A RETÓRICA COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO DO CIDADÃO GREGO

July 3, 2017 | Autor: Tatiane Silva | Categoria: Education, Retórica
Share Embed


Descrição do Produto

A RETÓRICA COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO DO CIDADÃO GREGO

Tatiane da Silva [email protected] Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Marcus Vinicius da Cunha [email protected] Universidade de São Paulo

GT 6) Fundamentação Epistemológica e/ou Metodológica do Campo

RESUMO

Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa em andamento que pretende explicitar a posição dos Sofistas, especialmente Protágoras e Górgias, a respeito da discussão entre physis (a natureza cuja ordem independe da ação humana) e nómos (a convenção que está relacionada diretamente às decisões humanas), e a maneira pela qual esta discussão incidiu na definição de um novo ideal de formação humana amparado pela retórica. Ao questionarem a pretensão da filosofia em conhecer a verdade última das coisas, os Sofistas afirmaram que as doutrinas ou teorias dependem do que os homens consideram correto; a consideração de que a physis não pode ser fonte de valores permitiu o surgimento do conceito de uma natureza humana que pode ser aprimorada por meio da educação, contradizendo a ideia de um sangue divino como justificativa para educar somente os melhores cidadãos. A educação preconizada pelos Sofistas buscava formar por meio da retórica, tornando o homem capaz de lidar com o mundo sensível, produto do humano, uma vez que o lógos serve de instrumento para aperfeiçoar a natureza humana e integrar o homem na vida social. Palavras-Chave: Sofistas – Educação Clássica – Retórica Introdução Entre 450 e 400 a.C., a cidade de Atenas foi cenário de profundas mudanças sociais e políticas e de intensa atividade intelectual e artística. Dissolveram-se os

padrões tradicionais de vida e experiência para dar lugar a novas perspectivas que permitiram o exercício da crítica às crenças e aos valores aceitos pelas gerações anteriores. Foi neste palco que surgiram os Sofistas, que atuaram na Grécia como professores de retórica, pensadores, oradores e intelectuais, especialmente na segunda metade do século V a.C. e início do século IV a.C. O nome Sofista está relacionado às palavras gregas sophos e sophia, comumente traduzidas por sábio e sabedoria, servindo para designar aquele que tem conhecimento de cada um dos problemas que dizem respeito ao homem e à sua posição na sociedade (KERFERD, 2003, p. 45). Por muito tempo os historiadores da filosofia olharam os Sofistas apenas pelos olhos de Platão e Aristóteles, adotando não só as suas informações como também os seus juízos de valor, o que contribuiu para desvalorizar o movimento Sofista (REALE; ANTISSERI, 2007, p. 73). Somente no século XX tornou-se possível realizar a revisão sistemática dos juízos até então emitidos, ocasionando uma reavaliação histórica que levou à conclusão de que os Sofistas representaram um elo essencial na história do pensamento antigo.1 O “monismo extremado” de Parmênides e seus seguidores, desafiando a evidência dos sentidos e considerando irreal todo o mundo sensível, produziu uma “reação violenta nas mentes empíricas e práticas dos sofistas” (GUTHRIE, 2007, p. 49). Seus questionamentos provocaram uma mudança na reflexão filosófica, que não mais se ocupou com a natureza e a cosmologia, mas com a formação do cidadão e do sábio virtuoso, voltando-se para os temas da política, da ética e da teoria do conhecimento (CHAUI, 2002, p. 129). A preocupação central deixou de ser com a pesquisa do cosmo e com a definição de sua origem, constituição e finalidade, e passou a incidir sobre o homem. Foi o ponto de partida de reflexões que se irradiavam para a sociedade em geral, atingindo a política, a ética, a educação, o direito e a linguagem. A busca do “princípio inicial” (arché) abriu espaço para a investigação do homem em suas relações políticas e existenciais com seus concidadãos; o “natural” (physei) acomodou a seu lado a “convenção” (nómos), a escolha dos homens, enquanto a verdade, antes amparada pelos mitos, pela religião e pelos laços comunitários,

1

Ver os trabalhos de Cassin (1990, 2005); Jaeger (2010); Kerferd (2003); Crick (2010a).

entrou no “reino da dóxa (opinião) e da Sofia (conhecimentos vivenciados e fruídos como sabedoria)”, na “dimensão do movimento e do tempo” (OLIVEIRA, 1998). Essas mudanças ocasionaram um colapso na tradicional divisão entre inteligência prática e inteligência não prática, que por muito tempo marcou a vida grega. Libertos da crença no sangue divino, os indivíduos puderam usar seu “conhecimento e habilidades para subir na hierarquia social e também para alterar a sua própria estrutura”. Assim, as atenções voltaram-se para o desenvolvimento de um “ideal de inteligência prática”, visando “empregar os recursos do lógos para trazer novos e melhores estados de existência no mundo”; livres das “restrições das castas”, cidadãos e trabalhadores procuraram os “recursos disponíveis para avançar em um mundo incerto e em mudança” (CRICK, 2010b, p. 30).

O questionamento da physis Devido à extensão dos problemas que formulavam e discutiam, os Sofistas colocaram-se em posição de destaque na história do pensamento grego, profundamente envolvidos nos problemas morais e políticos da sociedade e influenciando o pensamento racional de seu tempo. Desse modo, criaram uma “atmosfera de educação multifacetada” cuja “consciência clara, ativa vivacidade e sensibilidade comunicativa” superou até mesmo a dos tempos de Pisístrato (JAEGER, 2010, p. 346-347).2 Os Sofistas introduziram em Atenas o ardor pela retórica e pela dialética e uma visão cética ante a pretensão da filosofia em conhecer a physis como “realidade originária e verdade última de todas as coisas” (CHAUI, 2002, p. 169). Dessa atitude questionadora decorreram mudanças importantes na sociedade grega, tanto no aspecto político quanto no educacional. Para Kerferd (2003, p. 194), seja onde e quando tenha surgido a antítese nómos e physis, devemos ter em mente que ela sempre envolveu um “reconhecimento da physis como uma fonte de valores”. O termo grego physis é comumente traduzido por “natureza” (KERFERD, 2003, p. 189), e nómos é tradicionalmente relacionado a “lei”, “convenção”, até mesmo “costume” (KERFERD,

2

Pisístrato foi um tirano de Atenas que governou entre 546 a.C. e 527 a.C.; tomou uma série de

medidas na agricultura, comércio e indústria que em muito contribuíram para a prosperidade de Atenas.

2003, p. 190); “para os homens dos tempos clássicos”, nómos é “alguma coisa que nomizetai, em que se crê, se pratica ou se sustenta ser certo” (GUTHRIE, 2007, p. 57). Os pensadores que seguiam Parmênides e defendiam a physis como fonte de valores consideravam que as leis inscritas no cosmos eram “princípios naturais governando tudo o que existe”, e delas derivavam as “normas que deveriam reger tanto a vida individual como as estruturas da sociedade” (RODRIGO, 2014, p. 8). Temos um exemplo clássico desta forma nas teorizações de Platão, para quem a justiça e a lei “existem por si mesmas com seus próprios direitos e tudo que podemos fazer é tentar reproduzi-las tanto quanto possível, em nossas relações mútuas” (GUTHRIE, 2007, p.12). Os Sofistas podiam divergir entre si na avaliação e no valor relativo da antítese entre nómos e physis, porém nenhum deles sustentava “que leis, costumes e crenças religiosos humanos eram inabaláveis porque enraizados numa ordem natural imutável” (GUTHRIE, 2007, p. 49). Afirmavam que o natural não poderia e nem deveria estabelecer as regras sociais (nómos), pois o “determinado pelo nascimento é obra do acaso e não pode ser alterado”, enquanto o “definido pelas leis humanas pode ser mudado, é de livre escolha dos homens” (MAZZOTTI, 2010, p. 114). Ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”, Protágoras promoveu uma verdadeira “translação” da “physei a nómos”, reconhecendo as leis como criação humana e aventando a possibilidade de a sociedade ser “alterada por planejamento” e as instituições humanas serem adaptadas “às necessidades do homem, necessidades mutáveis porque determinadas pelo processo histórico” (OLIVEIRA, 1998). Ao sustentar essa “relatividade do conhecimento” e alçar o homem como medida das coisas, Protágoras defendeu que as doutrinas e as teorias dependem apenas do que os homens consideram correto, verdadeiro, desejável (MAZZOTTI, 2011, p. 4), não de um ser idêntico que transcende as aparências e pode ser universalmente conhecido por intermédio do pensamento. Protágoras afirma que, em “relação aos deuses, eu não estou em posição de saber se eles existem ou se eles não existem” e que “sobre cada assunto há dois logoi [discursos ou argumentos] opostos”. Vistas como “argumentos práticos e pedagógicos”, tais afirmações possuem o efeito de “mudar nossa atenção do divino

para os negócios humanos, do transcendente para a experiência humana, da crença dogmática para o julgamento deliberativo”. A preferência de Protágoras pelo lógos pode ser entendida como “defesa (por intermédio da práxis) de uma nova maneira de pensar o mundo” (CRICK, 2010b, p. 33). A nova maneira de pensar o mundo postulada por Protágoras pode ser também apreciada no Tratado Sobre o não-Ser de Górgias. Ao tomar a ontologia de Parmênides e concluir que o não-Ser é, Górgias demonstra muito mais do que o equívoco desta forma de pensar defendida pelos eleatas, uma vez que, tomada literalmente, a ontologia permite concluir o oposto do que pretendia afirmar, mas também por meio desta crítica Górgias evidencia que à physis e ao Ser imutável dos eleatas se substitui agora o consenso, o nómos que o discurso cria (CASSIN, 1990, p. 76). Para Cassin (1990, p. 239), a discussão acerca da physis e do nómos travada pelos Sofistas contra os seguidores de Parmênides não opõe apenas duas modalidades discursivas, mas dois “modelos de mundo”: um modelo físico, em que se trata de “determinar os princípios da natureza imutável graças a demonstrações conformes a seu desdobramento”, e um modelo político, no qual se discorre sobre “produzir, ocasião após ocasião, valores comuns, permitindo a criação contínua de um consenso” que constitua a identidade da sociedade. Para Protágoras e Górgias, as leis e teorias não são obras da natureza, dos deuses ou de um Ser universal e imutável que o lógos tinha por tarefa dizer, mas formulações resultantes de um “consenso de opinião” (GUTHRIE, 2007, p. 129). Para esses filósofos, “todas as teorias são humanas, suficientemente humanas”, uma vez que o homem é a medida de todas as coisas (MAZZOTTI, 2011, p. 18); “as coisas são ou não são conforme os humanos as façam ser ou não ser, ou digam que elas são ou não, segundo o nómos” (CHAUI, 2002, p. 170). Com tal questionamento, os Sofistas abriram terreno para a ideia de que a lei é “instituição meramente humana” que visa ir ao “encontro de necessidades determinadas”, não possuindo “nada de permanente ou sagrado em si”, podendo assim ser contraposta ou à ordem divina ou à ordem natural, ou a ambas (GUTHRIE, 2007, p. 128). Uma vez que as leis, costumes e convenções não fazem parte da “ordem imutável das coisas”, torna-se possível dar “nascimento a ideias de igualdade, de cosmopolitismo e de unidade do gênero humano”, pois agora passam a existir pessoas dispostas a “declarar que distinções baseadas em raça,

nascimento nobre, status social ou riqueza, e instituições como escravidão” não têm “base na natureza”, existindo unicamente por nómos (GUTHRIE, 2007, p. 112). Até então, a areté colocava as qualidades de excelência humana na dependência de certos “dons naturais e até mesmo divinos que eram marcas do bom nascimento”, justificando a “prerrogativa da classe que nasceu para governar” (GUTHRIE, 2007, p. 29). Para os oligarcas, ser cidadão era “algo que se é por natureza, a virtude por natureza, a virtude cívica é inata (o ateniense é cidadão excelente por natureza) e não se pode ensinar a ninguém a ser cidadão” (CHAUI, 2002, p. 162). Com os questionamentos dos Sofistas a areté se desvincula da physis e é considerada um nómos, podendo então ser ensinada; deixa de ser um privilégio de classe ou da minoria de origem aristocrática. Em lugar do “sangue divino”, surge o conceito geral de “natureza humana com todos os acidentes e ambiguidades individuais”, mas também com toda a “amplitude superior da sua envergadura” (JAEGER, 2010, p. 357). Uma natureza que pode ser aprimorada por intermédio da educação, por uma paideia fundamentada na areté política que visa sobretudo à formação do cidadão, por meio da retórica, para atuar na polis democrática.

A Retórica como instrumento de formação A paideia aristocrática havia instituído uma formação segundo os valores de uma nobreza fundiária e guerreira, baseada nos laços de sangue; visava à formação do guerreiro belo e bom, isto é, o “jovem perfeito de corpo e alma” destinado a realizar-se plenamente nos perigos da guerra e morrer na flor da idade nos campos de batalha (CHAUI, 2002, p. 156). Com as mudanças no cenário político e cultural de Atenas, que se caracterizava como sociedade urbana, comercial, artesanal e democrática, a antiga areté defendida pelos aristocratas já não fazia mais sentido (CHAUI, 2002, p. 157). A nova sociedade democrática ateniense que emergiu naquela época necessitava de um processo educativo mais adequado às suas necessidades, em decorrência da distribuição da responsabilidade dos negócios públicos entre uma parcela maior de cidadãos, o que até então era privilégio de uma aristocracia de sangue (SOUZA, 1969, p. 32). Diante da incorporação da massa de cidadãos livres ao Estado, tornava-se imperioso que a areté política se estendesse a um “círculo

mais amplo de cidadãos” (RODRIGO, 2014, p. 23). Castoriadis (2002, p. 312) afirma que somente com a educação dos cidadãos enquanto tais é que se poderia dotar o espaço público de um “autêntico e verdadeiro conteúdo”. Tal educação consistia na “tomada de consciência, pelas pessoas, do fato de que a polis é também cada uma delas”, e que o “destino da polis depende também do que elas pensam, fazem e decidem”; ou seja, que a educação é participação na vida política. A cidade de Atenas certamente necessitava de guerreiros belos e bons, mas naquele momento uma cidade democrática precisava, antes de tudo, de bons cidadãos. Para o cidadão da democracia, a areté aristocrática era inaceitável, pois o seu fundamento residia nos privilégios de sangue e das linhagens (CHAUI, 2002, p. 157). Uma nova areté política, ética e moral tornava-se necessária para a formação do cidadão para atuar na direção da polis. Não mais associada à ideia de “sangue divino”, mas à ideia de natureza humana, segundo os Sofistas, especialmente Protágoras, a aréte poderia ser desenvolvida por intermédio da educação. Os Sofistas oferecem, então, uma resposta positiva à pergunta magistral de Sócrates: “As virtudes podem ser ensinadas?”. Indagar se a virtude poderia ser ensinada era o equivalente a indagar se a educação era possível, “não como mera mudança externa de comportamento, mas principalmente como poder de influência sobre a interioridade do homem, seus valores e modos de pensar” (RODRIGO, 2014, p. 70). Protágoras considerava a vida um processo de educação ética e social, e acreditava que a natureza humana precisava ser desenvolvida pela educação, para que o homem alcançasse a areté (KERFERD, 2003, p. 215). Para Protágoras, a capacidade natural que justificava a formação apenas dos “melhores cidadãos”, os aristocratas, não consistia em algo distribuído com base na hereditariedade (KERFERD, 2003, p. 248). A capacidade natural não era fonte de “superioridade inata ou natural, herdada dos pais mais capazes” (MAZZOTTI, 2010, p. 114). Esse posicionamento emerge claramente do que Protágoras (327c) diz sobre os flautistas no diálogo platônico que leva seu nome: “os filhos dos bons flautistas se tornariam melhores tocadores do que os filhos dos maus? Penso que não, muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser um mau instrumentista, e igualmente frequente o filho de um mau instrumentista pode se tornar um bom tocador de flauta”. Para Cassin (1990, p. 95), a natureza humana se define nesta parábola “não por um dom hereditário, mas por uma superioridade, uma

diferença, uma distância que aumenta ao ser cultivada”. A natureza humana contém a possibilidade de avanço moral, sendo possível aprender as virtudes, mas a “sua efetivação depende da experiência e, particularmente, de educação” (RODRIGO, 2014, p. 73). A nova paideia proposta pelos sofistas postulava uma educação com base em três fatores: a natureza, o estudo e a prática (JAEGER, 2010, p. 1084). Essa “trindade pedagógica” é transmitida por Plutarco por intermédio do exemplo da agricultura, encarada como o caso fundamental do cultivo da natureza pela arte humana: uma boa agricultura requer uma terra fértil, um lavrador competente e uma semente de boa qualidade; no campo da educação, o terreno é a natureza humana; o lavrador é o educador e as sementes são as doutrinas, e os preceitos, os nómos estabelecidos pelos homens para a vida em sociedade (JAEGER, 2010, p. 363). Quando as três condições se realizam com perfeição, o resultado é extraordinariamente bom, pois quando uma natureza “escassamente dotada” recebe os cuidados adequados, as suas deficiências podem ser em partes compensadas. Em contrapartida, mesmo uma “natureza exuberante” decai e se perde, quando deixada ao abandono. É isto o que torna indispensável a arte da educação. O que se obtém da natureza com esforço torna-se estéril, se não é cultivado, chegando mesmo a ser pior do que era por natureza. Uma terra não tão boa, mas trabalhada com perseverança a inteligência, acaba por dar os melhores frutos (JAEGER, 2010, p. 364). A comparação com a agricultura cria uma nova metáfora: a educação humana é “cultura espiritual” (JAEGER, 2010, p. 364). Cultura espiritual não no sentido de educar o homem apartado do mundo no qual está inserido, mas de uma verdadeira conversão, voltando-se os olhos do educando do mundo das Ideias e dos seres imutáveis para um mundo sensível, em mudança, formado por nómos; retirando-se o educando de seu “estado de autocentrado para o descentrar, integrar na vida social, compartilhando os conhecimentos estabelecidos”. A educação do homem por intermédio da retórica assume importância crucial nesse mundo marcado pelo nómos, uma vez que as “decisões acerca da vida em comum, da ética, não podem ser resolvidas de uma vez para sempre” (MAZZOTTI, 2011, p. 19). A problematização da realidade pelo lógos retira o conhecimento do distante mundo das ideias; o conhecimento passa a ser visto como “tecido no mundo dos homens”, o que introduz um “depende” insuportável para o racionalismo de

Parmênides, pretensamente universal e eterno (LEMGRUBER; OLIVEIRA, 2011, p. 27). Os sofistas evidenciaram que nada era afinal tão “simples e nítido” como parecia antes, e que a virtude humana, a harmonia de uma cidade e a ordem do universo se “embaralhavam em uma rede inextricável de logoi” (SOUZA, 1969, p. 32). A retórica torna-se então o principal instrumento de cultivo da natureza humana, não por capacitar o homem a persuadir pessoas, levando-as a pensar o que se deseje que pensem, mas por constituir numa “arte prática” que ajuda o homem a resolver problemas nesse mundo social contingente e em mudança (CRICK, 2010b, p. 27). É por meio da retórica que o homem consegue lidar com esse “material imperfeito” produto do nómos, pois a retórica nasce e renasce onde as ideologias desmoronam; aquilo que era objeto de absoluta certeza torna-se problemático e é submetido a discussão (MEYER, 1998, p. 11). A retórica consiste na negociação da distância entre os homens em torno de uma questão ou problema, o qual pode uni-los ou até mesmo opô-los, mas sempre os reenvia a uma alternativa (MEYER, 1998, p. 27). A retórica vincula a intrínseca capacidade de transformação da linguagem em vista de situações particulares que requerem a interrupção da convenção e o afloramento da inspiração, do sentimento, bem como o mapeamento de caminhos para novas possibilidades de experiência compartilhada. A retórica contém o poder transformador da linguagem em direção ao um futuro incerto que fala conosco quando nos sentimos jogados nas águas turbulentas do presente (CRICK, 2010b, p. 11).

Considerações Finais A discussão a respeito da antítese entre nómos e physis travada pelos Sofistas contra os filósofos seguidores do pensamento de Parmênides revelam duas visões de mundo distintas. A primeira, defendida pelos eleatas, via a physis como fonte natural da qual derivavam as normas que deveriam reger tanto a vida individual quanto as demais estruturas da sociedade; a segunda, defendida pelos Sofistas, afirmava que a physis não poderia ser a fonte de valores de que derivavam as leis, pois as leis não possuem nada de sagrado e imutável, e as distinções baseadas em raça, nascimento nobre, status social ou riqueza existiam somente por nómos, não por natureza.

As mudanças ocasionadas pelo processo histórico em Atenas somadas aos questionamentos dos Sofistas abriram caminho para a defesa de uma nova paideia, não mais sustentada na justificativa do bom nascimento para educar os melhores cidadãos, mas sustentada no aprimoramento da natureza humana independente de algum dom hereditário. Por intermédio da analogia elaborada por Plutarco, podemos perceber que para os Sofistas não basta apenas ter a melhor natureza, ou a melhor semente; se o lavrador não possuir uma boa técnica de cultivo, poderá colocar tudo a perder. A analogia evidencia que para cultivar corretamente a natureza humana, o educador/lavrador deve lançar mão de um instrumento profissional, a palavra, sobre a qual se baseavam as relações político-sociais da sociedade ateniense naquela época. Para os Sofistas, a Retórica torna-se a melhor técnica de cultivo da natureza humana, pois constitui uma arte capaz de auxiliar na resolução dos problemas em um mundo contingente e em mudança. Se educação é participação na vida política, é por meio da retórica que essa participação é efetivada de maneira consciente, pois muito mais do que uma arte que capacita o aprendiz a persuadir pessoas, a retórica é uma arte prática que auxilia o homem a considerar diferentes opiniões e buscar soluções por meio da discussão e da formação de consensos perante os problemas impostos a eles nesse mundo sensível, contingente e em mudança. Essa discussão iniciada há séculos pelos Sofistas dá ensejo a algumas indagações acerca da educação atual: a escola de hoje desenvolve em seus alunos a capacidade argumentativa, considerando que compartilhar um modo de pensar e participar das discussões públicas é condição primordial da existência de uma sociedade democrática? Em uma sociedade pluralista, condição sine qua non da existência da retórica, formamos nossos alunos para o debate, para buscar consensos e soluções a partir de opiniões divergentes a respeito dos assuntos públicos? A continuidade da pesquisa cujos resultados foram aqui relatados buscará elementos para construir uma resposta, ainda que provisória, a estas indagações. O lançamento desta reflexão com base nos Sofistas tem por objetivo debater os cânones que orientam as doutrinas pedagógicas; esperamos que esta iniciativa sirva para converter os olhares das certezas absolutas pretendidas por algumas

ideologias para um debate que leve em conta a formação do homem concreto enquanto membro de uma sociedade democrática.

REFERÊNCIAS CASSIN, Bárbara. Ensaios sofísticos. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Siciliano, 1990. CASSIN, Bárbara. O efeito Sofístico. São Paulo: 34, 2005. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles – vol. I. 2. edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CRICK, Nathan. Democracy and rhetoric: John Dewey on the arts of becoming. Columbia: University of South Carolina, 2010a. CRICK, Nathan. The sophistical attitude and the invention of rhetoric. Quaterly Journal of Speech. 96 (1), 2010b. GUTHRIE, William Keith Chambers. Os sofistas. 2 edição. São Paulo: Paulus, 2007. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. 5. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010. KERFERD, G. B. O movimento sofista. Tradução Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2003. LEMGRUBER, Marcio Silveira. OLIVEIRA, Renato José. Argumentação e educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira. OLIVEIRA, Renato José (orgs.). Teoria da argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011. MAZZOTTI, Tarso. Da filosofia da educação à sofística renovada. Itinerários da Filosofia da Educação. n. 8, jan./jul., 2010. MAZZOTTI, Tarso. Seria possível ensinar as virtudes políticas (éticas)?. Revista Teias. v. 12, n. 25. mai./ago. 2011. MEYER, Michel. Questões de retórica, linguagem, razão e sedução. Lisboa: Edições Setenta, 1998. OLIVEIRA, Newton Ramos de. Tempo dos sofistas, tempo de ruptura? Uma leitura da história a contrapelo. Multiciência; 1 (3), 1998. PLATÃO. Protágoras (ou Sofistas). In: PLATÃO. Diálogos I. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2007.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A sofística e o deslocamento do eixo da pesquisa filosófica do cosmo para o homem. In: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga – vol. I. Tradução Ivo Storniolo. 3. edição. São Paulo: Paulus, 2007. RODRIGO, Lidia Maria. Platão e o debate educativo na Grécia Clássica. São Paulo: Armazém do Ipê, 2014. SOUZA, José Cavalcante de. Caracterização dos sofistas nos primeiros diálogos platônicos. São Paulo: EDUSP, 1969.

CURRÍCULO DOS AUTORES

Tatiane da Silva Graduada em História e Pedagogia; Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo; doutoranda em Educação na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. É membro do Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq) e autora do livro A presença da filosofia platônica na Pedagogia do Estado Novo (Editora Poiesis).

Marcus Vinicius da Cunha Doutor em História e Filosofia da Educação, professor da Universidade de São Paulo e líder do Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq). É autor de John Dewey, uma filosofia para educadores em sala de aula (Editora Vozes) e coautor de “Pragmatism in Brazil: John Dewey and education” (In Pappas, Pragmatism in the Americas, Fordham University Press).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.