeto os atuais arts. 884 a 886, do novo Código Civil, com a edição da Constituição Federal de 1988, art. 226, § 3º, a Lei nº 8.971/94, arts. 2º e 3º, e a Lei nº 9.278/96, art. 5º, que canaliza o instituto convencional à esfera da família (art. 9º, cit. Lei), a regra básica é a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da comunhão, dispensando o supérstite da comprovação de esforço comum na aquisição do patrimônio. De outra parte, pela Lei nº 8.971/94, na falta de descendentes ou ascendentes, ao convivente, tal como ao cônjuge, fixado no 3º lugar na ordem de vocação hereditária, ou legal, era atribuída a herança por inteiro. Agora, o novo CCB, pelo art. 1.790, estabelece concorrência desse com os parentes sucessíveis do falecido. O correto teria sido a manutenção da norma anterior, com o convivente sobrevivo à frente dos colaterais, em situação símile ao cônjuge. Não bastasse, fazendo um paralelo entre a concorrência do cônjuge com descendentes e ascendentes (art. 1.829, I e II, c.c. arts. 1.832 e 1.837) e o concurso do companheiro ou a companheira com os parentes do autor da herança (art. 1.790, I a IV), verifica-se substancial desigualdade: I) concorrendo com filhos comuns terá direito ao equivalente ao que a esses for atribuído, sem a reserva mínima de 1/4 atribuída ao cônjuge; II) concorrendo com descendentes só do autor da herança, terá direito à metade do que couber a esses, quando o cônjuge detém parte igual; III) em concurso com qualquer parente sucessível herdará 1/3 dos acervo, ao passo que o cônjuge excluiu os colaterais e arrecada toda a herança; e, enfim, IV) na falta de herdeiro sucessível, o convivente sobrevivo arrecadará toda a herança. Parece-nos que tal dispositivo, retrógrado, vulnera até mesmo o art. 226, § 3º, da Carta Magna, que reconhece a união estável como entidade familiar, tal como ao direito matrimonial, de sorte que tamanha distinção, no âmbito sucessório, retira-lhe um dos efeitos preponderantes, de assegurar à família nuclear, vinculada por laços afetivos, garantia patrimonial à sobrevivência pós morte do parceiro. Ademais, o cônjuge foi incluído na condição de herdeiro necessário, junto com os descendentes e ascendentes, caso em que o testador não pode dispor de mais da metade (50%) da herança (art. 1.789, c.c. art. 1.845) ou, em havendo excesso, da sua redução a esse limite (art. 1.967). O convivente, também neste particular, foi discriminado.

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Resta considerar, por fim, que o convivente sobrevivo, enquanto não constituir nova união, terá direito real de habitação no imóvel destinado à residência da família, por força residual do art. 7º, da Lei nº 9.278/96, prerrogativa assegurada ao cônjuge no art. 1.831, do Código vigente.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS Destarte, examinando o estatuto civil em vigência, resta evidenciado, de um lado, a aquisição de novo status ao cônjuge, desproporcional ao instituto da união estável, fazendo acreditarmos que o legislador que escreveu o Livro IV – Do Direito de Família não foi o mesmo que redigiu o Livro V – Do Direito das Sucessões, tamanha a façanha discriminatória perpetrada. Em síntese, permitimo-nos concluir que o Código Civil Brasileiro, recém lançado à regulação da vida social, como sendo a média consolidada do pensamento jurídico contemporâneo, produziu: (a) no âmbito do Direito de Família, um avançado processo de sistematização da legislação esparsa, trazendo algumas inovações pouco expressivas, donde vislumbramos haver retrocedido ao perpetuar o direito aos alimentos entre cônjuges e conviventes, sem que isso represente embaraço à marcha evolutiva experimentada pela jurisprudência; (b) todavia, na esfera do Direito das Sucessões, pertinente ao cônjuge e ao convivente sobrevivos, a norma é retrógrada, de uma dureza ímpar, colocando esse último em situação de inferioridade vexatória, enquanto amplia os direitos às relações resultantes do direito matrimonial, tanto quanto em não incluir o sobrevivo na condição de herdeiro necessário, como ao limitar sua participação na herança exclusivamente aos bens adquiridos na constância da convivência, deslocando-o, ainda, para o último grau da ordem de vocação hereditária legítima, em concorrência desproporcional, até mesmo com os parentes colaterais de 4º grau do autor da herança.

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As Espécies Tributárias em face da Constituição Federal de 1988 The Tributary Species according to the Brazilian 1988 Constitution MARIA EUNICE DE PAULA Mestranda em Direitos Especiais – UFRGS Professora de Direito Constitucional e Direito Tributário da ULBRA

RESUMO O conceito constitucional de tributo, traduzido na definição do art. 3º do Código Tributário Nacional, bem como as espécies estabelecidas na Constituição, funcionam como limitações materiais ao poder de tributar. A importância da determinação das espécies tributárias na Constituição é servirem de instrumentos de controle de constitucionalidade e legalidade da tributação, mediante a verificação de obediência ao regime jurídico específico. Palavras-chave: Tributo, gênero, espécie, regime jurídico.

ABSTRACT The constitutional concept of tribute, defined in 3rd article of the National Tribute Code, as well as the specimen established in the Constitution, work as material limitations to the power of taxing. Determination of the species’ importance in the Constitution is to serve as instrument for the constitutional control and lawfulness of taxation, by means of the obedience to the specific juridical regime. Key words: Tribute, kind, species, juridical regime.

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1. INTRODUÇÃO Sendo a tributação uma expropriação do patrimônio do particular, decorre lógica a sua antinomia com a liberdade individual. Deve, portanto, atingir o menos possível o bem protegido pelo Estado – a liberdade, e alcançar o máximo de bem buscado - o bem comum. Daí que a competência tributária não pode ser ilimitada e é a Constituição Federal que a determina. Ao atribuir a competëncia tributária, a Constituição estabelece a conotação de “tributo”, distribui parcelas do poder de tributar a cada esfera de governo, determina espécies diversas de tributos e impõe um regime jurídico próprio. A questão é, pois, identificar quais as espécies de tributos que a Constituição estabeleceu e com que função. A análise deve partir do texto da Constituição e sua interpretação deve ser desenvolvida dentro do contexto de significado dos valores por ela adotados.1 Para a verificação do sentido com que a Constituição tomou determinados valores ou utilizou determinadas expressões, as decisões do Supremo Tribunal Federal oferecem a interpretação do sistema, buscando na doutrina o substrato da sua composição. Mas nem sempre a posição é segura. O caso dos empréstimos compulsórios e das contribuições sociais terem ou não natureza jurídica tributária é exemplo irretocável disso.

2. GÊNERO E ESPÉCIE O gênero é dado pelas qualidades particulares, imprimidas por um regime jurídico determinado. Ao gênero pertencem as espécies com características comuns, ou seja, as características comuns determinam que uma espécie pertence a determinado gênero, de sorte que a este pode ser reconduzida.

1

ÁVILA, Humberto. Contribuições na Constituição Federal de 1988. In MACHADO, Hugo de Brito (Coord). As contribuições no sistema tributário brasileiro. São Paulo : Dialética / Fortaleza Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2003, p. 309.

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2.1 Tributo, natureza jurídica e regime jurídico A figura central do direito tributário é, sem dúvida, o tributo, tido como gênero que reúne espécies de características distintas entre si. Entre as regras constitucionais determinantes do regime jurídico tributário, anote-se a que fixa as funções da lei complementar em matéria de direito tributário, mais especificamente a função de definir o que seja tributo e suas espécies, afigura-se como uma limitação ao poder tributar. Em outras palavras, uma garantia do contribuinte. Mas a lei complementar não é livre para construir tais definições, devendo seguir os conceitos que decorrem da Constituição2 . A importância da definição reside na pacificação da interpretação do conceito, de tal sorte que se pode afirmar que imprime uma certificação: ou a exação se enquadra nela, ou é inconstitucional a exigência, e, se se enquadra, significa dizer que tem natureza jurídica tributária, devendo submeter-se ao regime jurídico tributário. Assim, quando queremos saber se é aplicável a regra da proibição de confisco num caso concreto, devemos verificar se se trata de tributo ou de matéria penal. No primeiro caso é vedado o confisco (art. 150, V, CF), no segundo, é previsto confisco (art. 5º, XLVI, b, CF). A definição de tributo funciona como um ícone do regime jurídico tributário. Ao gênero, tributo, são reconduzidas as espécies, porém, nem sempre o regime jurídico tributário se aplica integralmente, porque o próprio sistema cria subsistemas, ou seja, normas específicas a determinados institutos, que, quase sempre, melhor se coadunam com sua natureza jurídica também específica. Aliás, a justificativa das espécies é justamente a existência de vicissitudes tais que lhes dão características próprias, sem a perda daquelas do núcleo determinante ou ícone. Significa dizer que, quando a Constituição submete determinado instituto ao regime jurídico tributário, aos princípios tributários, ou limitações ao poder de tributar, integralmente ou não, é porque tem natureza jurídica tributária. O art. 3º do Código Tributário Nacional define tributo como sendo toda a prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

2

ÁVILA, Humberto. As contribuições..., p. 315.

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Com vistas nessa definição, é possível confundir tributo com outras obrigações compulsórias, v.g., o pagamento de 13º salário ou de participação nos lucros, do aluguel, do seguro obrigatório de veículos? Não estaria faltando, na definição, a qualificação do sujeito ativo, ou da sua natureza de direito público, como exação estatal, ou de sua finalidade de financiamento dos fins estatais? MISABEL DERZI aponta que “os tributos têm finalidade pública, pois são cobrados mediante atividade administrativa plenamente vinculada” 3 , dando, assim, sentido à expressão final da definição legal. Poderíamos dizer que nem sempre há esta atividade vinculada, pois os tributos normalmente são pagos de forma espontânea, assim entendido o cumprimento da lei independentemente de ação fiscal, mas, a cobrança, conforme o enunciado, esta sim é sempre mediante atividade vinculada e é este o termo utilizado pelo Código – a cobrança, e não o pagamento. RUBENS GOMES DE SOUZA define tributo como sendo a receita derivada que o Estado arrecada mediante o emprego de sua soberania, nos termos fixados em lei, sem contraprestação diretamente equivalente, e cujo produto se destina ao custeio de finalidades que lhe são próprias. 4 Por essa definição talvez se pudesse dizer que os tributos poderiam confundir-se com sanção por ato ilícito. O custeio de finalidades próprias não chega a determinar a identidade tributária, face sua amplitude de sentido. É uma definição menos suficiente que àquela do art. 3º do Código Tributário, pois, em princípio, poderia ser confundida com sanção por ato ilícito. LUCIANO AMARO tece comentários sobre a inadequação do conceito de tributo, propondo a seguinte definição: tributo é a prestação pecuniária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou a entidades não estatais de fins de interesse público. 5 Essa definição completaria a falta da qualificação do sujeito ativo, ou da sua (do tributo) natureza de direito público, como exação estatal, ou de sua finalidade de financiamento dos fins estatais. Entretanto, é possível concluir que tais elementos da definição são ínsitos do conceito de tributo na Constituição e no sistema: a regra de definição pode não estar só no artigo 3º do Código Tributário. Veja-se que nos artigos 119 e 7º, o Código define o sujeito 3

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2003, p. 63.

4

SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1975, p. 38 e 161.

5

AMARO, Luciano. Conceito e classificação dos tributos. In Revista de Direito Tributário. Cadernos de Direito Tributário. São Paulo. Ano 15 – nº 55, 239-296, jan/mar, 1991, p. 242.

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ativo da obrigação tributária e autoriza a atribuição de funções, ou seja, a capacidade ativa, revogável ad nutum, separando a competência tributária da capacidade tributária. Tais regras completam a construção da norma de definição de tributo e acodem questões da parafiscalidade. Assim, a conclusão é de que, sobre ser redundante, a definição de tributo denota a natureza jurídica tributária e é de utilidade indiscutível na aplicação do direito, cumprindo sua função limitadora da competência e de instrumento de controle de constitucionalidade. Em outras palavras, determinada a natureza jurídica tributária de um instituto jurídico, certamente a ele é aplicável o regime jurídico tributário. Porém, o regime jurídico tributário não é composto de regras homogêneas para todos os tributos. Fundamenta-se em regras gerais e regras especiais, dependendo do instituto em questão, ou seja, se se trata de contribuição especial, de taxa, e assim por diante. É que, como afirma HUMBERTO ÁVILA, “não há correspondência biunívoca entre natureza e regime, de tal sorte que, onde houver determinada natureza jurídica, necessariamente deverá haver o mesmo regime jurídico” 6 , referindo-se à diversidade de regimes jurídico-tributários, por exemplo, dos impostos, “que não conduz a naturezas jurídicas discordantes”.7 Ocorre que a Constituição, a par de atribuir competência tributária, estabelece regimes jurídicos mais consentâneos com as finalidades pretendidas. Assim, temos um regime que poderia ser chamado de geral, composto pelas regras comuns às diversas espécies tributárias, e regimes especiais, onde há derrogação de determinadas regras gerais ou ficam estabelecidas regras especiais, como, por exemplo, a exceção da aplicação da regra da anterioridade para o imposto de importação e a regra de vigência especial para as contribuições sociais de que trata o artigo 195, regras de validação para a instituição de tributos de espécies diversas ou da mesma espécie, como as taxas e as contribuições de intervenção no domínio econômico.

2.2 Espécie e função Boa parte dos doutrinadores divide os tributos em duas8 ou três9 espé6

ÁVILA, Humberto. As contribuições..., p. 316.

7

Ibidem, p. cit.

8

Como Alfredo Augusto Becker.

9

Como Rubens Gomes de Souza e Paulo de Barros Carvalho.

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cies: impostos e taxas ou impostos, taxas e contribuições de melhoria. Fundamentam-se, uns, na Constituição, outros no Código Tributário Nacional (art. 145, CF, art. 5º, CTN). Os que defendem a existência de apenas duas espécies propugnam que as contribuições de melhoria são também taxas e partem do exame da materialidade do fato gerador, ou hipótese de incidência, como denominado por Geraldo Ataliba. E os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais? Também são classificados assim: ou como impostos ou como taxas. Essa, a princípio, seria a razão do CTN não defini-los. A discussão nestas bases se dá ao pálio do art. 4º do CTN.10 É que o artigo 4º, diz Werther Botelho Spagnol11 , é fruto da teoria da glorificação do fato gerador, determinando como critério de identificação da natureza jurídica do tributo o seu fato gerador, o que é útil e necessário, mas insuficiente, principalmente com a conjugação dos incisos que determinam a irrelevância, para identificá-los, da denominação legal e demais características formais adotadas pela lei, e da destinação legal do produto da sua arrecadação. Por este critério, o gênero “tributo” comportaria apenas três espécies: impostos, taxas e contribuições de melhoria, porque a hipótese de incidência do tributo determinaria a vinculação, ou não, de uma atividade estatal diretamente ligada ao contribuinte. Se há vinculação, é taxa ou contribuição de melhoria, senão, é imposto. Assim, o artigo 4º estaria a determinar as espécies do gênero, apontadas depois no artigo 5º. Dúvida já não haveria sobre se é tributo ou não, mas sim quanto ao tipo ou espécie. Propõem-se uma interpretação diferente ao artigo 4º do CTN, para consagrar ali a natureza jurídica do gênero e não das espécies, ou seja, em última análise, o fato gerador determina a natureza jurídica do tributo, identificando sua compatibilidade com a definição (do art. 3º), de tal sorte que desimporta a denominação legal ou as demais características adotadas pela lei ou a destinação legal do produto da sua arrecadação. Estes elementos não têm suficiência para descaracterizar a natureza jurí10

Art. 4º. A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la:

I a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II – a destinação legal do produto de sua arrecadação. 11

SPAGNOL, Werther Botelho. As contribuições sociais no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 32.

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dica tributária, mas, como adjetivos, podem ser importantes para a definição das espécies de tributos. ALFREDO AUGUSTO BECKER professa ser o gênero resultante do núcleo e as espécies “conferidas pelos elementos adjetivos”.12 Rubens Gomes de Souza diz que “o tributo é, essencialmente, uma figura unitária por sua função. Esta, em quaisquer de suas modalidades ou espécies que se queiram admitir, é sempre a mesma: servir ao governo como meio legal para obtenção compulsória de ‘receitas derivadas”.13 Chega a prescindir de qualquer subdivisão, que qualifica como um “expediente prático de aplicação, ligado à atribuição das competências tributárias, especialmente ao que se chama, nos países federais (mas não necessariamente só neles) de ‘discriminação de rendas”.14 Hodiernamente a classificação dos tributos também é feita em cinco espécies distintas: impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais. Hugo de Brito Machado15 , Vittorio Cassone 16 e Márcio Severo Marques17 são autores que se alinham nessa classificação. Não obstante os critérios ligados ao art. 4º, CTN – de vinculação ou não do fato gerador a uma atividade estatal, têm utilidade como limitadores materiais ao poder de tributar, e é essa a sua função, impedindo, por exemplo, a instituição de imposto residual com roupa de taxa, o que contraria os arts. 154, I, e 157, II, da CF18 , ou taxa com roupa de imposto, o que se verificou inúmeras vezes, v.g., a instituição, pelos Municípios, da taxa de iluminação pública. Porque o critério material da taxa é um serviço público específico e divisível, fruído ou posto à disposição do contribuinte, a taxa de iluminação pública, por indivisível o serviço, taxa não é, mas imposto de iluminação pública, não previsto na Constituição19 , que

12 13

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3 ed. São Paulo : Lejus, 1998, p. 329. SOUZA, Rubens Gomes de. Natureza jurídica da contribuição para o FGTS. In Revista de Direito Público Cadernos de Direito Tributário, nº 17, p. 309.

14

Ibidem, p. cit.

15

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 10 ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 43 et seq.

16

CASSONE, Vittorio. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1992, p. 58.

17

MARQUES, Classificação..., p. 153 et. seq.

18

O art. 154, I, porque estabelece regime especial para a criação de imposto residual e o 157, II, porque diz pertencer aos Estados 20% da arrecadação com impostos residuais.

19

Bom, agora temos contribuição de iluminação pública”! Art. 149-A.

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inclusive veda a vinculação da arrecadação dos impostos (167, IV, CF) e, portanto, fora da competência municipal. São numerosos os julgados neste sentido. O problema, então, é justamente verificar se estes critérios, especialmente o da materialidade ou a base de cálculo, como preceitua Alfredo Augusto Becker20 , são suficientes para determinar ou indentificar todas as espécies tributárias que a Constituição Federal autorizou às diversas esferas a instituir, o que deságua em outra importante função quanto a verificação de suficiência, ou não, do controle de constitucionalidade das leis tributárias, enfim, do exercício da competência tributária. Podemos, de pronto, constatar que as decisões do judiciário sobre a matéria, em especial do Supremo Tribunal Federal21 , já não se atêm a apenas um critério de validação. Veja-se, por exemplo, o voto do Min. Maurício Corrêa, na decisão que, por maioria, interpretou o vocábulo utilizado tributos como se fosse impostos, diferenciando-os das contribuições sociais e considerou constitucional a exigência da COFINS, para empresas distribuidoras de derivados de petróleo, mineradoras, distribuidoras de energia elétrica e executoras de serviços de telecomunicações, em face da redação original do artigo 155, § 3º, da CF, verbis: “o que me resultou compreendido é que as contribuições sociais se constituem em modalidade tributária autônoma destinada ao financiamento de atividades estatais (…). Portanto, se assim é lícito defini-las, é a Cofins contribuição social que tem como destinação específica o financiamento da seguridade social, distinguindo-se umbilicalmente dos impostos, que não são vinculados”.22

20

BECKER, Teoria Geral..., p. 373.

21

Recurso Extraordinário nº 227.832-1, Tribunal Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso, DJU 28.6.2002. In: Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 146-176, jan. 2003.

22

No já citado RE 227.832-1, o Min. Maurício Corrêa referiu-se ao RE 146.733-9, rel. Min. Moreira Alves, DJU 6.11.92 – sobre a CSSL, lei 7.689/88, que fixou jurisrpudência quanto à sua natureza tributária e no RE 148.331-8, rel. Min. Celso de Mello, DJU 18.12.92, verbis: “ a qualificação jurídica da exação instituída pela Lei 7.689/88 nela permite identificar espécie tributária que, embora não se reduzindo a dimensão conceitual do imposto, traduz típica contribuição social, constitucionalmente vinculada ao financiamento da seguridade social”. Também colacionou o art. 217 do CTN, que retempera a exclusão de outras incidências, inclusive quanto o art. 74, § 2º, ‘excluindo da exclusão’ as contribuições.

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3 SISTEMA TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A constituição Federal de 1988 é denominada de Constituição Cidadã, isto porque integra um movimento de concretização de direitos, ou seja, pretende direitos não meramente formais, mas substanciais, movimento este característico da passagem do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito. Nesse diapasão propugna princípios de solidariedade e de justiça social que embebem todo o sistema jurídico nacional. Por evidente, a tributação surge como importante instrumento de realização destes fins. Lógico que a tributação é e sempre foi instrumento do Estado para o atingimento de seus fins e que os fins são e sempre foram de interesse público, coletivo, como uma razão mesma do Estado. Mas havia o império do direito formal em detrimento do direito substancial, problema ainda não resolvido integralmente, posta, por exemplo, a dicotomia entre o direito financeiro e o direito tributário ainda imperante. Há uma impossibilidade na reunião destes dois ramos do direito, pois a validade da lei tributária passaria a depender de fatos futuros, pertencentes ao mundo do “ser”, ou seja, o efetivo emprego do recurso nos fins indicados na lei, que condicionariam a sua validade, o que não é jurídico. Porém, a legislação também avançou na seara do direito financeiro, em especial da responsabilidade fiscal. O certo é que a Constituição de 1988 utilizou a tributação como instrumento fiscal e grandemente como instrumento de extrafiscalidade, distribuindo a competência de acordo com a área a ser financiada ou fins a serem atingidos em a) financiamento geral e b) financiamentos específicos e especiais, o que influi nos critérios clássicos de validação constitucional dos tributos. Assim, conformou uma série de princípios e regras de direito tributário, que atribuem e limitam competências, determinam fins a serem atingidos e os meios a serem utilizados para tanto, formando o sistema tributário.

3.1 Tributos autorizados na constituição de 1988 Embora o sistema tributário nacional tenha tratamento constitucional concentrado no título VI, Capítulo I da Constituição (arts. 145 e ss), já no artigo 7º surgem vários direitos sociais que apontam para a necessidade de promoção mediante a instituição de obrigações de direito privado, como o direito ao décimo terceiro salário, a participação nos lucros; ou

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mediante a intervenção ou interposição estatal, mais especificamente, a canalização de receitas públicas dirigidas aos cofres públicos ou a fins públicos. Trata-se, p. ex., do direito ao seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário e do direito a fundo de garantia por tempo de serviço (art. 7º, II e III). A divisão entre quais estejam aptos ao financiamento direto pela iniciativa privada e quais estariam a necessitar de intervenção ou concretização pelo poder público é questão que refoge os objetivos deste estudo. Interessa apontar que, de pronto, inexistindo outra regra constitucional em contrário, a nova ordem recepciona a legislação preexistente, evitando solução de continuidade. Desta forma, o seguro-desemprego vai encontrar, no artigo 239 da Constituição, a determinação de seu financiamento por receitas provenientes do PIS/PASEP, contribuições preexistentes, cuja legislação e bases mantém, redirecionando o produto da arrecadação. Já o FGTS, à míngua de outro dispositivo constitucional específico, é hipótese de recepção integral da legislação preexistente. No artigo 8º, IV parte final e VI, fica instituída a contribuição sindical, recepcionada, de igual sorte, a legislação pretérita. Assim também o capítulo da ordem econômica, da ordem social e do ato das disposições constitucionais transitórias, todos contêm dispositivos de natureza tributária. Quais, então, os tributos que a Constituição autorizou fossem instituídos? 23 Além dos tributos estabelecidos no capítulo próprio24 , considerando a complementação entre determinados dispositivos, como quanto a Cide (art. 149 e art. 177, § 4º) e quanto as contribuições sociais (arts. 149, 195, a até e, § 4º e 8º, art. 249, art. 40)25 , anunciam espécies de tributos: o art. 7º, III - fundo de garantia por tempo de serviço, o art. 8º, IV, parte final - contribuição sindical; o art. 201, § 10 - contribuição destinada a cobertura do

23

Esta consolidação utiliza àquela apontada pelo Prof. Humberto Ávila no artigo já citado, As contribuições…, p. 319, agregando as demais espécies tributárias e algumas contribuições, como o FGTS.

24

Art. 148, empréstimos compulsórios, art. 149, contribuições sociais, interventivas e corporativas, art. 153 e 154, impostos da União, privativos, de competência residual e extraordinária, art. 155, impostos dos Estados e Distrito Federal, art. 156, impostos dos Municípios.

25

Art. 195. Contribuições sociais incidentes sobre a) a folha de pagamentos, b) a receita ou o faturamento, c) o lucro, d) o salário de contribuição dos trabalhadores e demais segurados da previdência social, e) a receita de concursos e prognósticos; art. 195, § 4º e 249 - contribuições sociais residuais; art. 195, § 8º contribuição social sobre o resultado da comercialização da produção rural, art. 40 - contribuição previdenciária dos servidores públicos federais.

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risco de acidente do trabalho, o art. 212, § 5º - contribuição social do salário-educação, o art. 239, contribuição ao Programa de Integração Social e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, a financiar o seguro-desemprego (art. 7º, II) e abono anual, o art. 239, § 4º contribuição adicional a financiamento do seguro-desemprego da empresa com índice de rotatividade da força de trabalho superior ao índice médio da rotatividade do setor, o art. 240 - contribuições para entidades de serviço social e formação profissional; no ADCT, o art. 10, § 2º autoriza contribuições para o custeio das atividades dos sindicatos rurais, o art. 62, contribuição para o SENAR, nos moldes do SENAI e do SENAC, o art. 72, III e V autoriza alíquota superior da CSSL e PIS para as instituições financeiras, e o art. 74, a contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos de natureza financeira. Esta variedade de tributos poderá ser agrupada somente nas categorias clássicas de impostos, taxas e contribuições de melhoria? Significa dizer, o sistema tributário nacional se fundamenta apenas no critério da materialidade da hipótese de incidência? É ela suficiente para o controle de constitucionalidade de todos os tributos autorizados pela Constituição?

3.2 Espécies de tributos na constituição e critérios constitucionais de validação A resposta será negativa, não só quanto ao controle da constitucionalidade como da legalidade do tributo e suas vicissitudes. A análise, como já referido, deve partir do texto constitucional. A Constituição de 1988, a par de manter o critério clássico da materialidade, introduz um novo critério, um elemento do tipo, que é a finalidade para a qual é outorgada a competência para a instituição de determinado tributo, ou seja, a competência é condicionada a que a lei expresse a finalidade da instituição daquele tributo, a destinação que, pelo menos em tese, será dada ao produto da sua arrecadação. Assim, a Constituição ora proíbe a vinculação de receitas de determinados tributos (art. 167, IV), ora impõe como fundamento para a sua criação (art. 239, p. ex.). Estas disposições têm uma função no sistema: extremar espécies de tributos que se harmonizem com os fins estabelecidos pela Constituição e com a atribuição de competência. Exemplo disso, na prática, a decisão

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judicial que autorizou a compensação de contribuições da mesma espécie ou subespécies da mesma contribuição, recolhidas por homologação, independentemente de prévio acerto com a administração, nos termos do art. 170, do CTN e do art. 66, § 1º da lei nº 8.383/91. Embora o ranço da dicotomia entre tributos e contribuições, o ponto central do julgado considera justamente a obediência ao critério da espécie, subjacente como uma limitação imposta em virtude de suas diversas funções, ou finalidades, verbis: “não se pode compensar uma contribuição social de seguridade (Finsocial, Cofins, contribuição sobre o lucro) com uma contribuição social integrativa (PIS), dada a sua distinta finalidade. Mas, não, criar ‘códigos’ para abrigar contribuições da mesma espécie, - como são o Finsocial, a Cofins e contribuição sobre o lucro – distinguindo-as exatamente em função do que a lei considerou relevante para permitir a compensação ou a restituição, qual seja, a sua natureza jurídica”. 26 Da análise da Constituição emergem cinco espécies de tributos: os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais, cada qual com critérios de validação próprios.

3.2.1 Impostos e seus critérios de validação A CF atribui competência para instituição de impostos a todas as esferas de governo e, de plano, estabelece que devem, na medida do possível, ter caráter pessoal e serem graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (art. 145, I, § 1º). Isto porque, destina-se, o produto de sua arrecadação, a financiar os fins gerais do Estado, ou serviços públicos gerais, ou seja, aqueles prestados sem usuários determinados (uti universi)27 , que devem ter por base, por isso mesmo, o critério de justiça distributiva. A atribuição de competência para instituir impostos não é genérica, mas sim discriminada. Ao nominar os impostos dos arts. 153, 155 e 156, o constituinte apontou o núcleo, o aspecto material da hipótese de incidência, delimitando e, por conseqüência, limitando, uma competência

26

Ap. Civ. 1999.02.01.062.332-5-RJ. 1ª T, TRF 2ª Região, rel. Des. Carreira Alvim, j. em 18.4.2000. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 37, p. 312, mar./abr., 2001.

27

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestro Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 300.

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material, ou seja, ao deferir à União a competência para instituir imposto, v.g., sobre a renda, ou sobre produtos industrializados, suprimiu igual competência às demais esferas de governo. Nem no exercício da competência residual deferida somente à União é possível instituir outros impostos com base na mesma materialidade da hipótese de incidência dos impostos discriminados no artigo 153. Em princípio seria um expediente até desnecessário, pois tais impostos discriminados poderiam ser majorados, ou terem adicionais, evitando, assim, o exercício da competência residual, que é mais complicado. Exige lei complementar, o imposto deve ser não-cumulativo. Mas ocorre que a limitação da escolha da hipótese de incidência estende-se àquelas dos impostos dos Estados e dos Municípios, pois a definição da materialidade do imposto também e sobremaneira, impede o trânsito da competência entre as esferas de governo e também entre as espécies tributárias, exceto quanto os empréstimos compulsórios e algumas contribuições. A materialidade tomada pela Constituição, depois pela lei complementar e pela lei ordinária, é signo de capacidade contributiva e a base de cálculo do imposto deve manter correlação lógica e razoável, traduzindo o signo em realidade na obrigação tributária a ser suportada pelo contribuinte. Pela correlação lógica e razoável entre a materialidade e a base de cálculo, impendese a verificação do princípio da igualdade, da capacidade contributiva e da proibição de confisco28 , bem como o critério de verificação do sujeito passivo da obrigação tributária, que é a conexão (relação de fato) com o núcleo (aspecto material) da hipótese de incidência, devendo o exegeta identificar a conexão em vista do fato imponível.29 A materialidade como critério de validação de imposto discriminado na Constituição limita a competência, a uma, identificando uma espécie e, a duas, limitando o campo de incidência. Muitos são os pleitos judiciais onde é discutida a incidência tributária, como por exemplo, o ISS sobre franchising. Decisão da 1ª Turma do STJ no sentido de desqualificar o contrato de franchising como de prestação de serviços porque representa uma cessão de direitos onde eventuais serviços são atividade-meio e não atividade-fim, sendo que só estas últimas podem ser alcançadas pelo ISS. O argumento 28

MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições Sociais no Sistema Tributário. 2 ed. rev. e atual. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 42- 43.

29

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência. 5 ed. São Paulo : Malheiros, 1997, p. 77-78.

30

Recurso Especial nº 222246-MG, 1ª T. STJ, j. 13.6.2000, rel. Min. José Delgado, DJU 4.9.2000. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 38, p. 281-289, mai./jun., 2001.

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jurídico é de que a materialidade da hipótese de incidência não pode decorrer de ficção legal, pena de sacrificar “todos os princípios e garantias jurídicos. Não haveria necessidade de um sistema tributário discriminando, por exemplo, a competência municipal quando fosse dado à lei considerar como ´serviço´ aquilo que na realidade (jurídica) não o é”. 30 Semelhantes fundamentos na decisão do Tribunal Pleno do STF31 , pela inconstitucionalidade da expressão “locação de bens móveis” contida no item 79 da lista anexa ao Decreto-lei 406-68. A Lei Complementar 116, de 2002, excluiu a locação de bens móveis da lista de incidência, no entanto, manteve a franquia como “serviço” sujeito ao ISS.

3.2.2 Taxas e seus critérios de validação As taxas são previstas e definidas, no art. 145, II da CF como tributos a serem instituídos e cobrados em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, não podendo ter base de cálculo própria de impostos. Da definição constitucional se verifica que as taxas são tributos vinculados a determinados fins: contraprestacionar uma atividade estatal que o contribuinte deu causa, v.g., exercendo uma atividade considerada de risco ou interesse social que exija a fiscalização por parte do poder público (poder de policia: vigilância sanitária, licença para construção, etc.), ou serviço público específico, determinado, v.g., a prestação jurisdicional, que pode ser quantificada individualmente pelo respectivo uso efetivo, ou mesmo pelo uso potencial de um serviço público específico e divisível, que ocorre quando o poder público estabelece, cria, constrói estruturas de serviços cujo uso não é obrigatório mas o pagamento sim 32 , posto que ficam disponíveis ao contribuinte para quando e se quiser utilizar tais serviços, v.g., os serviços de água, esgoto e corpo de bombeiros. A especificidade do serviço público não é suficiente para ensejar a cobrança de taxa, devendo ser divisível, ou seja, passível de verificação do quantum utilizado pelo contribuinte. Daí a impropriedade de instituir taxa

31

Recurso Extraordinário nº 116.121-3-SP, redator para o acórdão Min. Marco Aurélio, j. 11.10.2000. DJU 25.5.2001. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo : Revista dos Tribunais, nº 39, p. 255-271, jul./ago., 2001.

32

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10 ed. rev. e atual por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro : Forense, 1994, p. 353.

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para fazer frente a gastos públicos que não sejam suscetíveis de divisibilidade em unidades autônomas. A taxa de iluminação pública é exemplo cabal disto. O Tribunal Pleno do TJRS julgou inconstitucional lei que instituiu taxa de iluminação pública, “porquanto violados os princípios da divisibilidade e especificidade que caracterizam a taxa” 33 afigurandose um imposto vinculado, o que é vedado pela Constituição, conforme art. 167, IV. Porque há serviços públicos que, embora prestados à coletividade são usufruídos uti singuli, e porque mensuráveis, devem ser remunerados por taxas34 . Porque a materialidade da hipótese de incidência é uma atividade estatal determinada, específica, que é utilizada ou posta à disposição do contribuinte, não podem as taxas ter base de cálculo própria de impostos, pois estariam invadindo a competência determinada constitucionalmente, já que a base de cálculo é a expressão de grandeza da materialidade da hipótese de incidência que identifica a espécie “imposto”. Nesse sentido a decisão do STF de que “a escolha do valor do monte-mor como base de cálculo da taxa judiciária encontra óbice no artigo 145, § 2º da Constituição Federal, visto que o monte-mor que contenha bens imóveis35 é também base de cálculo do imposto de transmissão causa mortis e inter vivos (CTN, artigo 33)”.36 Quanto a previsão legal da destinação do produto da arrecadação, o STF decidiu que a “vinculação das taxas judiciárias e dos emolumentos a entidades privadas ou mesmo a serviços públicos diversos daqueles a que tais recursos se destinam subverte a finalidade institucional do tributo”37 , “ofensa ao princípio da igualdade”.38

3.2.3 Contribuições de melhoria e seus critérios de validação A contribuição de melhoria, cuja competência é chamada de comum, porque todas as esferas de governo foram com ela contempladas pelo art. 33

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 591092374, TJRS, Tribunal Pleno, rel. Des. Décio Antônio Erpen, j. 24.8.92. Disponível em: Acesso em 2 de junho de 2003.

34

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo…, p. 300.

35

Antes da Constituição de 1988 o imposto de transmissão causa mortis incidia somente sobre a transmissão de bens imóveis.

36

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2040, Paraná, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 15.12.1999, DJU 25.02.2000. Disponível em: Acesso em: 3 de junho de 2003.

37

Idem.

38

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1145 - Paraíba. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j.

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145, III, da CF 39 , como é claro, de comum tem o nome, pois cada qual recebe a competência para instituir contribuição de melhoria pelas obras que realiza nos seus limites territoriais. Alguns autores concluem que a contribuição de melhoria, malgrado o nomen juris, tem natureza jurídica de taxa, pois teria por fato gerador a remuneração de uma atividade estatal, não exatamente um serviço, mas uma obra pública. De fato, é comum a existência de taxas de conservação de vias públicas, que ora são remuneradas por pedágio, ora por taxas de calçamento acolhidas como legítimas (súmula STF 129), considerando contribuição de melhoria apenas o tributo que obedece as “normas complexas do decreto-lei 195, de 1967”.40 Ocorre que a Constituição Federal não estabeleceu diretamente a atividade estatal como hipótese de incidência da contribuição de melhoria, mas sim a melhoria, a valorização que decorre da obra pública e não a própria obra pública, ou seja, uma referibilidade indireta com a obra pública, diferentemente da taxa, cuja referibilidade é direta,41 entretanto decorra do serviço prestado e não diretamente da obra. Tanto o aspecto material é a melhoria que o fato da obra, por si só, pode não causar valorização e ai não se fala em tributação de melhoria porque melhoria não houve, pode, inclusive, que haja pioria, fundamentando indenização aos proprietários prejudicados. A conclusão é que, se a hipótese de incidência da contribuição de melhoria é a valorização imobiliária causada por obra pública, longe está de compartilhar a mesma natureza jurídica da taxa, configurando-se numa terceira espécie de tributo cujo critério financeiro é o reconhecimento de que, apesar de benefícios gerais, a obra pública traz especiais vantagens para determinadas pessoas e que este círculo especial de pessoas é que deve devolver à comunidade o benefício da valorização imobiliária que receberam (…) por razões de justiça e isonomia.42 Não há vinculação da receita da contribuição de melhoria com a obra, ou seja, para cobrir os gastos com a obra,43 nem correlação do preço desta com a base de cálcu-

39

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. 40

Recurso Extraordinário nº 75769, MG, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, j 21.9.1973. Disponível em: Acesso em:3 de junho de 2003.

41

MARQUES, Mário Severo. Classificação constitucional dos tributos. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 182-183.

42

ATALIBA, Hipótese…, p. 152-155.

43

MARQUES, Classificação..., p. 185.

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lo da contribuição, razão pela qual alguns autores consideram que o complicado procedimento estabelecido pela lei complementar 195 é descabido, além de extrapolar a função das normas gerais em direito tributário, limitando a competência tributária de forma inconstitucional.

3.2.4 Empréstimos compulsórios e seus critérios de validação Os empréstimos compulsórios44 fazem parte do elenco de tributos de competência exclusiva, privativa da União. Na literatura tributária majoritária os empréstimos compulsórios são classificados como impostos (impostos de escopo) ou taxas, dependendo do caso concreto. Ocorre que os impostos são receitas não vinculadas e definitivas, enquanto os empréstimos compulsórios são vinculados a uma finalidade constitucional e trazem, no próprio nome, a qualidade de empréstimo, ou seja, que a quantia arrecadada deve ser devolvida em certo tempo. Quando a Constituição prevê tais exações apenas nas situações que indica, quais sejam, para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; e no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, vinculando os recursos a despesa que fundamentou sua instituição, verifica-se que de imposto não se trata, muito embora o legislador complementar possa colher como hipótese de incidência um fato que independa de atividade estatal, ou seja, a materialidade de um imposto discriminado na Constituição, a vinculação da receita à causa de sua instituição deve fazer parte da hipótese de incidência, ou empréstimo compulsório não haverá. Também não é possível reconduzir à figura das taxas, porque as causas que fundamentam sua instituição, na Constituição de 1988, não são vinculadas ao contribuinte. Trata-se de espécie distinta de imposto, de taxa e também, por óbvio, de contribuição de melhoria. Mesmo que se considerasse que a hipótese de incidência fosse a despesa ou o investimento público, não se confundiria com a hipótese de incidência da contribuição de melhoria, que é a valorização imobiliária decorrente de obra pública. 44

Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:

I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, b. Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

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Deste modo, o critério de validação pela hipótese de incidência procede ao se considerar como integrante dela a finalidade, a afetação da receita, e prazo de devolução. Assim teríamos uma hipótese de incidência com sete aspectos ou elementos: pessoal, material, espacial, temporal, quantitativo, finalidade e prazo de devolução.

3.2.5 Contribuições especiais e seus critérios de validação As contribuições especiais são assim denominadas para diferenciaremse das contribuições de melhoria as quais, grosso modo, também podem ser chamas de especiais, já que o critério de identificação destas espécies é a afetação a determinado grupo de pessoas – ligadas ao benefício especial ou especial detrimento ao Estado45 . Elas formam um elenco de tributos que alguns doutrinadores clássicos também reconduzem ou à figura do imposto ou à da taxa. São várias tais contribuições. O artigo 14946 nomina três subespécies: contribuições sociais, contribuições de intervenção no domínio econômico e contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Os pontos comuns das contribuições especiais de que trata o art. 149, são: a) de competência exclusiva da União, ressalvada a contribuição que os Estados, Distrito Federal e Municípios podem instituir e cobrar de seus servidores para financiar sistema próprio de previdência e assistência social (149, § 1º); b) o legislador federal, na maioria dos casos, atribui a capacidade tributária 47 a pessoas jurídicas de direito público ou privado, normalmente autarquias, instituídas para o exercício de atividades com finalidade pública ou de interesse público ou exercendo atividade de interesse público, uma espécie de longa manus do Estado, para as quais são canalizadas tais receitas públicas derivadas, sendo os institutos de previdência o exemplo mais categórico desta atribuição de funções e, c) característica terceira, e mais importante, são tributos que a Constituição Federal manda vincular a determinadas finalidades, de tal sorte que o requisito integra a hipótese de incidên-

45

ATALIBA, Hipótese…, 152-153.

46

A Emenda Constitucional nº 39 acrescentou o parágrafo segundo ao art. 149, e estabeleceu uma série de qualificações para as contribuições interventivas no setor econômico, e o art. 149-A, autorizando os Municípios e o Distrito Federal a instituir contribuição de iluminação pública, esta com conotação inteiramente diversa das demais contribuições.

47

Atribui as funções de que trata o art. 7º do CTN.

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cia tributária. Os institutos de previdência são o exemplo mais categórico desta espécie tributária. Cada uma dessas contribuições tem finalidade específica. Vale dizer, a Constituição Federal atribui competência para instituir a contribuição vinculando a arrecadação ao financiamento de determinadas finalidades. A Constituição quer, com isto, garantir o custeio e a promoção de determinados fins, que, consoante análise das contribuições autorizadas, abrigam valores protegidos pelo ordenamento (solidariedade social, dignidade da pessoa humana, etc). Por estas mesmas razões, têm regime jurídico próprio, que se qualifica por alteração de uma ou de algumas das regras do regime geral. Estas contribuições previstas no artigo 149, especialmente as contribuições sociais, (assim como os empréstimos compulsórios), estão a salvo da proibição da duplicidade da base de cálculo (…) inteligência dos artigos 145, § 2º, 149, 154, I e 155, inciso II e § 3º; 48 não se aplicando a segunda parte do art. 154, I. 49 A vedação do art. 154, I da CF não atinge esta contribuição (salário-educação), somente impostos, não se tratando de outra fonte para a seguridade social, quando a Constituição define a finalidade: financiamento do ensino fundamental e o sujeito passivo da contribuição, as empresas, não resta dúvida de sua constitucionalidade.50 A conclusão é que o critério de validação das contribuições especiais está exclusivamente direcionado à finalidade da arrecadação, ou seja, de que a lei que institui a contribuição determine a finalidade dos recursos arrecadados, fazendo parte da hipótese de incidência, de tal sorte que, faltando este aspecto ou elemento, inocorre incidência e se afigura inconstitucional a exigência. Vê-se, assim, que a contribuição para o custeio dos serviços de iluminação Pública, autorizada pela Emenda Constitucional nº 39, art. 149-A, representa uma equivocada “solução” do Poder Constituinte derivado para o problema da inconstitucionalidade da “taxa de iluminação públi-

48

Tratando do AFRMM, contribuição interventiva: RE 186.862, PR, rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.09.1995, DJU 17.11.1995. Disponível em: Acesso em: 3 de junho de 2003.

49

Tratando da contribuição social criada pela lei complementar 84/96: RE 223.085,Paraná. STF, 1ª T, rel. Min. Moreira Alves, j. 27.10.1998, DJU 12.02.1999, in http://gemini.stf.gov.br/

50

Ação Direta de Constitucionalidade nº 3. STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Nelson Jobim, j. 1.12.1999, DJU 09.05.2003. Disponível em: Acesso em: 3 de junho de 2003.

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ca”, que os Municípios insistentemente instituíam e cobravam. A referida contribuição refoge dos critérios de especificação das contribuições, voltados para o especial benefício e especial gasto, configurando-se como um imposto com destino especial. Além disto, a possibilidade de alargamento da competência tributária parece inexistir, pois, quando o Constituinte originário quis, atribuiu competência residual, o que se sabe, não foi em favor dos Municípios!

4 CONCLUSÃO A Constituição Federal determina a conotação de tributo como gênero e estabelece distintas espécies. Às características do gênero são acrescidas outras, que justamente extremam as espécies entre si, mas as reconduzem ao gênero. Assim, o fato do artigo 145 dispor que compete às diversas esferas de governo instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria, não significa que apenas estas espécies tributárias foram previstas. Mais correto é concluir que se encontram designadas separadamente de outras, porque atribuídas de forma comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. As demais espécies tributárias, a par de serem de competência exclusiva e especial da União, têm vicissitudes que implicam em regras especiais, que o constituinte tratou de modo geral nos artigos 148 e 149 e mais especificamente nos dispositivos constitucionais atinentes ao ordenamento da matéria pertinente aos fins buscados pelo Estado, a cujo financiamento justamente se vinculam tais tributos. As espécies tributárias se afiguram como técnica de tributação, limitando a competência tributária entre as diversas esferas de governo e internamente a cada uma delas, vedando o trânsito de uma para outra espécie, postos os critérios de validação e, em última instância, concretizando o princípio da segurança jurídica. A identificação das espécies de tributos, além de determinar o campo de ação de cada esfera de governo, identifica o regime jurídico a que se sujeitam, isto porque a Constituição não estabeleceu um regime único. Pode-se afirmar que há um regime geral e regimes especiais que dele variam por suprimir ou acrescer regras específicas em função dos objetivos a serem atingidos pelo Estado através da tributação. Em conclusão, a

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importância da determinação das espécies tributárias na Constituição deve-se a servirem de instrumentos de controle de constitucionalidade e legalidade da tributação, mediante a verificação de obediência ao regime jurídico específico.

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Dossiê terrorismo, tortura e direitos humanos

O terror e o ataque às liberdades civis* Terror and the Attack on Civil Liberties RONALD DWORKIN Ronald Dworkin é Frank Henry Sommer Professor of Law na New York University School of Law. Autor de diversos livros, dentre eles “ Uma questão de princípio”, “O império do Direito” e “Levando os direitos a sério”.

RESUMO A partir de uma crítica das restrições das liberdades civis, a desde 11 de setembro de 2001, o jurista propõe um modelo de combate ao terrorismo que seja compatível com o exercício das liberdades civis. Palavras-chave: Terrorismo, restrição de direitos fundamentais, direitos civis.

ABSTRACT From a critical review of civil liberties restrictions since September eleven, the jurist proposes a terrorism combat model compatible with the exercise of civil liberties. Key words: Terrorism, restriction of fundamental rights, civil rights Dois anos se passaram desde a catástrofe de 11 de setembro, e os norte-americanos permanecem em grande perigo. O perigo é de dois tipos, e

* Publicado originalmente em The New York Review, Volume 50, Número 17, 6 de novembro de 2003, aqui reproduzido com autorização do autor e da revista, o que agradecemos. Trad. Roberto Cataldo Costa.

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o primeiro – mais ataques terroristas – é evidente. Terroristas bem financiados, que moram em diversos países estrangeiros e neles recebem treinamento, estão determinados a matar norte-americanos e, para tanto, dispostos a morrer. Se obtivessem acesso a armas nucleares, seriam capazes de causar danos ainda mais terríveis. O segundo perigo, menos evidente, é auto-imposto. Em sua resposta a essa grande ameaça, o governo Bush ignorou ou violou muitos direitos e liberdades individuais fundamentais, e agora é preciso que nos preocupemos com uma transformação, para pior, do caráter de nossa sociedade. O governo ampliou em muito a vigilância sobre os cidadãos e a coleta de informações a seu respeito. Muitas centenas de prisioneiros, alguns dos quais são cidadãos dos Estados Unidos, foram detidas indefinida e secretamente, sem acusação ou acesso a um advogado. O governo ameaça executar alguns após serem julgados por um tribunal militar especial, onde não haverá as tradicionais salvaguardas destinadas a impedir a condenação de inocentes. Tem havido um grande número de críticas intensas a essas políticas por parte de grupos que trabalham em prol das liberdades civis, jornalistas, conservadores que se preocupam com a liberdade, e outros. Muitos desses críticos argumentam que as políticas do governo são inconstitucionais ou ilegais à luz do direito internacional. Concordo com eles, mas o governo tem tido um êxito surpreendente em persuadir juízes federais a manter suas políticas diante de questionamentos jurídicos,1 e os juristas 1

Tribunais federais sustentaram, por exemplo, que o país não têm controle suficiente sobre Guantánamo para que se force o governo a permitir o requerimento de habeas corpus em nome dos prisioneiros (vide Al Odah v. United States, 321 F.3d 1134, D.C. Cir. 2003, e Ctr. for Nat’l Sec. Studies v. DOJ, 331 F.3d 918, D.C. Cir. 2003), e também sustentaram as posições do governo, segundo as quais os tribunais não têm poder para revisar a designação, por parte do presidente, de indivíduos capturados em uma zona militar, como combatentes inimigos (vide Hamdi v. Rumsfeld, 337 F.3d 335, 357, 4th Cir. 2003). Em minha opinião, essas decisões são equivocadas. A decisão sobre se um território está suficientemente sujeito à soberania dos Estados Unidos para que a autoridade norte-americana deste país deva respeitar a concessão de habeas corpus depende de a soberania ser efetiva, e não de ser permanente. Sendo assim, o fato de que o controle norte-americano da base de Guantánamo só é garantido por um aluguel de longo prazo é irrelevante. O tribunal, em sua decisão sobre o caso Hamdi, citou a designação do presidente como comandante-em-chefe pela Constituição, mas essa designação não significa que os tribunais sejam privados de seu poder normal de proteger indivíduos da autoridade governamental arbitrária, mesmo em tempos de guerra. O governo também se baseia na decisão da Suprema Corte, de 1942, sobre o caso Quirin, segundo a qual os espiões nazistas que haviam chegado aos Estados Unidos com planos de sabotagem, incluindo um cidadão do próprio país, poderiam ser julgados por um tribunal militar e executados sem exame judicial substantivo (vide Ex Parte Quirin et al.; US ex rel. Quirin et al. v. Cox, Provost Marshal 317 US 1). Aquela decisão foi lamentável, até mesmo sórdida. Vide meu artigo “The Threat to Patriotism,” The New York Review, 28 de fevereiro de 2002. De qualquer forma, a decisão é um precedente inadequado para a recusa do governo Bush de permitir que detentos questionem sua situação de combatentes inimigos e lhes dar acesso a advogado. Os sabotadores nazistas admitiram agir como espiões para uma potência estrangeira inimiga, e foram representados por advogados muito qualificados, incluindo

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internacionais estão divididos com relação a se nossas práticas violam ou não qualquer de nossas obrigações previstas em tratados.2 De qualquer forma, muitos dos que defendem tais políticas do governo afirmam que questões de legalidade são quase irrelevantes em tempos de emergência nacional. Eles dizem, como expressou o presidente da Suprema Corte, William Rehnquist, que nas guerras, as leis “falam com voz silenciosa”3 Devemos, assim, tratar de uma questão distinta e mais básica: se as políticas do governo são indefensáveis, mesmo que sejam legais, porque violam os direitos humanos fundamentais das pessoas – os quais fazem parte dos alicerces da ordem moral internacional que as nações devem respeitar, mesmo estando sob ameaça. Caso o sejam, essas políticas não são apenas equivocadas, mas também vergonhosas. 1. A lei chamada de USA Patriot Act, apresentada pelo governo e

2

A questão sobre se o tratamento dado pelos Estados Unidos aos prisioneiros em Guantánamo, no Iraque e em outros lugares viola o direito internacional depende em muito da interpretação da Convenção de Genebra, que é um conjunto complexo de tratados e protocolos, cada um ratificado por, pelo menos, 156 países (os Estados Unidos assinam algumas partes da Convenção, mas não outras; uma questão sobre a qual os juristas internacionais se dividem é se, dado que tantos outros países assinam todas as partes da Convenção, o país deve respeitar até mesmo aquelas disposições que não ratificou, pois todas representam, atualmente, o direito internacional consuetudinário). A Convenção distingue dois principais casos de pessoas que uma nação captura em uma ação militar: as que estão atuando como agentes de outro país com o qual ela esteja em guerra e as que estão agindo, na condição de civis, por conta própria. Estas podem ser processadas como criminosas; as primeiras devem ser tratadas como prisioneiros de guerra, desde que cumpram outras condições: devem lutar sob um comando responsável, portar abertamente suas armas, usar um sinal fixo e reconhecível, como um uniforme, e obedecer, elas próprias, às leis da guerra. Segundo as interpretações do governo Bush, essas disposições possibilitam uma terceira categoria, a que chama de “combatentes ilegais” (termo inexistente na Convenção de Genebra), com o qual denomina aqueles que não têm direito ao status de prisioneiro de guerra porque não usam uniformes ou não obedecem às leis da guerra, por exemplo, mas que, mesmo assim, podem ser detidos sem acusações penais porque pegaram em armas como parte de um grupo organizado. A interpretação tem sido amplamente questionada (vide, por exemplo, Knut Dörmann, “The Legal Situation of Unlawful/Unprivileged Combatants”, The International Revue of the Red Cross, Vol. 84, No 849, Março de 2003). De qualquer forma, o Artigo 5 da Terceira Convenção de Genebra, ratificada pelos Estados Unidos, exige que os signatários formem tribunais para determinar se prisioneiros específicos têm direito ao status de prisioneiro de guerra, quando houver dúvida. O Primeiro Protocolo Adicional, que os Estados Unidos assinaram, mas não ratificam, especifica essa exigência muito mais detalhadamente: cada prisioneiro deve ser tido como apto a receber status de prisioneiro de guerra e pode questionar qualquer reclassificação diante de um tribunal “competente”. O governo se recusa a reconhecer essas outras exigências do protocolo, e insiste em que não há dúvidas de que os que foram detidos não têm direito àquele status.

3

Discurso do Presidente da Suprema Corte, William H. Rehnquist, no centenário da Norfolk and Portsmouth Bar Association, 3 de maio de 2000 (transcrição disponível em www.supremecourtus .gov/publicinfo/ speeches/sp_05-03-00 .html). Contudo, Rehnquist também alertou que “é muito fácil escorregar de um caso de verdadeira necessidade militar...para um em que a ameaça não seja crítica e o poder [que se busca exercer é] seja dúbio ou inexistente”, e que é “desejável e provável que os tribunais prestem uma atenção mais cuidadosa às afirmações que o governo faz sobre a necessidade como base para restringir a liberdade civil”. Vide sua obra All the Laws But One (Vintage, 2000), p. 224–225.

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aprovada às pressas pelo Congresso quase que imediatamente após o 11 de setembro, legalizou uma definição incrivelmente ampla de terrorismo, incluindo, por exemplo, atos violentos “destinados a influenciar a política de um governo por meio de intimidação ou coerção”, donde uma pessoa é culpada de contribuir com o terrorismo se doar dinheiro a qualquer grupo que tenha essa finalidade. A lei ampliou em muito o poder do governo para levar a cabo buscas secretas em domicílios privados, permitiu que o procurador-geral detenha estrangeiros quando quiser, na condição de ameaças à segurança, estipulou novas regras autorizando o governo a requisitar informações sobre as compras de livros ou empréstimos em livrarias e bibliotecas feitos por qualquer pessoa, e aumentou de várias outras formas a autoridade do governo para vigilância. Um relatório recente de um inspetor interno do Departamento de Justiça apontou inúmeras violações de direitos civis na aplicação da lei.4 Mais de 650 prisioneiros estão atualmente no campo de detenção do governo na Baía de Guantánamo, de forma anônima e em condições severas.5 Detentos de outros campos nos Estados Unidos, no Iraque, em Bahrein e no Afeganistão, e na ilha Diego Garcia, de propriedade britânica, no Oceano Índico, entre outros locais, estão sujeitos a interrogatórios violentos e coercitivos, que incluem surras, negativa de medicação contra a dor, privação do sono e ruído alto com intenção de causar desorientação. Há boas razões para preocupação com que esses prisioneiros sejam torturados, e que os recalcitrantes sejam entregues a países onde esse tipo de tortura é rotina.6 Os tribunais militares que o governo ameaça usar para julgar alguns desses detentos são designados pelo Departamento de Defesa e têm poder de impor sentenças, incluindo a pena de morte, sem as salvaguardas normais do processo penal (por exemplo, provas baseadas em testemunhos indiretos e confissões involuntárias são admissíveis se tiverem “valor probatório para uma pessoa razoável”). Não existe recurso, exceto ao

4

Vide Philip Shenon, “Report on US Antiterrorism Law Alleges Violations of Civil Rights”, The New York Times, 21 de julho de 2003.

5

Vide Joseph Lelyveld, “In Guantánamo,” The New York Review, 7 de novembro de 2002.

6

Vide Dana Priest e Barton Gellman, “US Decries Abuse but Defends Interrogations; ‘Stress and Duress’ Tactics Used on Terrorism Suspects Held in Secret Overseas Facilities”, The Washington Post, 26 de dezembro de 2002; Rajiv Chandrasekaran e Peter Finn, “US Behind Secret Transfer of Terror Suspects,” The Washington Post, 11 de março de 2003; Peter Finn, “Al Qaeda Recruiter Reportedly Tortured; ExInmate in Syria Cites Others’ Accounts,” The Washington Post, 31 de janeiro de 2003.

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secretário de defesa e ao presidente.7 Os réus têm advogados militares designados e podem contratar, por sua própria conta, advogados civis que tenham liberação das agências de segurança, mas estes não poderão comparecer a audiências que o oficial que presidir o julgamento declarar fechadas. Associações jurídicas têm questionado a participação de advogados norte-americanos em julgamentos que limitem de forma tão profunda sua capacidade de defender adequadamente seus clientes.8 O governo mantém incomunicáveis pelos menos três prisioneiros – Yasser Esam Hamdi, José Padilla e Ali Saleh Kahlah al-Marri – em prisões militares nos Estados Unidos, sem acusação e sem lhes permitir acesso a um advogado. Hamdi é cidadão do país. O governo diz que ele foi preso pela Aliança do Norte enquanto lutava pelo Taleban no Afeganistão, mas faz essa afirmação em um memorando superficial, escrito por um oficial de baixa patente sem conhecimento direto dos fatos, e se recusa a embasar a afirmação com mais provas. Padilla, também cidadão norteamericano, foi preso em Chicago na condição de “testemunha importante” da investigação do governo acerca dos ataques de 11 de setembro, mas quando um advogado indicado pelo tribunal questionou sua detenção e um juiz determinou uma audiência, o Presidente o designou como combatente inimigo ilegal, e a audiência lhe foi negada. Marri é um estudante do Qatar, preso sob acusação de mentir a investigadores sobre suas viagens, que enfrentaria um julgamento penal normal, até o Presidente anunciar, em junho último, sem provas ou argumentos que sustentassem, que ele também era um combatente inimigo que podia ser mantido incomunicável, sem acusações.9 Zacarias Moussaoui é um cidadão francês preso nos Estados Unidos antes de 11 de setembro. O governo afirma que ele era o “vigésimo seqüestrador”, que teria participado dos ataques caso não tivesse sido preso antes, e o processou em um tribunal federal, pedindo a pena de morte. A

7

As normas dos tribunais militares foram esclarecidas no documento Military Commission Order No. 1, de 21 de março de 2002, do Departamento de Defesa. A ordem inicial do presidente era, em alguns aspectos, mais severa: por exemplo, dispunha que os juízes não precisavam estar convencidos, para além de dúvida razoável, para votar por “culpado”, e que uma votação de dois terços já seria suficiente para impor a pena de morte. A ordem de 21 de março exige prova para além de dúvida razoável e uma votação unânime para a condenação à morte, embora dois terços fossem suficientes para condenação.

8

Vide Neil Lewis, “Rules Set Up for Terror Tribunals May Deter Some Defense Lawyers,” The New York Times, 13 de julho de 2003.

9

Vide Eric Lichtblau, “Bush Declares Student an Enemy Combatant”, The New York Times, 24 de junho de 2003.

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principal prova, aparentemente, é que ele recebeu dinheiro de membros da al-Qaeda agora sob custódia dos Estados Unidos fora do país, que também enviaram dinheiro aos seqüestradores. Todavia, o governo recusou ordens do tribunal para que os advogados de Moussaoui entrevistassem esses membros da al-Qaeda, e ameaçou que, se essas ordens não fossem suspensas pelo tribunal, processaria Moussaoui em um tribunal militar, onde não estaria em questão a permissão para seus advogados terem tal acesso.10 Seria um erro crasso supor tais poderes e ações justificáveis porque todos aqueles a quem ameaçam são culpados, como sugeriu Donald Rumsfeld em sua declaração impressionante, segundo a qual os prisioneiros em Guantánamo são todos assassinos. Pressupor a culpa antes que ela seja demonstrada por meios justos, já representa, em si, um grave comprometimento dos direitos humanos. É claro que nós, norte-americanos, já utilizamos táticas jurídicas não-convencionais e aparentemente injustas, assim como muitos outros países, quando fomos atemorizados pela guerra ou por ameaças de subversão, reais ou imaginadas. Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo dos Estados Unidos confinou nipo-americanos que não representavam qualquer risco à segurança em campos de detenção. As políticas do governo Bush, contudo, ameaçam corromper nossas tradições de forma mais duradoura, pois os riscos citados como justificativa não durarão alguns anos, como aconteceu com as outras crises reais ou supostas, e sim uma geração, talvez mais. Durante muitos anos, os conservadores quiseram que o governo tivesse o poder que os membros da atual administração dizem ser legítimo, e o 11 de setembro pode lhes ter servido apenas de desculpa. O Departamento de Justiça de John Ashcroft tem usado seus novos poderes, conferidos pelo Patriot Act, que foram defendidos como disposições de emergência contra terroristas, para investigar e processar uma ampla variedade de crimes mais comuns, como furto e estelionato.11 As políticas antiterroristas do governo

10

O governo disse que concordaria com uma ordem retirando a acusação, de forma que pudesse recorrer da ordem de acesso a líderes capturados. Vide Philip Shenon, “In Maneuver, US Will Let Terror Charges Drop”, The New York Times, 26 de setembro de 2003. Mas o juiz, Leonie M. Brinkema, em lugar disso, ordenou a continuação do julgamento, sem que o governo tivesse permissão para acusar Moussaoui de envolvimento no 11 de setembro ou pedir a pena de morte. O governo deve decidir agora se recorre dessas ordens ou transfere o caso a um tribunal militar imediatamente. Vide Kirk Semple, “In Setback to US, Judge Refuses to Drop Moussaoui Case”, The New York Times, 2 de outubro de 2003.

11

Vide Eric Lichtblau, “US Uses Terror Law to Pursue Crimes from Drugs to Swindling”, The New York Times, 28 de setembro de 2003.

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podem representar um passo irreversível rumo a um novo estado, muito menos liberal, o que torna a pergunta que apresentei – se essas políticas violam direitos humanos fundamentais – ainda mais urgente. 2. Muitos norte-americanos consideram as políticas do governo Bush como uma resposta justificada a uma ameaça terrorista,12 acreditando que os ataques de 11 de setembro exigem (como muitas vezes se diz) “um novo equilíbrio entre liberdade e segurança.” A expressão, tão utilizada, sugere que podemos avaliar adequadamente as novas políticas questionando se elas servem a nossos interesses gerais, da mesma forma com que poderíamos decidir, por exemplo, sobre um novo equilíbrio entre segurança nas estradas e a conveniência de dirigir em alta velocidade reduzindo os limites de velocidade. Contudo, praticamente sem exceções, nenhum norte-americano que não seja muçulmano e não tenha vínculos desse tipo corre qualquer risco real de ser rotulado de combatente inimigo e trancafiado em uma cela militar. O único equilíbrio em questão é aquele entre a segurança da maioria e os direitos de outras pessoas, e devemos refletir sobre isso como uma questão de princípio moral, e não de nosso interesse próprio. Entre os princípios morais mais fundamentais está o da humanidade compartilhada: cada vida humana tem um valor inerente distinto e igual. Tal princípio é a premissa da idéia de direitos humanos, ou seja, os direitos que as pessoas têm apenas pelo fato de serem humanas, sendo, assim, premissa indispensável de uma ordem moral internacional. Vários tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU ou a Convenção de Genebra, são tentativas legais de codificar o princípio moral básico em normas específicas que possam ser tornadas obrigatórias em termos de direito nacional e internacional. Pode ser discutível, como insiste o governo Bush, se suas medidas de segurança violam os termos específicos de qualquer dos tratados dos quais os Estados Unidos são uma das partes,13 mas essas medidas violam, sim, o princípio 12

Uma pesquisa recente encomendada ao Instituto Gallup pela CNN e pelo Jornal USA Today concluiu que 22% dos norte-americanos consideravam que o governo havia ido longe demais na restrição às liberdades civis, ao mesmo tempo em que dois terços disseram que o governo não deveria dar qualquer outro passo antiterrorismo caso isso as comprometesse mais. Vide Dana Milbank, “President Asks for Expanded Patriot Act”, The Washington Post, 11 de Setembro de 2003.

13

Para um estudo abrangente da aplicação do direito internacional, no campo dos direitos humanos, à proclamada guerra norte-americana aos terroristas, vide Anthony Dworkin, “Military Necessity and Due Process: The Place of Human Rights in the War on Terror”, forthcoming in New Wars, New Laws?, organizado por Matthew Evangelista e David Wippman (Transnational Publishers).

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básico de humanidade compartilhada que lhes é subjacente. E elas o fazem porque seguem a estratégia de colocar a segurança dos Estados Unidos absolutamente em primeiro lugar – uma estratégia que recomenda qualquer medida que aprimore a segurança do país contra o terrorismo, mesmo de forma secundária ou especulativa, ou que melhore a eficiência em termos de custo ou a conveniência de sua campanha antiterrorismo, sem levar em conta o dano ou o caráter injusto que acarreta a suas vítimas.14 Os Estados Unidos seguiram essa estratégia ao confinar os nipoamericanos – o beneficio de segurança da detenção como um todo foi mínimo, e o dano que impôs às vítimas, enorme – e vemos agora esse episódio com grande constrangimento nacional.15 É claro que todo governo tem uma responsabilidade especial de cuidar da segurança de seus cidadãos, e um país pode, quando necessário, utilizar a violência em defesa própria, mas o dano que deliberadamente inflige a outros deve ser comparável ao que previne para seu próprio povo, e quando nosso governo se mostra pronto a impor danos graves a estrangeiros ou a norte-americanos suspeitos, em nome de benefícios apenas especulativos, marginais ou remotos para o resto de nós, suas ações partem do pressuposto de que aquelas vidas não têm qualquer valor, comparadas às nossas. Esse pressuposto desdenhoso fica evidente nas políticas que descrevi e nas justificativas que o governo Bush oferece para elas. O governo se recusa a permitir questionamentos de suas decisões, ainda que mínimos, sejam eles judiciais, congressuais ou independentes; instala campos de detenção fora do país, de forma a evitar o requerimento de habeas corpus; reivindica o direito exclusivo de decidir quem é combatente inimigo, sem necessidade de apresentar provas consistentes a qualquer tribunal; recusa-se a permitir que juízes examinem suas afirmações opacas de que a segurança exige a negação de proteções básicas a pessoas que acusa de crimes; mantém suas detenções e seu tratamento dos detentos o mais secretos possível, para evitar qualquer crítica por parte de outros órgãos

14

O governo não aplica um princípio comparável a seu orçamento: deixa de tratar até mesmo medidas de segurança claramente importantes como prioridade financeira máxima. Em meio à sua guerra declarada ao terror, negociou cortes imensos de impostos, principalmente em benefício dos contribuintes muito ricos, e reduziu as despesas de segurança. O financiamento federal para organizações locais que enfrentariam as conseqüências de outras ações terroristas tem sido extremamente reduzido, por exemplo. Vide Emergency Responders: Drastically Underfunded, Dangerously Unprepared, Report of an Independent Task Force Sponsored by the Council on Foreign Relations, Warren B. Rudman, Chair (2003). Esse relatório está disponível em www.cfr.org.

15

Vide Peter Irons, Justice Delayed: The Record of the Japanese American Internment Cases (Wesleyan University Press, 1989).

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de governo, da imprensa, de cidadãos ou de organizações internacionais de direitos humanos; afirma que a segurança em tempos de guerra demanda esse sigilo e essa imunidade da supervisão judicial e de outros tipos. Esse é o argumento apresentado por todos os estados policiais, e talvez seja a afirmação mais oportunista e indefensável do governo Bush até agora. Isso porque, embora seja lhe certamente mais conveniente executar suas políticas de forma sigilosa, sem supervisão alguma de qualquer outro departamento do próprio governo, a sugestão de que esse sigilo beneficia a segurança não tem base concreta. De qualquer forma, os supostos benefícios de segurança parecem ser mínimos. Juízes, senadores e deputados também são autoridades norte-americanas, são dignos de confiança, e desenvolveram procedimentos especiais para proteger a informação confidencial, os quais já foram utilizados com êxito em audiências legislativas e em julgamentos por terrorismo, em tribunais comuns.16 O governo poderia argumentar que, em tempos de guerra, não deve correr qualquer risco, mesmo que pequeno, mas quando as vidas e a liberdade dos que o governo prendeu estão em jogo, não correr riscos, embora pequenos, significa não dar valor algum a essas vidas e a essa liberdade. Essa estratégia confere caráter absoluto à idéia de colocar a segurança dos Estados Unidos em primeiro lugar, e é moralmente inaceitável. Quando o governo tenta explicar por que a segurança exige as medidas que foram tomadas, a explicação confirma aquela estratégia inaceitável. Diz, por exemplo, que deve ter a permissão para monitorar conversas entre suspeitos de terrorismo e seus advogados, pois estes podem transmitir ordens a outros terroristas que ainda estejam em liberdade. Todavia, tal risco é remoto, pois os suspeitos de terrorismo que estejam na prisão há um tempo considerável provavelmente não terão informações úteis ou autoridade, e o risco poderia, de qualquer forma, ser minimizado submetendo os advogados dos suspeitos de terrorismo a uma verificação de segurança. O governo diz que não pode divulgar os nomes de prisioneiros porque as organizações terroristas podem não saber quais de seus membros foram presos e quais ainda estão disponíveis para cumprir tarefas. Mas parece bastante improvável que organizações terroristas eficazes não saibam, ou não possam determinar, quais de seus membros importantes o suficiente para fazer diferença desapareceram durante meses ou anos. O governo afirma que os 16

Vide United States v. Bin Laden, 92 F. Supp. 2d 225, SDNY 2000 (1998 US Embassy Bombings in Nairobi, Kenya and Dar-Es-Salaam, Tanzania) e Estados Unidos v. Salameh, 261 F.3d 271, 2d 2001 (1993 World Trade Center bombing).

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tribunais militares secretos constituem fóruns melhores para julgar suspeitos de terrorismo do que aqueles independentes dos militares, pois segredos de segurança podem ser expostos em julgamentos comuns. Entretanto, como já mencionei, os tribunais desenvolveram métodos, tais como procedimentos fechados, para lidar com questões de segurança delicadas no passado, e não há razão para que não possam proteger segredos oficiais dessa natureza em futuros julgamentos. O governo diz que não pode permitir que Padilla fale com seus advogados porque essa pausa breve em seu interrogatório – que agora se estende por meses e se supõe que seja interrompido para fazer refeições, dormir e descansar – poderia afetar seu sucesso, que pode depender de um processo de coerção e desorientação do prisioneiro. É melhor, segundo o governo, deixá-lo incomunicável indefinidamente. Os promotores se recusam a deixar que os advogados de Moussaoui interroguem os líderes da al-Qaeda capturados, pois isso também poderia interromper seus próprios interrogatórios, que também se arrastam há meses.17 Melhor seria executá-lo sem o benefício de qualquer informação que pudesse isentá-lo, e que talvez viesse a ser fornecida por aqueles líderes. O governo diz que não pode fornecer provas concretas de que Hamdi foi realmente capturado lutando pelo Taleban no campo de batalha, pois a preparação dos documentos desviaria tempo e dinheiro de outras atividades antiterroristas. Melhor seria que ele definhasse por anos em uma prisão militar. É significativo que a invasão liderada pelos norte-americanos no início deste ano também tenha sido defendida colocando-se a segurança dos Estados Unidos em primeiro lugar. O governo afirmou que o desenvolvimento clandestino de armas de destruição em massa por parte do Iraque ameaçava nossa segurança e que descobrira ligações entre o governo de Saddam Hussein e al-Qaeda. Está claro, agora, que as provas para a primeira afirmação eram inconsistentes e, para a segunda, inexistentes.18 No entan-

17

Vide Neil Lewis, “Bush Officials Lose Round In Prosecuting Terror Suspect”, The New York Times, 27 de junho de 2003.

18

Esta última afirmação foi particularmente importante para convencer o país de que a guerra era necessária: em fevereiro de 2003, a CNN informou que 76% dos norte-americanos consideravam que o Iraque estava envolvido nos ataques de 11 de setembro. Vide Bruce Morton, “Selling an Iraq-al-Qaeda Connection” (11 de março de 2003), disponível em www.cnn.com/2003/WORLD/meast/03/11/Iraq.Qaeda.link. Até a data deste artigo, segundo relatórios preliminares de uma equipe de inspeção, nenhuma arma proibida havia sido encontrada no Iraque, apesar das buscas intensas. O governo aparentemente abandonou sua alegação de uma ligação entre o Iraque e os ataques de 11 de setembro. Vide “Bush Reports No Evidence of Hussein Tie to 9/11”, The New York Times, 18 de setembro de 2003.

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to, o governo diz, como expressou o subsecretário de defesa Paul Wolfowitz, que tinha direito de agir a partir de evidências “obscuras” ou especulativas, para proteger a segurança dos Estados Unidos, mesmo ao custo de milhares de vidas norte-americanas, britânicas e iraquianas.19 Ademais, o Departamento de Justiça reconheceu, quase que explicitamente, que coloca a segurança do país absolutamente em primeiro lugar. Em resposta a acusações de excesso de zelo ao proteger a segurança à custa da liberdade, o procurador-geral disse que o governo “não pede desculpas por buscar qualquer maneira jurídica possível para proteger a população norte-americana de outros ataques”.20 Essa declaração é particularmente reveladora, dado que o governo afirma que a lei permite quase tudo em tempos de guerra, e que, de qualquer maneira, os juízes têm pouca autoridade para rever decisões governamentais. 3. Minha sugestão de que a estratégia do governo Bush é imoral pode se prestar a uma objeção importante. É totalmente legítimo, em determinadas circunstâncias, que um governo imponha danos graves a algumas pessoas para reduzir o risco de danos a outras, mesmo quando esse risco é apenas estatístico ou especulativo. É exatamente isso o que fazemos, afinal de contas, quando utilizamos o direito penal para punir criminosos condenados, privando-os de liberdade com vistas a impedi-los, e a outros, de cometer crimes. Causamo-lhes danos, sim, para tornar o resto de nós mais seguros em termos estatísticos e secundários. Fazemos basicamente a mesma coisa na guerra convencional: tentamos matar soldados inimigos para proteger nossos próprios soldados e cidadãos de riscos que são, para cada um deles, apenas especulativos. Sendo assim, não se pode afirmar, em síntese, que um governo não possa jamais prejudicar algumas pessoas para proteger outras de um dano menor ou mais especulativo. Se podemos fazê-lo no combate ao crime comum e na guerra convencional, por que não no combate ao terrorismo? Essa idéia parte do pressuposto, todavia, de que o princípio de humanidade compartilhada é simplesmente ignorado ou derrogado no processo penal ou na guerra convencional, mas isso não é verdadeiro. Pelo contrário, todas as nações civilizadas elaboraram normas para regulamentar tanto 19

Vide Despacho da Agência Reuters, “Wolfowitz Says US Must Act Even on ‘Murky’ Data”, The New York Times, 27 de julho 2003.

20

Vide “Report on US Antiterrorism Law Alleges Violations of Civil Rights”, The New York Times, 21 de julho de 2003.

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o processo penal em seus países quanto suas condutas em guerras, e essas normas são dirigidas especificamente a reconhecer que um país não tem direito de levar em conta apenas os interesses dos cidadãos que tenta proteger, devendo demonstrar, também, preocupação e respeito pelas vidas daqueles que prejudica ao tentar proteger esses cidadãos, mesmo quando isso implica uma proteção um pouco menos efetiva ou completa. Nosso processo penal impõe danos apenas quando podem ser descritos precisamente como punição. Não escolhemos algumas pessoas para colocar na cadeia por acharmos que elas têm mais probabilidades do que o cidadão médio de cometer crimes graves, embora pudéssemos ter mais segurança se o fizéssemos. As pessoas que punimos escolheram a si próprias ao violar concretamente as leis que têm responsabilidade legal de respeitar. Além disso, nossos procedimentos insistem em salvaguardas para garantir que aqueles a quem punimos sejam de fato culpados, isto é, que tenham se sujeitado a essa punição, pois qualquer risco de que um réu penal possa ser punido, mesmo sendo inocente, apenas para melhorar a eficiência do processo de contenção, significaria tratar sua vida como descartável. Essas são as salvaguardas que o governo está ignorando. Na guerra, também costumamos causar danos terríveis a algumas pessoas – particularmente os soldados do país inimigo – com vistas a proteger cada um de nossos soldados ou cidadãos de danos menores ou mais especulativos. Não podemos invocar o modelo penal para justificar essa prática porque, em guerras comuns, devemos matar soldados que não estão sujeitos à nossa autoridade legal, e que não violaram qualquer princípio do direito internacional. Sendo assim, devemos lançar mão de um conjunto distinto de argumentos para demonstrar por que nossas operações militares não violam o princípio da humanidade compartilhada. Na guerra, enfrentamos exércitos concentrados que nos atacam ou se defendem de nós na forma de uma única força unificada. Se seguirmos o princípio comum da legítima defesa – matando soldados específicos quando essa é a única forma de evitar a morte certa ou dano grave para nossos próprios soldados – perderemos a guerra. Devemos ter como objetivo incapacitar quaisquer forças que possamos atingir. Entretanto, mais uma vez, as leis da guerra nos proíbem de colocar nossa segurança absolutamente em primeiro lugar. Podemos não atacar civis, mesmo que isso pudesse muito bem salvar as vidas de alguns de nossos soldados e acabar com a guerra mais cedo. Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, olhando agora, parecem monstruosos e, além disso, estariam fora de cogitação atualmente, em função de nossos compro-

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missos internacionais. Mais ainda, a Convenção de Genebra proíbe que se tratem prisioneiros de guerra com base no princípio da segurança em primeiro lugar. Eles não devem ser coagidos, mesmo por meios aquém da tortura, a responder a quaisquer perguntas para além daquelas necessárias à sua identificação, ainda que o interrogatório coercitivo pudesse proporcionar informações militares valiosas. Seu status igual de seres humanos deve ser reconhecido, ao se lhes fornecerem acomodação e atendimento médico do mesmo nível que for dado aos soldados que os guardam, muito embora isso também seja oneroso. Essas limitações do procedimento penal justo e essas normas humanas para a guerra são importantes não apenas quando a constituição de um país ou suas obrigações assumidas em tratados as tornam obrigatórias, e sim porque uma comunidade bastante grande de nações considera que elas, ou outras muito semelhantes, são necessárias para impedir que o processo penal ou a guerra se transformem em um sacrifício bruto de algumas pessoas em nome de outras, o qual devastaria, em lugar de respeitar, a idéia de humanidade compartilhada. No entanto, a campanha dos Estados Unidos contra o terror organizado internacional não pode ser levada a cabo totalmente dentro das limitações do modelo penal ou do modelo de guerra que descrevi. Na verdade, devemos perseguir terroristas por meio de qualquer ação policial que seja praticável, não apenas em nosso próprio país, mas também através de polícias internacionais e redes de informação em colaboração com governos estrangeiros dispostos. Devemos persuadir qualquer nação onde se encontrem terroristas a prendê-los e a julgá-los, ou a extraditá-los para nosso país21 ou para ser julgados por um tribunal internacional. Se fosse viável perseguir e processar terroristas apenas dessa maneira, o modelo penal seria totalmente adequado. Entretanto, isso não é viável. Sociedades terroristas estão espalhadas pelo mundo e contam com lealdades e recursos que vão muito além, até mesmo, dos de organizações criminosas legendárias, como a máfia. Elas não conspiram para cometer atos de violência visando lucro pessoal, como fazem os cartéis de drogas, mas a serviço de uma ideologia compartilhada por muitas pessoas, muitas vezes incluindo membros do governo dos países onde operam. É extremamente difícil distinguir terroristas individu21

O fato de os sistemas jurídicos de muitas nações e o da União Européia proibirem a extradição para países que imponham a pena de morte constitui uma dificuldade.

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ais de um substrato de pessoas e forças de apoio. Assim sendo, é tentador considerar grupos terroristas poderosos como a al-Qaeda como quasenações ou poderes políticos, e tratar nossas ações contra eles mais como uma guerra do que como uma ação policial. Todavia, o modelo da guerra também não é totalmente apropriado.22 A guerra é, historicamente, uma questão de status, e não de meios: entra-se em um estado de guerra convencional em uma data, como 8 de dezembro de 1941, e se sai dele em outra, como 14 de agosto de 1945. Travam-se guerras convencionais contra países que têm fronteiras e líderes com os quais se podem negociar armistícios e rendições, e não contra organizações vagas com hierarquias secretas e indistintas, cujos soldados e oficiais não usam uniformes. Podemos conquistar Cabul ou Bagdá, mas não existe um lugar chamado Terror, onde morem os terroristas. O governo Bush parte do pressuposto de que, se nenhum dos sistemas tradicionais para enfrentar o crime ou a guerra serve completamente à campanha dos Estados Unidos contra o terrorismo, vale tudo: podemos buscar a segurança do país em primeiro lugar, sem limitações. Mas esse pressuposto é injustificado e inescrupuloso. O fato de que o terrorismo apresenta novos desafios e riscos não significa que os princípios morais e os direitos humanos básicos que o direito penal e o direito de guerra tentam proteger tenham sido revogados ou se tornaram irrelevantes. Em lugar disso, devemos questionar qual esquema – qual terceiro modelo – é adequado para respeitar aqueles princípios ao mesmo tempo em que nos defende de forma eficaz. Tal projeto, de importância imensa, deveria agora envolver atores internacionais, especialistas da polícia, analistas militares, historiadores, políticos e filósofos de diferentes tradições e culturas. Talvez a reflexão, o debate e a experiência gerem algum consenso sobre um novo sistema jurídico para o terror, que possa ser codificado em um novo conjunto de convenções internacionais. Enquanto isso, devemos fazer o melhor que pudermos, não abandonando todas as limitações dos dois modelos tradicionais, tentando captar os princípios a que essas limitações servem em um novo modelo que incorpore aspectos de cada um dos outros. Esse novo modelo pode exigir que um país persiga as organizações terroristas que causaram dano a seu povo primeiramente por meio de ação policial, 22

Para uma argumentação que defende ser contraproducente designar nossa campanha contra o terrorismo como Guerra, vide Philip B. Heymann, Terrorism, Freedom, and Security: Winning Without War (MIT Press, 2003).

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por conta própria ou em conjunto com unidades policiais internacionais ou estrangeiras, a menos que essa ação policial seja, ou se torne, inadequada. Uma organização terrorista pode controlar seu próprio território, de maneira que nenhuma ação policial possa alcançá-lo, por exemplo, ou um governo local pode não estar disposto ou não ter condições de atacar a organização de forma eficaz. Nesse caso, o país poderia organizar uma campanha militar contra a organização, mesmo que tivesse que invadir um outro país, como o Afeganistão, cujo regime a esteja protegendo. Contudo, uma vez que faça prisioneiros nessa campanha, capturados em um campo de batalha estrangeiro ou em seu próprio território, ou em qualquer outro lugar, o país deverá seguir um procedimento diferente, escolhendo, caso a caso, qual dos dois modelos descritos deseja adotar. Em um prazo razoável após a captura – digamos, dois meses – deverá decidir se o detento será tratado como prisioneiro de guerra ou como suspeito de crime (a decisão poderá ser revisada posteriormente, caso novas provas assim o exijam). Essa decisão deve ser tomada segundo uma leitura defensiva das normas da Convenção de Genebra, que foram escritas tendo em mente guerras mais convencionais, mas no espírito dos princípios que embasam essas normas. Como as organizações terroristas não têm documentos de identidade ou uniformes, por exemplo, não pode ser um fator decisivo na atribuição da condição de criminoso a um detento, em vez de prisioneiro de guerra, o fato de que ele não use uniforme. Se o governo decidir tratar dessa forma qualquer prisioneiro capturado em batalha, sua decisão deve ser avaliada por um tribunal “de justiça”, como exigem as disposições da Convenção de Genebra, as quais foram aceitas por quase todos os países. Se decidir tratar a qualquer um que capture, não apenas em um campo de batalha, mas em ações policiais comuns, como prisioneiro de guerra em lugar de criminoso, deverá permitir que essa pessoa questione a classificação, sempre que for viável, por meio de um requerimento de habeas corpus em um tribunal federal.23 Os detidos que o governo designar como prisioneiros de guerra devem ser tratados de acordo com as normas humanitárias da Convenção citada. Por exemplo, devem receber acomodação e atendimento médico igual ao dado aos soldados que os guardam, e não ser sujeitados a qualquer forma de interrogatório para além do permitido pela Convenção. Ela permite que um país julgue um prisioneiro de guerra por crimes de guerra, tais como o assassinato voluntário de civis, o que, presume-se, incluiria os ataques terroristas nos

23

Vide Schlesinger v. Councilman, 420 U.S. 738 (1975).

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Estados Unidos. Todavia, se qualquer prisioneiro de guerra for acusado desse tipo de crime, a Convenção exige que ele seja julgado por um tribunal militar cujas normas lhe dêem todas as proteções procedimentais que os militares norte-americanos têm quando vão à Corte Marcial (as normas das cortes marciais norte-americanas oferecem muito mais proteção aos acusados do que os tribunais militares nos quais o governo Bush propõe que se julguem os estrangeiros. As primeiras restringem em muito a admissibilidade como prova de testemunhos indiretos e confissões involuntárias, por exemplo, e permitem apelar a um tribunal de recursos que inclui juízes civis, e depois à Corte Suprema). No entanto, a norma da Convenção segundo a qual prisioneiros de guerra podem ser detidos até o final do estado de guerra não pode ser aplicada de forma plausível a essas circunstâncias, pois parte do princípio de que as guerras começam e terminam com atos formais. A “guerra” dos Estados Unidos contra o terror não pode ter um final formal, podendo durar uma geração. Sendo assim, o Congresso deve estipular um período máximo – digamos, três anos – no qual qualquer pessoa designada prisioneiro de guerra na campanha contra o terrorismo poderá ficar presa, ainda que o Congresso tenha poder, desde que o terrorismo internacional organizado permaneça sendo uma ameaça grave, para ampliar o período, seja em casos particulares, seja em ampliações abrangentes de um período máximo estipulado, a partir de uma necessidade demonstrada e após o devido debate. As pessoas a quem o governo designar como suspeitos de crime não devem ser tratadas como prisioneiros de guerra, mas seu tratamento deve ser orientado pelos procedimentos e proteções comuns de nossa prática penal, mais uma vez, modificados segundo as necessidades, para se adequar a circunstâncias especiais. Os suspeitos devem ser informados das acusações contra si e ter acesso a advogados e aos benefícios de um processo judicial. Os tribunais federais comuns, os quais, já mencionei, têm poder de proteger informações confidenciais, deveriam bastar, mas o Congresso poderia, caso considerasse necessário, instalar tribunais especializados para esses julgamentos, exercendo seu poder constitucional de criar tribunais e definir sua jurisdição. Quaisquer tribunais especializados devem, contudo, respeitar a separação fundamental entre o poder judiciário e o executivo; suas decisões devem estar sujeitas a revisão por tribunais superiores, independentes dos militares e do executivo. Se o governo afirmar que a segurança monitorar as conversas entre um determinado suspeito e seu advogado, essa afirmação deverá ser analisada e aprovada por um juiz. Os casos específicos que mencionei anteriormente podem ser utilizados para ilustrar esse modelo. O governo pode declarar Moussaoui como prisi-

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oneiro de guerra, citando sua admissão de que pertence à al-Qaeda. A seguir, pode detê-lo, sob as condições da Convenção de Genebra, embora ele tivesse que ser libertado no devido tempo, ou julgado por crimes de guerra sob normas semelhantes às usadas nas cortes marciais norte-americanas, que supostamente permitiriam a seus advogados interrogar qualquer testemunha que seja essencial à sua defesa. Ou o governo poderia continuar a declará-lo como criminoso e o sujeitar ao processo e à proteção do direito penal conhecido, o que também implicaria que lhe fosse permitido interrogar testemunhas essenciais. O governo poderia continuar se recusando a permitir que seus advogados tivessem acesso aos líderes da alQaeda capturados, isto é, tão-somente se o tratasse como prisioneiro de guerra comum e não tentasse julgá-lo por qualquer delito que tornasse o acesso a esses líderes necessário à sua defesa. É razoável pedir que nosso governo faça essa escolha. Os promotores criminais muitas vezes têm que decidir se desistem de processar um determinado suspeito quando isso pode comprometer investigações em andamento, e Moussaoui poderia ser detido como prisioneiro de guerra, de qualquer forma. O governo seria forçado a fazer escolhas semelhantes com relação aos outros detentos que mencionei. Talvez receie não ter provas suficientes para condenar Padilla de qualquer crime em um tribunal penal comum. Nesse caso, deverá libertá-lo, a menos que possa demonstrar que ele tem contatos com a al-Qaeda suficientes para ser classificado como prisioneiro de guerra, apesar de ele ter sido preso em Chicago, e não em um campo de batalha estrangeiro. Se puder, deve detê-lo, não incomunicável em confinamento solitário em uma prisão militar, mas em circunstâncias condizentes com a condição de prisioneiro de guerra. O governo também deverá fazer escolhas com relação a Hamdi. É verdade que não se pode pedir a oficiais militares que provem no tribunal que todos aqueles que capturarem no campo de batalha são realmente soldados inimigos (não seria fora da realidade, contudo, abrir uma exceção para aqueles cuja presença no campo de batalha pode ser considerada surpreendente, como cidadãos norte-americanos). Todavia, mesmo que aceitemos o princípio de que os tribunais não podem inspecionar a captura de prisioneiros em campos de batalha, não se pode concluir que o governo pode prender indefinidamente qualquer pessoa capturada, sem acusações, e mantê-la incomunicável. Se o governo processar Hamdi como criminoso, deve lhe dar acesso a advogado e às proteções normais do processo penal, e apresentar provas consistentes contra ele. Caso contrário, só poderá detêlo na condição diferenciada, de prisioneiro de guerra.

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Os prisioneiros de Guantánamo também estão sendo mantidos presos indefinida e sigilosamente, sem acesso a advogados, em circunstâncias que seriam intoleráveis mesmo se fossem criminosos condenados. Mas não foram acusados de crimes nem tiveram o benefício da orientação ou do processo jurídicos. Se forem prisioneiros de guerra, devem ser tratados como tais; se forem suspeitos de crime, assim devem ser tratados. O governo deve escolher, mais uma vez, não porque dele se exige que o faça, segundo os tratados, mas porque não fazê-lo significa tratar as vidas dos detentos com um desdém inaceitável.24 Os direitos não teriam valor algum – a idéia de direito seria incompreensível – a menos que os respeitar signifique correr algum risco. Podemos e devemos tentar limitar esses riscos, mas alguns deles permanecerão. Talvez estivéssemos marginalmente mais seguros se decidíssemos ignorar os direitos humanos de quaisquer outras pessoas. Isso também se aplica à política nacional. Corremos um risco um pouco maior de morte violenta nas mãos de assassinos todos os dias ao insistir em direitos para acusados de crimes, para nos mantermos fiéis a nossa própria humanidade. Pela mesma razão, também devemos correr um risco um pouco maior de terrorismo. É claro que nossa vigilância deve ser aprimorada, mas também devemos disciplinar nosso medo. O governo diz que apenas nossa própria segurança importa, uma visão lastimável, pois somos mais bravos do que isso, e temos mais respeito próprio.25 i i

24

Esse novo regime de princípios pode estar aberto a exceções em situações verdadeiramente extraordinárias, por exemplo, em casos nos quais os militares norte-americanos tenham alguma razão especial e urgente para realizar uma investigação coercitiva de um prisioneiro a quem não possam, de boa fé, acusar de um crime e tratar como criminoso. Contudo, nesses casos, a ameaça que exige esse tratamento – o exemplo proverbial da bomba prestes a explodir e do prisioneiro que sabe onde ela está – deverá ser grave e iminente o suficiente para que a coerção possa ser justificada sem apelar para qualquer princípio que justificasse impor danos sérios para obter benefícios secundários. Nesse caso, devemos aceitar que estamos violando os princípios da justiça em função da necessidade, e tentar limitar a injustiça de todas as formas possíveis. Vide Dworkin, “The Threat to Patriotism”.

25

Meus agradecimentos a James Cockayne, Anthony Dworkin, Philip B. Heymann, Gayle M. Horn e Stephen Schulhofer pelos comentários redigidos sobre uma primeira versão deste artigo e outros auxílios.

ii

NE: Em 28 de junho de 2004, a Suprema Corte dos Estados Unidos, apreciando a situação jurídica de Yasser Esam Hamdi e José Padilla, bem como os direitos das centenas de detidos na base naval dos EUA em Guantánamo (Cuba), entendeu, por seis votos a três que: a) Yasser Hamdi tinha direito de acesso a advogado, mesmo na condição de “combatente inimigo”; b) José Padilla, apresentado em jurisdição errada, deveria ser apresentado na Carolina do Sul; c) os mais de 600 detidos na base de Guantánamo poderão recorrer aos tribunais americanos para questionar sua situação legal.

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La tortura judicial en el antiguo régimen. Orden procesal y cultura Legal Torture in the Ancient Regime. Legal Order and Culture ALEJANDRO AGÜERO Doctor en Derecho. Profesor de Historia del Derecho y de las Instituciones en la Universidad Autónoma de Madrid. Miembro de los proyectos de investigación HIJUR e HICOES.

RESUMEN El presente artículo propone una mirada al pasado jurídico de occidente para comprender las condiciones bajo las que durante muchos siglos la tortura ocupó un lugar en el discurso y en la práctica procesal como instancia legítima dentro de la actividad de administración de justicia. Para ello se indagan las claves de un mundo estructurado bajo un paradigma radicalmente ajeno al del presente. Por ello no sólo se atenderá a las razones internas del discurso jurídico del antiguo régimen, sino también a aquellos aspectos que más claramente nos muestran la distancia que separa culturalmente aquel contexto del nuestro. Con estos elementos se propone una reflexión sobre el desarrollo de la praxis judicial de la tortura hasta el momento previo a su abolición formal, es decir, hasta su salida del discurso, para culminar reconsiderando algunos enfoques desde los que se suele narrar a la historia de este tipo prácticas procesales. Palabras claves: Tortura judicial, Procedimiento penal, Prueba judicial, Derecho Común.

Este trabajo se enmarca en el proyecto HICOES III (SEJ 2004-06696) dirigido por el profesor Bartolomé Clavero a cuyo equipo de investigación (subgrupo Universidad de Madrid) pertence el autor”.

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ABSTRACT The article proposes a look at the western legal past in order to understand the conditions under which torture has been present for many centuries in legal practice as a legitimate jurisdiction within the activity of justice administration. For this purpose, the keys of a world structured under a paradigm radically strange to the present one were investigated. Therefore, not only the internal reasons of the ancient regime legal discourse will be considered, but also those aspects which more clearly demonstrate the distance that culturally separates that context from ours. With these elements, a reflection is proposed on the development of torture legal praxis up to the moment prior to its formal abolition, that is, till its withdrawal from the discourse, and, finally, a reconsideration is made on some foci from which the history of this kind of judiciary practices is usually narrated. Key words: Legal torture, Criminal proceeding, Judicial evidence, Common law.

I. INTRODUCCIÓN Una de las instituciones del pasado que más radicalmente se oponen a la sensibilidad jurídica del presente es la de la tortura judicial. Los valores y principios que orientan el discurso jurídico político en occidente no dejan resquicio alguno para justificar el uso de la tortura como parte de un proceso de administración de justicia. Admitir su justificación significaría poner en riesgo las creencias fundamentales desde las cuales se concibe la sociedad actual. Significaría una fractura severa en los principios de autonomía de la voluntad y de incolumidad de la integridad física de los individuos 1 . Lamentablemente, el hecho de que no tenga lugar posible en el discurso moral no implica necesariamente que la tortura (no ya judicial) haya sido erradicada. Permanece, en ciertos casos como consecuencia de excesos no debidamente prevenidos, pero en muchos otros con la connivencia de las autoridades políticas, ya sea por su apoyo a fuerzas de tarea clandestinas ya por la conservación de una legislación 1

“La prohibición de los malos tratos a las personas privadas de libertad tiene un carácter absoluto”. “Los fundamentos sobre los cuales reposa todo comportamiento civilizado hacen generar repulsión hacia los malos tratos, incluso cuando revisten las formas más moderadas”. Estos son dos de los principios que rigen la actuación del Comité para la Prevención de la Tortura creado para monitorear el cumplimiento de la Convención Europea para la prevención de la tortura y de las penas y tratos inhumanos o degradantes de 1987. v. CRUZ ROS, J. El Comité para la Prevención de la Tortura. Fijación de estándares para mejorar la protección de las personas privadas de libertad, Valencia 2001, pp. 16-17.

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procesal que permite el encuentro oculto, incomunicado, entre detenido e investigador policial y que admite judicialmente la información obtenida en ese momento ciego en el que un hombre se encuentra a merced de toda una organización de poder. En muchos casos unas simples medidas legislativas bastarían para evitar estas circunstancias o para invalidar cualquier información obtenida en situaciones de incomunicación, tal como lo recomiendan sistemáticamente las organizaciones de derechos humanos. Curiosamente, esa adherencia de la tortura a las prácticas represivas en occidente se opone diametralmente a su consideración en el discurso que estructura y da sentido, desde las grandes revoluciones liberales, a las instituciones jurídico políticas. Cuando en el siglo XVIII el pensamiento ilustrado cargaba sus tintas contra la práctica del tormento, hasta entonces formalmente vigente en casi todos los tribunales de la Europa continental, lo hacía desde un ideal de superación progresiva de la historia y llamaba a las potencias europeas a seguir los pasos de la “muy civilizada” nación inglesa que conservaba una tradición de rechazo a la tortura. 2 En aquel contexto iluminista la barbarie del pasado y la “civilización” de un futuro alumbrado por la razón humana podían entonces ponerse en juego en el trance de aceptación o rechazo a la práctica del tormento judicial. Desde entonces la tortura fue desapareciendo, y desapareció, de los registros y de las formas consideradas legítimas, para recluirse en las acciones de poder clandestinas o en los entresijos de la investigación policial no controlada. El cambio de todo un mundo de significados está por detrás de este paso a la clandestinidad. No podemos responder aquí a la cuestión que tal vez resulta más acuciante para la protección actual de los derechos, es decir, la de saber por qué estando cerradamente deslegitimada su práctica y pudiendo tomarse medidas para prevenirla, se conserva. Lo que sí podemos hacer desde la historia jurídica, es tratar de comprender cuáles son las condiciones bajo las que durante muchos siglos estuvo presen-

2

Cfr. MONTESQUIEU, Del Espíritu de las Leyes, Trad. Mercedes Blázquez y Pedro de Vega, Barcelona 1993, Cap. XVII, p. 75. El desarrollo del sistema de juicio por jurado hacia el siglo XII-XIII, apartándose de la tradición del derecho común continental, habría minimizado el recurso al procedimiento inquisitivo y, consecuentemente, a la tortura. Pese a ello, no se puede decir que la tortura fuera completamente ajena a la historia inglesa. Cfr. HEATH, J. Torture and English Law. An Administrative and Legal History from the Plantagenets to the Stuarts, Westport-Londres 1982.

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te como instancia legítima dentro de un proceso judicial. Para ello proponemos mirar al pasado intentando encontrar las claves de ese mundo de significados distintos. Y las encontraremos por un lado en las razones internas del discurso jurídico del antiguo régimen (II), pero también en aquellos aspectos que más claramente nos muestran la distancia que separa culturalmente aquel contexto del nuestro (III). Con estos elementos podremos reflexionar sobre el desarrollo de su praxis hasta el momento previo a su abolición formal (IV), es decir, hasta su salida del discurso, para culminar con una breve reflexión sobre los enfoques desde los que miramos a la historia de estas prácticas procesales (V).

II. ORDEN PROCESAL Y TORTURA: LA DISCIPLINA DE LA CUESTIÓN EN EL DERECHO COMÚN. La reflexión teórica y la puesta en práctica de la tortura en el proceso judicial coincide con una época en la que, suele decir la historiografía procesal, los medios racionales de prueba (y en general de procedimiento) reemplazaron a los mágicos y supersticiosos ritos ordálicos. Es decir, cuando en la llamada baja edad media se difundió por las cortes europeas la cultura del ius commune y, con ella, los esquemas procesales del derecho romano canónico.3 En Castilla, por ejemplo, bajo el influjo de este movimiento cultural, fueron precisamente los textos de la llamada “recepción”, los que articularon el orden procesal del ius commu-

3

El sistema de prueba romano canónico se presenta como “rationnel sinon rationaliste puisqu’il donne la préférence à la raison sur la révélation (fait d’autant plus remarquable que des hommes d’Eglise ont pris une part essentielle à son élaboration) et à la sensation sur la raison elle-même « quia nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu » : d’où la place qu’il donne au notoire et, de l’autre côté, le rejet des moyens irrationnels comme les ordalies”. LÉVY, J. P. “Le problème de la preuve dans les droits savants du Moyen Age”, en RECUEILS DE LA SOCIETE JEAN BODIN, XII, Bruselas 1965, pp. 137-167, p. 166. “El procedimiento del derecho canónico del Siglo XII, más moderno, más racional y más sistematizado, ofrecía un notable contraste con las instituciones más primitivas, formalistas y flexibles que habían prevalecido en los procedimientos judiciales germánicos en siglos anteriores. De hecho, los principios de razón y de conciencia fueron proclamados por los juristas eclesiásticos como armas contra el formalismo y la magia del derecho germánico. El ejemplo más notable de esto fue el decreto del Cuarto Concilio Lateranense de 1215, que prohibió a los sacerdotes participar en ordalías.”. BERMAN, H. J. La formación de la tradición jurídica de occidente, trad. M. Utrilla de Neira, México 1996, p. 264.

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ne.4 Desarrollado bajo el ideal de asegurar que la decisión fuese consecuencia de una certeza indubitable sobre los hechos en litigio, el rigor formal (de ahí su complejidad técnica) se convertía en el antídoto para que la frágil conciencia humana, susceptible de engaño y de pasiones, pero elevada a la sacra condición de juez, pudiera llegar a aquel estado de convencimiento. A ello obedecían, no sólo un régimen estricto de nulidad por vicios in procedendo, un flexible sistema de recursos y unas amplias posibilidades recusatorias, sino también y fundamentalmente, una esquematización cualificatoria y tasada de los elementos probatorios, graduados en función de un valor objetivo de convicción asignado apriorísticamente. De este modo se esperaba que el estado de certeza fuera un exclusivo producto de las pruebas formalizadas en el proceso, sin contaminación de la sospechosa conciencia del juzgador5 . Por ello también, la rigurosa constancia escrita de todo lo actuado, hasta los más mínimos detalles, se convertía en el elemento esencial que fijaba el peculiar universo de cada proceso: “quod no est in actis, non est in scriptis, non est in hoc mundo”.6

4

Para esto y lo que sigue PÉREZ MARTÍN, A. “El ordo iudiciarius ‘ad summariam notitiam’ y sus derivados” en Historia, Instituciones, Documentos [H.I.D.], 8, 1981, pp. 195-266, ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal en Castilla – Siglo XIII-XVIII, Salamanca 1982. pssim, esp. pp. 13-63; VALLEJO, J. “La regulación del proceso en el Fuero Real: desarrollo, precedentes y problemas” en A.H.D.E., LV, 1985, pp.495-695; BERMEJO CASTRILLO, M.A. “Evolución del proceso penal en el ordenamiento español. El ejemplo de la prueba” en SCHOLZ, J.M – HERZOG, T. (eds.) Observation and Comunication. The construction of realities in the Hispanic World, (Ius Commune n. 101), Frankfurt am Main 1997, pp. 563-605. Un panorama sobre la historiografía procesal española, en VALLEJO, J. “Historia del proceso, procedimiento de la historia. Diez años de historiografía procesal en España” en CLAVERO, B., GROSSI, P., Y TOMÁS Y VALIENTE, F. (coords.), Hispania, entre derechos propios derechos nacionales: atti dell’incontro di studio Firenze-Lucca 25-26 de mayo 1989, Milán 1990, t. II, pp. 885-913, y tiene interés, del mismo autor su “Recensión a M.P. Alonso, El proceso penal, en A.H.D.E, LV, 1985, pp. 818-820; ALONSO ROMERO, M. P. “El proceso penal en la Castilla moderna” en Estudis, 22, 1996, pp. 199-215.

5

SALVIOLI, G. “Storia della procedura civile e criminale”, en DEL GIUDICE, P. (dir) Storia del diritto italiano, v. III, 2 t, Florencia 1696, esp. t. 2, pp. 465 y ss; LÉVY, J. P. “L’évolution de la preuve, des origines a nos jours”; ID., “Le problème de la preuve dans les droits savants du Moyen Age”, ambos en RECUEILS DE LA SOCIETE JEAN BODIN, XII, Bruselas 1965, pp. 9-70 y pp. 137-167, respectivamente; ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal...pp. 222 y ss.

6

El aforismo aparece recogido en una de las más divulgadas obras sobre el procedimiento de la literatura del ius commune, DURANTE, G. Speculum iudiciale, Lugduni 1539, cit. por ALONSO ROMERO, M. P.. “El solemne orden de los juicios. La lentitud como problema en la historia del proceso en Castilla”, en Derecho y proceso. Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, n. 5, 2001, pp. 23-53, p. 28. “Las instrucciones impartidas a los inquisidores romanos del siglo XVII, por ejemplo, les recomendaban que se aseguraran de que el notario, que debía estar presente en todos los interrogatorios, transcribiera «no sólo todas las respuestas de los acusados, sino también cualquier otra observación y comentario que pudiera hacer y toda palabra que pronunciaran bajo tortura, incluso todos los suspiros, todos los gritos, todos los lamentos y sollozos»” BURKE, P. Hablar y Callar. Funciones sociales del lenguaje a través de la historia, trad. de Alberto L. Bixio, Barcelona 1996, p. 33. La cita dentro de la cita corresponde a MASINI, E. Sacro Arsenale, Bolonia, 1665, p. 157. En este sentido se ha sostenido que en el origen del procedimiento canónico el interés por la constancia escrita era tan exagerada que “claramente revela un elemento de magia”, BERMAN, H. La formación.... p. 265.

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Ciertamente que este esfuerzo cultural no se articulaba en torno a la necesidad de proteger unos derechos individuales por entonces inimaginables, sino que se orientaba en función del respeto a un orden objetivo custodiado por teólogos y juristas, adjudicado a una razón divina y natural, y asumido como orden de justicia – en sentido absoluto – tanto para cuestiones formales como sustanciales. Si había un orden procesal era porque así debía hacerse justicia. Aquella noción ontológica de justicia se sobreponía a cualquier disposición positiva y hacía impensable una vinculación de los jueces a la ley humana por mera razón de obediencia política. Entre los arcanos de aquel orden explicitado trabajosamente en la literatura de la jurisprudencia civil y canónica se debían encontrar las formas y las razones para hacer justicia. Razones que la no obligatoriedad de fundamentar las sentencias permitía conservar en secreto7 . En consecuencia, a falta de un control de legalidad (de lex positiva), el respeto a las formalidades procesales junto con el riguroso estatuto personal de los jueces se presentaban como los mecanismos de garantía de justicia, en un orden social en el que el poder político fluía por medio de dispositivos esencialmente jurisdiccionales8 . Del mismo modo que ocurría con los principios estructurales de la sociedad de antiguo régimen, los elementos esenciales del orden procesal se consideraban fundados en el derecho divino. No faltaban las referencias a los textos sagrados para sostener la necesidad de seguir un orden formal previo al castigo. La imagen de dios que aún sabiéndolo todo inquiere igualmente a Adán sobre su pecado, era el punto de partida para considerar el origen divino de la citación y de los juicios. 9 Por su asignación a ese orden natural, una mínima formali7

La regla general del Ius commune sostenía que, “Iudex non tenetur exprimere causam in sententia” y ello se fundaba en “propter praesumptionem iuris quae est pro iudice”. La regla de no motivar se relacionaba así directamente con la praesumptio iuris que dotaba al juez de una especial auctoritas iudiciaria que podía ser puesta en duda si, con motivo de dar un fundamento, se insertaba en la sentencia una causa falsa. MASSETTO, G. P. “Sentenza (diritto intermedio)”, en Enciclopedia del Diritto, XLI (1989), pp. 1200-1245, p. 1224..

8

Para dichas garantías de justicia, en la experiencia castellana, véase GARRIGA, C. y LORENTE, M. “El juez y la ley: la motivación de las sentencias (Castilla, 1489-España, 1855) en Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, 1 (1997), p. 97-142. Sobre el carácter esencialmente jurisdiccional de los mecanismos de poder político en el antiguo régimen, COSTA, P. Iurisdictio. Semantica del potere politico medioevale (1100-1433), Milano 1969; HESPANHA, A. M. “Representación dogmática y proyectos de poder” en ID., La gracia del derecho. Economía de la cultura en la Edad Moderna, Madrid 1993, pp. 61-84. VALLEJO, J. Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normativa (1250-1350), Madrid 1992.

9

Estas referencias en la doctrina pueden verse en, ALONSO ROMERO, M. P. “El solemne orden de los juicios…p. 42 y en ALESSI PALAZZOLO, G. Prova Legale e Pena - La crisi del sistema tra evo medio e moderno, Napoli 1979, p. 370.

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dad y justificación previas a cualquier acto represivo resultaba incluso oponible legítimamente al propio poder del rey. Como decía un jurista castellano del XVI, “quando el Rey por algun enojo, sevicia, o passion, sin orden, è inadvertidamente mandasse quitar la vida à alguno, que entonces no se ha de obedecer a la tal provisión, ò cédula...”. 10 Pero el orden del proceso funcionaba como garantía de justicia en la medida en que fuesen respetados sus elementos esenciales que se hacían operativos en calidad de iura naturalia. Extensivos a toda clase de procesos, esos elementos comprendían el derecho de ser citado y oído, el de conocer los nombres de los testigos de cargo, así como los postulados que afirmaban el derecho a la recusación, y las interdicciones de ser juez en causa propia y de condenar dos veces al mismo reo por el mismo delito. 11 A través del juego de estos principios la jurisprudencia establecía las condiciones procesales requeridas para hacer justicia y, entre ellas, las referidas a la prueba y la certeza necesaria para condenar en el fuero criminal. Los textos jurídicos explicaban que las pruebas para llegar a una condena justa debían ser “leales, e verdaderas, e sin ninguna sospecha”, al tiempo que pudieran considerarse “ciertas, claras como la luz, de manera, que non pueda sobre ellas venir dubda ninguna”.12 Con este tipo de afirmaciones se pretendía excluir condenas basadas en meras sospechas o pruebas indirectas. La exclusión de los indicios como prueba suficiente para la condena constituía una regla axiomática en el procedimiento penal del ius commune.13 Por contrapartida, la confesión era estimada como “probatio luce clarior”14 , y representaba así el extremo opuesto a la insuficiencia de los

10

CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política para corregidores y señores de vasallos, en tiempo de paz, y de guerra (1597), Amberes 1704, ed. facsimilar Madrid 1978, Lib.II, Cap.X, n.76 y en general, ns.69-78. Y no era precisamente un jurista del que se pudiera dudar de su devoción al príncipe y de su clara tendencia regalista. Cfr. últimamente TRUMAN, R. W. Spanish treatises on government, society and religion in the time of Philip II. The ‘De Regimine Principum’ and associated traditions, Leiden, Boston, Köln, 1999, pp. 164 y ss.

11

GORLA, G. “«Iura naturalia sun immutabilia». I limiti al potere del «Principe» nella dottrina e nella giurisprudenza forense fra i secoli XVI e XVIII” en Diritto e potere nella teoria europea - Quarto Congreso Internazionale della Societá Italiana de Storia del Diritto, v. 2, Firenze 1982, pp. 629-684, p.639-640.

12

Las Siete Partidas glosadas por el Licenciado Gregorio López (1555) ed. facs., Madrid 1985, P. 7, 1, 26. [Se cita el número de partida, título y ley respectivamente].

13

“...dicit Gandinus…q omnes sapientes, quos Bononiae & alivi, dixerunt: & ita vidit consuetudine observari, q propter talia indicia, vel similia, non possit quis diffinitivè in personam damnari…” LÓPEZ, Gregorio, glosa “Dubda ninguna” a P.7, 1, 26.

14

Ibíd., glosa “Ciertas, e claras”, citando palabras de Bartolo.

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indicios, haciendo plena prueba para la condena15 . Dos testigos “mayores, de toda excepción”, deponiendo lo que habían presenciado, (“de ciencia cierta”) también hacían “plena probanza bastante para condenar”.16 Por debajo de la plena prueba, por un fraccionamiento matemático (“pues si dos testigos hacen plena prueba, uno la hará semiplena” 17 ), se introducía la prueba semiplena que normalmente no era suficiente para condenar a una pena ordinaria, pero sí para proceder contra el reo y someterle, en su caso, a tormento; y así se podía seguir descendiendo en el valor de cada elemento de sospecha. Los enunciados axiológicos que orientaban este tipo de discurso probatorio pretendían que la condena estuviese basada en una certeza producto de evidencia objetiva y, en consecuencia, no se admitía que la libre convicción del juez fuese razón suficiente para decidir. Por ello los indicios no hacían plena prueba, porque ellos sólo producían “cierta inclinación del ánimo” en el juez, lo que no servía para fundar una decisión sobre la vida de un hombre.18 Bajo determinadas condiciones, en dicho contexto, se podía sostener que era más razonable arrancar la confesión por el tormento, que condenar sobre la base de indicios. Desde este punto de vista, el tormento tenía su justificación discursiva junto con todos aquellos elementos que debían operar para evitar una condena sin pruebas suficientes: “…iudex qui non habet aliam probationem quam indicia quaecunque sint, tutius faciet si extorqueat confessionem per torturam...”.19 Como

15

“E porende el Judgador, ante quien es fecha la conocencia, debe dar luego juyzio afinado por ella; si sobre aquella cosa que conocieron fue començado el pleyto ante por demanda, e por respuesta. Esso mismo dezimos, si la conocencia fuesse fecha en juyzio en pleyto criminal, en qual manera quier”P. 3, 13, 2. A tal punto se consideraba plena prueba, que no faltaban autores que la equiparaban a los casos de notorium iuris, ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal…p. 228. El punto de conexión entre confesión y delito notorio, se daba bajo el concepto de notorium iuris, construido a partir del principio “confessus pro iudicato”, Cfr. LÉVY, J. P. “Le problème de la preuve dans les droits savants…, p. 164; SALVIOLI, G. “Storia della procedura..., t. 2, p. 445 y 457. Sin embargo, en las prácticas del XVII, ya se había comenzado a considerar que la sola confesión no era suficiente para la condena, si al menos no iba acompañada de otros elementos o constaba claramente en ella el delito. Cfr. HEVIA BOLAÑOS, J. de, Curia Philipica, (1603), Madrid 1771, P. III, § 13, n. 14, p. 222.

16

HEVIA BOLAÑOS, J. de, Curia Philipica…P. III, § 15, n. 11, p.226; v. P 3, 14, 12.

17

GUTIÉRREZ, J. M. Compendio de las Varias Resoluciones de Antonio Gómez, Madrid 1789, pp. 75-77.

18

Generalmente la rigidez de este sistema probatorio suele explicarse en consideración a los cambios que implicaba pasar de un sistema de intervención divina a otro que debía confiar en los hombres para hacer justicia. Langbein lo ha expresado muy gráficamente: “How could men be persuaded to accept the judgment of professional judges today, when only yesterday the decision was being remitted to God? The system of statutory proofs was the answer. Its overwhelming emphasis is upon the elimination of judicial discretion, and that is why it forbids the judge the power to convict upon circumstantial evidence.” LANGBEIN, J. Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien Règime, Chicago 1977, p. 6.

19

Así lo podía afirmar el glosador de las partidas, citando a Baldo:, LÓPEZ, G., glosa Dubda ninguna, P.7, 1, 26.

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lo señalaba un autor castellano del siglo XVII, siguiendo esta misma idea, “donde no se practica [el tormento], usan los jueces de otro estremo, en mi sentir, peligroso, pues en delitos de pena capital, los indicios que aquí son suficientes para una rigurosa tortura, allá son bastantes para que en su consequencia se condene el reo a muerte, y respectivamente parece especie de impiedad”20 . La impiedad consistía en imponer una pena ordinaria sin haber alcanzado el estado de plena prueba. El rigor esquemático de las reglas probatorias, el valor que en ellas se asignaba a la confesión y el marcado cariz inquisitivo que adquirió el procedimiento ordinario convirtieron al tormento en un paso casi inevitable del enjuiciamiento criminal21 , aun cuando siempre hubiera habido dudas de su eficacia e incluso pudiera dudarse de su justicia. Los textos romanos que los juristas bajomedievales utilizaban como depósito de legitimación del ius commune advertían sobre la falibilidad del tor-

20

FERNANDEZ DE HERRERA VILLARROEL, G. Practica Criminal (1672) Madrid 1756, p. 231.

21

Las explicaciones más convincentes de la historia jurídica se orientan a ver en el rigor del sistema probatorio la clave para entender la relación de dependencia entre la confesión arrancada compulsivamente y el éxito del proceso penal. Cfr. LANGBEIN, J. Torture and…, pp. 5-12. “Los rigores de la prueba, tanto formal como racional, eran tales que a menudo resultaba muy difícil establecer los motivos de convicción en casos penales. Fue este hecho más que ningún otro el que con el tiempo condujo al difundido uso de la tortura para arrancar testimonios y especialmente para obtener la ‘reina de las pruebas’: una confesión. En los casos en que se dudaba del estado mental del acusado – los casos de herejía eran el primer ejemplo – nadie estaba calificado para prestar testimonio con respecto a su estado mental más que el propio acusado, y no había manera más segura de obtener su confesión de un estado mental delictuoso que el empleo de la fuerza física” BERMAN, H. La formación…, p. 265. Destacándose también el papel de la confesión en el procedimiento romano canónico: “A diferencia del derecho griego y el romano, el lugar de la confesión en el procedimiento legal, y no el estatus del acusado o la naturaleza del crimen, explica la reaparición de la tortura en el derecho medieval y de comienzos de la era moderna” PETERS, E. La tortura, trad. por Néstor Miguez, Madrid, 1987, p. 65 . Igualmente Alec Mellor: “El sistema inquisitorio, es por el contrario [en relación al acusatorio], un sistema docto. Sus pruebas son el escrito, el testimonio, y sobre todo la confesión, y es el alto valor reconocido a este último sistema lo que explicará el desarrollo de la tortura” MELLOR, A. La tortura, trad. por José Goñi Urriza y German O. Galfrascol, Buenos Aires 1964, p. 64. En un análisis de mayor profundidad filosófica, también Michel Foucault pone el acento en la confesión como una necesaria representación de la instrucción escrita típica del proceso inquisitorio; y a partir de allí la necesidad de la tortura: “Por la confesión, el propio acusado toma sitio en el ritual de producción de la verdad penal. Como lo decía el ya derecho medieval, la confesión convierte la cosa en notoria y manifiesta...” “...debe ser, en el procedimiento, la contrapartida viva y oral de la instrucción escrita,...debe ser su réplica...” “Esta doble ambigüedad de la confesión (elemento de prueba y contrapartida de la información; efecto de coacción y transacción semivoluntaria) explica los dos grandes medios que el derecho criminal clásico utiliza para obtenerla: el juramento que se le pide prestar al acusado antes de su interrogatorio...; la tortura (violencia física para arrancar una verdad que, de todos modos, para constituir prueba, ha de ser repetida después ante los jueces, a título de confesión “espontánea”) FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar, trad. de Aurelio Garzón del Camino, 12ª. ed. en español, México, 1987, p. 44 - 45

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mento 22 . Por otra parte los juristas, conociendo esa advertencia, no dejaban de interrogarse a cerca de lo injusto que parecía someter a un trance doloroso a alguien por unas simples sospechas 23 . En virtud de estas consideracións todos advertían que la cuestión del tormento era materia muy delicada y peligrosa y, en consecuencia, la disciplina teórica de la institución era muy rigurosa: Sólo se daría tormento cuando de la fase de investigación resultasen pruebas contra el acusado pero no suficientes como para alcanzar el estado de plena prueba (no se daría si este estado se hubiese alcanzado por otra vía) y cuando no hubiese otro modo posible de alcanzarlo (carácter subsidiario de la cuestión). En ese estado probatorio intermedio, sólo se daría tormento cuando el delito investigado estuviese castigado con una pena aflictiva o con pena de muerte, de suerte que no resultase la investigación más gravosa que la probable pena (nunca se daría en caso de delitos leves o castigados con destierros o penas pecuniarias). Sólo se ejecutaría tormento cuando el reo fuese de condición no privilegiada o no pudiese alegar a su favor ninguna de las inmunidades que la jurisprudencia concedía en función de la condición estamental o física o en virtud de otros intereses colectivos, como aquellos que ejercían un oficio útil para la república. Como cualquier decisión interlocutoria que causaba un gravamen irreparable, la sentencia que ordenaba el tormento era, en teoría, siempre apelable. El juez era responsable si por exceso el reo quedaba lesionado o moría durante 22

“Se declara en las Constituciones, que ni siempre, ni nunca, se ha de dar crédito al tormento, porque es cosa frágil y peligrosa, y que miente la verdad; porque muchos con su sufrimiento o resistencia para los tormentos de tal modo menosprecian los tormentos, que de ninguna manera se les puede arrancar la verdad; otros, son de tan poco sufrimiento, que prefieren mentir sobre cualquier cosa a sufrir los tormentos;…” Digesto 48, 18, 1, par. 23. Cuerpo del Derecho Civil Romano, a doble texto traducido al Castellano del Latino, publicado por los hermanos Kriegel, Hermann y Osenbrüeggen, con las variantes de las principales ediciones antiguas y modernas y con notas de referencia por el Dr. Idelfonso García del Corral, Barcelona, 1898. Esta misma idea puede encontrarse en casi todas las fuentes de la época e incluso utilizada como argumento en las del movimiento abolicionista del silgo XVIII.

23

“An sit justum torqueri delinquentem?”, se pregunta Antonio Gómez, el príncipe de los jurisconsultos hispanos, en el primer punto que le dedica a la cuestión del tormento. Tras reconocer la apariencia de injusticia y acusar noticia de la advertencia del Digesto, viene la justificación basada en el bien público y la necesidad de reprimir los delitos ocultos. La injusticia es sólo aparente porque el tormento tiene la autoridad del derecho común y porque se da bajo unas condiciones precisas que estipula su disciplina: “Et in primis videtur, quod iniquum & injustum sit, quòd homo liber torquatur, & dilaceretur pro eruendo delicto in casu dubio & incerto: quia fortè dolore & tormento confitebitur contra veritatem quod non fecit; màxime, quia illo tempore non videtur compos mentis, nec in pleditudine intellectus, …. Sed sustinendo ius commune dico, quòd imo est justum & rationabile pro bono publico, ne delicta remaneant impunita: quia aliàs, cùm regulariter delicta fiant occultè, vix posset veritas cognosci, & daretur materia delinquendi, & sequeretur maximun praejudicium reipublicae. Confirmatur etiam, quia tortura semper datur praecedentibus indiciis, & sic videtur justa. Item etiam, quia requiritur ratificatio confessionis postea ex intervallo liberè, & sine tormento.” GOMEZ, A. Variae resolutiones juris civilis, communis et regii, libri tres (1552) Madrid 1780, cap. XIII, n.1, p. 265.

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la cuestión. Por eso se desaconsejaba usar métodos insólitos o exquisitos que no estuvieran avalados por la práctica y la opinión común de los doctores. Antes de la ejecución se recomendaba conminar tres veces al reo para que confiese libremente (la última una vez puesto ya en el potro). Para que la confesión obtenida en el tormento pudiese ser usada contra el reo, es decir, para que fuese judicialmente válida, debería ser ratificada “libremente” por el propio acusado un día después de la tortura en un sitio apartado del escenario de la ejecución y lejos de la vista de los instrumentos utilizados para torturarle. En caso de que el reo se negase a ratificar su confesión se podría proceder a la reiteración del tormento según la condición social del acusado, la gravedad del delito y la vehemencia de los indicios, pero en ningún caso se sometería al reo a más de tres sesiones de tortura. Finalmente, si después de todo el reo no confesaba o se negaba a ratificar lo afirmado durante la tortura (incluidas sus reiteraciones) se le dejaría libre, absolviéndolo de culpa y cargo por considerarse demostrada su inocencia24 . Con estas normas se modelaba un instituto que sabiéndose delicado y peligroso y aún siendo en apariencia injusto, se creía entonces necesario para probar y castigar los delitos graves y ocultos.

III. ORDEN PROCESAL Y CONTEXTO CULTURAL Si el orden procesal del derecho común y sus reglas de prueba pueden calificarse de “racionales” por oposición al orden de creencias que domina la lógica de las ordalías, es necesario recordar la distancia cultural que separa al mundo del derecho común de la “racionalidad” que consideramos hoy como valor de un determinado esquema institucional.25 . Como hemos visto, se considera que el orden procesal romano canónico se impuso en nombre de 24

La disciplina podía variar en algún detalle de un lugar a otro, pero estos eran los postulados esenciales del instituto según la literatura del derecho común. Para esta síntesis, además de las fuentes a las que hacemos referencia a lo largo del trabajo, especialmente todas las leyes del título 30 de la Partida 7 y sus glosas respectivas, hemos usado FIORELLI, P. La tortura giudiziaria nel diritto Comune, 2 t., Milano 1953-54, esp. t. 1, caps. III, IV y V y t. 2, caps. VI, VII y VIII; TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura en España, 2ª edición, Barcelona 1994; ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal…p. 248 y ss.; ALONSO ROMERO, M. P. “La tortura en Castilla (siglos XIII-XIX) en DURAND, B. (ed.) La torture judiciaire. Approches historiques et juridiques, Lille 2002, pp. 477-506, passim.

25

Últimamente se debate sobre la conveniencia o no del uso de adjetivos tales como racional/irracional para calificar un sistema de prueba de una experiencia cultural pasada. Volveremos luego sobre este tema. Por ahora remitimos a VAN CAENEGEM, R. C. “Reflexions on rational and irrational modes of proof In medieval Europe” en Revue d’Histoire du Droit, n. LVIII-3, 1990, pp. 263-279.

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los principios de razón y de conciencia que “fueron proclamados por los juristas eclesiásticos como armas contra el formalismo y la magia del derecho germánico”.26 Y es cierto que el proceso judicial bajomedieval representa un cambio importante en el modo de resolver las disputas desde que se orienta en función de un esquema que pretende ser cognoscitivo y que, al mismo tiempo, implementa una poderosa tecnología como la escritura que facilita, entre otras cosas, el control jerárquico y que por entonces apenas estaba difundida más allá de los altos tribunales27 . Es cierto que hay indagación y que se busca la comprobación histórica de un enunciado como razón para una decisión que se asume humana (o casi humana si consideramos el carácter sagrado que se asigna a los jueces), y que no depende, en principio, de una manifestación directa de dios. Aun así existen precondiciones culturales que operan sobre la comprensión de las instituciones jurídicas y que conforman su contexto de significación que no podemos dejar de lado cuando miramos cualquier experiencia jurídica pasada. No nos referimos sólo a las concepciones que dan fundamento a un orden social radicalmente ajeno al nuestro, como serían la firme creencia en el carácter originario (no convencional) del orden político, la primacía ontológica de lo colectivo sobre lo individual con todas sus consecuencias en cuanto a la estructura corporativa y desigualitaria de la sociedad y a la elisión del individuo como sujeto del discurso jurídico político28 . Este orden de creencias que da sentido a un determinado discurso de poder ya de por sí impone una axiología y, por lo tanto, un sentido de justificación diferentes de los que orientan hoy nuestras instituciones jurídicas. Pero además, hay una diferencia importante con respecto al saber y a la verdad. La episteme que controla el discurso probatorio hace que difícilmente la hipótesis de acusación de un procedimiento criminal se configure sin más como un enunciado empíricamente verificable o refutable al modo que hoy entendemos estas operaciones como garantía de racionalidad de un sistema procesal29 . En la sociedades de

26

BERMAN, H. La formación…, p. 264.

27

Sobre la oposición entre cultura oral y cultura escrita aplicada al estudio del orden jurídico del antiguo régimen, HESPANHA, A.M. “Sabios y rústicos. La dulce violencia de la razón jurídica” en ÍD., La gracia del derecho..., pp. 17-60.

28

Una buena síntesis de los elementos que definen el paradigma bajo el cuál han de interpretarse las instituciones del antiguo régimen puede verse en HESPANHA, A. M. “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime” en ÍD. (comp.), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Colectãnea de textos, Lisboa 1984, p.7-89. Para las concepciones fundamentales que informan el orden medieval, véase GROSSI, P. El orden jurídico medieval, trad. F. Tomás y Valiente y C. Álvarez, Madrid 1996.

29

Para ello véase FERRAJOLI, L. Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal, trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Madrid 1995, esp. pp. 33-70.

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antiguo régimen los hombres conviven e interactúan permanentemente con entidades metafísicas. Hablan con un dios y con entidades tales como “santos”, o “ángeles” y están convencidos, salvando siempre la posibilidad de una extraña minoría escéptica, de que dichas entidades metafísicas intervienen positiva o negativamente en el destino y en la suerte de la cada una de las corporaciones y de sus miembros. La cultura moderna – y especialmente la cultura jurídica – sigue siendo un ámbito en el que no sólo las normas constituyen un dato natural con todo lo que ello implica (ontologismo ético), sino que sigue siendo un sistema de comunicación en el que aun fenómenos típicamente metafísicos pueden ser considerados dentro del discurso de la prueba; fenómenos que sólo un profundo orden de creencias densamente compartido hacen “existentes”. Por otra parte, no se debe olvidar que el proceso penal, como técnica oficial de represión, en este contexto se presenta como una instancia secundaria frente a espacios de socialización y represión de calado mucho más profundo que tienen que ver directamente con aquellas realidades trascendentes30 . Para el jurista castellano de la edad moderna, por ejemplo, la justicia penal podía ser vista como un paliativo frente ante el fracaso de los remedios espirituales contra el mal.31 Más allá de las matizaciones teóricas sobre las relaciones entre delito y pecado, el trasfondo cultural común imponía una “indistinción de base”.32 Y por aquí se pueden intuir ya conexiones que explican el valor asignado a una institución y que resultan implícitas en el discurso jurídico, por ser parte del contexto cultural silenciosamente compartido33 . Pero amén de ello, el lenguaje trascendente no quedaba reservado, como en la actualidad, al culto privado o a ritos protocolarios, sino que estaba inextricablemente entrelazado con el propio discurso jurídico político. Los enunciados que ponían de

30

Como lo ha sostenido Clavero, “gran parte de la prevención e incluso de la represión se encauzaba de hecho por el campo religioso con relativa neutralización del judicial.” CLAVERO, B. “Delito y Pecado. Noción y escala de transgresiones” en TOMÁS Y VALIENTE, F; CLAVERO, B. y otros, Sexo barroco y otras transgresiones premodernas, Alianza, Madrid 1990, pp. 57-89, p. 78.

31

“Pintan a la justicia con una espada desnuda en la mano, para que con el cuchillo y fuerça de la pena secular, reprima y castigue aquellos que desahuziados y desamparados de los médicos espirituales no quieren emendarse”. El fracaso de los “médicos espirituales” daba lugar a la intervención quirúrjica del juez secular: “...la dicha espada y cuchillo es para cortar la carne podrida y corrompida de los vicios, los quales son enfermedad de la República” CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política..., , Lib. II, Cap.II, n.53.

32

CLAVERO, B. “Delito y Pecado…., p. 64.

33

“Dada la similitud entre delito y pecado, entre pena y penitencia, como un reflejo más de la presencia viva de las ideas religiosas en el mundo de entonces, no es extraño que se creyera que nada mejor para saber si un hombre es culpable, que su propia confesión…”. TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura…p. 101.

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manifiesto la creencia en conexiones para nosotros metafísicas formaban parte de ese discurso y tenían un alto grado de operatividad en dicho contexto. En este mundo no resulta un hecho irrisorio que una comunidad decidiese formalizar un proceso judicial contra las plagas que asolaban sus cosechas, procediéndose a nombrar a una serie de santos como abogados tanto de la comunidad (por el lado de la acusación) como de la plaga (por el lado de la defensa), buscando con una condena judicial formalmente emitida que se alejase el mal y cesase el daño que la acusada infligía a la corporación.34 En ocasiones, el propio deber de las autoridades de castigar las transgresiones y actuar con justicia se articulaba mediante un discurso que ponía en primer plano la responsabilidad corporativa de la comunidad ante los ojos de la divinidad. Se hablaba entonces de la necesidad de reprimir pecados públicos y lograr una recta administración de justicia para obtener la gracia divina y mejorar así el destino de la república. Para ello se decía que debían funcionar mancomunadamente los re-medios seculares y espirituales35 . En el mundo moderno de la llamada Monarquía Católica, este misticismo no era característica particular de los espacios periféricos, poco cultos o rústicos. Un mismo lenguaje informaba tanto el discurso normativo que emanaba de la corte, como las ordenanzas y bandos que podían gestarse en el seno de una comunidad municipal en la remota frontera del imperio36 . Si reconocemos este contexto, entonces podemos ver otros aspectos relacionados con la práctica del tormento cuya significación parecía más cercana al mundo de simbólico de los juicios de dios que al de un

34

TOMÁS Y VALIENTE, F. “Delincuentes y pecadores” en TOMÁS Y VALIENTE, F; CLAVERO, B. y otros, Sexo barroco.., pp. 11-31.

35

Léase, por ejemplo, el siguiente texto del siglo XVII: “Noticioso el Rey de que los ministros de justicia por sus fines particulares, no obstante la vida licenciosa de todo género de gente, castigaban sólo a los pobres: y por cuia causa Dios los havía castigado, ya perdiendo sus thesosros, y ya por infelices sucesos de sus armas, y exércitos: mandó al Virrey, y audiencias de Nueva España y Philipinas procurasen con mucho cuidado y diligencia se pusiese en los que pudiesen causar escándalo en la república administrando xusticia con igualdad, amparando a las viudas, huérfanos y desvalidos; pues de haver enmienda se esperaba que Su Magestad Divina templase su justicia, y ayudase los sucesos de sus reynos encargándoles sobre todo la conciencia” Cédula de 15 de febrero de 1633. AYALA, M. J. de Diccionario de gobierno y legislación de las Indias, (Edición y estudio Marta Milagros del Vas Mingo), Madrid 1993, t. XI, voz “Pecados públicos”, pp. 86.

36

Me he ocupado tangencialmente de la cuestión en mi tesis doctoral, AGÜERO, A. Espacio local y jurisdicción criminal en el antiguo régimen. La justicia penal en Córdoba del Tucumán (siglos XVII y XVIII), tesis doctoral inédita presentada en la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid 2003, esp. caps. IV y V.

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método racional de comprobación de la verdad37 . Los historiadores de las instituciones prefieren matizar posiciones como la sostenida por Hans Fehr quien asignaba tanto a las ordalías como a la tortura la misma función de instrumentar una lucha contra el demonio que la mentalidad medieval consideraba encarnado en el delincuente 38 . Sin embargo, como veremos luego, no faltaban elementos en la cultura para pensar que la resistencia del reo a confesar su delito era una consecuencia directa de un pacto con el demonio. Aunque con la tortura no se dejaba librada la resolución del caso a la intervención divina, no por ello su significación estaba por completo desconectada de una persistente creencia en una justicia inmanente que se pone de manifiesto por medio de una prueba (en sentido experimental), del mismo modo que había ocurrido durante siglos con las ordalías. La purga de las pruebas de cargo previas al tormento, uno de los efectos característicos de la tortura del derecho común, guarda relación con esta lógica. Se decía que la tortura se daba “para que por medio del dolor que padecen los reos… ó conste con perfeccion el delito que cometieron, ó purgando los indicios, manifiesten su inocencia...”39 La purga de los indicios puede ser vista como consecuencia de esa suerte de castigo anticipado que significa el tormento, en la medida en que los dolores inflingidos al reo funcionan como una respuesta por la culpa no del delito que se juzga, sino por la de haber dado lugar a las sospechas que llevaron al reo a estar en situación de ser atormentado. De este modo, como decía Foucault, “el sufrimiento reglamentado del tormento es a la vez una medida para castigar y un acto de información.”40 Pero si esto era así y los mismos juristas del antiguo régimen llegaron a

37

Aunque sostiene que la tortura significa “il superamento logico delle ordalie”, FIORELLI da cuenta de las opiniones que han sugerido la presencia de elementos ordálicos en la tortura y admite que tortura y ordalías pueden darse conjuntamente, aunque en período de transición y en instable convivencia. La tortura giudiziaria… , t. 1, p. 8-9. Una interesante comparación desde el punto de vista funcional entre ordalías y tortura puede verse en BARTLETT, R. Trial by fire and water. The Medieval Judicial Ordeal, Oxford 1986, p. 142-143.

38

FIORELLI, P. La tortura giudiziaria… , t. 1, pp. 218-219; BARTLETT, R. Trial by fire and water…, p. 143, ambos referidos a los estudios de FEHR, H. “Gottesurteil und Folter”, en Festschrift für Rudolf Stammler, BerlinLeipzig 1926, pp. 231-254 y “Tod und Teufel im alten Recht”, en la Zeitschrift der Savigny-Stiftung, Germanistische Abteilung, LXVII, 1950, pp. 50-75.

39

QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, Madrid 1632, P. II, Cap. I, n. 1, f. 72.

40

FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar, trad. de Aurelio Garzón del Camino, 12ª. ed. en español, México 1987, p. 48.

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formularlo en estos términos41 , quizás sea también porque había detrás de este efecto de la tortura una lógica más profunda y más antigua42 . Ese castigo por las sospechas no es otra cosa que la purga de la infamia, vale decir, algo así como la demostración de la inocencia a través de la resistencia al dolor43 . Precisamente por esta conexión característica del mundo de las ordalías que jugaba detrás del lenguaje procesal moderno, es que aquella doble función que señalaba Foucoult tenía lugar. Por esa razón un mismo acto podía ser a la vez castigo y parte, más que de una información, de una demostración. Desde este punto de vista la tortura era un mecanismo de purga tal como lo habían sido las pruebas ordálicas y como lo seguiría siendo el juramento compurgatorio ya en tiempos posteriores. No es extraño que en la práctica inquisitorial la difamación de herejía pudiese neutralizarse bien por el juramento compurgatorio bien por la resistencia en una sesión de tortura44 . Se comprende así otra regla característica de la tortura del derecho común: que la intensidad del tormento estuviese graduada, junto con otros criterios, en función de la gravedad de los indicios. ¿Cuándo puede decirse que un acusado ha sido torturado suficientemente? se pregunta un doctor en derecho canónico y civil del siglo XVI que ha tomado el trabajo, por encargo del papado, de editar y comentar un manual para inquisidores escrito dos siglos antes por el dominico Nicolau Eimeric. “Se dirá cuando sea evidente para los jueces y los expertos que ha sufrido, sin confesar, tormentos de una gravedad comparable a la gravedad de los indicios. En esas circunstancias se entenderá que ha expiado suficientemente los indicios con la tortura (ut ergo intelligatur quando per torturam indicia sint purgata)”.45 41

“El tormento es invención de dos objetos: de averiguar el delito y delinquente, y castigarlo con él, por sus méritos...”, así se expresa Villanova y Mañes en una de las últimas prácticas criminales del antiguo régimen hispano, mostrando el carácter punitivo del tormento. Según este autor, en determinadas circunstancias el tormento funcionaba como pena por los indicios previos que existían en contra del reo. VILLANOVA Y MAÑES, S. Materia Criminal Forense, ó Tratado Universal teórico práctico de los delitos y delinquentes en género y especie para la segura y conforme expedición de las causas de esta naturaleza, Madrid 1807, p. 331

42

En este carácter “híbrido” de una institución que tiene función procesal y al mismo tiempo constituye un adelanto de la pena encuentra el rasgo común entre tortura y ordalía, DE LUCA, G. “La tortura nei rapporti tra processo e pena”, en Rivista di diritto processuale, IV (1949), P. I, pp. 318-335, esp. 323-324.

43

Sobre el estrecho parentesco entre la tortura judicial y los métodos de purga, especialmente en el derecho canónico, FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 232-235.

44

FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 233.

45

PEÑA, F. El manual de los inquisidores por el hermano Nicolau Eimeric, dominico. Aviñón 1376. Con comentarios de Francisco Peña doctor en derecho canónico y en derecho civil. Roma 1578. Introducción, traducción y notas de Luis Sala-Molins. Versión castellana por Francisco Martín, Barcelona 1996, p. 189.

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La conexión de proporcionalidad entre la gravedad de los indicios y la intensidad del tormento resulta difícil de explicar desde nuestro punto de vista racional si se mira a la tortura como un exclusivo método de conocer la verdad. En todo caso, mas cercano a nuestro mundo resulta la conexión entre la robustez del reo y la intensidad del tormento. Este criterio era igualmente considerado por los juristas, pero en concurrencia con la gravedad de los indicios. Así lo expresaba, por ejemplo, un magistrado castellano de finales del XVI, cuya obra constituye el manual práctico para jueces inferiores más prestigioso del mundo hispano del antiguo régimen: Y yo digo,- decía Castillo de Bovadilla - que el tormento es como la purga, la cual se aplica y regula respecto del humor que ay en el cuerpo enfermo: porque si ay mucho, ha de ser la purga mas recia: assi el tormento ha de ser respecto de las fuerças del paciente, y de los indicios: y si siendo aquellos graves y urgentes, se da poco tormento, no quedan evacuados ni enervados46 . Así pues este castigo/demostración dado con motivo de los indicios contra el reo tenía en parte esa significación que hoy diríamos mística. No era un misticismo acotado al oscuro mundo de los inquisidores o de los tribunales eclesiásticos. La separación de fueros no implicaba separación de fundamentos culturales ni de campos normativos suprapositivos. Podía ser así también en cierto modo mística la función del juez secular que se empeñaba en arrancar la confesión no sólo para obtener un elemento de convicción, sino para redimir al reo de su culpa. No debía resultar extraño que un juez elevara plegarias a dios para lograr que el reo abandonase su resistencia y confesase. Así lo recomendaba otro juez castellano del siglo XVII, afirmando que gracias a sus oraciones había conseguido que un reo confesase después de haber resistido una primera sesión de tormento. Con satisfacción concluía nuestro juez afirmando que así pudo hacer justicia y el reo murió “santamente y bien arrepentido”.47 El mismo magistrado nos recordaba que el reo que se negaba a confesar incurría en pecado mortal y de ahí su obligación de declarar48 . En ese

46

CASTILLO DE BOVADILLA, J. Política..., Lib. V, Cap.III, n.24.

47

La anécdota la narra QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos..., f. 97. Comentada también en TOMAS Y VALIENTE, F. La tortura..., p. 102.

48

Por este motivo entendía la doctrina que el abogado defensor no podía aconsejar al reo a negar la verdad. QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos…f. 83. El comentarista del siglo XVI al manual de Eimeric explicaba que “El papel del abogado es presionar al acusado para que confiese y se arrepienta, y solicitar la penitencia del crimen cometido”. PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 168. En esta última cuestión, no obstante, había divergencia entre la práctica inquisitorial y la secular.

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contexto, el tormento recibía la legitimación de todo aquello que contribuía al arrepentimiento y, en consecuencia, a la salvación del alma del acusado. Se podría completar el misticismo de la escena si miramos ahora a las estrategias conocidas en el mundo de los reos del antiguo régimen para resistir airosos el trance del tormento y purgar así su infamia. Y no menos escatológicos resultarían los antídotos a los que los jueces recurrirían para neutralizar aquellas estrategias, sospechosos de que esa resistencia, como adelantamos, no era producto exclusivo de la inocencia, sino del empleo de fuerzas misteriosas y demoníacas. Los juristas de la modernidad reflexionaban seriamente sobre los llamados remedium contra torturam, que daban por eficaces según su experiencia personal. Del mismo modo que ocurría con las ordalías, se creía que una serie de maleficios y sortilegios tenían la virtud de hacer que el reo superase la prueba aun cuando no fuera inocente. En el caso del tormento se creía que dichos métodos lograban insensibilizar al reo frente al dolor del tormento y así le ayudaban a salir airoso de la operación49 . Eimeric los mencionaba en su Directorium inquisitorum del siglo XIV al referirse a las diversas reacciones de los reos en el tormento. “Están los embrujados, que, por efecto de sortilegios que utilizan bajo la tortura, se hacen casi insensibles: éstos morirán antes que confesar.”50 El comentarista del siglo XVI sobre este punto decía que, según su experiencia, para hacer los sortilegios los reos usaban “palabras y oraciones de los salmos de David u otras partes de la Sagrada Escritura que escribían en sus procedimientos supersticiosos en trozos de pergamino crudo que ellos llaman , mezclando a veces nombres de ángeles desconocidos”.51 Juristas de la talla de Hipólito de Marsilio, citado por nuestro comentarista inquisitorial para autorizar sus opiniones en este asunto, se hacían eco de la cuestión.52 Y no faltaba en este vasto campo del saber que entonces constituían los textos jurídicos un tratamiento preciso y detallado de dicho tipo de sortilegios.53 De rigor

49

FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 233.

50

PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 185.

51

Ibíd. p. 187.

52

Ibíd. “Multi reperuntur qui habent aliquas incantationes ut multus habui in fortiis in diversis locis et officcis” HIPPOLYTUS DE MARSILIIS, Practica causarum criminalium, Venecia 1526-1529, § Nunc videndum, n. 52, cit. en FIOLRELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 218.

53

PAOLO GRILLANDO, De sortilegiis, y también en De quaestionibus et tortura, ambos en la colección Tractatus universi iuris, vol. XI, Venecia 1584, t. II, ff. 381-398 y t. I, ff. 294-298, respectivamente, cit. en Ibíd. Francisco Peña se refiere a Grillando como un “juez muy severo en asuntos criminales” para citar su autoridad al hablar de los sortilegios contra la tortura. PEÑA, F. El manual de los inquisidores…p. 187.

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científico parecía entonces que la obra más específica en materia de tormento que se publicó en castellano durante el siglo XVII, dedicase un capítulo entero a “los remedios para sentir, ó no los tormentos”.54 Desde la simple oración a dios, pasando por pociones de sustancias diversas, palabras sacramentales repetidas durante la tortura, hasta el extraño rito de esparcirse sobre el cuerpo las cenizas de un niño asesinado y quemado antes de ser bautizado, constituían parte de este catálogo de remedios contra el tormento55 . A su vez, los jueces intentaban contrarrestar sus efectos: vigilando al reo antes de la sesión de tormento para evitar cualquier maniobra sospechosa; inspeccionando el cuerpo desnudo del reo para evitar que llevase el escrito de las palabras sagradas entre sus ropas o escondidas en alguna parte de su cuerpo; obligándole a beber un vaso de agua bendita al que se le agregaba una gota de cera, igualmente bendita; formulando las preguntas una tras otra sin dejar silencios que pudiesen ser aprovechados por el reo para recitar los conjuros; e incluso, recitando conjuros de efecto contrario para neutralizar los del reo56 . Aunque esta clase de antídotos ocasionalmente aparecían prohibidos de manera expresa, no faltaban quienes incluso recomendaban utilizarlos durante la investigación, considerando, por ejemplo, que era indicio la palabra de un adivino que, a pedido del juez, señalaba al delincuente cuando no había otra forma de descubrirle.57 En el fondo jueces y reos estaban inmersos en ese mundo cultural cargado de un misticismo que atravesaba por doquier el discurso jurídico, desde los más encumbrados autores y tribunales hasta los humildes jueces de la periferia, como aquel alcalde municipal que a finales del XVIII informaba por escrito a su gobernador que había tenido que poner bajo estricta seguridad de cepos y grilletes a una rea acusada de brujería

54

QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. II, Cap. VI.

55

Con detallado testimonio de las obras que se refieren a este asunto, FIOLRELLI, P. La tortura giudiziaria…, t. 1, p. 218-221

56

Ibíd. p. 222-223. Siglos atrás, similares precauciones contra similares sortilegios se tomaban contra los acusados antes de someterle a las ordalías. Puede verse, por ejemplo, SORRENTINO, T. Storia del processo penale. Dall’ordalia all’Inquisizione, Catanzaro 1999, p. 77.

57

“Algunos dixeron, que los sortilegios, y encantaciones podían hazer indicio, por lo menos para inquirir, como quando no pudiendo el juez descubrir el delinquente embiasse por uno destos brujos, ó adivinos, y les preguntasse por el mal hechor, y este le descubriesse: pero á mi juizio, y al de los Dotores, con Marco Antonio Bruno, es sin duda no hará esta delcaración para nada indicios, porque los sortilegios estan reprobados por derecho Canonico”. QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. I, Cap. VI, f. 25r. Obsérvese que el autor se basa en la prohibición canónica para negar validez judicial al dato, pero no se refiere a su ineficacia o a la forma irracional de obtenerlo.

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“por ser tan grande su arte que puede echar a volar las paredes y librarse de la prisión”58 Sobre este mundo de creencias se teje el discurso que de la prueba en el antiguo régimen y dentro de él la institución del tormento como método para descubrir la “verdad”. Ciertamente que hay un principio de decisión y un modo de saber diferente en el procedimiento romano canónico y la tortura se identifica como parte de un mecanismo orientado por la búsqueda de la verdad59 . Sin embargo, en cuanto miramos el contexto de creencias que se descubre a través de estos aspectos menos familiares a nuestros ojos de la experiencia jurídica pre revolucionaria, nos damos cuenta hasta qué punto esas nuevas claves todavía pendían entrelazadas de otras que hoy hemos descartado completamente. Tal vez por esto tendemos a historiar las instituciones atendiendo sólo a aquellos significados que nos resulta más fácilmente compresibles. Pero no debían ser asumidas como retóricas las palabras que los juristas incluían en sus tratados y que hacían referencia a ese mundo de conexiones místicas. Todavía en el discurso sobre proceso penal romano canónico la voluntad de dios seguía siendo un elemento a considerar y cualquier señal que la revelara en un sentido u otro podía tener acogida. Al fin de cuentas, como sostenía Antonio de Quevedo y Hoyos -el jurista castellano experto en materia de indicios y tormentos-, “si Dios quiere que el delito se descubra, y el delinquente se manifieste, su Magestad divina descubrirá y manifestará indicios por donde esto sea; y si no los ai, ni se averiguan, será posible no sea voluntad de Dios que en este mundo se castiguen”.60 Con estas palabras aconsejaba a los jueces a que no intentaran estrategias prohibidas para conseguir la verdad, bajo la mayor de las responsabilidades que por entonces podía enfrentar cualquier persona, incluidos los oficiales de justicia, “porque – concluía Quevedo – será mui posible que mientras trata de condenar al delinquente, cargue su conciencia y condene su alma”61 .

58

El caso, localizado en la ciudad americana de Córdoba del Tucumán aunque verosímil en cualquier lugar del orbe hispano, aparece citado en ASPELL, M. “Los sueños de los ángeles. Herejía y hechicería en Córdoba del Tucumán, siglo XVIII” en Memoria del X Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho Indiano, t. I, México 1995, pp. 65-100, p. 66.

59

Es bien conocido el análisis foucaultiano de esta transformación que conecta la estructura social con las formas procesales como formas de producción de un determinado tipo de “saber”. FOUCAULT, M. La verdad y las formas jurídicas, trad. E.Lynch, Barcelona 1998, esp. pp. 63-88.

60

QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. II, Cap. IV, f. 88r.

61

Ibíd.

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IV. LA DINÁMICA PROCESAL: LOS CAMBIOS EN LA PRAXIS MODERNA DEL TORMENTO. La axiología y el orden de principios que estructuraba la teoría procesal y la disciplina del tormento así como los elementos del imaginario cultural muestran una fuerte persistencia a lo largo de todo el antiguo régimen. Unos y otros aparecen en obras de todo el período, incluso en las más tardías. Sin embargo, ello no quiere decir que el orden jurídico de antiguo régimen no contuviese mecanismos de ajuste para responder desde la praxis a cambios que también empezaban a ser culturales. El hecho de que dichos mecanismos no consistieran primordialmente en un dispositivo de promulgación y derogación de normas generales, como sucede hoy, no quiere decir que no hubiese una dinámica normativa que acompañara los cambios de toda índole que se suceden a lo largo de los siglos. La configuración esencialmente jurisdiccional del poder político hacía que fueran entonces los tribunales y no un legislador soberano quienes debían encargarse de ajustar las normas, siempre en forma conjunta con una doctrina de la que muchos magistrados formaban parte. El estilo de los tribunales y la opinión común de los doctores eran los elementos fundamentales de control y ajuste del proceso de administración de justicia. Un concepto, situado en el corazón mismo de la teoría del poder de los magistrados, brindaba cobertura de legitimación a estos cambios: el arbitrio judicial. En la tratadística sobre la materia criminal se llegaba a afirmar que “arbitrium in iudice nihil aliud est quam iurisdictio”62 . El arbitrium se consideraba entonces como una facultad inherente al ejercicio de la jurisdicción que permitía modificar las pautas normativas y que terminaba renovando los enunciados legitimantes de una determinada praxis judicial. A la postre, dichos nuevos enunciados se consolidaban como estilo, se aceptaban por los juristas y se imponían en la práctica casi con total independencia (e indiferencia) de la lex regia. A través del arbitrium, (del mismo modo que ocurría con el concepto de iurisdictio) la tradición del derecho común situaba a la figura del juez en el centro de la dinámica del poder político. El ejercicio del arbitrio se entendía disciplinado por las nociones de justicia, equidad y razón, cuya carga semántica resultaba absorbida por el propio concepto que operaba, así, como un factor legitimado de ajuste para la 62

La expresión está tomada del jurista italiano del siglo XVI, Angelo Gambiglioni, ZORDAN, G. Il diritto e la procedura criminale nel Tractatus de maleficiis di Angelo Gambiglioni, Padova 1976, p. 60; también en MECCARELLI, M. Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune, Milano 1998, p. 13.

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conservación del orden que aquella misma tradición textual articulaba y sostenía.63 Sin que se produzca pues una derogación de los principios que orientan el discurso, pero yuxtaponiéndose a ellos y acicateados por el arbitrium iudicis, dos tendencias caracterizan la transformación de las prácticas procesales. En primer lugar, el rigor formal se flexibiliza dando lugar a esquemas procesales simplificados que, reservados para determinados tipos de autoridades o para cierta clase de delitos, permiten una actuación más expeditiva y consecuentemente menos celosa del ritualismo garantizado por el régimen de nulidades. Éste se restringe, cada vez más, a los cada vez menos elementos considerados “esenciales” del proceso. Se desarrollan así procedimientos más flexibles en los que se alteran algunas divisiones formales, se reducen notablemente los tiempos y como consecuencias de ambas mutaciones, se restringen las oportunidades defensivas.64 En distintos campos de actuación jurisdiccional se recurre también a una fórmula acuñada por el derecho canónico que permite a las autoridades proceder “simpliciter et de plano, ac sine strepitu et figura iudicii”, cuya ratio normativa brindaba la posibilidad de disponer de toda forma procesal que no fuera de las estrictamente esenciales, según derecho natural, y fallar una vez determinado el objeto del pleito65 . En el caso castellano, sin perjuicio de la resistencia del “L’arbitrium è dunque manifestazione di aequitas; i caratteri tipici di questo concetto come l’essere ‘metro di giudizio’ o ‘parametro di credibilità’, ma anche ‘canone di ragionevolezza’, nel quadro di una mobile ma sicura ‘aderenza alla ideologia dominante e quindi ad una strumentalizzabilità da parte delle forze dirigenti della società’, vengono anche assorbiti dall’arbirium”. MECCARELLI, M. Arbitrium..., p. 17-18. Las referencias sobre la valencia del concepto de equidad son a SBRICCOLI, M. L’interpretazione dello statuto. Contributo allo studio della funzione dei giuristi nell’età communale, Milano 1969 p. 97. A la luz de los criterios jurídicos actuales, el arbitrio judicial puede ser visto como un elemento disfuncional, una especie de peligrosa desviación hacia el “absolutismo judicial”( TOMÁS Y VALIENTE, F. “Castillo de Bobadilla..., p. 238 y ss.); sin embargo, mirado bajo el prisma de su época, se presenta como una característica impuesta por la propia configuración del ordenamiento y las instituciones del antiguo régimen, como lo ha demostrado exhaustivamente MECCARELLI. Para el ámbito penal, lo había puesto de manifiesto SCHNAPPER, B. “Les Peines arbitraires du XIII au XVIIIe siecle (Doctrines savantes et usages fraçais)”, [1ª parte] en Revue d’Histoire du Droit, n. XLI, 1973, pp. 237-277 y [2ª parte] n. XLII, 1974, pp. 81-112: “A notre avis, le pouvoir discrétionner du juge esta u coeur du droit et de la procédure pénale. C’est la clef de l’histoire générale de la represión” ([2ª parte] , p. 111). Precisiones castellanas, con matices sobre la relación entre el poder de los jueces y el valor de la ley real, pueden verse en GONZÁLEZ ALONSO, B. “Jueces, justicia, arbitrio judicial (Algunas reflexiones sobre la posición de los jueces ante el Derecho en la Castilla moderna” en VV.AA. Vivir el Siglo de Oro. Poder, cultura e historia en la época moderna. Estudios en homenaje al profesor Ariel Rodríguez Sánchez, Salamanca 2003, pp. 223-241. 64 Para el caso castellano, ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal...., pp. 162-172; ALONSO ROMERO, M. P.. “El solemne orden de los juicios....passim. 65 La formula condensaba las características de un modo de proceder sumario de derecho canónico que tuvo acogida en los estatutos de las ciudades italianas. “La formola delle leggi non poteva essere più chiara: summarie, cioè riduzione dei termini; de plano, facoltà di ascoltare le lamentele in qualunque giorno e di sentenziare di giorno o di notte; sin strepitu, limitazione dei testi ed esclusione di procuratori e avvocati; sine figura iudicii, sopressione delle formalità”. SALVIOLI, G. “Storia della procedura..., t. 2, p. 334. Sobre su tratamiento en la literatura procesal, PÉREZ MARTÍN, A. “El ordo iudiciarius....” , p. 213 63

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estamento judicial adherido al habitus complejo de procedimiento ordinario, ya por el estilo simplificado de los altos tribunales, ya por aplicación de la forma sumaria (sumariamente, sin estrépito ni figura de juicio) a campos tan variados como podían ser la justicia comisarial o la represión rural a cargo de la Santa Hermandad, se difunden los mecanismos para reducir el rigor formal a unos mínimos esenciales66 . En segundo lugar, aquellos cambios son acompañados en materia probatoria por una paulatina desvinculación entre los elementos de prueba tasados y la capacidad del juez para condenar.67 Aunque el sistema de prueba tasada y su regla de correspondencia entre la “plenitud” de la prueba y el carácter “ordinario” de la pena siguió siendo la referencia axiológica fundamental, a partir de la misma noción gradualista y cuantitativa de la prueba fue adquiriendo fuerza el postulado según la cual a una “prueba insuficiente” bien podía corresponderle una pena menor, no ordinaria sino “extraordinaria”, quedando su determinación al arbitrio del juez.68 La figura de la pena arbitraria o extraordinaria, como reflejo del margen de discrecionalidad del juez – arbitrium mediante – para modular la respuesta penal no era un elemento nuevo. El cambio estaba en el grado sistemático con que se podía sostener ahora que la prueba insuficiente (una semiplena prueba que bastaba sólo para el tormento, por ejemplo) podía servía para imponer una pena extraordinaria. De este modo los indicios podían servir entonces como fundamento de una pena extraordinaria. La regla de su exclusión absoluta como prueba suficiente para una condena había sido así alterada.69

66

ALONSO ROMERO, P. El proceso penal...., pp. 170-175, 290-302; TOMÁS Y VALIENTE, F. “Castillo de Bovadilla. Semblanza personal y profesional de un juez del Antiguo Régimen” en ID., Gobierno e instituciones en la España del Antiguo Régimen, 2da ed. Madrid 1999, pp. 179-252.

67

Cfr. ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal... , p. 226.

68

Cfr. ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale... , p. 19; ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal... , p. 227.

69

Cfr. LANGBEIN, J. Torture and..... 47 y ss. En las prácticas castellanas tardías que instruían a los jueces inferiores, se puede ver cómo la regla de no condenar por indicios ya no era absoluta. La referencia a la pena extraordinaria se integraba en la norma: “No puede el juez por solo indicios, aunque sean graves, castigar al reo con pena ordinaria… y es la razon, porque en lo criminal la prueba ha de ser tan clara como el Sol de medio dia…[hasta aquí la regla en su formulación original que se mantiene así como principio de referencia], pero puede imponer la pena extraordinaria que le pareciere, según la naturaleza de la causa, y lo que de ella resulta…” [aquí la modificación introducida por vía jurisprudencial y que altera el sentido absoluto de la regla anterior]. MARTÍNEZ, M. S. Librería de jueces, utilísima y universal para Abogados, Alcaldes Mayores y Ordinarios, Corregidores e Intendentes, Jueces de Residencia y de visita de Escribanos de toda España, Receptadores de Castilla y Aragon, Regidores, Juntas de Propios, Contribución y Pósitos, Personeros, Diputados del Comun y demas Individuos de Tribunales Ordinarios: añadida e ilustrada con mas de dos mil Leyes Reales, que autorizan su doctrina, Séptima impresión y Adiciones de Ramón Antonio de Higuera, Madrid 1791-1796, t.. III, Cap. III, n. 25, pp. 160-161.

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Aunque la legitimidad de esta solución nunca dejó de ser cuestionada a la hora de su tratamiento tópico por parte de la doctrina70 , en la práctica se habría impuesto porque la pena extraordinaria a la vez que facilitaba las decisiones represivas al requerir de un estándar probatorio menos estricto, satisfacía la provisión de mano de obra mediante la conmutación de las penas ordinarias (generalmente penas de muerte o aflictivas), por las de trabajo forzado y principalmente por la pena de galeras. 71 Con estos estímulos, sin poner en entredicho los principios del sistema de pruebas legales, los jueces consolidaron una capacidad de justificación a la respuesta condenatoria mucho más amplia y flexible que la provista por modelo originario. 72 El juez convertido en dominus del proceso controla – en mayor o menor medida según su posición jerárquica en el cuadro de la jurisdicción – no sólo la secuencia formal del proceso sino que además puede válidamente justificar una condena con una prueba insuficiente. La única condición en este caso es que la pena no sea la ordinaria, sino una extraordinaria. Estos cambios que marcan la tensión moderna del discurso procesal conllevan dos efectos contrapuestos en cuanto a la disciplina y práctica del tormento. En un sentido, la mayor cantidad de elementos asignados al campo de decisión que representa el arbitrium iudicis y su consecuente efecto en términos de flexibilización formal debilitan en la práctica muchas de las pautas de control de la disciplina original del tormento. Así por ejemplo se diría que la suficiencia y calidad de los indicios necesarios para someter a tormento eran arbitrarios y en consecuencia, en la práctica se podían justificar tormentos casi sin preceder elemento probatorio alguno. En sintonía con esto, la permisividad para simplificar las formas procesales igualmente llevaba autorizar que la ejecución del tormento tuviese lugar en la fase sumaria sin haber dado traslado al acusado de la prueba en su contra y sin ninguna oportunidad para expedirse sobre la misma. Este adelanto del tormento en la secuencia procesal le hacía perder su carácter subsidiario ya que los jueces podrían así buscar primero la confesión por esta vía, antes que dedicarse a otro tipo de pruebas. Se transgredía incluso la

70

Cfr. ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale... , 29-30.

. LANGBEIN, J. Torture and.. , passim, esp. Caps. 2.

71 72

ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale..., pp. 32-33; , MECCARELLI, M. Arbitrium...,p. 252-254.

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regla que prohibía dar tormento en delitos ya plenamente probados, para que una vez obtenida la confesión se enervase cualquier intento posible de apelación o para obtener información sobre cómplices. La prohibición de reiterar la ejecución del tormento más allá de un número limitado de veces sobre reo que negaba era vulnerada a través de la suspensión de la sesión, reservándose el juez el derecho a reanudarla cuando lo considerarse necesario. Las apelaciones y recusaciones interpuestas contra el auto de tormento y que normalmente debían suspender la ejecución podían ser rechazadas in limine por frívolas, o bien, concedidas sin efecto suspensivo en virtud de una serie de circunstancias que, a criterio del juez, lo autorizaban para proceder “sin embargo de apelación o recusación”. La responsabilidad personal del juez por las consecuencias lesivas de un tormento dado en exceso se podía neutralizar con una cláusula que se incorporaba en el auto de tormento o en el encabezamiento del acta de ejecución por la cuál el propio reo, en virtud de su negativa, se hacía responsable por los daños que pudiese padecer con motivo de la tortura. Igualmente se autorizaban quiebres a las inmunidades estamentales en virtud de circunstancias apreciadas por los jueces que daban lugar a excepciones a cualquiera de las reglas de la disciplina del instituto: para ello se podía considerar la frecuencia del delito que se juzgaba, la fama del delincuente, el bien afectado y la gravedad delito. En general los delitos de lesa majestad divina o humana autorizaban todo tipo de excepciones tanto a nivel de formalidades como a nivel de prueba, a los que habría que sumarle los delitos considerados atroces; cualquiera de estos conceptos activaba una excepción genérica que permitía a los jueces transgredir el orden de derecho cuando se trababa de castigar este tipo de delitos.73

73

Así lo expresaban los juristas en sus textos: propter enormitatem delicti licitum est iura transgredi o bien para justificar el tormento sin prueba precedente, in atrocissimis, leviores conjecturae sufficiunt, et licet judici iura trasngredi. Para esto, así como para lo anterior referido a los quiebres en la disciplina originaria del tormento, véase TOMÁS Y VALIENTE, F. TOMÁS Y VALIENTE, F. El Derecho Penal de la Monarquía Absoluta, Madrid 1969, p. 178; TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura... , pp. 62-91 y 212-219; ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal...pp. 244-256 y 302-309; ALONSO ROMERO, M. P. “La tortura en Castilla …cit.. Hemos analizado también estas cuestiones con ejemplos documentales tomados de la práctica americana y fuentes doctrinaria en AGÜERO, A. “Sobre el uso del tormento en la justicia criminal indiana de los siglos XVII y XVIII. (Con especial referencia a la jurisdicción de Córdoba del Tucumán)”, Cuadernos de Historia del Instituto de Historia del Derecho y las Ideas Políticas Roberto I. Peña, n. 10, Córdoba (Arg.) 2000, p. 195-253.

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Finalmente, también se alteraba la regla de valoración de los resultados del tormento. La persistente negativa del reo ya no implicaba necesariamente su absolución. Para ello se entendía que el tormento no purgaba los indicios cuando el magistrado aclaraba en el auto de tormento que quedarían en todo su valor las pruebas que obraban en contra del reo (“quedando en su fuerza y vigor todas las probanzas”), para el caso de que éste se mantuviese negativo (lo que se conocía como tortura con reserva de prueba). Con esta innovación, aunque el reo resistiese absolutamente los dolores del tormento se le podía igualmente aplicar una condena. Se interpretó, en consonancia con los cambios mencionados anteriormente, que esto no era ilegítimo mientras la pena impuesta no fuera la ordinaria, sino una extraordinaria, más moderada que aquélla. Esta formulación, al eliminar el efecto purgativo del tormento sobre las pruebas que lo hacían procedente, permitía resolver el “inconveniente” de tener que absolver al reo cuando hubiera logrado resistir negativo las sucesivas reiteraciones del tormento.74 Aunque matizada y siempre discutida, era esta una innovación que se imponía en la práctica. Pese a la injusticia (en términos intrasistemáticos) que encerraba esta solución y a la mayor inclinación represiva que le daba al proceso, en ella estaba la clave para hacer de la tortura un rito prescindible. Los cambios del sistema probatorios íntimamente vinculados con el arbitrio judicial y su manifestación punitiva, la poena extraordinaria 75 , al autorizar condenas sobre la base de prueba indiciaria, habían dado un giro teórico imprescindible para convertir al tormento en un rigor innecesario para la mayoría de los casos ventilados

74

Así lo exponía Quevedo y Hoyos: “Tambien es, que aunque el juez atormentasse al reo convencido [es decir, aquel contra el cual ya obra plena prueba], y negasse en el tormento, no purgará, ni invalidará las provanzas que contra él se hizieron, antes quedarán en la misma fuerza y vigor que tenian antes que se le diesse el tormento, según Gregorio: porque fuera cosa injusta que el juez tuviera potestad para por este medio anular, é invalidar las verdaderas probanzas, según Tomas Gramatico, y Olano que le refiere; según el qual por estilo universal de aquestos Reinos lo mismo procede aunque no esté probado con testigos el delinquente, sino indiciado urgentemente, porque en este caso aunque el reo persevere negando, siempre debe ser castigado con pena trasordinaria [léase “extraordinaria”], y assi dize que lo obtuvo muchas vezes, y que se guarda comunmente. Y esta es la razon por que (según este Dotor) en las sentencias de tormento los juezes acostumbran a dezir: Mandamos poner á F. Á question de tormento quedando las probanzas que contra él estan hechas en su fuerza y vigor...” QUEVEDO Y HOYOS, A. Libro de indicios y tormentos, P. I, Cap. I, n.8, folio 3

75

En la vinculación entre la paulatina disolución de la estricta observancia del sistema de pruebas legales, y el auge de la pena arbitraria o extraordinaria en los tiempos modernos, coinciden SCHNAPPER, B. “Las peines arbitraires…, (2ª parte) pp. 87-88; LANGBEIN, J. Torture and..... pp. 11 y ss.; ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale...., p. 19; ALONSO ROMERO, M. P.. El proceso penal...., p. 227

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cotidianamente en los tribunales ordinarios76 . He aquí el sentido opuesto en el que las alternativas procesales modernas afectaron a la práctica del tormento. El auto de tormento con reserva de prueba era una decisión sumamente gravosa para el reo ya que cualquiera fuese su actitud durante la tortura, no evitaría una condena. Si el reo confesaba, la plena prueba obtenida podría dar lugar a una condena ordinaria de muerte. Si resistía negativo, la reserva de prueba serviría normalmente para enviarle a los remos o a trabajos forzados como contenidos de una pena extraordinaria. Podía deducirse a partir de aquí que para este último tipo de condena ya no era necesaria la tortura, desde el momento que se admitían como suficientes las pruebas recogidas con anterioridad a su ejecución. Al conmutarse sistemáticamente la pena de muerte (la pena ordinaria por antonomasia en los casos susceptibles de aplicar tormento) por penas extraordinarias de galeras, arsenales o trabajos forzados, la necesidad de plena prueba como condición excluyente para el castigo había desaparecido, y con ello, según Langbein, también la razón de ser de la tortura judicial. 77 Hay coincidencia en la historiografía especializada sobre la lógica consecuencia que en la práctica del tormento pudieron tener estos cambios, reduciendo su presencia, otrora cuasi inevitable, en el esquema teórico del proceso penal bajomedieval. 78 Todo este desarrollo de variantes que se normalizan como estilo de los tribunales no implican, como hemos dicho, el abandono de los principios de referencia. Éstos podían ser tópicamente contradichos sin necesidad de ser derogados79 . De este modo se convalidaban nuevas soluciones sin que perdieran legitimidad las antiguas. En Castilla, por ejemplo, la neutralización de los efectos purgativos del tormento daría lugar a discusiones hasta el final del período, aunque su práctica estuviese completamente consolidada para en-

76

LANGBEIN, J. H. Torture and the law…pp. 59-60; ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale…. p. 23.

77

LANGBEIN, J. H. Torture and the law…pp. 59-60.

78

Como lo ha sostenido Alessi Palazzolo, al hablar de la legitimación de la pena extraordianria para casos de prueba insuficiente, “Questa non fu una soluzione marginale, proposta da oscuri giuristi e adottata da ignoranti giudici provinciali: costituì, viceversa, un rimedio di carattere generale, volto a conciliare il contrasto tra certezza morale e certezza legale senza ricorrere al richioso mezzo di investigazione rappresentato dalla tortura”. ALESSI PALAZZOLO, G. Prova legale…. p. 23.

79

Sobre las consecuencias del carácter tópico en el pensamiento jurídico, VIEHWEG, T. Tópica y jurisprudencia, trad. de L. Díez-Picazo Ponce de León, Madrid 1964.

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tonces80 . Pero consideremos conjuntamente los cambios de los que venimos hablando. Si por un lado la disciplina de la institución se relajó removiendo las cautelas que imponían un uso restringido y cuidadoso del tormento, por el otro se introdujo una lógica que al negar su efecto purgativo sobre los indicios le hizo perder uno de sus rasgos distintivos y, con él, buena parte de su justificación. El nuevo contexto abría la posibilidad de preguntarse ¿Para qué proceder a un ritual complejo, peligroso, delicado, dudosamente eficaz, si a

80

En el caso castellano se trata de un ajuste absolutamente realizado por medio del estilo y la opinión de la jurisprudencia. Hasta la abolición de la tortura, la única norma asignada al campo de la lex regia en esta materia seguiría siendo la ley 4 del título 30 de la Partida 7, donde se mantenía el principio de absolución del reo negativo. En el caso de Francia, en cambio, el art .2 del tit. 19 de la Ordenanza Criminal de 1670 se había hecho eco de estos cambios, estableciendo la cláusula de la reserva de pruebas, autorizando a imponer cualquier tipo de pena, excepto la de muerte, en base a los indicios obrantes no obstante que el reo hubiera sobrepasado negativo el tormento. De este modo, cuando la corte ordenaba la interrogación bajo tortura con las palabras “avec réserve des preuves en leur entier”, el fracaso en la aplicación del tormento ya no purgaba al acusado de los indicios que contra él pesaban. Cfr. LANGBEIN, J. Torture and the law… p. 51. También nos muestra este autor el cambio reflejado en la legislación del Imperio Alemán, comparando la Ordenanza Criminal Carolina de 1532 (que sigue el mismo principio que la ley de Partidas) y la Constitución Criminal Teresiana de 1769, en la que se admite la discreción judicial para aplicar pena arbitraria al reo que ha negado en el tormento. Ibíd., p. 50. En el caso de la monarquía hispana, podemos citar dos disposiciones, que de algún modo se refieren a esta práctica. Una es de 1585, dictada por Felipe II en las Cortes de Valencia, en la que se reafirma el principio clásico contenido en P. 7, 30, 4 “Que qualsevol Reo que será stat tormentat, ii havra passat los tormentos negant, no puixa esser apres condemnat en pena alguna, encara que extraordinaria, sino fos per altre delict plenament provat, per lo qual no fos estat tormentat...”. Ya en el siglo XVIII, aparece una disposición que sí responde a la tendencia de condenar en pena extraordinaria al reo negativo, pero específicamente referida al orden militar: “En tratándose de otro crimen, que el de desercion, como de asesinato, robo ú otro cometido en Guarnicion, ó en el Exército, donde no hubiere confesion, ó prueba de testigos que se estime concluyente, ó indicios vehementes y claros que correspondan á la prueba de testigos, y convenza el ánimo, se procederá en estos términos: si el delito merece pena capital, y hay medidas de pruebas por testigos, ó indicios, se acordará el tormento por el Consejo;...y estando el Reo confeso, y ratificando fuera del tormento dentro de las veinte y cuatro horas, se impondrá pena de Ordenanza correspondiente al delito cometido, ó la arbitraria si estubiere negativo” Ordenanzas de S.M. para el régimen de sus Exercitos trat. 8. t. 5. Núm. 48. y 49. Impresas en madrid año de 1769. Ambas disposiciones aparecen en AZEVEDO, A. M. Ensayo acerca de la tortura ó cuestión del tormento (1770) Madrid 1817, p. 27 y 25 respectivamente. Esta obra es un buen ejemplo de la persistente discusión sobre la materia, a pesar de su consolidación en la práctica. Publicada en 1770 , su autor si bien pone en discusión la institución misma, insiste especialmente en la injusticia de condenar al reo que ha resistido, abogando por eliminar esta innovación y volver a la disciplina originaria del tormento. Sobre este autor, y la polémica que suscitó su obra, se puede ver TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura..., p. 126–130 y 168–169. Un ejemplo de cómo la cuestión seguía siendo resuelta de forma tópica lo podemos ver en un dictamen del fiscal de la Real Audiencia de Buenos Aires que, en 1789, pedía la aplicación de una pena arbitraria para un reo que había resistido en el tormento dado con reserva de pruebas. Decía el fiscal que, “aunque no faltan opiniones propensas a la impunidad que por aquella expresión de la ley: débenlo dar por quito [se refiere a la norma de P. 7. 30. 4] sostengan que se debe absolver al reo negativo en el tormento, la más común de los prácticos, y más recomendables regnícolas, y lo que es más la general práctica de tribunales, estimada por el mejor y más autorizado intérprete de las leyes, es imponerles la [pena] arbitraria, agravándola según las circunstancias, principalmente habiéndose puesto en la sentencia de tormento pronunciada en esta causa, que se dejaban a salvo las pruebas que habían del delito...”. La trascripción de la vista fiscal en LEVAGGI, A. El virreinato Rioplatense en las vistas fiscales de José Marquez de la Plata, 3 t., Buenos Aires 1988, t. II, p. 576.

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la postre resultaba más útil, con la misma base de convicción, enviar al reo a galeras o a prestar algún servicio a la república?81 Ahora podemos preguntamos, ¿cuál de los sentidos de cambio señalados se impuso en la práctica? ¿Se torturó más sistemáticamente en función de las posibilidades que brindaba una disciplina más flexible o se evitó la tortura aprovechando la posibilidad de aplicar penas arbitrarias que no exigían una confesión, que podían aplicarse sobre simples indicios y que redundaban en beneficios a la república?. La respuesta dependerá del lugar y la época y de la posibilidad de realizar estudios en archivos judiciales con cierto rigor estadístico. Mientras no se haga esta tarea, podemos aventurar alguna respuesta atendiendo a la impresión de los historiadores que se han preocupado por esta cuestión y han revisado series de documentación judicial en diferentes contextos. Atendiendo a los textos que permitían las interpretaciones más flexibles sobre la disciplina de la institución, Tomás y Valiente ha caracterizado el uso del tormento en Castilla, como una práctica “abusiva, extensiva y arbitraria”, hablando incluso de un progresivo endurecimiento de su régimen hacia el siglo XVII82 . En el mismo sentido, Las Heras Santos estudiando la justicia penal castellana de los siglos XVI y XVII, sostiene que de la documentación consultada “se desprende que la tortura no era un mecanismo excepcional de investigación de los delitos, sino que las fuentes demuestran su dilatada extensión en la Castilla de los Austria”.83 Aunque los autores no explicitan argumentos cuantitativos, sus afirmaciones no dejan de ser coherentes con la descripción de una práctica procesal en la que se habían removido con excepciones los recaudos que hacían del tormento un remedio subsidiario.84 Por su parte los historiado-

81

Sobre la utilidad como criterio punitivo moderno, TOMAS Y VALIENTE, F. El derecho penal...p. 390; PIKE, R. Penal Servitude in Early Modern Spain, Madison 1983; ALONSO ROMERO, M. P y HESPANHA, A. M. “Les peines dans les pays ibériques (XVIIe-XIXe siecles)” en RECUEILS DE LA SOCIETE JEAN BODIN , LVII, 1989, pp. 195-225, pp. 209-211. Sobre la pena de galeras, típica pena extraordinaria de la edad moderna, PIKE, R. “Penal Serviutde in Early Modern Spain: the Galley”, en The journal of European Economic History, v. II, 1, Spring 1982, pp. 197-217 (incluido en el volumen antes citado). Se ha calculado que un 73% de los remeros de los Austrias provenían de condenados al servicio de galeras, cfr. HERAS SANTOS, J. L. “Los galeotes de los Austrias: la penalidad al servicio de la Armada” en Historia Social, Invierno 1990, 6, pp. 127-138, y HERAS SANTOS, J. L. La justicia penal de los Austria en la Corona de Castilla, Salamanca 1994, p.312.

82

TOMÁS Y VALIENTE, F. La Tortura... p. 225.

83

LAS HERAS SANTOS, J. L. La justicia penal…p. 182.

84

Según ALONSO ROMERO, M. P. El proceso penal…p. 250-251, el hecho de que el tormento se aplicase en la fase sumaria, y aún en delitos que podían considerarse plenamente probados (con el fin de indagar al reo sobre sus cómplices o bien para que la sentencia fuese inapelable por estar confeso el delincuente), demuestra que en la práctica castellana moderna el tormento había dejado de ser un remedio subsidiario.

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res americanistas parecen coincidir en la impresión de que las justicias coloniales rara vez acudían al uso formal del tormento, a juzgar por el escaso registro que de dicha práctica ha quedado en las actas procesales. Así por ejemplo, lo sostuvieron en su tiempo Alamiro Ávila Martel, de acuerdo con la práctica observada en la jurisdicción de Chile85 , y Tomás Jofré en el estudio de las causas criminales instruidas en Buenos Aires durante los siglos XVII y XVIII.86 La misma percepción ha tenido posteriormente Abelardo Levaggi87 , y en similares términos se han manifestado Tamar Herzog, analizando la práctica quiteña88 y Charles Cutter, quien no encontró ni un solo caso de tortura judicial entre los registros criminales que revisó para estudiar la cultura legal del norte de la Nueva España.89 Por nuestra parte hemos revisado la series documentales de los procesos judiciales conservados en el Archivo Histórico de la Provincia de Córdoba (Argentina). En la muestra realizada sobre los procesos conservados entre 1598 y 1808 son escasas las referencias a la cuestión del tormento en los registros criminales de Córdoba del Tucumán y menos aún los casos en los que efectivamente se formalizó en las actas el ritual de su ejecución.90 Este escaso número de registros parece indicar que los jue-

85

“En nuestro país tuvo muy poca aplicación… En los expedientes criminales examinados por nosotros – agrega el autor chileno – hallamos un sólo caso de sentencia de tormento, y aún en ese no se aplicó, pues bastó la intimidación para que confesara el reo”. AVILA MARTEL, A. Esquema de Derecho Penal Indiano, Santiago de Chile 1941, p. 44

86

“El tormento... puede decirse que se aplicó, muy rara vez, durante la colonia en lo que a Buenos Aires se refiere” aclarando un poco más adelante que “En los procesos existentes en el archivo de los tribunales que hemos revisado, solamente en un caso se aplicó el tormento á los acusados”. JOFRÉ, T. Causas Instruidas en Buenos Aires durante los siglos XVII y XVIII, Buenos Aires 1913, pp. XVIII y XX.

87

“Entre nosotros el uso del tormento no fue frecuente y llegó a ser excepcionalísimo en las últimas décadas del período indiano”. LEVAGGI, A. Historia del Derecho Penal Argentino, Buenos Aires 1978, p.30

88

“El sistema penal quiteño - nos dice Herzog - no recurría frecuentemente al tormento”, agregando que, aunque pedido por los fiscales o por las partes, “los jueces solían denegarlo y los oidores revocaban las decisiones de los tribunales inferiores que la admitían”. En el período estudiado (1650-1750), Herzog destaca que sólo en once casos fue practicado el tormento en Quito, sobre un total de 390 causas criminales. HERZOG, T. La administración como un fenómeno social: la justicia penal de la ciudad de Quito (16501750), Madrid 1995, p. 232

89

“No one example of judicial torture, however, has surfaced from among the hundreds of criminal cases in either New Mexico or Texas”. CUTTER, C. The legal culture of northern New Spain 1700-1810, Albuquerque 1995, p.123.

90

En nuestra muestra, aparecen referencias al tormento en ocho casos sobre 352. Sólo en dos de ellos se ejecutó el ritual: (A)rchivo (H)istórico de la (P)rovincia de (C)órdoba, (E)scribanía 1, 21, 1, 1609 y (C)riminal 3. 12, 1714. En los seis casos restantes, pedido el tormento por el querellante o por el promotor fiscal, o bien los jueces resolvieron sin expedirse al respecto (AHPC. C. 1, 12, 1687; C. 4, 1, 1718; C. 28, 11, 1773; C. 31, 3, 1776 y C. 85, 6, 1799), o la medida fue revocada en el tribunal de alzada (AHPC. C. 46, 6, 1789).

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ces no recurrían con frecuencia al rito formal del tormento91 . Sin duda que influye aquí también el hecho de tratarse de una jurisdicción en la que sólo había jueces de primera instancia. En este sentido, hacia el siglo XVIII, podía tenerse la percepción de que también en Castilla el tormento era infrecuente en los tribunales ordinarios de primera instancia. Así, Manuel Silvestre Martínez sostenía que no era común que los Alcaldes y Corregidores (jueces de primera instancia por antonomasia) diesen tormento, porque las causas en las que podía tener lugar esta medida eran avocadas por los Tribunales Superiores. Aun cuando el jurista dieciochesco reconocía la competencia de los magistrados inferiores para utilizar la tortura, puesto que podían imponer penas capitales, concluía afirmando que “será raro el Juzgado inferior donde llegue el caso [de aplicar el tormento], especialmente fuera de la Corte”.92 Unas décadas antes de su abolición formal, en el contexto hispano al menos, la tortura parecía un rito excepcional reservado a la alta justicia de la corte.

V. REFLEXIONES FINALES Un sostenido consenso historiográfico ha contribuido a delinear una determinada morfología evolutiva de la historia del procedimiento judicial, lo que responde, en alguna medida, a una tendencia común en la historia institucional93 . En ese tipo de morfologías se suceden una serie de etapas evolutivas que acercan o alejan determinados aspectos de las experiencias pasadas según el enfoque del historiador. En el caso concreto del procedimiento judicial, y específicamente del procedimiento penal, las líneas maestras del dibujo evolutivo son bien conocidas: de las formas irracionales o supersticiosas se pasa a una época de racionalidad pero con vocación autoritaria para finalmente arribar a un estado de racionalidad no autoritario. Así, al mundo mágico de las ordalías, propio de la mentalidad primitiva de origen pagano (o germánico), le sucede un

91

Más precisiones sobre la práctica local en Córdoba del Tucumán, en AGÜERO, A. “Sobre el uso del tormento…cit. .

92

MARTÍNEZ, M. S. Librería de jueces…, t. III, Cap. III, n. 33, p. 164.

93

Para los problemas implicados en la visión evolutiva de la historia de las instituciones, puede verse HESPANHA, A. M. “Una nueva historia política e institucional”, en Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, año XLI, Nro. 166, (octubre-diciembre 1996), pp. 9-45, ahora incluido también en su HESPANHA, A. M. Cultura jurídica europea. Síntesis de un milenio, trad. Isabel Soler y Concepción Valera, Madrid 2002, pp. 30-57.

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desarrollo racional alentado desde la elite eclesiástica de los siglos XIIXIII que materializa el dominio de la modalidad procesal inquisitiva hasta finales del XVIII. Durante este largo período tiene lugar el reinado de las pruebas legales, la confesión y la tortura judicial, como una degeneración producida por el riguroso esquema probatorio y la afanosa búsqueda de la certeza. Finalmente, tras una época de transición, mientras la vocación autoritaria se revierte con el reconocimiento de las garantías individuales, el rigor de las pruebas legales se supera con un sistema de libre convicción judicial en el que los riesgos de la libertad del juez se ven compensados por los controles de la sana crítica racional.94 No faltan razones para asumir gran parte de las explicaciones que contribuyen a sostener este esquema. Sin embargo hay aspectos que pueden ser revisados en pro de una comprensión menos comprometida por la perspectiva del presente. Por ejemplo, la calificación de las ordalías como “irracionales” e incluso como “paganas” o propias del derecho “germánico” cumple en parte la función de distanciar una costumbre antigua y desacreditada, mientras abre el camino para un enfoque evolucionista en el que los reformadores del siglo XII, cristianos y romanos, emergen como miembros de un movimiento progresivo con el cual el historiador actual puede identificarse más cómodamente. A partir de aquí entra en juego la racionalidad de las reformas eclesiásticas y de los conceptos propios del derecho romano canónico que con su rigurosa búsqueda de la certeza desemboca necesariamente en el primado de la confesión y la tortura. Esta operación tiene dos claves de lectura del pasado diferentes que se usan en uno u otro sentido según la perspectiva del historiador. Afirmar el origen “germánico”o el carácter “pagano” de las ordalías, por ejemplo, significa solapar con una causa externa la activa participación de las autoridades cristianas en su práctica y la función que cumplieron en las comunidades, también cristianas, hasta el siglo XIII95 . Por otra parte, al contraponerse la irracionalidad de las ordalías con la racionalidad de las reformas romano canónicas, no sólo se asume un pun94

Una reciente historia procesal que sigue fielmente este esquema, puede verse en SORRENTINO, T. Storia del processo penale...: “Oggi, ad esempio, il giudizio si fonda sul determinante assioma del libero convincimento del giudice. Ciò significa che, tramontato il ricorso a metodi di prova irrazionali, sono anche superate le teorie così dette di prova legale quali è ricorsa l’antica criminalistica.... I progressi nel campo della conoscenza processuale sono evidenti. Il libero motivato convincimento, sorreto dalla logica, evita le gravi degenerazioni conseguenti alla preoccupazione di circoscrivere l’arbitrio del giudice attraverso la prestabilita gerarchia della prova”. p. 35.

95

Sigo aquí las reflexiones hechas por Robert BARTLETT en su Trial by fire …, pp. 156-157.

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to de vista absoluto en torno al criterio de racionalidad96 , sino que se bloquea la perspectiva para atender y explicar las múltiples y ostensibles manifestaciones de providencialismo (de misticismo, hemos dicho antes) que continúan presentes en el discurso jurídico político durante la baja edad media y la modernidad, al tiempo que se desconocen los efectos que, sobre la prueba, produce la continuidad de una episteme que admite como materialmente verdaderos enunciados que hoy descartamos por metafísicos. Sin negar los cambios sustanciales que vienen implicados en la difusión de la cultura del derecho común, creemos que ese contexto así opacado por la morfología historiográfica es el que resulta parcialmente compartido por las ordalías y la tortura judicial en su primera fase. Ni el abandono de las ordalías se explica por su irracionalidad ni, como lo hemos sugerido, la tortura judicial representa exclusivamente un mecanismo que responde a un novedoso criterio de racionalidad.97 Ordalías y tortura operan en el seno de una cultura que sigue estructurada en función de un orden religioso y que, por lo tanto, integra elementos meta empíricos en su episteme y exige un sólido nivel de adhesión ideológico para que aquellos elementos trascendentes tengan existencia. Es cierto que hay principios nuevos. Es cierto que la tortura judicial del derecho común, construida desde los textos romanos, tiene también una lógica de investigación de la verdad (en términos actuales) y que por eso, por ejemplo, no incide exclusivamente sobre el acusado, sino que es utilizable igualmente con los testigos98 . Pero, si la historia procesal ha sido (re)construida a partir de los elementos más familiares a las instituciones del presente, no está de más considerar también aquellos aspectos que, haciendo parte de la textura imaginaria del universo de la época, influían en la significación de las prácticas institucionales. Delitos que hoy se presentan tan irracionales como la brujería fueron igualmente perseguidos por medio de ordalías y tortura. Cabe preguntarse, ¿en qué medida

96

Lo que ya resulta discutible, “To say that a belief is rational is to talk about how it stands in relation to other belief” MACINTYRE, A. “Rationality and the Explanation of Action” en Against the Self Images of the Age, Londres 1971, p. 250.

97

Como lo ha demostrado Bartlett, el abandono de las ordalías no se debió a un cambio de creencias que las hubiera convertido en un sinsentido. “The critics of the twelfth century tried to condemn the ordeal by referring to Scripture and the canons. They argued that the ordeal was wrong, not that it was nonsensical. As has been pointed out above, the ordeal was deemed irrational once the case for its being uncanonical and an illicit tempting of God had been established”. Ibid., p. 165.

98

Con este argumento FIORELLI toma distancia las tesis que plantean una estrecha conexión entre la tortura bajomedieval y las ordalías. FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…t. 1, p. 9.

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opera más racionalmente, siempre desde nuestra perspectiva, un método de investigación que se aplica sobre el delito de brujería?. En ese contexto es donde hay que buscar la significación de una de las reglas fundamentales de la tortura judicial del derecho común. El efecto purgativo que produce la resistencia negativa del reo, no sólo con respecto a los indicios sino incluso con relación a una plena prueba independiente, es una construcción doctrina que apenas tiene asidero en los textos romanos y que sin embargo es unánimemente compartida por la doctrina bajomedieval.99 ¿Cómo valorar la racionalidad de un método de prueba cuando uno de sus efectos posibles puede consistir en neutralizar una prueba alcanzada de forma previa e independiente?. La posibilidad generalizada desde mediados del siglo XVI, como hemos visto, implicó la negación de dicho efecto justificándose el cambio en el hecho de que la pena no era la ordinaria, sino una pena moderada, fijada según el arbitrio del juez. Entonces ambas soluciones funcionaron como alternativas, según casos y circunstancias. Pero estas posibilidades ya señalaban una apertura de la cultura y del discurso político hacia otras funciones del poder. El “horror al rapidísimo castigo”, como decía un jurista en la segunda mitad del siglo XVII, podía servir entonces para justificar una de las variantes típicamente modernas a la disciplina teórica de la tortura judicial: “la imposición de tortura con base a la instrucción sumaria (es decir, en la primera fase de la investigación y sin darle vista al reo), en solo tres o cuatro casos de delitos muy atroces, ha evitado durante diez años muchas atrocidades”.100 Del mismo modo que en algunos países ocurre hoy con la prisión preventiva, la coacción procesal adquiría una función de prevención general. La acción preventiva del poder público era parte de las novedades del discurso político moderno y el rápido castigo era un ideal de respuesta cada vez más imperioso para una justicia penal destinada llenar los espacios dejados por otros ámbitos disciplinarios en retroceso101 .

99

FIORELLI, P. La tortura giudiziaria…t. 2, p. 138.

100

“Pues de este modo una enorme multitud de gentes ha sido controlada por seis u ocho Magistrados”. Son palabras de Lorenzo MATHEU I SANZ, , sacadas de su Tractatus de re criminali, (1675), traducidas y transcriptas en TOMÁS Y VALIENTE, F. La tortura…, p. 90.

101

La ejecución de actos represivos con carácter preventivo era una manifestación del discurso promovido a comienzos de la edad moderna sobre la Potestas política et economica del príncipe, con el que se legitimaban las acciones del poder público sobre ámbitos que tradicionalmente estaban exentos del radio de acción de las potestades ordinarias derivadas del poder jurisdiccional El objetivo era evitar daños futuros y preservar y defender la paz pública. Cfr. DE BENEDICTIS, A. Politica, governo e istituzioni nell’Europa moderna, Bologna 2001, pp. 336-339. Para la transformación de las concepciones sobre la función del sistema penal en el antiguo régimen, HESPANHA, A. M. “De Iustitia a Disciplina” en ID., La gracia del derecho…, pp. 203-273

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En un campo de conceptos tradicionales despuntaban novedades que serían reformuladas por la ilustración en su proyecto de un derecho penal de vigilancia continua (en el tiempo y el espacio) y con respuesta moderada (no por arbitrio sino por ley) pero inmediata.102 Como hemos visto antes, no se pude dar una respuesta definitiva a las consecuencias de estos cambios modernos en la práctica del tormento. Tal vez en la corte se acentuaran los nuevos patrones para favorecer un uso abusivo, como lo han señalado los autores citados, mientras que en el caso de las periferias y las instancias ordinarias el escaso registro documental y testimonios como los de Manuel Silvestre Martínez quizás sean una pauta para confirmar la hipótesis de que la extensión del recurso a la pena extraordinaria convirtió al tormento en un rito evitable y de carácter excepcional. Así habría quedado preparado el terreno para que la crítica dieciochesca ajustara el procedimiento penal a una nueva sociedad que se empezaba a concebir como suma de individuos dotados de derechos y en la que el poder y las acciones institucionales tenían ya claramente una legitimación de tipo convencional sobre la base de una episteme empirista. El valor asignado a partir de entonces a la autonomía de la voluntad individual, erigida en uno de los pilares del nuevo orden, haría que la tortura ya no tuviese encaje posible en el discurso que da sentido a las instituciones jurídicas en occidente. Al menos hasta ahora103 .

102

Beccaria le dedica un capítulo entero a la inmediatez de la pena: “Tanto mas justa y útil será la pena cuanto más pronta fuere...”. En otro capítulo parece anteponer este principio al propio derecho de defensa: “conocidas las pruebas y calculada la certidumbre del delito, es necesario conceder al reo tiempo y medios oportunos para justificarse; pero tiempo tan breve que no perjudique a la prontitud de la pena...” BECCARIA, C. De los delitos y de las penas, trad. de Juan Antonio de las Casas (1774), Barcelona 1994, Cap. 19 p. 60 y Cap. 30 p.84 respectivamente. Sobre el ideario penológico de la ilustración, FOUCAULT, M. Vigilar y castigar…, esp. pp. 77-86.

103

“Un informe de EEUU justifica el uso de torturas en Irak y Afganistán. Un equipo legal defendió que el presidente puede ordenar maltratos”, EL PAIS, Madrid, 9 de junio de 2004, p. 5.

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A Restrição de Direitos Fundamentais e o 11 de Setembro: Breve Análise de Dispositivos Polêmicos do Patriot Act The Restriction of Fundamental Rights and the September Eleven: A Brief Analysis of Patriot Act Polemic Dispositions VINICIUS DINIZ VIZZOTTO Bacharel em Direito pela ULBRA. Pós-graduando em Direito Internacional pela UFRGS. Advogado. Assessor do Secretário- Adjunto da Secretaria de Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul.

RESUMO O objetivo do presente estudo, em sua primeira parte, é resgatar os acontecimentos históricos desde os atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001, abordando, dentre outros temas, o número de vítimas do incidente, as versões sobre os fatos, a atual política norte-americana, a Organização das Nações Unidas e a vigente conjuntura mundial, o futuro das relações entre os países e o atual choque de culturas. Após, em um segundo momento, é realizado um apanhado geral sobre o Patriot Act, lei americana que tem causado grande polêmica, ocorrendo a análise de três disposições do referido instrumento legal, que dão margem a discordância e críticas, precisamente: a) a definição do crime de terrorismo doméstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunais militares; e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão. Por derraDireito e Democracia vol.5, n.1, 2004

Canoas n.1 Direito e vol.5, Democracia

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deiro, são efetuadas algumas considerações a respeito da restrição de direitos fundamentais, relacionando alguns fatores que devem ser seguidos para que não ocorram lesões graves e irreversíveis aos mesmos. A análise é pautada pelo princípio da proporcionalidade, utilizado para resolver casos em que se visualiza choque entre direitos fundamentais, como no presente caso. Palavras-Chave: Onze de Setembro, terrorismo, Patriot Act, restrição de direitos fundamentais, princípio da proporcionalidade.

ABSTRACT The objective of the present study, on its first part, is to rescue the historical events since the terrorist attack of September Eleven, covering, among other topics, the number of victims of the incident, the versions about the facts, the foreign and local politics of United States, the United Nations, the future of the relationship of the states and the present clash of cultures. Afterwards, in a second moment, a general summary is made about the Patriot Act, a polemic American statute, by analyzing three of its dispositions, precisely: a) the definition of domestic terrorism; b) the mandatory detention of suspected terrorists; and c) the delaying notice of the execution of a warrant. Finally, some considerations about the restriction of fundamental rights are effectuated, mentioning some criteria that must be followed in order to avoid high and irreversible damage to them. The analysis is guided by the proportionality principle, used to solve cases of fundamental rights collision, like the present one. Key words: September Eleven, terrorism, Patriot Act, restriction of fundamental rights, principle of proportionality.

INTRODUÇÃO Busca-se, no presente estudo, já em seu início, ainda que de modo resumido, reconstruir os acontecimentos históricos desde os atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001, dentre outros os seguintes: números de vítimas, versões sobre os fatos, a atual política externa (e interna) norte-americana, a Organização das Nações Unidas e a vigente conjuntura mundial, o futuro das relações entre os países e o atual choque de culturas. Na segunda parte, após um apanhado geral sobre o Patriot Act, lei americana que tem causado grande polêmica, ocorre a análise de três 224

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disposições do referido instrumento legal, que dão margem a discordância e críticas, precisamente: a) a definição do crime de terrorismo doméstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunais militares; e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão. Por derradeiro, são efetuadas algumas considerações a respeito da restrição de direitos fundamentais, relacionando alguns fatores que devem ser seguidos para que não ocorram lesões graves e irreversíveis aos mesmos.

1. O ATAQUE DE 11 DE SETEMBRO Eu quase morri hoje. (...) Eu nunca vou esquecer nosso primeiro vislumbre da torre em chamas. Rick e eu nos desencontramos em alguma parte da West Side Highway. Ele foi em frente para tirar fotos. Eu entrevistava mães fora de si, bombeiros assustados (...) adolescentes em uniformes de escola, operários, executivos, avós, motoristas de caminhão, mães levando carros de bebê em direção ao norte, para longe da ponta ígnea de Manhattan. Telefones celulares eram inúteis. Um homem, proprietário de um armazém, deixou-me usar o telefone em seu escritório Ele ficou comigo. Trouxe-me uma garrafa de água gelada. Deixou-me usar o banheiro. Quando a segunda torre foi atingida, eu estava a apenas sete quadras ao norte do World Trade Center (...) Sete quadras do inferno. Sete quadras da morte. Em um momento surreal, cheguei a pensar que o prédio era tão alto que poderia cair sobre nós. (...) Cinzas e poeira caíam abundantemente. Policiais e bombeiros colocavam máscaras protetoras. Residentes faziam o mesmo com lenços de papel. Rumores de um vazamento de gás venenoso espalharam-se rapidamente. Eu estava apavorada (...) Alcancei meu hotel a salvo. Após, saí de novo para mais entrevistas. Na catedral de Saint Patrick, acendi uma vela. É noite agora. Entrei em contato com minha família. Devem saber que estou bem. Eu não morri. Mas muitos, muitos outros morreram.1

1.1 Resgate Histórico Os últimos anos do século passado, o mais violento da história recen1

Relato da repórter Catherine FitzPatrik, que presenciou os ataques às torres gêmeas. FITZPATRIK, Catherine. Hell on Earth. Milwaukee Journal Sentinel. Milwaukee, 12 de setembro de 2001. Volume 119, número 301, p. 8A.

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te2 , considerado por alguns até como o “Fim da História” (foi o cientista político Francis Fukuyama quem cunhou tal termo), prometia um futuro tranqüilo, senão pacífico. O século XXI, agora sem o conflito bipolar de ideologias que dividira o mundo no século passado, estava fadado a acompanhar e seguir o dito “Consenso de Washington”3 , cânon prelecionado pelo governo americano, baseado no livre mercado, na abertura das economias e no comércio sem barreiras, que culminaria com a pretensa “extinção de fronteiras”, permitindo assim o livre tráfego de pessoas e bens. A dita “Globalização” (entendida por alguns economistas como sendo nada mais do que uma volta à intensificação das trocas comerciais entre os países, cujo auge deu-se antes de 1914 4 , anteriormente, logo, à 1ª Guerra Mundial) avança a passos largos, principalmente nos países emergentes, mais especificamente na América Latina e na Ásia, com seus “tigres asiáticos”5 . Porém, um evento causou espanto ao mundo inteiro, e modificou a agenda de prioridades da maior nação do mundo, tanto em aspectos eco2

Como preleciona Eric Hobsbawm, “Locais ou regionais, as guerras do século XX iriam dar-se numa escala muito mais vasta do que qualquer outra coisa experimentada antes. Das 74 guerras internacionais travadas entre 1816 e 1965 (...) as quatro primeiras ocorreram no século XX: as duas guerras mundiais, a guerra do Japão contra a China em 1937-9 e a guerra da Coréia. Cada uma delas matou mais de um milhão de pessoas em combate”. Culmina o célebre historiador, citando Singer, observando que “...1914 inaugura a era do massacre”. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p 32.

3

A expressão foi criada pelo economista americano John Willianson, que compilou, em 1989, em livro homônimo, um conjunto de medidas necessárias para que os países latino-americanos voltassem a crescer, considerando os péssimos resultados obtidos na década de 80. Dentre tais medidas, podem ser citadas a disciplina fiscal, a reforma tributária, a desregulamentação da economia, a liberalização das taxas de juros, taxas de câmbio competitivas, revisão das prioridades dos gastos públicos, maior abertura ao investimento estrangeiro direto e fortalecimento do direito à propriedade. Recentemente, Willianson e o ex-ministro da Fazenda do Peru, Pedro Paulo Kuczynski, revisaram o Consenso de Washington, lançando novo livro. O título do livro é After the Washington Consensus: Restarting Growth and Reform in Latin America (Depois do Consenso de Washington - Como Retomar o Crescimento e as Reformas na América Latina), Institute of International Economics, 2002.

4

Para uma análise comparativa entre participação das exportações no PIB dos países, bem como índice de imigração entre países antes e depois de 1914, vide “Fantasias da Globalização”, conjunto de artigos inseridos no livro “A Economia como Ela é...”. BATISTA, Paulo Nogueira Jr. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 27-68.

5

Grupo formado no início dos anos 70, inicialmente composto por Coréia do Sul, Formosa (Taiwan) , Hong Kong e Cingapura, que são os primeiros destaques daquela região (sudeste asiático). Dez anos depois, Malásia, Tailândia e Indonésia também integram o grupo de países chamados Tigres Asiáticos. Apesar da recessão mundial dos anos 80, apresentaram uma taxa de crescimento médio anual de 5%, graças à base industrial voltada para os mercados externos da Ásia, Europa e América do Norte. O Japão e os Estados Unidos são os principais parceiros e investidores, sendo que os principais produtos de exportação são os têxteis e eletrônicos, estes últimos com prioridade. Podem, eventualmente, ser considerados como “países emergentes”.

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nômicos como militares6 , os Estados Unidos da América. Em 11 de setembro de 2001, o citado país sofreu ataques terroristas contra seus maiores símbolos: o World Trade Center, localizado em Nova York, conjunto de prédios que materializava o espírito capitalista e empreendedor dos norte-americanos, verdadeiro signo da globalização; o Pentágono, quartelgeneral e centro de defesa do país, que até então era considerado inatingível; e, por último, as maiores representações da democracia americana: a Casa Branca e o Capitólio, que só não foram atingidos devido à ação dos passageiros do avião seqüestrado por terroristas7,8 . As baixas humanas (incluindo feridos e desaparecidos) alcançaram um total de 6.8679 pessoas. Para se ter uma idéia da amplitude e repercussão do evento, no período compreendido entre 1968 e 2000 ocorreram cerca de 4.967 ataques terroristas contra os Estados Unidos, perfazendo um total de 854 vítimas10 . O ataque, em verdade a primeira ação bélica de origem externa que

6

Décio Freitas, em artigo no jornal Zero Hora, intitulado “A potência impotente”, no dia 08/09/2002, pg. 19: “jamais houve na História potência de comparável hegemonia unipolar em escala planetária (...) Sua economia é superior a da soma de todas as grandes potências desenvolvidas (...) Os gastos militares são três vezes maiores que os das seis maiores potências combinadas – e isso gastando só 3,5% do PIB”. Para maiores dados sobre os gastos militares americanos, bem como da supremacia bélica dos EUA, a sinalizar o eventual fim da corrida armamentista, vide artigo no jornal The New York Times, de autoria de Greg Easterbrook, datado 27 de abril de 2003. A revista Veja também publicou o artigo, traduzido, na edição nº 1801, de 7 de maio de 2003. p. 52-54.

7

Há versões de que o avião foi interceptado por caças F-16, da Força Aérea Americana (USAir Force).

8

Esta é a versão oficial dos acontecimentos. A título de curiosidade, existem versões sobre os atentados nos Estados Unidos que beiram as raias do absurdo, materializando verdadeiras teorias da conspiração: uma delas, de autoria de Andreas von Bulow, um ministro aposentado da Pesquisa e Tecnologia da Alemanha, em livro denominado The CIA and September 11, insinua que os EUA e o serviço de inteligência israelense, o Mossad, detonaram o World Trade Center a partir de seu interior, e os aviões que se chocaram contra as torres foram guiados por controle remoto. Existe também livro de autoria do francês Thierry Meyssan (jornalista e cientista político francês, presidente da Rede Voltaire e redator-chefe da revista Maintenant) intitulado “11 de setembro de 2001: uma terrível farsa - Nenhum avião atingiu o Pentágono!”. Além do assunto-título, o autor analisa a atual conjuntura dos Estados Unidos, bem assim os “reais interesses” que motivaram as invasões do Iraque e do Afeganistão. Foi o livro político mais vendido em 2002. O jornal Correio Brasiliense, em 07/03/2003, entrevistou o autor do livro, que esclareceu seu ponto de vista sobre os incidentes de 11 de setembro. Para acessar a entrevista, pode-se visitar o endereço http:// www2.correioweb.com.br/cw/ EDICAO_20030307/vid_mat_070303_74.htm.

9

Disponível em http://www.linking.to/September11/#numbers. Os números variam. Segundo a Zero Hora de 07/09/2003, as últimas estimativas dão conta de 3.061 mortos, sendo que 1.100 corpos não foram identificados. O dado mais atualizado, que dá conta de 2.749 mortos na cidade de Nova York, é do dia 22/01/2004. Para maiores detalhes, há site completíssimo: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/ Casualties%20of%20the%20September%2011,%202001%20attacks. Data de Acesso: 27/04/2004.

10

Disponível em: http://www.linking.to/September11/#numbers. Data de acesso: 27/04/2004.

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tocou o território continental dos Estados Unidos11 , causou alarma internacional e pânico, principalmente na população americana. A nação, que foi o berço da moderna democracia, encontra-se (e de certo modo toda a civilização ocidental) em uma encruzilhada: restringir direitos individuais e liberdades civis, em favor da segurança nacional, ou manter tal gama de liberdades, arriscando-se a sofrer novos ataques12 . Após o acontecimento, o governo americano implementou medidas para combater o terrorismo, entre elas a detenção de mais de seiscentos imigrantes com situação irregular por período indeterminado, em prisões13 . Em 26 de outubro de 2001, o presidente Bush assinou o USA Patriot Act14 que concedeu ao governo maiores poderes para prender e deter estrangeiros suspeitos. Em outubro de 2001, Bush baixou uma ordem executiva permitindo a autoridades policiais monitorar comunicações entre presos federais e seus advogados, sem a obtenção de uma autorização judicial15 . 11

O ataque japonês a Pearl Harbor, que ocorreu no arquipélago Havaiano (fora da área continental, portanto) em 7 de dezembro de 1941, destruiu 19 navios, incluindo cinco encouraçados, 188 aviões e causou a morte de 2.400 americanos. Havia sido o maior ataque estrangeiro contra a nação americana. NASH, Gary B. Nash. American Odissey – The United States in the 20th Century. New York: Glencoe Division of Macmillan/ McGraw-Hill Publishing Company, 1994, p. 410.

12

As investigações do FBI e da CIA, que identificaram os autores do atentado, constataram que grande parcela morou nos Estados Unidos por longo período, tendo inclusive aprendido a pilotar aviões em solo americano.

13

Sobre o posicionamento do Procurador-Geral dos Estados Unidos, John Ashcroft, acerca da detenção de imigrantes vide artigo na revista Time, de 04/05/2003, intitulado, no original, Can Attorney General John Aschcroft fight terrorism on our shores without injuring our freedoms?, de autoria de Richard Lacayio, o qual pode ser acessado em http://www.refuseandresist.org/police_state/art.php?aid=772. Há caso de imigrantes haitianos (mais precisamente, David Joseph, de 18 anos de idade, à época) que, mesmo após ter seu pedido de asilo político concedido (tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição), foi mantido na prisão, por decisão de John Aschcroft, até sua situação se regularizar (o processo pode durar meses ou até anos). A alegação da manutenção da detenção seria o fato de que, em caso de relaxamento da prisão, haveria um incentivo para o aumento na tendência de imigração ilegal, principalmente de paquistaneses e palestinos, que usariam o Haiti como rota para chegar aos Eua.

14

Para as lesões causadas pelo “USA Patriot Act” à primeira, quarta, quinta e sexta emendas da Constituição Americana, vide artigo intitulado, em inglês, The State of Civil Liberties: One Year Later, publicado pelo Centro de Direitos Constitucionais, que existe desde 1966. Disponível em: http://www.ccr-ny.org/v2/ reports/docs/Civil_Liberities.pdf. Data de Acesso: 12/12/2003. O referido centro, que tem como objetivo lutar pela efetivação de direitos prelecionados pela Carta Americana, bem como pela Declaração Universal de Direitos do Homem, já foi parte em casos célebres, tal como o case Filártiga v. Peña-Irala, que foi julgado com base na The Alien Tort Claims Act, tendo a US Second Circuit Court of Appeal entendido que “a tortura deliberada perpetrada sob o manto da oficialidade viola universalmente normas de direitos humanos internacionais e tal violação constitui lesão à lei doméstica dos Estados Unidos”. Disponível em: http:/ /www.sangam.org/JANAKA/ATCA.htm. Acesso em 06/10/2003.

15

A respeito da legalidade de tal ato, há comentário escrito pela professora Kathleen Clark, da Faculdade de Direito da Universidade de Washington, no sítio http://law.wustl.edu/Academics/faculty/clarkcnsscomments.html. A conclusão da professora é cristalina: “Essa regulação interfere na relação entre advogado-cliente tão fundamentalmente que viola seus direitos oriundos da 1ª e 6ª emendas. É contrária aos requisitos constitucionais e da ‘common law’, uma vez que o executivo deve obter a aprovação de um juiz neutro antes de interferir na relação confidencial entre advogado e cliente. (....) Essa regulação deveria ser revogada”.

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Bush também assinou uma ordem autorizando o uso de tribunais militares 16 para interrogar e levar a juízo pessoas que sejam eventualmente terroristas, com o objetivo de evitar o risco de ataques terroristas adicionais bem como a revelação de informações confidenciais quando no trâmite de um processo. Ocorreu, inclusive, a invasão do Afeganistão17 , que estaria dando, sob o governo Taliban, abrigo e respaldo ao eventual mentor dos crimes, Osama Bin Laden18 , e sua organização terrorista, a Al-Qaeda. Após a consideração sobre o axis of evil19 , um grupo que seria formado por Iraque, Irã e Coréia do Norte, países com eventual potencial e/ou capacidade para produção e uso de armas de destruição em massa, além de possível concessão das mesmas para grupos terroristas, o governo americano inaugurou o que ficou conhecido como a “Guerra contra o Terror”.

1.2 A Geopolítica Há muito tempo já se viu que não há homem independente em existência nem Estado soberano auto-suficiente, pois tanto os homens, como 16

A questão acerca de Tribunais Militares é uma das mais pulsantes, no que se refere às medidas tomadas pelo governo americano. Atualmente, o campo delta, em Guantánamo, Cuba, conta com mais de 680 prisioneiros, oriundos de mais de 42 países. As celas apresentam as dimensões de 2m x 2,44m, e tem 2m de altura. São cercadas por barras de metal, e possuem uma cama e um sanitário desodorizado no chão. Na chegada a Guantánamo, cada prisioneiro recebe um macacão laranja, um colchão de espuma, dois baldes, tapete para reza, sabonete, xampu, pasta de dente, duas toalhas, cobertor e lençóis, uma cópia do Alcorão e um par de chinelos. As refeições diárias, que são três, somam 2,6 mil calorias. O café da manhã e o jantar são preparados no campo, e o almoço, composto de verduras e legumes, é fornecido pronto para comer. Na reportagem, traduzida do The New York Times, Ted Conover, que lá esteve, diz que “nada se sabe sobre condições de liberdade, e não há procedimentos judiciais. Oficialmente, os prisioneiros estão sendo mantidos na base para interrogatórios. Mas, a julgar pelas condições do local, eles estão presos também como punição. Por quanto tempo, porém? Quem decide?” Questionado sobre o funcionamento dos interrogatórios, o general Geoffrey Miller apenas disse que “os americanos ‘não fazem nada no Campo Delta de que não possam se orgulhar’”. Zero Hora do dia 20/07/2003, p. 28.

17

Para maiores detalhes sobre a atual conjuntura política e econômica do Afeganistão, vide LESSA, Carlos, et al. A Crise Internacional e o Brasil Depois do Atentado – Notícias da Guerra Assimétrica. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2002. p. 9-38.

18

Osama Bin Laden foi aliado dos Estados Unidos, no período em que a antiga União Soviética invadiu o Afeganistão, em 1979. Formado em engenharia, Osama foi financiado e treinado pelos americanos, recebendo grande quantidade de armamentos daquela nação.

19

Eixo do Mal, na tradução. A primeira vez que George Bush se manifestou sobre este grupo de países que configurariam perigo iminente para o mundo foi em seu “State of the Nation Speech”, de 29/01/2002. Após, a Síria também foi acusada de estar envolvida com grupos terroristas, sendo que, no mês de outubro de 2003 sofreu ataques com o uso de mísseis, por parte de Israel.

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as nações sempre viveram, e não podem deixar de viver, interdependentementes coordenados em ação, pelo que (...) os interesses que o governo de um povo deve tomar em conta não são apenas os dos súditos, nem os de cada um dos países estrangeiros, mas os da humanidade.20 O impacto do 11 de setembro ensejou até a reconsideração de Fukuyama acerca de sua visão sobre o propalado “fim da história”21 . Em artigo publicado na revista australiana Policy22 bem assim em conferência proferida no dia 8 de agosto de 200223 , em Melbourne, o conhecido cientista político teceu observações sobre a questão. Asseverou Fukuyama, na referida palestra, no que tange sobre a atual conjuntura, que a visão de mundo (o lócus da legitimidade da democracia) dos europeus difere da visão dos americanos, uma vez que aqueles acreditam estar vivendo realmente no “fim da história” (um mundo pacífico, que, cada vez mais, pode ser governado por normas, leis e tratados internacionais). Por seu turno, estes ainda crêem que se faz necessário o uso de políticas clássicas, como o realpolitik24 , para combater ameaças como o Iraque, a Al-Qaeda e “outras forças malignas”25 . O artigo de Fukuyama traz novamente à tona o “Choque de Civilizações” prelecionado por Samuel Huntington, no sentido de que conflitos agora não ocorreriam entre nações, mas sim entre culturas diferentes; no presente caso, o “modernismo ocidental” versus o “bárbaro islamismo”26 .

20

CASTRO, Amílcar de. Direito Internacional Privado. 5ª ed. aum. e atualiz. com notas de rodapé por Osíris Rocha. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 37.

21

Fukuyama argumenta que sua expressão não se referia ao fim de eventos históricos, mas sim ao fato de que a evolução das sociedades humanas através de diferentes formas de governo culminou fatalmente na moderna democracia liberal e no capitalismo orientado pelo mercado.

22

FUKUYAMA, Francis. Has History Started Again? In Policy Magazine, vol. 18, nº 02. Winter – 2002, p. 3-7

23

Palestra ministrada em razão do XIX “John Bonython Lecture”, realizado sob os auspícios do “Centre for Independent Studies” de Melbourne, Austrália. Disponível em: http://www.cis.org.au/Events/JBL/ JBL02.htm. Data de Acesso: 08/09/2003

24

Na definição de Henry Kissinger, “uma política exterior baseada em cálculos de poder e no interesse nacional”. KISSINGER, Henry. La Diplomacia. Tercera reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 133.

25

Na visão de Fukuyama, uma política externa americana que mantenha um “respeito decente” para com os demais países deve envolver os seguintes elementos: a) uma enunciação que estabeleça os limites das ações preventivas contra o terrorismo: que tipos de ameaças, e quais critérios e níveis de evidências vão justificar o uso do poder americano? b) assumir alguns compromissos no que se refere a males mundiais como a emissão de carbono (Protocolo de Kyoto); e c) rever as decisões referentes às questões dos subsídios agrícolas e da indústria do aço, uma vez que tais medidas, de cunho totalmente político, não vão trazer a liderança econômica americana nessas áreas.

26

Importante referir que, segundo Samuel Huntington, o confucionismo também seria “perigoso” ao Ocidente.

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O que se tem, em verdade, é um conflito de base cultural e religiosa, entre dois credos monoteístas que possuem, no âmago de suas doutrinas, objetivos expansionistas, evangelizadores e messiânicos. Nas próprias palavras do geopolítico americano, vislumbrando os atuais acontecimentos: A fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essencialmente ideológica nem econômica. As grandes divisões na humanidade e a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. As naçõesEstados continuarão a ser os agentes mais poderosos nos acontecimentos globais, mas os principais conflitos ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As linhas de cisão entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro.27 Apesar de estar atualmente em voga, o terrorismo não é produto do século passado. Em entrevista concedida a David Barsanian, em 21 de setembro de 2001, Noam Chomsky definiu-o como sendo “...o uso de meios coercitivos contra uma população civil, no esforço de atingir objetivos políticos, religiosos ou outros”. Aduziu, ainda, que “... de acordo com as definições oficiais, é simplesmente parte da ação do Estado, da doutrina oficial” 28 . Portanto, suas origens remontam ao início das sociedades humanas, onde existia já alguma forma de governo, bem como grupos dissidentes. Configura-se como delito de caráter internacional, segundo Igor Karpetz29 , e, como doutrina e como forma de luta política,

27

HUNTINGTON, Samuel. Choque do Futuro, p. 135. Tradução de Laura Teixeira Mota. In Reflexões para o Futuro. São Paulo: Abril, 1993. p. 135-147.

28

CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 65.

29

O livro é raro, escrito por professor russo em plena Guerra fria, e retrata os delitos de caráter internacional sob uma perspectiva comunista. Assim, em sua grande parte, apesar de trazer interessantes dados à baila, o autor declara que o fenômeno terrorista é originário exclusivamente de países capitalistas, sendo, eventualmente, “exportado” para estados socialistas. Entretanto, a seguinte passagem é bastante esclarecedora sobre a atual definição do que seja terrorismo: “os autores burgueses tem procurado dar um conceito de terrorismo extraordinariamente amplo, muito mais que o conceito universalmente reconhecido de ato terrorista como delito comum, previsto pelas legislações nacionais. Inventou-se inclusive o termo, segundo o qual, o terrorismo atenta contra a segurança geral. Entretanto, permaneceu sem esclarecer o que deve entender-se por tal coisa. No conceito de terrorismo incluíram os atentados contra o indivíduo, contra a propriedade e outros atos delitivos e também as atividades que comumente são formas de ações revolucionárias (greves, manifestações, etc), enquanto os atos criminais definidos pelas legislações nacionais como terrorismo, passam a um segundo plano”. KARPETZ, Igor. Delitos de Carácter Internacional. Traducido del russo por Pérez Castul. Moscú: Progresso, 1983. p. 99. Maiores detalhes sobre o tema: pp. 88-143.

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representa um fenômeno dos regimes reacionários imperialistas, fascistas, militaristas burocráticos, bem como de grupos e tendências ultraesquerdistas e anarquistas30 . Relevante notar que a política externa norte-americana, que após a posse de George W. Bush já vinha dando sinais de unilateralismo (não ratificação do Protocolo de Kyoto, não cumprimento das linhas bases estabelecidas pela Eco-92, desinteresse em homologar a participação dos Estados Unidos no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, Holanda, entre outras irresignações), foi a concretização de um posicionamento que havia sendo maquinado há mais de uma década. Portanto, essa eventual “guinada” no tratamento das questões internacionais, por parte dos Estados Unidos, não é tão inesperada como se imagina. Recentemente, foi revelado ao público em geral, por intermédio do jornal escocês Sunday Herald31 , estudo intitulado Rebuiliding America´s Defenses – Strategy, Forces and Resources For a New Century32 , finalizado em setembro de 2000, que traz, entre outros fatos, a observação de que torna-se necessário estabelecer quatro missões centrais para as forças militares americanas, considerando o fim da “ameaça comunista”, quais sejam: (i) defender o território americano; (ii) lutar e ganhar decisivamente, múltiplas e simultâneas guerras, em vários locais; (iii) executar os deveres de “policiamento”, associados ao aprimoramento do ambiente de segurança em regiões críticas; e (iv) transformar as forças armadas para explorar “a revolução em assuntos militares”33 .

30

KARPETZ, Igor. Delitos de Carácter Internacional. Impresso em la URSS. Traducido del russo por Pérez Castul. Moscú: Progresso, 1983. pp. 88-89.

31

Edição de 15 de setembro de 2002, de autoria de Neil Mackay. Disponível em: http://sundayherald.com/ print27735. Data de Acesso: 15/10/2003.

32

Tal projeto, que tem como fim precípuo estabelecer e manter uma Pax Americana, tem como idealizadores Dick Cheaney (atual vice-presidente), Donald Rumsfeld (secretário de Defesa), Paul Wolfowitz (deputado de confiança do último), Jeb Bush (irmão mais jovem do atual presidente americano) e Lewys Libbi (chefe da equipe de Cheaney). Parece agora, a olhos vistos, que a derrota de Al Gore era fatal, em confusa e atabalhoada apuração eleitoral, especialmente no Estado da Flórida. O artigo, de 90 páginas, está disponível em http://newamericancentury.org/RebuildingAmericasDefenses.pdf. DONELY, Thomas. Rebuilding America´s Defenses – Strategy, Forces and Resources For a New Century. Washington, DC: Project tor the New American Century, September 2000.

33

Tais missões seriam cumpridas mantendo-se a estratégia da superioridade nuclear, recolocando a força militar ao patamar em que se encontrava anteriormente, repondo as forças armadas em bases estratégicas; desenvolvendo e instalando a defesa global de mísseis; controlando os interesses referentes ao espaço, criando a “U.S. Space Forces”, e, por derradeiro, aumentando os gastos militares, na base de $15 a $20 bilhões de dólares.

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Nesta senda, os Estados Unidos invadiram, juntamente com a Inglaterra, e sem o respaldo da ONU34 , o Iraque, sob a acusação de existência de armas de destruição em massa no território daquele país35 , governado por Saddam Hussein36 . 34

A resolução 1441, adotada pelo Conselho de Segurança em 08/11/2002, em razão de seu 4644º encontro, foi motivo de controvérsia. O referido documento constatou que o Iraque não estava concedendo “imediato, irrestrito e incondicional” acesso a áreas, construções, instalações e demais locais que poderiam abrigar armas de destruição em massa. O 13º parágrafo da resolução evoca que “o Conselho havia repetidamente advertido que o Iraque enfrentará graves conseqüências como resultado das contínuas violações às suas obrigações”. O significado da expressão “graves conseqüências” embasou o ataque americano, apoiado primeiramente pela Inglaterra e pela Espanha. As negociações da diplomacia americana, no sentido de obter nova resolução mais “clara”, não lograram êxito, uma vez que os demais membros permanentes do Conselho de Segurança (França, China e Rússia,) declararam que iriam vetar a proposta. O jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 18/03/2003, às folhas A11 até A18, publicou matéria intitulada “Eua desistem de diplomacia, e Bush lança ultimato a Saddam”, contendo pesquisa do Instituto Gallup, constatando que 54% dos americanos aprovavam uma guerra com a rejeição da ONU, contra 47% de reprovação. Como a margem de erro da pesquisa é de 3%, constata-se que o povo americano encontra-se totalmente dividido em suas opiniões quanto a atual política de George Bush, o que certamente influenciará em sua campanha em busca da reeleição presidencial. Nova pesquisa, desta vez oriunda da CBS e do New York Times, publicada pela Zero hora de 04/10/2003, demonstra que a disputa eleitoral está acirrada: 44% de intenções para Bush e 44% ao candidato democrata,, John Kerry. O índice de aprovação de Bush alcança 51%, apenas um ponto percentual acima do existente antes do 11 de setembro.

35

O chefe da Comissão de inspeções da ONU, o sueco Hans Blix, e Mohamed Elbaradei, diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, bem como suas equipes, não encontraram provas suficientemente cabais acerca da existência de armas de destruição em massa (nucleares, entre elas) em território iraquiano. A mesma constatação foi feita por David Kay, assessor da CIA, em relatório preliminar sobre as buscas de armas de destruição em massa, apresentado ao Congresso americano. Kay trabalhou à frente de 1.200 especialistas em operação que consumiu três meses e U$300 milhões. Afirmou Kay que seriam necessários ainda seis meses de investigação para divulgar alguma conclusão sobre o programa de Armas de Saddan. Zero Hora de 04/10/ 2003, pg. 18. Recentemente, em entrevista que vai ser publicada na Revista “Vanity Fair”, Kay afima que em julho, menos de um mês depois de sua chegada no Iraque a serviço da CIA, enviou um e-mail para o diretor da agência de inteligência, George Tenet, dizendo que parecia não existir indícios de produção de tal espécie de armas. Kay saiu do Iraque no dia 23 de janeiro de 2004. Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/ reuters/2004/04/05/ult729u35489.jhtm. Data de Acesso: 05/04/2004. No dia 03/06/2004, George Tenet pediu demissão de seu cargo, alegando “razões pessoais”. Ele permanece no cargo até julho de 2004, quando será substituído interinamente por John McLaughlin, seu substituto. Tenet tinha sido nomeado pelo ex-presidente Bill Clinton em maio de 1997 e foi confirmado em seu cargo por Bush. Tinha recebido numerosas críticas por causa do papel desempenhado pela CIA no caso das supostas armas de destruição em massa no Iraque, o principal argumento defendido pelo governo dos Estados Unidos para ir à guerra em março de 2003.

36

Apesar de, em uma análise rápida, parecer que o governo americano sempre manteve uma postura contrária às barbáries cometidas por Saddan Hussein ao longo de seus mais de vinte anos de ditadura no Iraque, é relevante notar que, no início da década de 1980, o ditador foi um dos maiores aliados dos americanos no Oriente Médio. Naquele momento, Saddan travou uma guerra contra a República Islâmica do Irã, que se encontrava sob o comando do Aiatolá Khomeini, tendo em vista que o Xá Reza Palehvi tinha se exilado. Em 20 de dezembro de 1983, inclusive, houve encontro pessoal entre Saddan e Donald Rumsfeld, atual secretário de defesa dos EUA. A guerra se estendeu até por volta de 1988, o Iraque sempre recebendo apoio logístico e militar dos Eua. Morreram cerca de 700.000 pessoas na guerra, entre iraquianos e iranianos. Neste meio tempo, em 1985, Saddan utilizou armas químicas contra a aldeia curda de Halabja, matando 5.000 civis. Todavia, foi apenas em 1991, quando da invasão do Kuwait, que os Estados Unidos entraram em guerra com o Iraque, em operação que ficou conhecida como “Tempestade no Deserto”, que resultou na morte de 100.000 iraquianos, a grande maioria de civis.

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A guerra contra o Iraque foi declarada oficialmente no dia 20 de março de 2003. Com o fim da guerra, ou pelo menos dos principais combates, o qual foi declarado em 1º de maio de 2003, tropas americanas e inglesas (polonesas também, dentre outras) encontram-se atualmente no território iraquiano. No entanto, atentados a soldados são quase diários, e o número de soldados mortos desde o fim oficial dos conflitos já iguala (ou supera) as baixas anteriores. Ao longo dos combates, e após, escândalos vieram a tona: os dossiês feitos pelos governos americano e britânico, referentes à existência de armas de destruição em massa no Iraque, foram postos em cheque. Na Inglaterra, um dos cientistas envolvidos foi encontrado morto, sendo que a versão oficial apontou para suposto suicídio. Bush admitiu, em discurso, que foi usada falsa informação para embasar a guerra. No dia 19 de agosto de 2003, às 16h30min, ocorre um ataque terrorista à sede da ONU37 na capital iraquiana, o maior até hoje perpetrado contra a instituição: um caminhão com 700 kg de explosivos se choca e destrói parte do prédio, matando, dentre as vinte e duas vítimas, o funcionário da organização Sérgio Vieira de Mello, brasileiro, Chefe do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, que estava em missão naquele país, denominado pela revista Istoé como “mártir brasileiro” 38 . No dia 22 de setembro de 2003, outro atentado foi realizado, desta vez resultando em dois mortos e dezessete feridos. Pressentindo que de modo isolado a reconstrução do Iraque39 será uma tarefa difícil, principalmente no que se refere à manutenção da segurança, o presidente Bush, em recente discurso na ONU, conclamou os demais países a enviar tropas para aquele país. No entanto, uma questão impediu a obtenção de um consenso: os Eua não abrem 37

Um dos motivos do êxito do ataque teria sido o parco e ineficaz nível de segurança proporcionado pelas tropas de coalizão à ONU, bem assim a infiltração de terroristas no corpo de seguranças iraquianos que protegiam as instalações.

38

A jornada de Sérgio Vieira de Mello na ONU merece ser relatada, e a manchete da Revista Istoé, edição nº 1769, bem retrata as realizações deste brasileiro. Entrou na organização aos 21 anos, dedicando 34 anos de sua vida às causas humanitárias. Formado em filosofia e com doutorado em Ciências Políticas pela Sorbonne, era um dos nomes mais cotados para substituir Kofi Annan no cargo de Secretário-Geral, e exercia a função de Alto Comissário para Direitos Humanos. Atuou em inúmeros países e regiões que se encontravam em conflito, como Angola, Kosovo, Timor Leste, etc.

39

São estimados U$36 bilhões para a plena recuperação do Iraque, em três anos, ou U$55 bilhões, em quatro anos, segundo o Banco Mundial. Atualmente, a transição de governo pós-Saddan está sendo coordenada pelo diplomata americano Paul Bremmer.

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mão de liderar o processo de reestruturação política e econômica do Iraque 40 . Contrários a este posicionamento foram os discursos do presidente do Brasil e da França, tendo em vista que defenderam que a ONU deveria ocupar um papel central na restauração do Iraque41 , devendo ser estabelecido imediatamente um governo provisório naquele país42 . Com a nova onda de atentados perpetrados contra o exército americano, inclusive quando da estada de John Aschcroft em solo iraquiano, bem assim o aumento do número de saques, a ONU avisou que está reduzindo drasticamente, senão totalmente, o número de integrantes de sua missão. Outras agências de assistência humanitária também aventaram a possibilidade de abandonar o país. Em retaliação àqueles países que não apoiaram a guerra contra o Iraque, 40

Existem especulações no sentido de que já houve acordos fechados para que empresas americanas trabalhem na reconstrução do Iraque. Um dos escândalos envolveria a questão de superfaturamento de contratos de compra de gasolina. Uma auditoria realizada pelo Pentágono verificou que uma subsidiária da empresa do setor de petróleo Halliburton Co. superfaturou US$ 61 milhões num contrato de compra de gasolina do Kuwait para o Iraque. A Halliburton já teve como diretor-executivo o vice-presidente dos EUA, Dick Cheaney, e sua subsidiária Kellogg Brown and Root (KBR) foi contratada — sem licitação — em março de 2004 pelo governo dos EUA para recuperar a indústria de petróleo iraquiana, destruída na guerra.

Existe um relatório a respeito da atual situação no Iraque, de autoria de Rend Rahim Francke, diretor da “Fundação do Iraque”, baseado em uma viagem sua a Bagdá, ocorrida no período compreendido entre os dias 27 de julho a 21 de agosto de 2003, abordando dentre outros aspectos o atual status da segurança, dos serviços, da economia, da vida política, do processo constitucional, e da informação e mídia na capital iraquiana. Quanto à segurança, Francke assim se pronuncia: “comparado com o mês de abril, a segurança, em todos os níveis, está bem pior. Além dos ataques às forças de coalizão, atos de sabotagem contra instalações e crimes contra iraquianos, atos espetaculares de terrorismo se proliferam (...) roubo de carros há em demasia, e ocasionalmente os proprietários são mortos. Roubo à mão armada é freqüente nas ruas de Bagdá, e muitas casas foram saqueadas (...) A população procura as forças de coalizão, a fim de obter segurança (...) Conforme a situação deteriora, a relação entre os iraquianos e as tropas americanas piora: os iraquianos estão furiosos e frustrados com os americanos; o sentimento geralmente é recíproco”. Disponível em http:// www.iraqfoundation.org/news/2003/isept/26_democracy_watch.html. Data de Acesso: 20/11/2003. 42 Os Estados Unidos, no dia 02/10/2003, apresentaram projeto de resolução ao Conselho de Segurança, no sentido de que a soberania do país deve ser transferida após a redação da Constituição do país e a realização de eleições – o que duraria pelo menos dois anos. Rússia e França já criticaram a proposta. A resolução tem como objetivo que outros países contribuam com tropas e dinheiro, no Iraque. Atualmente, a previsão de “entrega” do país aos iraquianos está agendada para o dia 30/06/2004. O governo interino, escolhido pelo Conselho de Governo do Iraque, formado por 25 políticos, que assumirá o poder formalmente após esta data, tem como presidente o muçulmano sunita Ghazi Mashal Ajil al-Yawer. Ele tem 46 anos e é membro destacado da tribo Shamar, que tem 3 milhões de membros (sunitas e xiitas) espalhados por Síria, Iraque, Arábia Saudita e Kuwait. O novo gabinete tem um primeiro-ministro, um vice-premier para segurança e 31 ministros, dentre eles seis mulheres. Interessante notar que o primeiro-ministro, Iyad Allawi, político xiita educado na Grã-Bretanha, tem estreitos laços com o Departamento de Estado americano e com a CIA. Uma das primeiras tarefas do governo será negociar um acordo crucial sobre a situação legal das forças de ocupação lideradas pelos EUA, que irão continuar no país depois que a soberania for devolvida aos iraquianos. As eleições nacionais estão previstas para o fim de 2005. 41

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o Ministério de Defesa americano divulgou uma listagem, em dezembro de 2003, contendo os países que poderiam trabalhar na reconstrução do Iraque, em contratos que totalizam U$18,6 bilhões. Foram vetados a Alemanha, a França, a Rússia, o Canadá e também o Brasil, dentre outras nações.

1.3 O Futuro A sétima lei (natural) é “na vingança – isto é, a retribuição do mal com o mal – os homens não dêem importância ao mal passado, mas só importância ao bem futuro”. O que nos proíbe aplicar castigo com qualquer intenção que não seja a correção do ofensor ou como exemplo para os outros. Esta lei é a conseqüência da anterior, que ordena o perdão em vista da segurança do tempo futuro. Além do mais a vingança que não visa ao exemplo ou ao proveito vindouro, é um troféu ou glorificação com base no dano causado ao outro que não tende para fim algum já que o fim é sempre alguma coisa vindoura. Ora, glorificar-se sem tender a um fim é vanglória, e contrário à razão. Causar dano sem razão tende a provocar a guerra, o que é contrário à lei natural. Geralmente se designa pelo nome de crueldade43 . É evidente que a atual nova conjuntura causa certo espanto, uma vez que fere todo um arcabouço levantado desde 1776 pelos americanos, tendo por base a democracia, a livre expressão e a igualdade, tudo imantado pelo devido processo legal. Os ataques das forças de coalizão ao Iraque, sem o apoio da ONU, sinalizam a provável supressão de decisões baseadas no multilateralismo e na negociação diplomática. Se necessário for, a nação mais poderosa do planeta agirá sem consultar eventuais aliados. Esse “machismo militar”, termo usado por Immanuel Wallerstein44 , é totalmente contrário aos ve43 44

HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução Alex Marins São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. p. 117. Sobre os Estados Unidos, Wallerstein diz que tal nação tem “estado em declínio lento, mas contínuo desde os anos 70. Os falcões americanos que chegaram ao poder com Bush argumentavam que o declínio americano fora o erro das administrações anteriores, e nisso enganavam-se tomando a conseqüência pela causa. Ofereceram uma solução simples: um consumado machismo militar e um desdém unilateral pelo resto do mundo levariam os EUA a alcançar seus objetivos principais, pondo um fim nas aspirações européias e da Ásia Oriental por autonomia política na cena mundial, e eliminando qualquer tipo de proliferação de armas nucleares no sul globalizado. Por meio de suas políticas- o naufrágio do acordo de Kyoto; as exigências de isenção dos EUA em relação às leis internacionais; a invasão unilateral do Iraque; o desenvolvimento de novas armas nucleares –, o governo americano conseguiu levar a qualidade de suas relações com o Canadá e a Europa Ocidental a um nível historicamente muito baixo, atolou-se numa guerra de guerrilhas no Iraque impossível de ser vencida, imprimiu novo ímpeto tanto às redes terroristas quanto aos movimentos islâmicos radicais pelo mundo afora, apressou o colapso do dólar e acelerou a corrida por armas nucleares na Coréia do Norte, no Irã e, provavelmente, em meia dúzia de outros países (...)”. In Revista Carta Capital, de 20 de agosto de 2003. Disponível em http:// cartacapital.terra.com.br/site/exib e_materia.php?id_materia=9 04. Data de Acesso: 15/09/2003.

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tores de orientação de política exterior apresentados, em 08 de janeiro de 1918, ao Congresso americano, pelo então presidente Woodrow Wilson, oportunidade em que elencou quatorze pontos45 a serem perseguidos pelas nações, dentre eles o de autodeterminação e segurança coletiva, bem como a criação de uma Sociedade de Nações, a fim de se obter a paz. Como refere Henri Kissinger, Para os norte-americanos, a dissonância entre sua filosofia e o pensamento europeu acentuava o mérito de suas crenças. Ao proclamar a ruptura radical com os preceitos e as experiências do Velho Mundo, a idéia Wilsoniana de uma ordem mundial se derivou da fé norte-americana na natureza essencialmente pacífica do homem e de uma subjacente harmonia do mundo. Daí se concluía que as nações democráticas, por definição, eram pacíficas; os povos aos quais se outorgara a autodeterminação não teriam razão alguma para ir à guerra ou para oprimir a outros. E uma vez que todos os povos houvessem provado os benefícios da paz e da democracia, sem dúvida se ergueriam como um só para defender tais conquistas.46 Não é com a prática de tortura47 que os Estados Unidos conseguirão 45

Os quatorze pontos eram especificamente os seguintes: exigência da eliminação da diplomacia secreta em favor de acordos públicos; liberdade nos mares; abolição das barreiras econômicas entre os países; redução dos armamentos nacionais; redefinição da política colonialista, levando em consideração o interesse dos povos colonizados; retirada dos exércitos de ocupação da Rússia; restauração da independência da Bélgica; restituição da Alsácia e Lorena à França; reformulação das fronteiras italianas; reconhecimento do direito ao desenvolvimento autônomo dos povos da Áustria-Hungria; restauração da Romênia, da Sérvia e de Montenegro e direito de acesso ao mar para a Sérvia; reconhecimento do direito ao desenvolvimento autônomo do povo da Turquia e abertura permanente dos estreitos que ligam o mar Negro ao Mediterrâneo; independência da Polônia; e criação da Liga das Nações.

46

KISSINGER, Henry. La Diplomacia. Tercera reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 218.

47

O advogado Alan Dershowitz (um dos mais célebres advogados americanos), em entrevista à Veja, confirma a ocorrência de tortura pelo governo americano, em sua cruzada contra o terrorismo: “(..) O que eu disse é que a tortura vem sendo usada pelos Estados Unidos em sua luta total contra o terror. O que está acontecendo hoje em meu país é um dos piores tipos de crime de guerra que podem existir, a pior modalidade de combate. Estamos utilizando métodos brutais de interrogatório e não estamos admitindo isso publicamente. (...) Os Estados Unidos são uma democracia, porém tem agido abusivamente na luta para acabar com o terror. A tortura e a violação de liberdades civis por parte dos Eua estão fazendo muito mal a esse país. (..) A tortura está sendo utilizada por nossas autoridades, e elas não dão sinais de que estejam dispostas a parar com essa prática. Então, que se estabeleçam regras democráticas para o uso da coerção física nos interrogatórios de acusados de terrorismo. Esse método só poderia ser utilizado, a meu

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suprimir ou ao menos refrear a prática do terrorismo. A intolerância e a tentativa americana de impor ao mundo a sua versão própria da “verdade” e do “bem”, causarão efeitos ainda mais danosos, em um futuro próximo. E, na verdade, atualmente estamos assistindo a uma transição, uma tendência a uma perspectiva e uma “concepção multicultural dos direitos humanos” 48 , baseada principalmente na tolerância. É mais provável que com essa visão equilibrada possamos alcançar uma paz e um federalismo mundial, respeitador das idiossincrasias dos cidadãos, bem assim das características únicas das nações, respeitando as identidades próprias e os valores arraigados de cada uma das sociedades que formam o globo. Apenas com a transmutação do atual paradigma, baseando-se na Paz Perpétua prelecionada por Kant49 é que poderemos evitar guerras seme___________________ ver, com autorização judicial, e só em casos extremos (..)”. In Revista Veja, edição 1820, 17 de setembro de 2003. Páginas Amarelas p. 11-15. A questão levantada por Dershowitz é instigante. Como um Estado Democrático de Direito pode autorizar a prática de tortura, a qual certamente é um crime hediondo e fere de morte o princípio da dignidade humana? A respeito disso, Ronald Dworkin escreveu artigo em novembro de 2003, onde tece críticas ao Patriot Act e à atual conjuntura política norte-americana, inclusive no que se refere às torturas sofridas pelos prisioneiros de guerra capturados pelos americanos, em Guantánamo e em outras bases. DWORKIN, Ronald. Terror & the Attack on Civil Liberties. The New York Review of Books, Volume 50, number 17, 6 de novembro de 2003. Disponível em http://www.nybooks.com/ articles/16738. Data de Acesso: 29/03/2204. Recentemente, surgiu nova notícia dando conta da prática de tortura, desta vez efetuada contra prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib, nos arredores de Bagdá, o que resultou, pelo menos, na punição de seis oficiais. As imagens dos prisioneiros foram veiculadas, pela primeira vez, no dia 28/04/2004, no programa 60 minutes 2, da rede americana CBS. 48

SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48, julho de 1997, p. 11-32

49

Como refere Augusto Zimmermann, “O essencial do projeto de Paz Perpétua é a postulação de conquista da liberdade universal alcançável através de regras de Direito que permitam a harmonização da conduta externa de um determinado Estado, com o das demais coletividades estatais. O que pretende Kant, outrossim, é realizar a transplantação do ideário iluminista da lei como geradora de liberdade individual, para a perspectiva do Direito conquanto instrumento pacificador das relações entre os povos, por força do desenvolvimento de uma Constituição geral dos Estados nacionais. Na visão kantiana, se os Estados permanecessem, no âmbito das relações internacionais desprovidos de regras básicas, que em última análise são as que permitem a existência de liberdade, eles continuariam a violar os direitos dos cidadãos, em função de seus propósitos expansionistas. Assim sendo, como os Estados podem escravizar as futuras gerações com dívidas de guerras e corromper a moralidade pública, a realização de um autêntico Estado de Direito em nível internacional minimizaria esta ameaça, mas estaria dependente da formação de uma nova ordem federativa mundial, por Kant denominada de foedus pacificum”. In ZIMMERMANN, Augusto. Fundamentos Neokantianos para um projeto federalista de paz perpétua. Disponível em www.achegas.net/numero/dois/zimmermann.htm. Data de Acesso: 12/11/2003. Sobre os melhores tipos de estados para formar tal ordem, Miguel Duclós observa que “Os estados republicanos, na federação proposta na Paz Perpétua são os mais aptos a manter as relações leais necessárias. Sem essa Federação os Estados estariam como que em um segundo estado de natureza, uma vez que em relação uns aos outros, não há poder comum capaz de legislar para todos imparcialmente. Tal constituição exigiria uma conduta extremamente ética por parte do estadista, a ponto de Kant comentar que seria necessário um “exército de anjos” para mantê-la. In DUCLÓS, Miguel. Aspectos da Filosofia Moral e Política de Kant. Disponível em: www.consciencia.org/moderna/kantpolitica.shtml. Acesso em: 12/11/2003

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lhantes às ocorridas no século passado e as que atualmente ocorrem no Iraque e no Afeganistão50 . Quanto ao futuro, uma previsão é certa. A população americana ainda vai demorar muito para recuperar a confiança na segurança do país. O blecaute ocorrido no dia 14 de agosto de 2003, que paralisou boa parte da costa leste, é um retrato fidedigno do pavor ainda existente no ânimo dos habitantes daquela nação. O terror rondará a pátria de Thomas Jeferson por muito tempo. A onde de atentados no mundo continua. O mais emblemático foi o atentado de Madrid, ocorrido no dia 11 de março de 2004, exatos dois anos e meio após o atentado de 11 de setembro. Foram explosões no metrô, que deram causa à morte de cerca de 200 pessoas, com 1.400 feridos.51 Enquanto isso, o conflito judaico-palestino se acirra. Os atentados perpetrados por grupos terroristas palestinos contra a população judaica e, em contrapartida, o plano de eliminação sistemática dos líderes palestinos, dentre eles o chefe do Hamas, Abdelaziz al-Rantissi, por parte de Ariel Sharon e do governo israelense, tornam utópicas quaisquer tentativas de acordo pacífico entre os dois povos. A construção do Muro por parte de Israel, que inclusive está sob análise da Corte Internacional52 , em Haia, serve apenas de elemento maximizador da revolta do povo palestino, símbolo máximo da intolerância, mais um fator a acirrar a intolerância no Oriente Médio.

50

Não é o objetivo deste artigo tentar especificar ou estudar melhores maneiras de realizar guerras ou qualquer natureza de ataques bélicos, mas, primando pela tentativa de sempre encontrar a forma mais amena de situações que invariavelmente poderão ocorrer, são reconfortantes os ensinamentos de Sun Tzu: “Lutar e vencer em todas as batalhas não é a glória suprema; a glória suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar. Na prática arte da guerra, a melhor coisa é tomar o país inimigo totalmente e intato; danificar e destruir não é tão bom. Assim, também é melhor capturar um exército inteiro que destruí-lo; capturar um regimento, um destacamento ou uma companhia, sem os aniquilar. TZU, Sun. A Arte da guerra. Século VI A.C; adaptação e prefácio de James Clavell; tradução de José Sanz – 24ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001. pg. 54.

51

A título comparativo, perceba-se que o ETA (Euskadi ta Askatasuna - grupo de libertação do país basco), matou cerca de 850 pessoas desde 1968, em sua luta por um país independente.

52

Para maiores detalhes do andamento do procedimento, pode-se acessar o seguinte endereço: http://212.153.43.18/ icjwww/idocket/imwp/imwpframe.htm. Acesso em 04/05/2004.

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2. O PATRIOT ACT 2.1 Características do Patriot Act O Patriot Act53 foi a reação mais visível e imediata tomada pelo governo americano para combater os atos de terrorismo perpetrados no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Assinada pelo presidente George Bush em 26 de outubro de 2001, após rápida e quase unânime aprovação do Senado 54 , a citada lei expande o nível de atuação de agências nacionais de segurança (FBI)55 , bem como das internacionais de inteligência (CIA)56 , conferindo-lhes poderes até então inéditos. Seu objetivo principal era o de prender os responsáveis pelo ataque; atualmente, visa evitar ocorrências de igual natureza no território norte-americano. O texto integral, composto por 342 páginas, aborda mais de quinze estatutos57 , e, além de autorizar agentes federais a rastrear e interceptar comunicações de eventuais terroristas, traz as seguintes inovações, referidas por Charles Doyle: a) torna mais rigorosas leis federais contra lavagem de dinheiro; b) faz com que leis de imigração sejam mais exigentes; c) cria novos crimes federais; d) aumenta a pena de outros crimes anteriormente tipificados, e e) institui algumas mudanças de procedimento, principalmente para autores de crimes de terrorismo58 . Pode-se visualizar, até mesmo pelo contexto desta lei e da atual políti-

53

Também conhecido como USAPA (United States Patriot Act, acrônimo para Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism e Lei Pública nº 107-56. Para acessar cópia eletrônica do mesmo: http://news.findlaw.com/cnn/docs/terrorism/hr3162.pdf. Deve-se, aqui, destacar o teor da sigla, que significa “unindo e fortalecendo a América ao conceder instrumentos adequados exigidos para interceptar e obstruir o terrorismo”, tendo um caráter ideológico e emblemático da própria nomenclatura do ato. É inegável que há, mesmo que intrinsecamente, uma noção de união e luta da América para criar instrumentos para obstrução do terrorismo, retratadas nesta lei.

54

A única exceção, de um universo de 88 senadores, foi a de Russell Feingold, um democrata do Estado do Wisconsin, que votou contra a lei. Uma das maiores críticas ao Patriot Act foi o fato de, apesar das polêmicas disposições contidas em seu bojo, não terem ocorrido discussões e debates mais aprofundados sobre o seu teor.

55

Federal Bureau of Intelligence.

56

Central Intelligence Agency.

57

Em inglês, statute tem o significado de lei.

58

DOYLE, Charles. Senior Specialist, American Division of Law. The USA patriot Act: A Legal Analysis. 15 de abril de 2002. Congressional Research Service. The Library of the Congress. p. 02.

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ca norte-americana, a existência de choque entre direitos fundamentais: de um lado, o direito fundamental à segurança nacional, inerente à comunidade americana, e, do outro, as liberdades civis dos cidadãos americanos. A discussão sobre o tema vem ocasionando um grande número de palestras, colóquios e conferências59 . Para que possamos visualizar um choque de direitos, importante é a observação de Canotilho, o qual esclarece que “haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta60 ”. Ainda segundo o doutrinador português, “uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular”61 . Evidente que a análise profunda das inúmeras seções do Patriot Act ensejaria trabalho mais minucioso e detalhado. Todavia, o que se busca é, partindo-se daquelas disposições que tem causado mais controvérsia, proceder a um teste de proporcionalidade, a fim de constatar, por fim, se algumas restrições de direitos fundamentais levadas a cabo pela citada lei ferem o núcleo essencial de direitos fundamentais da população norte-americana. Logo, “a questão do conflito de direitos ou de valores depende, pois, de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas 59

Podemos citar, a título meramente exemplificativo, painel realizado em 05/12/2001, intitulado “Liberdade versus Segurança”, na Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, oportunidade em que quatro professores, Gene Nichol, Burton Craige (professores de direito), Douglas Maclean (professor de filosofia) e Buckner F. Melton Jr. (especialista em Direito Constitucional), questionaram a atual política norteamericana, após os atentados de 11 de setembro, ressaltando a necessidade de se balancear liberdade e segurança. O professor Maclean, referiu que as medidas tomadas pela administração Bush estariam ferindo a sexta emenda (devido processo legal), principalmente devido ao fato da instalação de Tribunais Militares. Fonte: http://gazette.unc.edu/archives/01dec12/file.11.html. Em 02 de maio de 2002, “dia mundial da Liberdade de Imprensa” (estabelecido pela Assembléia-Geral da ONU, por meio da decisão nº 48/ 432 de 2012/1993), ocorreu, na sede da ONU, um painel de jornalistas tanto da imprensa escrita como da televisão, os quais discutiram liberdade de imprensa no contexto do terrorismo, discursando sobre questões como segurança nacional e internacional versus liberdade de imprensa, cobertura televisiva de julgamentos de terroristas e segurança de jornalistas. Fonte: http://www.un.org/News/Press/docs/2002/ noteno5728.doc.ht. Para maiores detalhes do evento, visitar o sítio http://www.un.org/News/Press/docs/ 2002/PI1420.doc.htm.

60

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p 220.

61

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. p. 1191.

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ou modos de exercício específicos (especiais) dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto de valores constitucionais62 ”. Tenta-se, assim, efetuar tal ponderação, nos três casos que seguem. A questão é de suma importância, até mesmo por que um segundo ato legislativo, complementador do Patriot Act, já denominado de Patriot Act II, está sendo elaborado pelo Poder Legislativo63 americano. Existem, também, projetos de leis64 , tanto de deputados como de senadores americanos, buscando revogar e/ou modificar certos dispositivos do Patriot Act. Um destes projetos, de autoria do congressista Dennis Kucinich, denonimado de Benjamin Franklin True Patriot Act, foi proposto em 24 de setembro de 2003, e busca a revogação de mais de dez seções da lei.65 Há inclusive, uma petição on-line pleiteando a total revogação do Patriot Act66 .

62

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 224.

63

Tal projeto de lei, denominado de Domestic Security Enhancement Act of 2003, ainda não foi aprovado, nem posto em votação. Porém, seu “rascunho”, datado de 03/01/2003, possui 80 páginas, e uma cópia qualificada de confidencial pode ser obtida pela internet, se a mesma já não retirada do ar, no site do Center for Public Integrity: http://www.publicintegrity.org/dtaweb/downloads/Story_01_020703_Doc_1.pdf, acessado às 10h35min do dia 31/07/2003. A cópia continua disponível, pelo menos até seu último acesso, em 27/04/2004.

64

Apenas a título de exemplo, podem-se citar os seguintes projetos de lei: Freedom to Read Protection Act , de autoria do deputado republicano Bernie Sanders; o Patriot Oversight Restoration Act, proposto em 01/10/2003, de autoria do senador Leahy, que visa estender a outras disposições a prescrição determinada a certos artigos da lei, que, pela seção 1017, não estarão mais em vigor a partir do dia 31/05/2005. Há, ainda, o The Protecting the Rights of Individuals Act, registrado sob o número S.1552, proposto em 1º de agosto de 2003, pela senadora Lisa Murkowski o qual visa dentre outras disposições, fazer com que apenas por ordem judicial as autoridades possam conduzir vigilância eletrônica. Segundo o informe enviado à imprensa, o fito desta lei é de “colocar modestos freios e contrapesos (check and balances) nas disposições mais problemáticas da lei”. Fonte: http:// www.cdt.org/press/030801press.shtml. Para informações sobre a tramitação dos referidos projetos, bem assim sobre outras leis referentes ao tema, acessar http://bordc.org/legislation.htm#Senate. Essencial também citar o Security and Freedom Ensured Act of 2003 (SAFE) colocado em pauta na Câmara de Deputados em 21 de outubro de 2003, o qual propõe mudanças em disposições do Patriot Act, incluindo questões atinentes a limitação na autoridade de pós-notificar os mandados de busca e a modificação da definição de terrorismo doméstico, coadunando-se, aliás, com nosso ponto de vista. Para verificar a tramitação do mesmo, basta acessar http://www.congress.gov/cgi-bin/bdquery/z?d108:S.1709:. Para acessar sua íntegra, existe o endereço eletrônico http://www.fas.org/irp/congress/2003_cr/hr3352.html.

65

A informação à imprensa pode ser acessada no próprio sítio da Câmara de Deputados dos Estados Unidos, em http://www.house.gov/apps/list/press/oh10_kucinich/030924True Patriot.html. O citado deputado é um dos críticos mais ácidos da atual política americana, sendo contrário à guerra contra o Iraque, além do Patriot Act. Nas suas palavras: “Depois de 11 de setembro, os americanos não autorizaram a deterioração da primeira, quarta, sexta, oitava e décima quarta emendas” (...) Num momento em que duzentos anos da fé americana nas liberdades civis é arriscada por dois anos de medo, eu acredito que com o ‘True Patriot Act’, o Congresso pode alcançar tanto liberdade como segurança para todos os americanos.

66

A petição, situada no endereço http://www.petitiononline.com/sabene/petition.html é interessante Ei-la: “(...) Nós, os abaixo-assinados, por meio deste, declaramos que a legislação anti-terrorismo aprovada pelo

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2.2 Análise de três Disposições do Patriot Act Passemos, agora, à análise de três pontos que se configuram como problemáticos na lei, quais sejam, a) a definição do crime de terrorismo doméstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunais militares, e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão.

2.2.1 Definição de Terrorismo Doméstico Uma das mais polêmicas disposições do Patriot Act é aquela contida no parágrafo 802 do citado documento legal, o qual proclama a definição de novo crime, denominado de terrorismo doméstico, conceituado da seguinte forma: Seção 802. Definição de Terrorismo Doméstico (...) omissis (...) (5) o termo terrorismo doméstico significa atividades ___________________ nosso Congresso desde os trágicos e mortíferos ataques de 11 de setembro, seriamente atingem e infringem proteções constitucionais que estão consagradas na nossa ‘Bill of Rights’. Nós declaramos que não é patriótico, mas mais não-americano destruir as liberdades que fazem com que os americanos amem seu país. Nós declaramos que um governo aberto é essencial para a democracia e que impondo novos níveis de sigilo nosso governo parece menos probo, diminui a capacidade das pessoas serem informadas a respeito de decisões do governo. Nós declaramos que enfraquecendo a força dos poderes judiciário e legislativo de nosso governo, simultaneamente dando poderes completamente ilimitados ao poder executivo fere o nosso princípio americano da separação dos poderes. Nós somos contrários ao uso de tribunais militares secretos nos quais não é proporcionado um advogado de defesa independente, e pessoas podem ser sentenciadas à morte e executadas sem conhecimento e aprovação do povo americano. Nos opomos às ordens do presidente para obstruir registros presidenciais, deste modo negando nossa capacidade de julgar as ações do executivo. Nos opomos ao encarceramento indefinido de estrangeiros se nenhuma acusação for colocada contra eles. Nos opomos ainda mais quanto o aprisionamento de uma pessoa sem publicamente ser declarado o crime pelo qual esteja sendo acusada. Nos opomos à provisão do Patriot Act referente aos mandados de busca e apreensão, que esmaga as proteções da quarta emenda contra buscas irracionais e confisco, negando aos cidadãos o seu direito de ser cientificado de que sua propriedade está sendo vasculhada e seu direito de protestar contra essa busca se a autorização da mesma estiver irregular. Nos opomos à coleta de registros de negócios privados por ordem de cortes secretas e o impedimento desses cidadãos que recebem tais ordens de falar publicamente sobre elas.Isso é uma violação tanto da primeira como da quarta emenda. Nos opomos à destruição do e-mail e da privacidade na internet proporcionadas pelo Patriot Act. Além disso, o compartilhamento de tais dados, de modo indiscriminado, entre um grande número de agências governamentais e até com governos estrangeiros é evidentemente intolerável. Por essas razões, nós requeremos a imediata revogação da “Lei Patriota”. Nós bradamos a nossos representantes eleitos para que ajam de acordo com a Constituição dos Estados Unidos da América para desfazer essa ações que violam os princípios nucleares da América. Até a presente data (16/04/2004, às 11h43h, horário de Brasília), existem 14.409 assinaturas.

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que (A) configurem atos perigosos à vida humana que são uma violação de leis criminais dos Estados Unidos ou de qualquer Estado; (B) que pareçam pretender (i) intimidar ou coagir uma população civil; (ii) influenciar a política de um governo por intimidação ou coação; ou (iii) visem modificar a conduta de um governo utilizando-se de destruição em massa, assassinatos ou seqüestro; (...) omissis”67 Após leitura rápida constata-se que a definição do que seja terrorismo doméstico é ampla em demasia; as expressões utilizadas, tais como “atos perigosos”, “pareçam pretender”, “influenciar a política de um governo por intimidação ou coação”, podem ser utilizadas ao bel-prazer das autoridades americanas. Se mal utilizadas, podem, inclusive, incriminar pessoas que simplesmente estão colocando em exercício seus direitos de expressão, de reunião, de dissenso e de protesto. Tal atitude atingiria, certamente, condutas que estariam protegidas pela 1ª emenda68 da Constituição dos Estados Unidos, que concede, dentre outros direitos, a liberdade de expressão, o de reunião pacífica e o de peticionar o governo para reparação de injustiças. Destarte, na mesma linha de pensamento referente a evolução juris-

67

No original: SEC. 802. DEFINITION OF DOMESTIC TERRORISM. (a) DOMESTIC TERRORISM DEFINED.—Section 2331 of title 18, United States Code, is amended— (1) in paragraph (1)(B)(iii), by striking ‘‘by assassination or kidnapping’’ and inserting ‘‘by mass destruction, assassination, or kidnapping’’; (2) in paragraph (3), by striking ‘‘and’’; (3) in paragraph (4), by striking the period at the end and inserting ‘‘; and’’; and (4) by adding at the end the following: ‘‘(5) the term ‘domestic terrorism’ means activities that—‘‘(A) involve acts dangerous to human life that are a violation of the criminal laws of the United States or of any State; ‘‘(B) appear to be intended— ‘‘(i) to intimidate or coerce a civilian population; ‘‘(ii) to influence the policy of a government by intimidation or coercion; or ‘‘(iii) to affect the conduct of a government by mass destruction, assassination, or kidnapping; and ‘‘(C) occur primarily within the territorial jurisdiction of the United States.’’. (b) CONFORMING AMENDMENT.—Section 3077(1) of title 18, United States Code, is amended to read as follows: ‘‘(1) ‘act of terrorism’ means an act of domestic or intenational terrorism as defined in section 2331;’’.

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A primeira emenda é assim escrita: “1ª Emenda – O Congresso não poderá legislar no sentido de estabelecer uma religião, ou de proibir o livre exercício do culto, ou de restringir a liberdade de expressão, ou de imprensa, ou o direito de o povo se reunir pacificamente e apresentar petições ao Governo para reparação de injustiças”. In ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR, 2001. p. 69.

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prudencial americana ocorrida com as “loitering laws”69 , os verbos nucleares dos tipos penais deveriam ser mais detalhados, a fim de que o choque de direitos existentes no caso em tela não fulminasse o núcleo duro de um ou mais direitos fundamentais. Outras disposições que, em princípio, ferem a 1ª emenda: seção 215 do Patriot Act; decreto do procurador-geral dos Estados Unidos que aumenta a vigilância de organizações políticas e religiosas; decreto do procurador-geral dos Estados Unidos minando requerimentos e petições protegidos pela Lei de Liberdade de Informação70 .

2.2.2 Detenção Compulsória de Terroristas Suspeitos e os Tribunais Militares A justiça militar está para a justiça assim como a música militar está para a música71 O Patriot Act concedeu uma gama de poderes inédita ao Procuradorgeral dos Estados Unidos, atualmente, John Aschcroft. Uma delas referese a prerrogativa de deter, de modo compulsório, pessoas suspeitas de serem terroristas. Para colocar tais suspeitos sob custódia, o procurador-geral tem a capacidade de certificar/atestar que um estrangeiro esteja descrito em uma das seções abaixo citadas, ou esteja empenhado em qualquer outra atividade que ponha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos. A seção modificada é a de nº 412, da Lei de Imigração e Nacionalidade, que passa a viger com a seguinte inserção: 69

As loitering laws, ou leis de vadiagem, configuram-se como exemplo de diplomas legais em que ocorreram abusos quando da tipificação de condutas criminosas. Os casos paradigmáticos são Papachristow v. City of Jacksonville, de 1972 e Kolender v. Lawson, de 1983. No primeiro caso, oito indivíduos foram condenados em 1ª instância, sob a acusação de estarem vagando de carro, a esmo, sem destino, pelas ruas de um bairro, o que configuraria incursão nos termos de uma lei que dizia que “elementos perniciosos, vagabundos, pessoas licenciosas, que perambulam de um lugar para outro, sem qualquer objetivo ou motivo legal, devem ser tidas como vadios, para efeitos legais”. A Suprema Corte anulou a condenação. No segundo, o réu Lawson tinha sido preso pela polícia por 15 vezes entre março de 1975 e janeiro de 1977, cada uma dessas vezes caminhando tarde da noite numa rua isolada próximo a uma área de alta criminalidade ou em uma área comercial onde muitos arrombamentos haviam sido cometidos. A Suprema Corte novamente anulou a condenação. RUBIN, Daniel Sperb. Janelas Quebradas, Tolerância Zero e Criminalidade. Revista do Ministério Público. Porto Alegre, nº 49, Jan/Mar/2003. p. 186-187

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Freedom of Information Act.

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A autoria da frase é atribuída a Georges Clemenceau, chefe de estado Francês na 1ª Guerra Mundial e um dos formuladores do Tratado de Versalhes.

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“Seção 412. Detenção Compulsória de Suspeitos Terroristas; Habeas Corpus; Revisão Judicial (...) ‘Seção 236A. (a) Detenção de terroristas estrangeiros. – ‘(1) Custódia. – O Procurador-Geral pode colocar sob custódia qualquer estrangeiro que esteja certificado sob as disposições do parágrafo (3). (...) ‘(3) Certificação. – O procurador-geral pode certificar/atestar um estrangeiro sob este parágrafo se o mesmo tenha razoáveis fundamentos para acreditar que o estrangeiro (a) esteja descrito na seção 212(a)(3)(A)(i), 212(a)(3)(A)(iii), 212(a)(3)(B), 237(a)(4)(A)(i), 237(a)(4)(A)(iii), or 237(a)(4)(B); ou (b) está empenhado em qualquer outra atividade que ponha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.72 Juntamente com a detenção compulsória de suspeitos terroristas, a questão da implantação de tribunais militares é outro fato que acende discussões sobre a política norte-americana. Tais tribunais aplicam-se apenas para não- americanos.73 72

O artigo, em sua íntegra, segue abaixo. Os pontos grifados são aqueles que foram traduzidos: SEC. 412. MANDATORY DETENTION OF SUSPECTED TERRORISTS; HABEAS CORPUS; JUDICIAL REVIEW. (a) IN GENERAL.—The Immigration and Nationality Act (8 U.S.C. 1101 et seq.) is amended by inserting after section 236 the following: ‘‘MANDATORY DETENTION OF SUSPECTED TERRORISTS; HABEAS CORPUS; JUDICIAL REVIEW ‘‘SEC. 236A. (a) DETENTION OF TERRORIST ALIENS.— ‘‘(1) CUSTODY.—The Attorney General shall take into custody any alien who is certified under paragraph (3). ‘‘(2) RELEASE.—Except as provided in paragraphs (5) and (6), the Attorney General shall maintain custody of such an alien until the alien is removed from the United States. Except as provided in paragraph (6), such custody shall be maintained irrespective of any relief from removal for which the alien may be eligible, or any relief from removal granted the alien, until the Attorney General determines that the alien is no longer an alien who may be certified under paragraph (3). If the alien is finally determined not to be removable, detention pursuant to this subsection shall terminate. ‘‘(3) CERTIFICATION.—The Attorney General may certify an alien under this paragraph if the Attorney General has reasonable grounds to believe that the alien— ‘‘(A) is described in section 212(a)(3)(A)(i), 212(a)(3)(A)(iii), 212(a)(3)(B), 237(a)(4)(A)(i), 237(a)(4)(A)(iii), or 237(a)(4)(B); or ‘‘(B) is engaged in any other activity that endangers the national security of the United States. (…) omissis.

73

O precedente a justificar a implantação de tais tribunais seria a instituição de um, em junho de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, quando oito alemães chegaram na costa americana em dois submarinos. Tal precedente, entretanto, é totalmente criticado por Louis Fischer, especialista em Separação de Poderes.

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A relação entre a seção 412 e a ordem militar do presidente Bush, que instituiu tais tribunais, como diz Charles Doyle, é incerta. Essa ordem, de 13 de novembro de 2001, permite o Secretário de Defesa deter estrangeiros suspeitos como terroristas, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar, sem condições ou limitações expressas, exceto no que se refere a comida, água, abrigo, roupas, tratamento médico, e exercício religioso74 . Apesar de duvidosa a relação entre os dispositivos, ambos ferem a 5ª emenda. A quinta emenda à constituição americana diz que ninguém será obrigado a responder por crime capital, ou por outro crime infamante, a não ser perante denúncia ou acusação de um grande júri (...) nem será obrigado a servir de testemunha contra si próprio em qualquer processo criminal, nem ser privado da vida liberdade ou propriedade sem um devido processo legal (...)75 Logo, nenhuma pessoa pode ter sua liberdade tolhida sem um devido processo legal, não importa o tipo de crime que tenha praticado. Nesse caso, a igualdade formal perante a lei deve ser mantida a todo custo, uma vez que, apesar de nacionais e estrangeiros pertencerem a categorias diferentes, todos estão abarcados pela garantia fundamental do devido processo legal.76 74

DOYLE, Charles The USA patriot Act: A Legal Analysis. 15 de abril de 2002. Congressional Research Service. The Library of the Congress. p. 54.

75

ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR, 2001. p. 71

76

Como a garantia do devido processo legal é inerente ao Estado Democrático de Direito, sua não aplicação para determinado grupo de pessoas iria materializar clássica passagem do livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell, na verdade uma crítica à ideologia comunista, que já virou lugar comum, totalmente danosa ao ordenamento jurídico e ao princípio da igualdade: “todos os animais são iguais, mas existem alguns animais mais iguais que os outros”. Nesta seara, é importante mencionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua opinião consultiva nº 16, de 1º de outubro de 1999. Naquela ocasião, a Corte reconheceu que o direito à informação sobre a assistência consular é uma das garantias do devido processo legal, garantia essa com status de direito individual dos estrangeiros. A opinião consultiva havia sido solicitada pelo México, e engloba outros questionamentos. Para ter acesso completo ao caso, basta visitar o endereço http://www.corteidh.or.cr/serie_a/Serie_a_16_esp.doc. Data de Acesso: 02/06/2004. Por outro lado, existem casos de choque entre direitos fundamentais em que, à primeira vista, existiria lesão ao princípio da igualdade, mas não é o que ocorre. É o caso das ações afirmativas, prelecionadas por John Rawls em seu livro A Theory of Justice, e utilizadas principalmente em universidades (sistema de cotas). Neste caso, estão em choque dois direitos (educação e igualdade). Entretanto, a igualdade deve ser vista sob seu prisma material, e não formal. A experiência americana nesta área é interessante, e bem diversa do que vem sendo implementado em universidades brasileiras. Para aprofundamento do tema, interessante acessar o trabalho de um professor de Harvard, Angelo N.Ancheta, Revisiting Bakke and Diversity-Based Admissions: Constitutional Law, Social Science Research, and the University of Michigan Affirmative Action Cases. Cambridge, Massachussets: The Civil Rights Project at Harvard University, 2003. Disponível em http://www.civilrightsproject.harvard.edu/policy/legal_docs/ Revisiting _diversity.pdf Data de Acesso: 02/06/2004

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O que se pretende com o exposto é a não-criação, na esfera pública, de uma Lynch Law77 , o que, certamente, fulminaria com o devido processo legal, levando, junto com ele, todos os demais princípios basilares do Estado Democrático de Direito78 .

2.2.3 Pós-notificação dos Mandados de Busca e Apreensão Outra disposição que tem causado controvérsia é aquela referente aos mandados de busca e apreensão, localizada na seção 213 do Patriot Act, que acrescenta nova disposição ao título 18, seção 3103a do Código dos Estados Unidos, verbis: “Seção 213. Autoridade para retardar a notificação da execução de um mandado. omissis

(...)

(2) acrescenta-se no fim o seguinte: (b) Dilação de Prazo – Com respeito a emissão de qual77

O termo provém de Willian Lynch, fazendeiro da Pittsylvania, que, no estado da Virginia, em fins do século XVIII, instituiu um tribunal privado a quem incumbia julgar sumariamente os criminosos pegos em flagrante, quando do cometimento de um delito grave. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa/Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e banco de Dados de Língua Portuguesa S/C Ltda – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1761.

78

Acerca deste tema, a Suprema Corte dos EUA determinou, no dia 28/06/2004, que, dentro de sua luta contra o terrorismo, o presidente George W. Bush pode manter americanos presos e sem acusações, embora eles também tenham o direito de recorrer aos tribunais. O tribunal se pronunciou sobre os casos dos americanos Yasser Esam Hamdi (Hamdi v. Rumsfeld) e José Padilla (Rumsfeld v. Padilla), conhecido como o “talibã” porto-riquenho, e sobre os direitos das centenas de detidos na base naval dos EUA em Guantánamo, Cuba. Pronunciando-se sobre o caso de Hamdi, que permanece sob custódia americana há mais de dois anos como “combatente inimigo” e que, até muito pouco tempo atrás, não tinha acesso a um advogado, a juíza Sandra Day O’Connor reconheceu a importância de que os tribunais analisem, por um lado, as necessidades da segurança nacional e, por outro, os direitos constitucionais dos indivíduos. Segundo ela, Hamdi, membro de uma família saudita mas nascido no estado de Louisiana, “sem dúvida tem o direito de recorrer a um advogado”. Hamdi foi capturado pelas tropas dos EUA no Afeganistão em novembro de 2001, depois da revolta de prisioneiros talibãs e da Al Qaeda na prisão de Mazar-e-Sharif. No caso de José Padilla, a Suprema Corte não poderá emitir uma sentença, tendo em vista que o mesmo foi apresentado na jurisdição errada. Assim, terá de ser apresentado na Carolina do Sul, onde está detido. O Supremo determinou também que os mais de 600 detidos na base de Guantánamo poderão recorrer aos tribunais americanos para questionar sua situação legal. Hamdi e Padilla estão detidos por tempo indeterminado, sem acusações formais e, até pouco tempo atrás, sem acesso a advogados. Para obter as decisões, basta acessar os seguintes endereços eletrônicos: http://a257.g.akamaitech.net/7/257/2422/28june20041215/ www.supremecourtus.gov/opinions/03pdf/03-6696.pdf e http://a257.g.akamaitech.net/7/257/2 422/ 28june20041215/www.supreme courtus.gov/opinions/03pdf/03-1027.pdf.

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quer mandado ou ordem judicial sob essa seção, ou qualquer outro preceito legal, a procurar e confiscar qualquer propriedade ou material que constitua prova de ofensa criminal que viole as leis dos Estados Unidos, qualquer notificação requerida, ou que possa ser requerida, pode ser retardada se - (1) a corte julgar que há causa razoável de que, procedendo à imediata notificação da execução do mandado, possa ocorrer um resultado adverso (...); (...) omissis (3) o mandado proporciona para o fornecimento de tal notificação um período razoável para sua execução, cujo período pode, após tal ato, ser estendido pela corte se for demonstrado um bom motivo.”79 . Os mandados de busca e apreensão, na expressão americana sneak and peek warrants são protegidos pela 4ª emenda à carta constitucional daquele país, que também garante o direito à privacidade. Segundo a emenda, o povo americano tem direito “à inviolabilidade de suas pessoas, casas, documentos e haveres, contra buscas e apreensões arbitrárias (...) e nenhum mandado será emitido senão com base em indício de culpabilidade, confirmado por juramento ou declaração solene, e particularmente com a descrição do local de busca e das pessoas ou coisas a serem apreendidas”80 . Mais uma vez, a disposição restritiva de direito possui expressões dúbias e “abertas” em demasia. O lapso temporal para a pós-notificação não é 79

SEC. 213. AUTHORITY FOR DELAYING NOTICE OF THE EXECUTION OF A WARRANT. Section 3103a of title 18, United States Code, is amended— (1) by inserting ‘‘(a) IN GENERAL.—’’ before ‘‘In addition’’; and (2) by adding at the end the following: ‘‘(b) DELAY.—With respect to the issuance of any warrant or court order under this section, or any other rule of law, to search for and seize any property or material that constitutes evidence of a criminal offense in violation of the laws of the United States, any notice required, or that may be required, to be given may be delayed if— ‘‘(1) the court finds reasonable cause to believe that providing immediate notification of the execution of the warrant may have an adverse result (as defined in section 2705); ‘‘(2) the warrant prohibits the seizure of any tangible property, any wire or electronic communication (as defined in section 2510), or, except as expressly provided in chapter 121, any stored wire or electronic information, except where the court finds reasonable necessity for the seizure; and ‘‘(3) the warrant provides for the giving of such notice within a reasonable period of its execution, which period may thereafter be extended by the court for good cause shown.’’.

80

ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada. São Paulo: LTR, 2001. p. 70.

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determinado; assim, podem os mandados de busca e apreensão ser cumpridos e a respectiva notificação ser procrastinada ad eternum. Procedendo deste modo, as pessoas podem ter suas casas invadidas, e ter seus bens confiscados, sem saberem o objeto do mandado. No caso da pós-notificação, nas palavras de Nancy Talanian, membro do Comitê de Defesa da Bill of Rights “... uma pessoa cuja casa está para ser inspecionada não pode ver o mandado para certificar-se que o endereço é correto ou que o agente adere estritamente à descrição do que deve ser procurado”81 . É tão polêmica a disposição acima exposta que, em 23 de julho de 2003, a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda tanto republicana como democrata, oferecida pelos deputados C. L. “Butch” Otter, Dennis J. Kucinich e Ron Paul, dos Estados americanos de Idaho, Ohio e Texas, impedindo a implementação das buscas e apreensões efetuadas sob a égide do Patriot Act. A passagem desta emenda marca a primeira vez em que tanto deputados republicanos como democratas agiram para revogar qualquer provisão da lei82 . Importante notar, todavia, que tal emenda começará a viger apenas após a aprovação do Senado e do presidente George Bush83 . Outras disposições do Patriot Act que eventualmente ferem a 4ª emenda: seção nº 213, que concede autoridade para compartilhar informações de investigações criminais entre agências, inclusive estrangeiras; seções números 206, 215, 218 e 411.

81

TALANYAN, Nancy. The Homeland Security Act: The Decline of Privacy; the Rise of Government Secrecy. Disponível em http://www.bordc.org/HSAsummary.pdf. Data de Acesso: 05/10/2003

82

Para a cobertura da imprensa sobre tal votação: http://www.commondreams.org/headlines03/0724-01.htm. A matéria foi publicada em 24/07/2003.

83

Simplesmente não houve movimentação no projeto de emenda à lei, após a aprovação pelos deputados, conforme informação do andamento do mesmo, no sítio eletrônico do Congresso americano, disponível em http://www.congress.gov/cgi-bin/bdquery/z?d108:H.A.292:, acessado em 18/06/2004. E, em 02//12/2003, soubese que a emenda acima referida está, conforme o site http://talkleft.com/new_archives/004546.html, “oficialmente morta”. A tentativa de impedir a disposição do Patriot Act que autorizava a pós-notificação de mandados de busca não passou pelo Congresso, uma vez que o Senado e a Câmara de Deputados negaram-se a colocá-la em discussão na massive omnibus spending bill, acabando com suas perspectivas de aprovação para o ano de 2003. O deputado C.L. “Butch” Otter’s, autor da proposta, havia dito que iria tentar novamente no ano de 2004, mas não há notícia de nova emenda. O Departamento de Justiça disse, ainda, que não espera que o Congresso vá aprovar a legislação proposta pelo republicano, que visa banir do ordenamento jurídico tal espécie de mandado de busca e apreensão.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a breve análise feita acerca das disposições do Patriot Act, importante sublinhar que a mesma apóia-se no art. 6º, nº 2 da Constituição Americana, baseada na supremacia hierárquica daquela lei perante todas as outras, verbis, Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos feitas em sua conformidade, e todos os tratados celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, constituirão a lei suprema da nação; e os juízes de todos os Estados a ela estarão sujeitos, ficando sem efeito qualquer disposição contrário na Constituição ou lei de quaisquer dos Estados84 Comunga-se, também, do posicionamento de Cançado Trindade a respeito das restrições de direitos fundamentais: as eventuais limitações ou restrições permissíveis ao exercício de direitos consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em favor deste últimos, deverão necessariamente ser previstas em lei (...) Qualquer limitação deve ser justificada, e o ônus de tal justificação recai sobre o estado. (...) As limitações, além disso, hão de ser aplicadas no interesse geral da coletividade (ordre public), coadunando-se com os requisitos de uma “sociedade democrática”, e respeitando o princípio da proporcionalidade; as limitações não podem ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório, devendo sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e o propósito dos tratados sobre proteção dos direitos humanos.85

84

ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR, 2001. p. 65.

85

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Ed. Saraiva, 1991. p. 16-17

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Sobre perigo de leis que atinjam direitos individuais referiu Sérgio Moccia86 O risco, portanto, concerne sobretudo às garantias individuais que, como limites postos para a defesa do homem contra os abusos estatais, representam a expressão mais significativa daquele longo e atormentado processo evolutivo que caracterizou o desenvolvimento da civilização jurídica contemporânea. Não é admissível, portanto, que numa estrutura ordenamental de democracia avançada se adotem, ainda que com a finalidade de remediar gravíssimas perturbações do complexo sócio estatal, remédios normativos e práticas jurisprudenciais que acabem por fazer com que a estrutura ordenamental deslize na direção de preocupantes formas de arbítrio que têm sempre caracterizado os momentos mais difíceis para os direitos do indivíduo. Além disso, a atual “paisagem jurídica” vivenciada pelos norte-americanos, em que se pode vislumbrar restrição em demasia a certos direitos fundamentais, sob a alegação de segurança nacional, possui um precedente em contrário: é o que constatou Marcelo Caetano quando do episódio Watergate, que gerou “a crise constitucional de 1974”, a afirmação do predomínio dos valores da liberdade e da democracia sobre o da segurança nacional87 . E é neste sentido que a sociedade civil deve estar alerta quanto à restrição de direitos fundamentais, a qual poderá ser acirrada e aumentada, se o atual nível de tensões se mantiver. Neste panorama, o princípio da proporcionalidade se materializa como peça chave, instrumento delineador dos limites de leis restritivas de direitos fundamentais. Como disse o saudoso diplomata brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, em discurso proferido por ocasião do Third Committe of the UN General Assembly, em 04 de novembro de 2002:

86

MOCCIA, Sérgio. Emergência e Defesa dos Direitos Fundamentais. In Revista de Ciências Criminais, Ano 07, nº 25. Janeiro – Março de 1999 São Paulo. p. 58.

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Nenhuma causa pode justificar o terrorismo (...). tal fenômeno deve ser universalmente e inequivocadamente condenado. O combate exitoso contra o terrorismo, contudo, requer mais do que um rigoroso reforço das disposições legais, mesmo sendo estas vitais. Também requer uma aproximação a longo prazo, e mais holística, assim como a determinação de assegurar de que todos os direitos são realmente usufruíveis por todos: particularmente quando é um dos objetivos dos terroristas forçar-nos a negar tais direitos.88 Seguindo as palavras do diplomata brasileiro, parece que os legisladores americanos, ao contrário de seu Poder Executivo, após o choque dos acontecimentos catastróficos de 11 de setembro, estão novamente legiferando de modo a proteger os cidadãos americanos e imigrantes inocentes de lesões mortais a direitos fundamentais assegurados pela carta magna daquela nação e por tratados internacionais.

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