A Retórica da Igreja Católica: O uso do discurso político no papado de João Paulo II

July 7, 2017 | Autor: Rubens Lopes | Categoria: Religion, International Relations, Politcal Science, JOAO PAULO II
Share Embed


Descrição do Produto

“Pra que somar se a gente pode dividir?” VINÍCIUS DE MORAES 1

DEDICATÓRIA

Para a vovó Sílvia. 2

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao professor Fernando Torres Londoño, a pessoa que acreditou em mim nos tempos de graduação e sem o qual nunca teria conseguido chegar onde estou hoje. Agradeço também ao Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, orientador e suporte para a redação desta dissertação, sem o qual certamente nunca conseguiria tê-la produzida. Agradeço também aos demais professores do programa de pós-graduação pela contribuição, seja ela formal no cumprimento dos créditos, ou informal em conversas pelos corredores da Metodista. Agradeço também a força e amizade dos colegas do programa, em especial aos outros dois ―patetas‖: Altair Tio Leôncio e Jefferson Mineiro Uai Sô! Também ao Max e o Alex, ao Cláudio, à Helena, à Márcia e muitos outros que não caberiam aqui.

3

RESUMO

LOPES JUNIOR, Rubens. A Retórica da Igreja Católica: O uso do discurso político no papado de João Paulo II. UMESP, São Bernardo do Campo, 2011.

A retórica sempre esteve presente nas civilizações. Desde a Grécia Antiga até os dias de hoje ela é usada e estudada. Na religião, é uma formidável fonte de expressão. Foi através da retórica que o Papa João Paulo II conseguiu ganhar notoriedade e se envolver em casos muito além da religião no século XX. Ele foi considerado um papa que se utilizou do político e consolidou um novo status para a Igreja Católica. Assim, através da análise retórica da mediação da Santa Sé no Canal de Beagle em 1979 e da análise retórica das ações diplomáticas do Vaticano contra a invasão do Iraque em 2003, este trabalho mostra como se constrói a retórica religiosa, além das conseqüências que isso acarreta não só para a Igreja, como também para o mundo.

Palavras-chaves: Retórica; Canal de Beagle; Iraque; João Paulo II

4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 07 CAPÍTULO I – Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica Introdução .............................................................................................. 13 1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja Católica ..................................................................................................... 14 1.1.1 - O que é retórica?......................................................................... 14 1.1.2 - O discurso político ..................................................................... 24 1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ............... 29 1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ......... 29 1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo ............................ 37 Conclusão ................................................................................................. 46 CAPÍTULO II - A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II Introdução ................................................................................................. 49 2.1 – O viés político do Vaticano ............................................................. 50 2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano ................................................. 50 2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé ............. 60 2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial ............. 66 2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II ....................... 66 2.2.1 – O papado e a queda do comunismo ........................................... 75 Conclusão .............................................................................................. 84 CAPÍTULO III – A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo II durante a mediação no canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque (2003) Introdução ................................................................................................. 87 3.1 - O Caso do Canal de Beagle.............................................................. 88 3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle ...... 88 5

3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle.................................. 90 3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle ..... 92 3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle ................ .103 3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle ................ 105 3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle ................... 107 3.2 – A invasão do Iraque ....................................................................... 109 3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque .. 109 3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas do Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque ............. 113 3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque (2003) ................................................................................................... 114 3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003) ... 124 3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque .............. 125 3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003) ..... 134 Conclusão ............................................................................................. 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................137 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................144

6

INTRODUÇÃO

Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre filósofos, poetas e oradores. A análise retórica é um método de análise do discurso embasada nos preceitos da filosofia e da retórica antiga. Quem quer conversar pela retórica, se utiliza do discurso para tal. Há muito tempo a humanidade se preocupa acerca do efeito das palavras, o que causou o desenvolvimento da arte do discurso para interferir sobre as suas crenças e atitudes das pessoas. No início, a função da Análise Retórica era avaliar peças de oratória de pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica permite identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de comunicação, inclusive na religiosa. Um discurso necessariamente está atrelado as condições sociais em que é produzido. Ele é o reflexo de uma época. Assim, esta dissertação busca mostrar os efeitos de um contexto secular e moderno na retórica católica no papado de João Paulo II. Mas por que João Paulo II? É inegável que João Paulo II tornou-se uma das personagens mais conhecidas da segunda metade do século XX. Este Papa buscou um novo papel para a Igreja, principalmente nos anos 80, como conseqüência do seu engajamento com causas sociais através de construções retóricas. Em seus vinte e cinco anos de papado, inúmeros fatos poderiam ser estudados acerca da construção retórica da Igreja Católica. Ele foi considerado por muitas pessoas como o ―Papa da mídia‖. Sua figura é exposta em todo o mundo e não é somente relacionada com as questões católicas, mas muitas vezes com questões políticas. Sendo assim, como funciona a prática diplomática e discursiva da Igreja Católica através da retórica? Para tal, foram escolhidas duas práticas retóricas distintas em dois momentos diferentes deste papado (1978-2005): a Mediação de Beagle (1979) e a invasão do Iraque (2003). Assim que assumiu primazia romana, a Igreja sabia da importância da América Latina, tanto para ela quanto para os Estados Unidos e União Soviética, porque o ―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Metade dos Católicos do 7

mundo estão na América Latina, é uma região de extrema relevância para a Igreja e, neste mesmo território, ela daria outro passo em direção à visibilidade mundial através de uma construção retórica: o papel de mediação. Já aparece aqui um fato interessante, pois a mediação se dá entre dois países e não entre duas instituições religiosas. Chile e Argentina disputavam o controle do Canal de Beagle e quase guerrearam. Tanto o governo chileno quanto o governo argentino encabeçados por ditadores militares, pediram formalmente ao Vaticano a mediação a fim de guiá-los em uma busca pacífica desta controvérsia. No dia 11 de setembro de 2001 o mundo foi surpreendido com aviões comerciais sendo usados como armas no maior ataque terrorista da história dos Estados Unidos. Estima-se que morreram em torno de 3 mil pessoas decorrentes destes ataques. De setembro de 2001 até março 2003, João Paulo II entrou numa ―batalha‖ diplomática entre os Estados Unidos e o Iraque tentando evitar que os norte-americanos invadissem o país do Oriente Médio, fato que acabou por ocorrer em Março de 2003. Nos dois casos escolhidos, João Paulo II se utiliza da retórica para intervir. Seu discurso é produzido à luz da doutrina católica. Entretanto, o mundo encontra em um período onde a referencia religiosa não mais condiciona a vida das pessoas. Existem diversas expressões religiosas além da católica. Se um discurso é reflexo da condição em que é produzido e a doutrina católica se encontra em um período de questionamento e incerteza, como João Paulo II pode tornar-se uma das mais conhecidas figuras do século XX? Certamente isso só poder ser operado através do político. Venho de um curso de graduação em Relações Internacionais. Neste meio, são escassos os estudos que buscam analisar a Igreja como um fator político que atua no cenário global. É comum entre especialistas em relações internacionais a temática da religião figurar somente quando o assunto é o terrorismo ligado ao islamismo. Penso que a neste meio a religião vai muito além deste fato. Nas considerações dos atores internacionais na modernidade, tem se negligenciado o papel da Igreja. A separação entre Igreja e Estado fez com que não se 8

enxergasse ela como um ator no jogo político internacional, papel que ficou somente com os Estados, no campo das relações internacionais. O que vemos é que a religião se modificou, mas não sumiu nos dias de hoje. Porém, penso que tal proposta de se analisar a Igreja Católica focando especificamente como se constrói e como funciona seu discurso em situações distintas seria de grande contribuição interdisciplinar: mostrar que a Igreja, com suas bases teológicas, consegue se posicionar diplomaticamente no cenário global em praticamente qualquer tipo de questão, sem necessariamente reforçar sua característica episcopal nem de se distanciar dela. Isto só é possível a partir de uma sólida construção retórica. Se não houvesse habilidade no uso da palavra, não haveria como se proceder tais construções. Atualmente, vasculhando o banco de teses da CAPES, encontramos diversas teses e dissertações com a temática da retórica em si. Diversas teses e dissertações acerca do papel da Igreja, modernidade e secularização, e muitas outras sobre João Paulo II. Mas há pouca incidência de teses e dissertações que englobem a análise retórica acerca de fatos do papado de João Paulo II. Isto indica que esta dissertação pode ser de grande importância para a análise da retórica que envolve fatores políticos e religiosos. A grande maioria dos termos que são utilizados nesta pesquisa são oriundos de renomados autores sobre retórica. Tereza Halliday é uma renomada autora, poeta, ficcionista, jornalista, tradutora, professora universitária e ensaísta. Ela oferece um rico método de análise de discurso em seu livro de 1988 intitulado Atos Retóricos, mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Este método foi o adotado nesta dissertação ao se analisar os discursos de João Paulo II. Outro grande pensador sobre retórica é Chaim Perelman. Ele possui diversas obras, como Retóricas (2004) e Tratado de Argumentação: A nova retórica (2005), sobre o tema e mostra a dimensão da retórica nos dias de hoje. A retórica ganhou uma conotação negativa ao longo de sua existência, pois a persuasão é seu objetivo. Perelman acaba com o conotação pejorativa resgatando a função da retórica nas suas origens em Aristóteles. 9

Oliver Reboul, um pensador francês, segue a linha de argumentação de Perelman em seu livro chamado Introdução à retórica (2004). A principal contribuição deste autor está em uma exposição sobre as figuras de linguagem que são características da retórica. Um discurso pode ser persuasivo ou não. Para que se caracterize como tal, são necessárias algumas figuras específicas desse tipo de linguagem. Se a retórica se utiliza do discurso para persuadir, discurso também é um termo que aparece constantemente nesta pesquisa. Se a expressão da linguagem através da retórica e do discurso é um reflexo do contexto social, o livro Discurso e mudança social (2001) de Norman Fairclough oferece uma grande contribuição da natureza do discurso. Como o papado de João Paulo II foi característico pelo uso do político, o discurso político também merece destaque. Para tal, o livro Discurso Político (2006) de Patrick Charaudeau oferece uma rica análise do funcionamento e criação do discurso político. Assim, termos da natureza da retórica e discurso político são frequentemente encontrados neste texto. Só é possível fazer análise retórica de um texto se você tem acesso a este texto. A documentação utilizada para se concluir a proposta deste trabalho provém de fontes diferentes. Sobre o Canal de Beagle, João Paulo II proferiu discursos e alocuções em audiências públicas no Vaticano. Estes discursos foram encontrados, a maioria em sua íntegra no site do Vaticano. Como se tratava de uma mediação a nível internacional, a versão definitiva da mediação e do tratado de paz encontra-se disponível na documentação da ONU, acessível também via internet. Esta ferramenta moderna de comunicação facilita a vida do pesquisador em casos como este. Em relação a invasão no Iraque, a prática diplomática por parte da Santa Sé foi coberta pelo jornal do Vaticano, chamado de L’Osservatore Romano (Observatório Romano). Ele possui edições quinzenais em diversas línguas e, dentre elas, o português. Como um panorama cronológico dos eventos pré-invasão, foi possível localizar nas edições deste jornal os discursos tanto de João Paulo II, como também dos cardeais que foram figuras presentes nestas práticas diplomáticas. 10

Essa dissertação está distribuída da seguinte maneira: no primeiro capítulo, tratamos do discurso político na retórica religiosa, para tal explanamos o que é retórica, discurso, e discurso político. Como a retórica é religiosa, é carregada de simbolismos. Neste mesmo capítulo é apresentado um panorama da retórica católica à luz da construção do simbólico que a envolve. Como a retórica é reflexo da realidade social, também é imprescindível e encontra-se presente no primeiro capítulo uma análise sobre as condições sociais da atualidade: secularização, pluralismo, desencantamento e modernidade. No segundo capítulo é dada devida atenção a figura de João Paulo II, além de ser mostrado como funciona a política interna do Vaticano. O Vaticano é uma burocracia. A simples condição para existência de burocracia são as relações políticas entre os indivíduos que fazem parte dela. Mesmo sendo uma instituição religiosa, isso é presente. Assim, no segundo capítulo há um panorama desta condição. Assim, por ser o líder desta instituição, João Paulo II ganha destaque. Neste mesmo capítulo existe um breve bosquejo da sua história pessoal, até os tempos de Papa. Como foi um longo papado e com grande visibilidade, o político não poderia ficar de fora. Elegemos como o fator principal desta condição política a queda do comunismo no Leste Europeu. Assim, neste capítulo existe uma reflexão sobre este fator marcante no mundo no final do século XX. O terceiro capítulo desta dissertação foca especificamente a análise retórica. Foi utilizado o método proposto por Tereza Halliday (Atos retóricos, mensagens estratégicas de políticos e igrejas, 1988) o qual fornece uma sólida base de análise retórica, dividindo a análise em seis partes diferentes, onde são considerados os antecedentes retóricos, as limitações dos discursos, a anatomia do discurso, sua interpretação e até o seu julgamento. Consequentemente, este capítulo oferece uma grande contribuição para além do discurso em si, pois foram exploradas as questões que envolvem o discurso: questões históricas e conceituais, pois está diretamente ligada às relações internacionais. Essa dissertação oferece uma rica compreensão interdisciplinar. Aparecem conceitos sobre religião, relações internacionais e lingüística, interligados entre si em 11

uma análise retórica do discurso da mais antiga instituição burocrática que se tem registro e de um dos rostos mais conhecidos do final do século XX.

12

Capítulo I Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica

“Retórica é a arte de persuadir pelo discurso” Olivier Reboul

Introdução De que maneira o discurso político age sobre a retórica religiosa? Este primeiro capítulo trás à reflexão a retórica católica, privilegiando o período do pontificado do Papa João Paulo II à luz das teorias dos autores de retórica. Para tal, a primeira parte deste texto faz um pequeno panorama histórico acerca da ―retórica‖, desde suas origens na antiga Grécia até alguns dos pensadores contemporâneos, como Chaim Perelman e Tereza Lucia Halliday. Discutiremos acerca do conceito de discurso, passando por autores como Norman Fairclough e Eni Orlandi. Na análise do discurso político apoiaremos a nossa reflexão em autores como Patrick Charaudeau. Nele procuramos definir o que é e como se constitui o discurso político. Em um segundo momento, mostraremos como os grupos religiosos estruturam sua retórica através do discurso, focando a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e os efeitos da secularização em sua ―voz‖. Para tal, autores como Pierre Bourdieu serão de suma importância. Ainda, mostraremos como a competitividade funciona em tempos de secularização e pluralismo utilizando Antonio Pierucci e Marcel Gauchet.

13

1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja Católica A retórica sempre esteve presente no cotidiano das sociedades e possui diversas definições e usos, entretanto, todas elas estão relacionadas à persuasão.

1.1.1 - O que é retórica?

A análise retórica é um método de análise do discurso embasada nos preceitos da filosofia e da retórica antiga. Há muito tempo a humanidade se preocupa acerca do efeito das palavras, o que ocasionou o desenvolvimento da arte do discurso, arte esta que interfere nas crenças e atitudes das pessoas. Na antiga Grécia, mesmo filósofos anteriores a Platão e Aristóteles, como Córax e Tísias (século V a.C.), refletiam sobre o poder persuasivo dos discursos, descrevendo seu funcionamento e seu poder de interferência em quem os ouvia. Surge assim a ―Análise Retórica‖. Em seus primórdios, a retórica tinha por função avaliar principalmente peças de oratória de pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica permite identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de comunicação. De acordo com Luís Rohden1, a partir do conhecimento destes pensadores antigos e da sistematização dos conhecimentos até então produzidos, Aristóteles desenvolve suas próprias reflexões, organizando um sistema retórico valorizado ainda hoje nos estudos sobre retórica e argumentação. Para Rohden, Aristóteles sistematiza os fundamentos da persuasão no discurso descrevendo a natureza e a origem dos diferentes argumentos e criando uma teoria do discurso voltada para o exercício da argumentação. Segundo Halliday2, para Aristóteles existiam dois tipos de conhecimento: as ―verdades imutáveis‖ da natureza, conhecidas como theoria, que pertencia ao campo 1

ROHDEN, Luís. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997. p.07-14. 2 HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121 14

da ciência; e as ―verdades contingentes‖, conhecidas como phronesis, podendo ser considerada como a sabedoria prática. Para ele, as verdades contingentes eram frutos de um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, e tinham por função melhorar a ação do homem. Aristóteles também procurou descrever claramente os fenômenos da ação humana por intermédio do exame dialético das opiniões dos homens sobre esses fenômenos. Para o filósofo grego, é a partir da opinião que se torna possível atingir o conhecimento. Portanto, a retórica é a faculdade de enxergar, de acordo com cada caso, o que é capaz de gerar a persuasão. Quando uma prática discursiva consegue atingir seu objetivo, chamamos este fenômeno de construção retórica: no qual seus participantes fazem uma leitura retórica da situação em questão e fazem parte propriamente desta construção, sejam como produtores, coprodutores ou receptores deste discurso. Para Chaim Perelman 3, a retórica tem basicamente a função de adesão: “O objeto desta teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento”. Perelman4 afirma ainda que neste diálogo crítico o que se põe à prova é a tese de um interlocutor ou até mesmo uma hipótese que este possa sustentar. Segundo Reboul5, quando um orador pretende convencer ou persuadir uma plateia utilizando o artifício do discurso, este orador emprega argumentos para falar à razão, busca fazer com que o ouvinte sinta que o discurso do orador possui uma lógica. Assim, técnicas para manter uma organização discursiva e a expressividade das palavras com a finalidade de despertar a sensibilidade do auditório são extremamente utilizadas, e fazem com que o ouvinte mantenha sua atenção na imagem criada de alguém com credibilidade e que porta a legitimidade suficiente para propor sua opinião. Por outro lado, a preocupação com a subjetividade também aparece nos estudos de linguagem e nas ciências sociais, fato que expõe a relevância desta característica na formulação e elocução do discurso. A subjetividade do 3

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo, Martins Fontes, 1996. p. 05 4 Idem. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 07 5 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36 15

discurso age tanto no que se refere ao orador, como ao que se refere aos ouvintes. Este aspecto do discurso acaba por criar uma relação de subjetividade e interdependência entre ambos os atores retóricos – oradores e ouvintes. Lineide Mosca6 afirma ser possível verificar a mobilização das paixões de um auditório através das representações do comportamento deste público, ou até mesmo através de ações ou situações que possam desencadear as emoções desejadas. Existem desde a antiguidade clássica três pilares que trabalham exatamente com a questão da razão e paixão. Junto de mais um aspecto relacionado à imagem, são estes pilares que fundamentam a retórica: Logos, Pathos e Ethos. Segundo Reboul: (...) a retórica, diz Aristóteles, compreende três tipos de provas (pisteis) como meios de persuadir: os dois primeiros são o ethos e o pathos [...]; constituem a parte afetiva da persuasão. O terceiro tipo de prova, o raciocínio, resulta do logos, constituindo o elemento propriamente dialético da retórica. 7

À luz dos conceitos de autores especialistas em retórica, pode-se afirmar que o ethos consiste na credibilidade, na imagem do orador. Seja qual for a fonte de sua credibilidade - cultural, estado social, capacidade intelectual - tais qualidades podem levar um auditório a acreditar em uma ―verdade‖. Já o pathos é oriundo das paixões e emoções dos ouvintes. A forma como o orador desperta as emoções em seu público faz eco ao peso do pathos em seu discurso. O logos é o contraponto do pathos: representa a lógica, o racional do discurso. Embora aparentemente pathos e logos soem como antagônicos, ambos os conceitos fazem parte da retórica. Para Mosca 8, a formação de um ethos está ligada a questões de identidade. Seja este ethos coletivo ou individual, ele encontra-se em um jogo de representações que se dá entre as partes envolvidas no processo de trocas comunicativas e de constituição das respectivas identidades. Trabalhando com representações de si próprio, o ethos também absorve representações do ouvinte, através de seu pathos. 6

MOSCA, Lineide A atualidade da Retórica e seus estudos: encontros e desencontros in Rhetoric. Proceedings of the First Virtual Congress of the Romance Literature Department. São Paulo, USP. p. 07 7 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36 8 MOSCA, Lineide. idem. 16

Em nossa pesquisa trabalhamos com a ICAR, portanto, vale ressaltar neste momento que ethos, pathos e logos são pilares que funcionam muito bem quando se trata da Igreja Católica em sua hierarquia e retórica. Por exemplo, se ethos consiste em credibilidade, imagem do orador independente de sua fonte, um arcebispo, um cardeal ou até mesmo o Papa podem criar um ethos legítimo de uma determinada retórica na medida em que agem como porta-vozes da instituição, pois possuem credibilidade e criam uma identidade com seu auditório, muitas vezes os próprios fiéis9. Tal condição pode ser decisiva e levar um auditório a acreditar em uma ―verdade‖. Reboul10 afirma que uma construção retórica só é possível se houver um acordo prévio entre o orador e o seu auditório (seja ele qual for). Para ele, ―a regra de ouro da retórica é levar em conta o auditório‖, pois os argumentos mudam segundo o auditório. Entre o orador e o auditório tem de necessariamente haver este acordo, o autor afirma que ―é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos um acordo prévio‖. É neste acordo que reside o verossímil que trabalha a retórica, este acordo está na presunção que se tem. Para ele, o ―verossímil é a confiança presumida‖.11 Se pensarmos em algum líder de alguma seita, à luz do que pensa a maioria de seus seguidores, a sua mensagem possui legitimidade, isto é, quem confere legitimidade a uma peça retórica e seu orador são os ouvintes. Porém, quando uma mensagem deste porte consegue chegar a um público distinto de seus seguidores, pela divulgação da informação por um veículo como a internet, por exemplo, esta mensagem não terá legitimidade nenhuma perante este público. Este público distinto não reconhece o ―profeta‖ desta seita como líder, o verossímil deste líder pode não o ser para o auditório, a verdade que para um é diferente do outro não possibilita este acordo prévio, o que faz com que sua mensagem não funcione em tais condições. Pode-se afirmar, então, que a retórica, como força que age sobre a vontade e o entendimento de um determinado grupo, combina as capacidades intelectuais e Nos próximas páginas iremos discorrer sobre quem ―porta a voz‖ da ICAR e sobre a credibilidade desta voz. 10 REBOUL, Olivier. Introdução… p.142-143 11 Ibid. p.165 17 9

afetivas, tratando-as como indissociáveis, possibilitando a influência de aspectos subjetivos na construção de seus discursos. Halliday12 trabalha ainda com condições e fatos que propiciam o acontecimento do fenômeno retórico: a Situação Retórica e Ato Retórico. Para ela, Situação Retórica abrange pessoas, eventos, objetos, entre outros , que se apresentam em situações nas quais certo tipo de discurso é capaz de influenciar o pensamento ou a ação de determinada audiência, acarretando uma modificação positiva para o orador deste discurso em questão. A autora denomina este orador como retor. Quando Halliday afirma que somos seres retóricos, pois usamos a linguagem como instrumentos de mudança, reforço ou adesão à valores, sentimentos, posicionamentos, o fazemos justamente porque respondemos aos ditames de uma situação. Essa autora afirma ainda que quando um retor ―se importa‖ com certa situação ou meramente tem algum interesse em modificá-la, é porque esta situação possui alguma instância plausível de ser modificada através do discurso. Isto só é possível porque somos seres simbólicos, um composto de realidade objetiva junto com a interpretação das pessoas que a vivenciam. Sendo assim, é possível afirmar que a retórica é uma construção social que carrega em si um poder simbólico significativo13. Por Ato Retórico, a autora entende como a transmissão de uma mensagem caracterizada como ação simbólica, para promover ajustes ao ambiente em questão. Seja tal transmissão por um retor ou através de um texto. Tal transmissão é uma tentativa intencional criada para superar obstáculos em uma determinada situação retórica, sobre uma determinada audiência, com uma determinada questão, buscando um determinado objetivo. Portanto, é elaboração de um autor humano com um propósito especifico. Daí ser importante salientar que se a retórica é a arte de influenciar um determinado auditório, tal discurso necessariamente tem que estar de acordo com argumentos de persuasão que sejam compreendidos pelo auditório. O público ouvinte deve ser capaz de acompanhar a linha argumentativa organizada pelo

12 13

HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121-125. No decorrer da pesquisa, trataremos da construção social e simbólica do discurso usado nas retóricas. 18

orador. Ou seja, a qualidade técnica da argumentação está relacionada ao grau de conhecimento, em determinado assunto, do auditório a quem se dirige. Quem quer persuadir, se utiliza da retórica para tal fim. A retórica é ação do homem sobre outros homens, utilizando-se de estratégias de convencimento e de persuasão, visando mudar ou manter uma determinada situação ou um determinado ponto de vista ou atitude. Este retor faz uso de diversas técnicas de discurso para buscar seu objetivo, caminhando entre a razão e a paixão, seduzindo seu auditório para seu objetivo. Sob a perspectiva em que se coloca a retórica, é imprescindível contar com as reações dos destinatários (avanços, recuos, concessões, agressões, etc.). A argumentação só é tida como eficaz quando chega a persuadir o outro, não bastando a simples apresentação das provas e das razões. Tereza Halliday14 aponta seis passos do método de Análise Retórica que permitem compreender o fenômeno retórico, descrevendo todos os componentes de uma situação retórica: as motivações implícitas e explícitas do emissor, as expectativas dos receptores e as contingências do contexto. A autora subdivide o fato cabível de análise retórica em seis momentos que acabam por se interligar uns com os outros e mostra seis passos para que seja feita uma análise retórica através das condições que expõe. A autora divide uma questão retórica em antecedentes da situação retórica; problema retórico; anatomia e fisiologia do ato retórico; as contingencias do discurso; interpretação do ato retórico; julgamento do ato retórico. Devido à clareza e praticidade deste método de abordagem, esta pesquisa utilizará este método de análise de situações retóricas pré-definidas no decorrer do papado de João Paulo II. Vamos por partes:

a) Primeiro passo: Os antecedentes da situação retórica Neste primeiro momento da análise retórica, é necessária uma pesquisa com o intuito de reconstruir os elementos históricos, políticos e culturais da situação escolhida para análise. São estes os elementos que caracterizam esta situação 14

Ibid. p. 126-132. 19

problemática como situação retórica. Para tal, as fontes de dados são de suma importância neste momento deste processo. Assim sendo, é possível afirmar que uma boa contextualização é o primeiro passo e um alicerce sólido para uma boa pesquisa de análise retórica. Assis da Silva15 se utiliza do método de Halliday na análise retórica do documento pontifício Libertatis Conscientia, assinado pelo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, ex-Santo Ofício, acerca das produções teológicas dos teólogos latino-americanos conhecidas como Teologia da Libertação. Se utilizando do método de Halliday, Assis da Silva faz um panorama dos acontecimentos acerca deste documento e chega à conclusão que o documento em si tornou-se o ápice da confrontação entre tais teólogos e o Vaticano. O autor contorna até o primeiro acontecimento-chave desta beligerância católica, a publicação de um livro de Leonardo Boff, o qual continha idéias e conceitos que poderiam ruir com dogmas milenares da Igreja e que despertou a necessidade de resposta do Vaticano. O caminho percorrido por Assis da Silva para demonstrar que a situação retórica tem de ser bem embasada e descritiva arrazoa a importância deste primeiro passo do método de análise de Halliday.

b) Segundo passo: O problema retórico Neste momento é muito importante conhecer a natureza do problema retórico. O que é o problema retórico? Ou qual é o problema retórico? A dificuldade a se explanar seria o conflito ou desequilíbrio entre um público e um orador? Tal problema retórico é uma equação entre o que temos e o que queremos ter. Assis da Silva neste momento de sua pesquisa define a Libertatis conscientia como um ato retórico, um ato de comunicação, de caráter oficial, que se deu entre a Cúria Romana, naquele momento representado pela Congregação para a Doutrina da Fé, por meio de um documento assinado pelo seu porta-voz, Joseph Ratzinger, destinado a um grupo de teólogos produtores de um discurso que ganhou notoriedade com o nome de

15

ASSIS da SILVA, Francisco de in HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p.101-118. 20

Teologia da Libertação. Assim, o problema retórico é um conceito que inclui todos os obstáculos enfrentados pelos comunicadores.

c) Terceiro passo: Anatomia e fisiologia do ato retórico Aqui se identifica a forma como o discurso ganha corpo: vocabulários, figuras de linguagem, metáforas e slogans que constituem a própria estrutura do discurso. Segundo Halliday “Faz-se necessário identificar cada parte do ato retórico, fazendo um levantamento de seu vocabulário, argumentos e figuras de linguagem, que constituem a anatomia do discurso16”. Assis da Silva continua sua análise retórica deste caso do conflito entre a Teologia da Libertação e a Congregação para a Doutrina da Fé, buscando elementos nos discursos de Leonardo Boff, nos encontros de Boff e Ratzinger e nos documentos oficiais do Vaticano. Ele aponta que uma primeira reação de Roma confronta a TDL, enquanto em um segundo momento a reação busca doutrinar tais teólogos, por exemplo. A primeira reação vinda de Roma chamava-se Libertatis nuntius, onde Assis da Silva afirma que ―o Vaticano não oculta o teor de advertência, de admoestação‖. Enquanto num segundo momento, o Libertatis constientia, segundo Assis da Silva, afirma que a ―Santa Sé procura, a partir de sua própria concepção teológica, ensinar o verdadeiro sentido da libertação na teologia‖.17

d) Quarto passo: As contingências do discurso Neste ponto é necessário saber usar as limitações e restrições do discurso, as condições que lhe podem ser favoráveis também. Este quarto passo do método de Halliday mostra que a autora considera que todos os discursos tem suas limitações: “Toda mensagem ou ato retórico sofre limitações e restrições que contribuem para moldar-lhe o conteúdo e a forma.”18 Na sua análise retórica, Assis exemplifica que a Cúria via uma certa habilidade em Boff, na medida em que ele criou ―em torno de si um clima de mobilização nacional e internacional‖ graças ao qual se tornou capaz de 16

HALLIDAY, Tereza. Idem. p.126 ASSIS DA SILVA, Francisco in HALLIDAY, Tereza. Atos... p.107 18 HALLIDAY, Tereza. Idem. p. 128 21 17

inibir ―qualquer iniciativa de Roma em puni-lo‖ em um primeiro momento. Ou seja, tal habilidade que Boff teria demonstrado fez parte naquele momento de sua retórica, pois ele conhecia as limitações de seu discurso e se precaveu, à sua maneira é claro, uma possível represália da Santa Sé, afetando assim também a construção retórica da Congregação para a Doutrina da Fé. Portanto, saber até que altura pode alcançar seu discurso é de suma importância para o orador.19

e) Quinto passo: A interpretação do ato retórico A interpretação do ato retórico para Halliday é a combinação dos fatores acima à luz de um marco teórico ou de acordo com a formação do analista. “O ato retórico deve ser interpretado à luz de um arcabouço teórico/filosófico que contribua para uma visão mais profunda do discurso e suas circunstâncias”.20 Assis interpreta o documento do Vaticano como uma estratégia de consenso entre a Cúria e a TDL. O Vaticano, diferentemente do primeiro documento, procurou identificar-se com as teses de Leonardo Boff. Fala em libertação, porém à luz de seus dogmas romanos, buscando assim manter a unidade da instituição. Procura-se aqui ressignificar a ―libertação‖ que teria recebida outras significações por causa do cunho marxista.

f) Sexto passo: O julgamento do ato retórico Este passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios pragmáticos, estéticos ou éticos. O avaliador pode escolher um destes critérios ou a combinação deles para realizar sua análise. Bem como tal passo pode não ser concretizado, vez que o julgamento do ato retórico não é estritamente necessário. Assis da Silva, na sua análise, julga o ato retórico pela sua eficácia em condenar a TDL em seus excessos e chamar os seus defensores à ortodoxia da Igreja. Halliday21 afirma que neste momento da análise retórica, o pesquisador assume uma postura de juiz, um avaliador do fenômeno retórico pesquisado e que isto implica em uma ―certa dose de subjetividade‖. Assim, a fim de minimizar tais riscos que permeiam este 19

Nas próximas páginas o conceito de discurso será melhor explanado e discutido. Ibid. p. 129 21 Ibid. p.129 22 20

momento da pesquisa, a autora defende que ―o julgamento do ato retórico deve obedecer a critérios previamente escolhidos e explicitamente anunciados. Ela exemplifica estes critérios como pragmáticos ou de efeitos, como estéticos ou de qualidade e critérios éticos ou de valor. Por critério pragmático, Halliday encara a retórica como ação persuasiva, onde a avaliação do pesquisador busca enfatizar a relação do ato retórico com os seus objetivos, questionando em até que ponto tal ato retórico foi eficaz em responder as necessidades do retor, as contingências da situação e de sua audiência. Este foi o critério usado por Assis da Silva no exemplo de análise retórica sucintamente exposta nos parágrafos acima. Já o julgamento por critério estético é feito não por sua capacidade de mudar atitudes de ouvintes ou de tentar levar um auditório a ações específicas, mas sim é julgado por sua ―natureza humanizadora, sua beleza, sua capacidade de ‗tocar‘ a alma humana, reforçando valores e anseios universais‖.22 Halliday cita como exemplo o ―Discurso de Gettysburg‖ de Abraham Lincoln. Este discurso não foi eficaz em unir o norte e o sul no período da Guerra Civil Americana, porém tornou-se um dos textos mais belos da língua inglesa. Portanto, na avaliação do ato retórico por critérios éticos, há uma busca das conseqüências psicossociais no discurso. A avaliação reside no mundo dos valores. Por isso, afirma Halliday que o avaliador precisa estar munido de uma ―consciência apurada de seus próprios valores e dos valores prevalecentes na sociedade que foi palco do ato retórico. Assim, questionar até que ponto o ato retórico contribuiu para dignificar, mediocrizar ou degradar a condição humana se encaixam como artifícios válidos na hora da avaliação. Assim sendo, o método de Halliday se mostra claro e conciso, e este será o caminho a ser utilizado para a proposta de análise retórica desta pesquisa.

22

Ibid. p.130 23

1.1.2 - O discurso político

Como vimos anteriormente, a retórica é a arte da persuasão através da palavra. Uma palavra solitária, dita sem qualquer perspectiva pode até ter algum significado sem um contexto ou pano de fundo. Porém, esta palavra solitária não é capaz de exercer persuasão. A retórica busca a persuasão através da utilização de palavras e só funciona como instrumento de persuasão se inserida em um determinado contexto. Assim, o ato retórico somente terá efeito se utilizado junto de outras palavras, capazes de suscitarem emoções, seduzir ou até fomentar a racionalidade de seu ouvinte. Para tal, outro meio de persuasão se mostra presente na prática retórica. Assim, um dos melhores dispositivos de enunciação destas palavras é através do discurso. Para Fairclough23, discurso é um conceito de difícil definição porque existem muitas delas conflitantes e sobrepostas. O autor afirma que na lingüística, o discurso é usado para designar um diálogo falado, contrastando com textos escritos. Ele ainda aborda que ‗discurso‘ engloba a interação entre falante e receptor ou leitor e escritor. Diferentemente das definições anteriores, o autor ainda afirma que ‗discurso‘ pode ser usado para caracterizar determinadas situações sociais, como ‗discurso de jornal‘ ou ‗discurso de sala de aula‘. Citando Michel Foucault, Fairclough ainda mostra que discurso é usado na teoria e na análise social com referência aos diferentes modos de se estruturar as áreas de conhecimentos e efetivamente as práticas sociais. Seguindo sua linha de pensamento, o autor afirma ainda que os discursos, além de refletirem ou representarem entidades e relações sociais, constroem ou constituem tais realidades. Assim, discurso é um conceito que possui variadas definições e funções, porém em todas estas funções, discurso caracteriza-se pelo uso da palavra para se chegar a um determinado objetivo.

23

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 21-24. 24

Por sua vez, Eni Orlandi24 afirma que discurso é a capacidade do homem de significar e significar-se sobre determinada situação. O discurso é a linguagem necessária entre o homem e a realidade natural e social em que faz parte. O discurso é o movimento desta relação. ―E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim a palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando‖.25 Para Orlandi o discurso é um objeto sócio-histórico no qual o lingüístico intervém como pressuposto, sendo indissociável do conceito de discursos questões de língua e ideologia. Para se trabalhar com discurso, é necessário compreender a língua não somente como estrutura, mas também como acontecimento. Thomas Reese26 afirma que, à sua época, Paulo VI passava muito de seu tempo examinando documentos escritos e muitos relatórios da Cúria Romana. Já João Paulo II gostava de tomar conhecimento verbal de tais documentos e relatórios, se interando com diversas pessoas. Não seria exagero afirmar que tal fato pode ser indício de uma inclinação pessoal de João Paulo II pelo discurso e a tradição oral. Reboul 27 defende que um discurso de um orador é diferente de um texto, pois, segundo o autor, ―ninguém fala ‗como livro‘, mas como gente‖. Para ele o discurso oral deve ser mais lento que uma leitura, pois o auditório não pode perder o fio da meada. O discurso oral deve procurar ser redundante e a linguagem não é exatamente a mesma escrita, pois exige frases mais curtas, expressões familiares e concretas, etc. As figuras, defende o autor, pesam nestas condições, pois para melhor articular um discurso oral pode-se, por exemplo, usar ―pra‖ em vez de ―para‖. Em correspondência com a idéia inicial do parágrafo, Reese defende que ―experiências diferentes e personalidades diferentes resultaram em papas com estilos administrativos diferentes‖. 28 Parece que esta tendência de João Paulo II pende em direção ao viés político na medida em que

24

ORLANDI, Eni Puccinelli, Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, Pontes. 2003. Ibid. p.15 26 REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. p.258 27 REBOUL, Olivier. Introdução... p.69 28 Ibid. p.241 25 25

sua inclinação pessoal por discursos e tradição oral permeiam não só externamente ao Vaticano, mas também internamente entre o pontífice e seus imediatos. Patrick Michel29 também vai por esse viés político ao afirmar que o papado de João Paulo II foi extremamente político, pois ele foi o último papa em condições de dar crédito a ICAR justamente pelo uso do político. As considerações de ambos os autores não atendem, certamente, a todos os aspectos episcopais e políticos no período deste papado, porém podem ser considerados como indicadores de que o fator político se fez presente nos anos deste papa eslavo a frente da milenar instituição Igreja Católica Apostólica Romana. A noção de discurso, além de ser imprescindível passar pela idéia da ―palavra‖, também parte do pressuposto de que é uma construção social assim como a construção retórica. É a partir desta visão de discurso como prática social que esta dissertação foi desenvolvida. Fairclough30 afirma que o discurso vai além das palavras, reflete uma situação social, engloba pessoas e situações. Daí a sua afirmação que ―a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para transformá-la‖. Ele exemplifica que as identidades de professores e alunos, e também as relações entre estas identidades que estão localizadas no centro de um sistema de educação, estão sujeitas à ―consistência e a durabilidade de padrões de fala no interior e no exterior dessas relações de produção‖. Ele conclui dizendo que a ―constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de idéias na cabeça das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sóciomateriais, concretas, orientando-se para elas‖. Como afirma o título deste capítulo, pretendemos mostrar especificamente os efeitos do discurso político na retórica religiosa. Patrick Charaudeau31 apresenta uma excelente reflexão acerca da natureza, procedimentos, regras e funções do discurso 29

LUNEAU, René e MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 30 FAIRCLOUGH, Norman. Discurso... p. 92-93 31 CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo, Contexto. 2006. 26

político como processo de influência social. Ele trabalha com a questão da ―construção de identidades‖ como sendo ―instâncias‖ do contrato de comunicação do discurso político. Assim, as condições e estratégias de persuasão estão diretamente ligadas à constituição de identidades que se revelam como máscaras; o discurso político articula-se entre as dimensões psico-sociológicas, como a identidade, e os papéis sociais dos interlocutores, suas relações sociais e os objetivos, com as dimensões propriamente lingüísticas que o caracterizam. A reflexão de Charaudeau sobre o discurso político parte do pressuposto que a política é um jogo de máscaras, um jogo de ser e parecer em que supostamente a pessoa não é enganada. A máscara é o símbolo da identificação, segundo o autor, que faz com que as pessoas confundam o ser e o parecer, pessoa e personagem. A identidade, portanto, torna-se a imagem co-construída, resultante deste jogo de máscaras. Como conseqüência deste jogo de imagens, o discurso político fornece assim algo que é de fato dito, mas também oferece algo ―não-dito‖, porém um ―nãodito‖ que também diz. Descomplicando esta idéia de dito e ―não-dito‖, Charaudeau defende que mesmo algo que não se diz ou um momento de silêncio no meio de um discurso, por exemplo, também tem algo a expor mesmo que não seja necessariamente citado. O fato de você omitir palavras também passa uma mensagem. Assim, o autor conclui que o discurso político diz e não diz ao mesmo tempo e este não-dito também exprime posições e conceitos que podem ter o mesmo valor (ou até mais) do que uma palavra propriamente dita. O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da letra, numa transparência ingênua, mas como resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é soberano.32

Charaudeau sustenta que a natureza do discurso político provém do binômio: linguagem e ação. Este discurso funcionaria então como sendo um fenômeno oriundo 32

Ibid. p. 08 27

da relação entre uma verdade do dizer e uma verdade do fazer, algo parecido como uma verdade da ação, como por exemplo, uma palavra de decisão, e uma verdade da discussão, que pode se mostrar através de uma palavra de persuasão ou sedução. Assim, o autor expõe um duplo fundamento do discurso político: uma mistura entre a palavra que deve fundar o político (discursos de idéias) e aquela que deve gerar a política (discursos de poder). Nesse sentido ele ressalta a relevância do afeto na persuasão e faz um adendo ao ―mentir verdadeiro‖, pois para ele todo político sabe que lhe é impossível dizer tudo em todo momento. Aqui o conceito de discurso de Charaudeau se alia à idéia de verossímil de Reboul quando há um acordo prévio entre as partes, e uma confiança é presumida. Charaudeau ainda toma emprestado da retórica um dos termos-chave de sua análise: o ethos, a construção da imagem de si. Para ele o discurso político deve ser assim definido: ―uma forma de organização da linguagem em seu uso e em seus efeitos psicológicos e sociais, no interior de determinado campo de práticas‖. 33 De acordo com sua abordagem, é no encontro com o diferente (outro) que as identidades e recursos sociais são ou não utilizados e que o discurso se constrói de uma forma ou de outra. Isso somente se constitui a partir de um processo dinâmico de interação social no qual a natureza do próprio intercâmbio e do discurso a ser produzido vão sendo continuamente modificados. Conclui que o discurso político está diretamente relacionado à vida social como governo e discussão, é lugar de engajamento do sujeito, de justificar sua posição ou de influenciar o outro. O discurso, principalmente o discurso político, segue – à sua medida – os preceitos da retórica. O objetivo é persuadir, convencer, aderir o ouvinte à sua idéia ou ―verdade‖. O discurso é uma prática há muito tempo presente na ICAR e no cristianismo desde seu início, senão o que dizer das homilias, dos evangelhos e das epístolas apostólicas, por exemplo. Portanto, a prática discursiva é um objeto de grande interesse dos membros da ICAR e pretendemos mostrar que se faz presente e relevante no jogo político internacional, muito além das portas da Igreja.

33

Ibid. p.32 28

1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico A retórica religiosa católica não seria possível sem a construção simbólica que lhe envolve.

1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico

Conforme foi abordado nas páginas anteriores, retórica e discurso caminham lado a lado. ―Retórica é a arte de persuadir pelo discurso‖.34 Assim, podese afirmar que discurso é um elemento usado na retórica e ambos os conceitos são claramente construções sociais. Eles produzem reações em grupos determinados de pessoas que aderem ou não à idéia do orador. Se tratando de retórica, tomaremos emprestado alguns conceitos de Halliday. O primeiro deles é que o emissor da mensagem é chamado de retor; o fato que gera a prática persuasiva é chamado de situação retórica; ato retórico é a alocução do orador. Quando nos referimos ao discurso político ou ao papel político de algum sacerdote, utilizaremos o conceito de Patrick Charaudeau. Buscaremos nos aproximarmos ao máximo da sua definição de discurso pensando nesta construção social como um ato de comunicação, vez que as construções retóricas da ICAR fizeram parte do objeto de estudo da pesquisa que resultou nesta dissertação. Para Charaudeau35, um ato de comunicação pode influenciar opiniões, induzir a rejeições ou até mesmo a consensos. Este é um ato que se utiliza do simbólico e imaginário, ritualizado, que constrói imagens de atores e se utiliza de estratégia de sedução e persuasão. Ele afirma que o discurso ―resulta de aglomerações que estruturam parcialmente a ação política‖ e exemplifica estas situações citando comícios, debates, apresentação de slogans, reuniões, ajuntamentos, marchas, 34 35

REBOUL, Olivier. Introdução... p.XIV CHARAUDEAU, Patrick. Discurso... p.40 29

cerimônias, declarações televisivas como exemplos. Para ele, esta prática faz com que sejam construídos ―imaginários de filiação comunitária‖, porém em nome de um comportamento comum, ritualizado até certo ponto, e não em função um sistema de pensamento, mesmo que um meio perpasse o outro. Charaudeau mostra que ―o discurso político dedica-se a construir imagens de atores e a usar estratégias de persuasão e sedução, empregando diversos procedimentos retóricos‖. É por meio da construção de imagens dos atores envolvidos em um discurso, seja para seduzir ou persuadir, que o discurso político mostra uma lógica de valores relativos não ao verdadeiro, mas ao preferível. Neste contexto, as premissas são proposições na maioria das vezes aceitas e, conseqüentemente, pertencentes ao âmbito do verossímil, plausível, mutável, contingente, questionável – algo muito semelhante, para não se dizer igual, à retórica. Ou seja, o discurso político se utiliza das impressões, aparências e ambigüidades com o objetivo de convencer e persuadir. Nesta perspectiva, o auditório não se importa com as provas de demonstrações lógico-dedutivas, mas sim nas provas argumentativas que consentem em distinguir o melhor ponto de vista. Sendo assim, a coerção fica fora de questão, pois este sistema permite ao auditório um aparente poder de decisão e participação. Pierre Bourdieu36 desenvolve sistemas de disposições sociais de diversos grupos e classes através da língua. Situações rotineiras de interação lingüística dentro de um determinado grupo são reflexos de situações sociais; a religião se encontra neste meio também. Para ele, se existem funções sociais na religião, é porque os leigos não esperam dela justificativas para amenizar o sofrimento, a doença ou o abandono, mas esperam também justificativas de sua posição na estrutura social. Bebendo em Max Weber, Bourdieu afirma que sociologicamente a mensagem religiosa mais eficaz para um determinado grupo social é aquela que dá justificativa ao leigo de existir enquanto ocupante de uma determinada posição social. A harmonia

36

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98 30

existente na mensagem religiosa que consegue se impor e não contradizer com os interesses políticos de certa camada social é oriunda da visão sociológica da religião. Ainda segundo Bourdieu, a concorrência pelo poder religioso consiste na busca do monopólio, legitimidade e imposição de bases e práticas duradouras na visão de mundo do leigo. Ou seja, na criação de um habitus religioso. A forma dessas interações entre os protagonistas e os leigos depende dos interesses e da autoridade religiosa de cada um: a posição na divisão do trabalho, capacidade de manipulação e a posição do dominador na estrutura objetiva de tais relações. A diferença entre os agentes criadores do habitus, os profetas e a Igreja, se dá na burocracia, não existente no trabalho do Profeta e abundante na Igreja, imersa em uma forma institucionalizada. Entretanto, a profecia não tem poder para modificar, de modo duradouro, a conduta de vida e visão do leigo. A força de cada agente nesta busca pelo monopólio dependeria da autoridade conquistada no decorrer desta luta. Legitimidade religiosa é o resultado de lutas passadas por esse monopólio. Por isso, enquanto o profeta precisa provar a todo instante suas capacidades, o sacerdote possui uma autoridade de função que o dispensa de tal provação. Em caso de fracasso, o feiticeiro pode ser morto, já o sacerdote possui meios de escapar, como culpar seu deus ou os próprios fiéis. Sendo assim, aqui ganha sentido a expressão de Weber reinterpretada por Bourdieu que a história dos deuses segue a flutuação da história de seus servidores. Desde que este objeto de estudos tornou-se a religião oficial do Império Romano, a Igreja Cristã organizou-se institucionalmente na sua forma católica, apostólica e romana. Graças à sua expansão e apoio político, o cristianismo foi durante séculos a religião hegemônica do Ocidente. No decorrer de sua história, a ICAR teve períodos de quedas e ascensões. Na Idade Média conquistou e manteve um enorme poder espiritual e político. Seu poder econômico era grande, não só por causa de suas propriedades, mas porque influenciava também as decisões políticas dos reinos e até interferia na confecção de leis. Conseqüentemente, ela possuía grande poder político e jurídico. Talvez o poder mais importante dentre estes fosse o 31

poder social e cultural, pois era a Igreja quem estabelecia padrões de comportamento moral para a sociedade. Atualmente, nem de longe o poder político e cultural da Igreja é o mesmo. Devido à separação Igreja e Estado e a abundante acepção de Estados laicos em sua maioria, hoje ela não influencia decisões políticas, jurídicas, nem econômicas. E muito menos estabelece ou normatiza o comportamento da sociedade. Porém, seria leviano da nossa parte afirmar que, mesmo não sendo mais o que era, a ICAR não possua certa legitimidade e prestígio social. O capital simbólico adquirido – em resumo, bagagem adquirida - ao longo de sua existência como instituição a legitima em diversas situações. O poder religioso é fruto da transação entre agentes religiosos e leigos, derivado da força simbólica de seus atos nas diferentes categorias de leigos. Bourdieu37 afirma ainda que ―as produções simbólicas devem suas propriedades mais específicas às condições sociais de sua produção e, mais precisamente, à posição do produtor no campo de produção‖. Ora, se a ICAR não possui mais o mesmo poder de outrora, ela não ocupa o mesmo status hegemônico na produção do simbólico. Porém, é possível afirmar o quanto ela é habilidosa na reprodução de seu capital simbólico adquirido. É claro que não falamos aqui de uma instituição qualquer, mas sim de uma instituição duradoura de quase 2000 anos de história, talvez a maior que já existiu nesta forma institucionalizada, que perdurou por tanto tempo. Reinterpretando Weber, Bourdieu38 afirma que o sacerdócio estabelece o que tem e o que não tem valor sagrado, criando um sistema de defesa através de dogmas e doutrinas discriminatórias. Quando o conteúdo da tradição encontra-se ameaçado, aumenta-se a produção (ou reprodução) de escritos canônicos. A concorrência com o feiticeiro, ou com outras forças religiosas e não religiosas em tempos de pluralismo religioso, impõe ao corpo sacerdotal a necessidade de ritualização da prática religiosa, como culto aos santos, por exemplo. Ou seja, a Igreja possui capital simbólico para lutar pelo seu lugar no campo religioso buscando deixar sempre 37

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP, 1996. p.133 38 Idem. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98 32

presente e atual suas doutrinas bebendo em dogmas e preceitos antigos.

Vale

ressaltar que, para Bourdieu, a Igreja só existe quando se monta um corpo de profissionais distintos do mundo e burocraticamente organizados. Neste caso, o carisma se desvincula da pessoa e passa a fazer parte da instituição, da função e do lugar ocupado por esta pessoa na instituição; é o carisma de função. Deste modo, a Igreja é completamente contra o carisma pessoal, transformando esse carisma numa pratica cotidiana. Bourdieu39 também afirma em outro texto que a ciência do discurso deve levar em conta as condições da formação da comunicação, pois a condição de recepção está ligada a condição de produção; novamente pode-se remeter à teoria retórica e sua idéia de um acordo prévio entre as partes. A produção seria conduzida pela estrutura do mercado, ou seja, pela autoridade lingüística dotada de tal poder de construção. Para ele, esse poder é simbolizado pelo spektron, que remete à condição de uma palavra que merece ser acreditada, obedecida. ―O porta-voz é um impostor provido do cetro (skeptron)‖. 40 ―(...) o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do grupo que existe somente por esta procuração. Grupo feito homem, ele personifica uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, ‗como um único homem‘. Em contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de ‗se tomar pelo‘ grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele ‗se entrega de corpo e alma‘, dando assim um corpo biológico a um corpo constituído. Status est magistrus, ‗o Estado sou eu‘.‖ 41

Tratando especificamente de linguagem religiosa, Bourdieu afirma ainda que a linguagem ritual pode não funcionar se as condições sociais de produção dos emissores e dos receptores legítimos não forem garantidas, e que essa linguagem se 39

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP, 1996. p.83 40 Ibid. p.89 41 Ibid. p.83 33

desconserta na medida em que o conjunto dos mecanismos que lhe asseguram o funcionamento e as reproduções do campo religioso cessam de funcionar. ―O poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz cujas palavras (...) constituem no máximo um testemunho, um testemunho entre outros da garantia de delegação de que ele está investido‖.42 Para Bourdieu o porta-voz age em nome do grupo, com o capital do grupo, não com o seu capital simbólico pessoal. Caminhando por esta linha de raciocínio e oriundo de uma visão política do discurso, a legitimação da retórica religiosa está no fato de que ele não precisa ser necessariamente compreendido, mas reconhecido. Bourdieu registra que o ―porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador‖. 43 Acompanhando Bourdieu, podemos perguntar: Quem é o legítimo porta-voz da ICAR? Ora, o reconhecimento de um determinado discurso só é possível quando ele é feito pela pessoa autorizada, conhecida e reconhecida por suas habilidades, aptas à classe de discurso em questão, em uma situação legítima, enunciado da forma legítima. Por isso mesmo, no caso da ICAR, podemos pensar em pessoas autorizadas, no plural, até porque o capital simbólico adquirido pela instituição ao longo de sua existência permite que tanto o Papa como um Cardeal ou até mesmo um Bispo possam ter legitimidade para enunciarem atos retóricos, principalmente diante de seus fiéis, ou até mesmo de ―carona‖ na própria instituição, na medida em que falam ―em nome‖ desta instituição. Assim, partindo do pressuposto de que a ICAR possui diversos porta-vozes distintos, ela está sujeita a seus porta-vozes enunciarem sobre uma mesma questão pontos de vista distintos, dependendo, é claro, da situação retórica em questão. Tal fato pode contribuir decisivamente para a aceitação ou não de um discurso. Se para Bourdieu basta que um discurso seja reconhecido como legítimo e não 42 43

Ibid. p.87 Ibid. p.89 34

necessariamente compreendido, o que dizer quando retores legítimos de uma mesma instituição enunciam discursos distintos e praticam diferentes atos retóricos sobre uma mesma situação retórica? Isto pode contribuir facilmente para a perda de credibilidade e legitimidade da instituição. Porém, quando retores distintos produzem atos retóricos similares sobre uma mesma situação retórica pode também contribuir para uma mais fácil aceitação da situação retórica em questão. Essa questão reapareceu nas posições anunciadas em público por vários atores (bispos e cardeais) quando deu-se a discussão pública dos casos de pedofilia na ICAR em vários lugares do mundo. Somente em curto prazo o Papa está conseguindo articular uma só fala da instituição sobre tão delicado tema. Thomas Reese44 afirma que na Santa Sé é feito o máximo para se evitar que surjam discursos distintos sobre uma mesma questão. O Vaticano é uma instituição burocrática, subdivida em diversas áreas as quais estão sob a batuta do pontífice. Pela dimensão desta instituição, tanto internamente como externamente, é inevitável que visões distintas apareçam. Assim, afirma Reese: Segundo o Cardeal Cassidy, se dois prefeitos [de Congregações Distintas] não podem concordar, ―o certo seria nos dirigirmos ao Santo Padre. Mas em geral chegamos a um acordo. Estamos todos trabalhando para o mesmo chefe, e por isso precisamos encontrar uma maneira de podermos dizer as coisas juntos. A Santa Sé não pode falar com três ou quatro vozes. Ela tem de falar com uma voz, e por isso tem de ser elaborada. Em geral, isso requer tempo, mas acaba se chegando a uma decisão, a um arranjo com que todos podem finalmente concordar.‖45

Fica claro um esforço interno para que o discurso seja unívoco e, pode-se afirmar também, que para isso o carisma pessoal é sufocado de forma exemplar. Para que um discurso surja em nome de uma instituição é necessário que o porta-voz dotado do cetro fale em nome da instituição, não em nome dele próprio. Porém, nem sempre é assim. Exemplos de situações onde o discurso não é unívoco também existem e, não é exagero dizer, em abundância. Existe um ilustre exemplo onde o 44 45

REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. Ibid. p.194-195 35

discurso não é unívoco. O atual Papa Bento XVI, quando era membro do Colégio Cardinalício e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e conhecido apenas como Cardeal Ratzinger, protagonizou junto de outro colega cardeal também alemão, chamado Walter Kasper, um debate público acerca de assuntos internos da própria Igreja. O debate Ratzinger x Kasper, como ficou conhecido, se iniciou em um artigo de Joseph Ratzinger no qual ele reinterpreta um trecho da encíclica 46 Lumem gentium buscando enfatizar a unidade da Igreja em Roma, indo ao encontro da idéia de Kasper sobre mais autonomia das igrejas locais. Tal debate tornou-se público expondo opiniões distintas sobre uma mesma questão. Schickendantz47 afirma que ―o debate não carece de más interpretações recíprocas‖. Porém, a meu ver, expor um conflito doutrinal interno em um debate com dois porta-vozes com igual legitimidade perante a instituição e seus fiéis, não parece ser benéfico tanto para a imagem, como a unidade e integridade da instituição. Existem alguns autores que não partilham desta visão negativa do fato em questão. MacDonnell, citado por Schickendantz48, afirma que um debate público deste nível pode ser um sinal de ―grande esperança‖ devido ao teor desta discussão. Não cabe à proposta deste trabalho analisar se esta opinião de MacDonnell é uma construção retórica ou não para deslocar o foco do teor do debate para a função do debate, mas uma instituição na qual os porta-vozes não falem a mesma língua não parece ser coerente consigo mesma. Leonildo Campos, também a partir de Bourdieu, mostra em seu texto sobre a IURD que a igreja procura ser unida ao redor do bispo Macedo. Semelhante ao bispo primaz se reúne, por telefone ou vídeo conferência, para articularem em todas as partes do mundo o mesmo discurso falado e ritualizado.

Etimologicamente, encíclica foi empregada para designar ‗cartas circulares‘ enviadas pelos bispos a seus colegas de uma mesma região para assegurar a unidade doutrinal. A partir de Bento 14, em sua "Epistola Encyclica commonitoria ad omnes episcopos" (Carta circular de advertência a todos os bispos), de 03 de Dezembro de 1740, esse termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa, em forma de carta, a toda a Igreja Católica, aos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários (comuns) em paz e em comunhão com a Sé Apostólica. 47 SCHICKENDANTZ, Carlos. Cambio structural de la iglesia: como tarea y oportunidad. Córdoba, EDUCC. 2005. p. 115. Tradução livre. 48 Ibid. p.116 36 46

O pensamento de Bourdieu parece casar-se perfeitamente com a condição em que se encontra a ICAR no período do papado de João Paulo II. A Igreja encontra-se em um mundo adverso às suas ambições ou predestinações e sobrevive graças ao seu enraizamento cultural e graças também à sua bagagem adquirida ao longo de sua existência; sua posição episcopal e política já por natureza. Dificilmente, ou é quase impossível, uma instituição sobreviver sem burocracia. Por sua vez, dificilmente uma burocracia funcionaria sem política, pois os mecanismos de poder induzem à burocracia. Assim, atores que saibam como lidar com momentos políticos são de suma importância para a continuidade desta instituição. Talvez dentre estes atores a figura mais emblemática seja a do próprio papa. Portanto, saber como trabalhar politicamente seu capital simbólico, na qual em sua grande maioria fora adquirido através do caráter episcopal da instituição, é a grande chave para o entendimento, não só do papado de João Paulo II, mas também de seus antecessores e até mesmo de seus sucessores em tempos nos quais a religião não mais influencia tanto as pessoas como em outras épocas. Isso acontece tanto pelo processo de secularização como também por causa da competitividade própria do pluralismo religioso e cultural.

1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo

As igrejas cristãs experimentaram, com mais força desde a segunda metade do século XX, um período de forte presença da secularização e da concorrência da religião com outras religiões e ideologias secularizantes no campo dos bens simbólicos. Essa situação promove e se faz presente no discurso religioso e político quando ambos se mesclam refletindo condições sociológicas contemporâneas. Autores como Chaim Perelman e Patrick Charaudeau que trabalham com retórica e discurso político trouxeram novas perspectivas aos estudos retóricos argumentativos e abriram espaço para a análise da persuasão em diversos tipos de discurso, inclusive no religioso. 37

O retor que se utiliza deste recurso do discurso político e busca ter adesão de seus ouvintes, procura adequar-se ao auditório em questão. Em outras palavras, ele busca adaptar-se à situação retórica que pretende mudar, tentando amoldar-se aos juízos de valores reconhecidos pelo seu público. Como apoia os seus argumentos sobre esse conjunto reconhecido e partilhado de valores e paixões, ele constrói e modela o seu ethos (sua imagem) de acordo com as representações coletivas préexistentes. Nesta perspectiva de persuasão, seja ela uma construção retórica com características políticas ou religiosas, o retor parte daquilo que o auditório já admite, ou, quem sabe, parte daquilo que o auditório já reconhece como legítimo; o acordo prévio. Assim, ele estabelece uma relação entre o mundo de crenças já viventes deste auditório e entre o que ele busca apresentar ao público, pretendendo fazer com que o público acolha essa sua proposta. Ao realizar suas escolhas para a comunicação, o retor busca adaptar-se ao imaginário compartilhado e admitido por seu público. Se a construção deste imaginário e a construção do discurso empregado são reflexos das condições sociais da época, é necessário contextualizarmos o que acontece nos dias de hoje. Para tal, conceitos como secularização, pluralismo e desencantamento são de suma importância. É nítida que uma idéia de um processo de mudança social que vem ocorrendo no que denominamos de mundo moderno está presente nos trabalhos de importantes autores. Tal mudança se caracteriza principalmente pelo papel no qual a religião cristã desempenha. Falo aqui de religião cristã porque esta idéia de mudança se mostra em curso basicamente no Ocidente, local onde esta religião foi dominante e praticamente homogênea durante alguns séculos. Danielle Hervieu-Legér49 afirma que a modernidade de uma sociedade é necessariamente avaliada pelo papel da autonomia do sujeito, pela capacidade de determinar, em consciência, as orientações que este indivíduo almeja dar à sua própria vida em todos os aspectos da atividade humana. Porém, ao mesmo tempo, alude para que os indivíduos sujeitos possuam ―condições de definir, debatendo publicamente com outros indivíduos sujeitos (entre 49

HERVIEU-LÉGER, Danielle. O bispo, a Igreja e a modernidade in LUNEAU, René e MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p. 299 38

―cidadãos‖), as orientações da sociedade na qual vivem‖. Hervieu-Legér50 defende que esta sociedade é necessariamente diferenciada e pluralista, onde nenhuma instituição impõe ao coletivo dos indivíduos e do corpo social um código de sentido global. Ela conclui afirmando que ―o sentido da ação, individual e coletiva, não é recebido de cima, mas construído individual e coletivamente‖. Quando falamos de religião cristã nos referimos, em um primeiro momento, ao catolicismo medieval. Naquela época era a Igreja quem influenciava o dia-a-dia das sociedades. Ela estabelecia tudo, influenciando não somente os aspectos institucionais das organizações das sociedades, mas também, diretamente a vida das pessoas e o cotidiano. Porém, após longo e lento processo, a Igreja foi perdendo suas forças e poderes, ficando cada vez mais despojada de sua capacidade de influência social e política. Muito se deve também à Reforma protestante e ao iluminismo, assim como ao avanço da ciência moderna, mas neste trabalho não pretendemos nos aprofundarmos nessa linha de argumentação. O resultado desse processo de secularização pode ser facilmente notado no fato de que a religião não mais regula

a conduta do indivíduo. Antigamente, nas

chamadas sociedades tradicionais, a mística e a magia se expressavam num formato religioso impregnando todas as atividades daqueles indivíduos seja no âmbito social ou sobrenatural. Ao longo do tempo, as técnicas mágico-religiosas, que moldaram por grandes períodos o modo de vida desta sociedade, são substituídas por outras de caráter racional, de base científica em geral. Assim, a referência das grandes Igrejas (contextualizando novamente o Ocidente) não afirma mais a identidade coletiva. Inegavelmente a ciência, que até então era serva da própria teologia, passa a exercer grande influencia neste processo, pois ela é a responsável pelo desencantamento do inexplicável que a religião guardava. O fenômeno da secularização, ou como aparece em Weber ―desencantamento‖ do mundo, expressavam-se na modernidade, pois contribuíram para a avaria da referência especificamente religiosa na afirmação da identidade coletiva. Desta

50

Id. Ibid. 39

maneira, a secularização pode ser entendida como o declínio da influência que era exercida pela religião, falando aqui especificamente sobre grandes igrejas históricas. Outro aspecto importante a ser relembrado é a forma como a secularização afeta o funcionamento e o lugar do Estado. Até porque, desde o seu surgimento, o Estado passou a dividir o cenário com a religião. Ambos muitas vezes se identificavam de tal forma que acabavam por significar a mesma personagem, ficar centradas em uma mesma figura, porém, para o conceito de secularização ficar mais claro,

ela

implica

necessariamente

na

separação

de

Igreja

e

Estado.

Conseqüentemente, ocorre uma ruptura entre sociedade civil e sociedade religiosa, pois a instituição religiosa que antes era soberana no cotidiano da sociedade, chega ao ponto de não determinar mais a conduta do sujeito, abrindo assim uma lacuna para que este sujeito possa, a partir de então, adquirir uma autonomia e determinar sua própria conduta e destino. A Igreja era uma instituição hegemônica. Porém, no decorrer deste processo de secularização vinculado à modernidade, ela tornou-se uma instituição como as outras existentes. Esta condição de coadjuvante em que se encontra a Igreja não deve significar necessariamente que ela tenha perdido seu caráter. Mesmo sem controlar de forma absoluta o dia-a-dia das sociedades, ela ainda conserva seu capital simbólico, um reconhecimento social. Assim, quem não controla mais outras instituições, como o Estado, por exemplo, também não mais influencia a conduta das pessoas como em outros tempos. Assim, é possível pensar em secularização como a perda da capacidade de influenciar social e culturalmente. Sem a religião para impor ou regular as crenças das pessoas, elas passam a conduzir seu próprio rumo sem a influencia das instituições religiosas. Portanto, segundo Dario Paulo Barrera: Uma sociedade não secularizada seria aquela na qual a religião tem autoridade no plano do saber e na esfera dos valores. A secularização corresponde ao desenvolvimento e à autonomia das ciências, que forçaram as portas do saber teórico e minaram a autoridade social da religião. A escola pública, por exemplo, é

40

clara expressão de laicidade, embora no Brasil continue a discussão sobre o lugar da disciplina ―Ensino Religioso‖.51

Marcel Gauchet52 nos trouxe uma grande contribuição na compreensão das conseqüências políticas no processo de desencantamento do mundo. Ele defende a idéia de que o cristianismo foi a religião para a ―saída da religião‖ e que no processo de construção do mundo moderno, a religião cristã, a qual era a principal influência nas sociedades, foi perdendo sua capacidade de influência social. Para ele, o conceito de secularização alude principalmente ao papel do cristianismo no mundo ocidental. São a partir destas concepções da sua leitura de secularização que Gauchet desenvolve sua idéia. Em sua reflexão Gauchet argumenta que todo o desenvolvimento que acontece na religião é somente aparente, pois distorce e leva a um distanciamento do caráter religioso original; para ele, somente a ―religião ancestral‖ era verdadeiramente estruturadora do mundo. Assim, todo desenvolvimento no campo da religião significa perda de suas raízes e não aprofundamento. Pensando nesta religião primeira, ele afirma que religião é a forma que o homem encontrou para alienar de si mesmo a responsabilidade de transformar o mundo. A essa condição do ser humano Gauchet chamou de heteronomia. Para ele as religiões mais próximas das originais, são aquelas que são denominadas ―primitivas‖, estas formas de religiosidade possuem um alto grau de heteronomia. Já nas religiões monoteístas, esta condição de heteronomia ocupa um estágio inferior. Nas religiões primitivas, entre o mundo divino e o mundo humano não existe nenhuma ruptura que separe estes dois mundos. Já esta condição de hibridismo entre o humano e o divino não se apresenta nos monoteísmos, principalmente no cristianismo. No cristianismo, o fato da encarnação de Deus se apresentar na pessoa do Cristo trás a subjetivação do ato religioso. Gauchet explana que, se antes as relações 51

BARRERA, Paulo. Pluralismo Religioso e Secularização: Pentecostais na periferia da cidade de São Bernardo do Campo no Brasil. Revista de Estudos da Religião, Março 2010, p.55. 52 GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2005. 41

entre as sociedades e ser o divino se davam por meio de mediações externas, isto é, o controle da sociedade vinha de um mundo divino em direção ao mundo dos homens. Porém, no cristianismo esta mediação entre o homem e o sagrado passou a ser vista a partir do interno, pois é o sacerdote que entra em contato com o mundo do além. Esta circunstancia de interiorização da religião, do homem em contato com o divino, fez com que surgisse uma nova religião que auxiliasse o ser humano no seu contato com o divino. Na modernidade o ser humano passa a ter possibilidade de fazer sua escolha, de fazer parte dessa comunidade religiosa ou então de se colocar de fora dela; assim como é possível escolher não acreditar no sagrado neste contexto. Ora, quando o sujeito passa a ser quem escolhe seus próprios caminhos há, segundo Gauchet a passagem do mundo da heteronomia para o da autonomia. Nesse novo mundo, as regras da vida social não são mais ditadas pelo que é externo, mas pela própria consciência. Assim, vale a pena citar Gauchet quando afirma que: o cristianismo foi ―a religião da saída da religião.‖ No entanto, isso é a própria inversão da lógica organizadora da religião primitiva que permite ao homem a saída da religião. De manera mucho más amplia, más allá del mero capitalismo, la perspectiva adoptada conduce a reconocer la especificidad cristiana como um factor matricial y determinante en la génesis de las articulaciones que singularizan fundamentalmente nuestro universo, ya se trate de la relación con la naturaleza, de las formas del pensamiento, del modo de coexistencia de los seres, o de la organización política. Si pudo desarrollarse un orden humano en ruptura hasta ese punto con los precedentes, y en ruptura a causa de la inversión radical en todos los planos de la antigua heteronomia, es en las potencialidades dinámicas excepcionales del espíritu del cristianismo donde conviene situar su raíz primera. Éstas proporcionan un foco de coherencia que permite captar la duradera solidariedad esencial de fenómenos tan evidentemente poco ligados como el surgimiento de técnica y la marcha de la democracia. Así, el cristianismo habrá sido la religión de la salida de la religión. 53

53

Ibid. p.10 42

Ao mesmo tempo em que se opera esta mudança no panorama religioso oriundo dos efeitos da secularização ocorre outro processo interligado com o processo de secularização que Gauchet54 chama de ―desencantamento do mundo‖. Assim, esse autor se identifica com o conceito weberiano do termo, que atribui o desencantamento a eliminação da magia como técnica de salvação. Dessa forma observamos que esse conceito muda completamente a maneira de se compreender a relação entre o céu e a terra. A salvação não está mais no divino, não mais no céu; encontra-se, a partir de então, ao alcance das mãos humanas na própria terra. Assim, apesar de todas estas mudanças, os deuses sobreviveram na cidade moderna e com eles aqueles que neles crêem. Porém, seus poderes já não existem mais e nem possuem o mesmo alcance no âmbito da sociedade. Gauchet atribui este fenômeno ao fato de que a função destes deuses espaireceu-se nas engrenagens do tempo das civilizações. Os deuses ainda existem, porém suas funções, que outrora determinavam a conduta da sociedade, não sobreviveram neles mesmos. Talvez nos ―sucedamos de religião‖. Antonio Pierucci55 elabora uma hermenêutica do termo de ―desencantamento do mundo‖ oriundo da visão de Max Weber. Para Pierucci, refletir acerca deste conceito não é simplesmente estudar a religião ou as religiões. Aliás, para ele este conceito assume dimensões maiores do que lhe é próprio, tornando-se uma complexa análise de um conceito apropriado para o entendimento da sociedade ocidental e da própria modernidade. Nessa linha de pensamento de Pierucci o desencantamento do mundo atinge um nível de grande relevância para a compreensão do mundo ocidental dos últimos séculos. Pierucci56 afirma ainda que a origem do conceito que guia a obra de Weber se da no uso que se faz do conceito desencantamento do mundo. Assim, o autor identifica em toda obra de Max Weber 17 empregos desta expressão, usada com a intenção de: desmagificação; perda de sentido; desmagificação mais perda de sentido. 54

Ibid. p.10-11 PIERUCCI, Flávio. O Desencantamento do Mundo: Todos os Passos do Conceito em Max Weber, São Paulo, Editora 34, 2003. 56 Idem. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37. São Paulo, 1998. p.42 43 55

Weber ainda afirma, na leitura de Pierucci, que existe desencantamento do mundo tanto pela religião como pela ciência. Logo a mudança no panorama religioso é produto de vários outros processos similares, simultâneos e miscigenados, entre outros: secularização, modernidade e desencantamento. Pierucci reconhece que a magia representa o momento anterior à religião, quando uma sociedade submersa em um mundo cheio de espíritos capazes de influenciar, de maneira favorável ou não, a vida humana. Já a religião desmagificada, isto é, a religião sem influências mágicas, é a contraposição deste momento de magia. É a religião vista principalmente como doutrina. A partir de então a religião racionaliza esta magia que outrora encantava. É um momento de transição da magia para a religião, pano de fundo para entendimento do conceito de desencantamento do mundo. Portanto, continua Pierucci, esta passagem da magia para a religião ―corresponde termo a termo à travessia do império do tabu ao domínio do pecado (...) da coerção divina para o serviço divino; da chantagem e do conjuro para a súplica e a oração (...)‖.57 Pierucci discute ainda a idéia weberiana de que a religião é algo a ser vivida no extracotidiano, mas que se complementa no tempo e espaço cotidiano. A racionalização da religião cria conseqüências na conduta de vida de modo éticoascético, ela determina a conduta de vida racional na prática, no dia-a-dia das pessoas. Este é o aspecto que da religião ante as limitações da ciência, afirmando que a ciência possui ―essa sua incapacidade de nos salvar, de nos lavar a alma, de nos dizer o sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma não tendo em si, objetivamente, sentido algum‖.58 A magia torna-se, então, profecia. Ainda dentro desse raciocínio é possível afirmar que desencantamento do mundo não é simplesmente secularização ou racionalização do mundo. Para ele seria leviano confundir ou associar o desencantamento do mundo com secularização do mundo. Secularização implica um certo afastamento da religião, enquanto no conceito de Weber tal idéia não se resume a este fato. Para Weber, o 57 58

Idem. O Desencantamento... p.69-70. Ibid. p.158 44

desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um processo essencialmente religioso. Enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião contra a magia, sendo uma de suas manifestações mais recorrentes e eficazes a perseguição aos feiticeiros e bruxas levada a cabo por profetas e hierocratas, vale dizer, a repressão político-religiosa da magia (Thomas, 1985), a secularização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração social.59

Diante deste panorama, é possível concluir que as religiões conhecidas hoje em dia já não são as mesmas desde suas origens. Elas sobrevivem graças a seu enraizamento cultural, às possíveis respostas que possam ainda oferecer para questões como a morte, por exemplo, ou até mesmo como elemento de legitimação social ela pode se encaixar. Entretanto, não há mais condições que propicie um espaço na sociedade para a religião pelas suas funções de origem. É claro que, como Gauchet60 defende do ponto de vista da organização religiosa, não existe possibilidade de se dizer que conheçamos alguma sociedade primitiva. Para ele, é impossível conhecer esta sociedade inaugural. As sociedades que temos registro são já estruturadas e civilizadas e fazem parte da história que conhecemos. O surgimento do Estado é assim encarado por Gauchet: Desde este punto de vista, la emergencia del Estado aparece claramente como el acontecimiento mayor de la historia humana. No marca una etapa en un progreso continuo de diferenciación de las funciones sociales y de estratificación de los estatus. No representa tampoco un surgimiento inexplicable que viene a abolir por desventura un orden más natural y justo. Corresponde a un gigantesco cambio de las articulaciones constitutivas del estabelecimiento humano, a una transformación en el sentido estricto del término: todos los elementos del 59

Idem. Secularização em... GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2005. 45 60

dispositivo anterior se encuentran en el dispositivo siguiente, repartidos y ligados de otro modo.61

Paralelo ao surgimento do Estado há o aparecimento de uma nova forma de organização cosmológica, trazendo consigo o movimento ao mundo dos homens, que passa do imóvel ao dinâmico. Deuses que em outro momento eram soberanos passam a ser atingíveis e discutidos socialmente. Isso permitiu que surgisse vida paralela à religião ou até mesmo sem ela. O Estado passa então a desempenhar a função da religião e até a se assemelhar com ela em alguns momentos. Gauchet62 afirma, por exemplo, que a hierarquia é repetição em todos os níveis da relação social. A relação entre o visível e o invisível é o que determina o lugar do poder. Por isso, a religião ganha um concorrente à altura. Não seria o Estado totalitário uma expressão da divinização do aparato estatal? Conclusão Nos tempos atuais é inegável que a Igreja Católica encontre-se imersa em um ambiente desfavorável para seus ideais. Na modernidade, a autonomia do sujeito se caracterizou como uma nova maneira de o indivíduo guiar suas escolhas. Acrescido dos efeitos da secularização e da incapacidade de a religião determinar a conduta do individuo como em outras épocas, fica evidente que a Igreja não estrutura mais o cotidiano das sociedades nem determina o individualismo dos sujeitos, os quais decidem suas direções por conta própria. A magia que outrora determinava a conduta social também perde seu encanto, pois é sufocada pelo espaço em que as ciências passaram a ocupar. A própria condição de racionalidade do cristianismo também contribuiu para este desencantamento. A forma de organização do Estado e função que este passa a ocupar também corrobora para o papel que ocupa a religião. Embora as grandes igrejas não controlem este indivíduo e não ditem mais os contornos da sociedade, não significa que 61 62

Ibid. p.17 Ibid. p.55 46

necessariamente a religião desapareceu nos tempos modernos. As grandes igrejas sobrevivem, porém sem o mesmo peso de outrora. Autores como Bourdieu afirmam que eles sobrevivem graças ao capital simbólico adquirido ao longo de suas respectivas trajetórias e a sua bagagem. Não estamos mais em um mundo encantado de magia. O ―deus do trovão‖ tornou-se a descarga elétrica analisada e descoberta pelo cientista. Embora a ciência não explique tudo, ela tornou-se uma grande aliada da secularização. Se o mundo é desencantado, o papel da religião é necessariamente diferente. Como fazer-se ouvir em um ambiente em que não lhe é propício? Embora esta prática esteja presente há muitos anos na Igreja Católica, a prática discursiva sofreu as conseqüências dessas mudanças. Consequentemente a retórica tornou-se portadora de um importantíssimo papel no papado de João Paulo II (1979-2005). A análise retórica é uma disciplina antiga que sempre buscou analisar como persuadir seus ouvintes. Assim, por meio do discurso político, um ato retórico pode ser bem sucedido. João Paulo II, em muitos momentos foi o porta-voz de uma instituição burocrática e hierárquica, em que se torna possível perceber que o ambiente político permeia suas estruturas. Embora tente manter o discurso unívoco, a ICAR, às vezes, possui versões distintas de um mesmo fato. Ela possui porta-voz ou porta-vozes dependendo do caso onde deseje se pronunciar. Se o papa se apresentar em algum país como papa, ele é um líder religioso. Se ele se apresentar como bispo de Roma, a autoridade maior da Igreja é, ao mesmo tempo, um chefe de Estado.63 Independente de o contexto ser episcopal ou político, a prática retórica está presente. Dificilmente a imagem do bispo de Roma será desvinculada da imagem de papa, é praticamente impossível determinar em que momento o viés político se mescla com o viés religioso em situações semelhantes. São momentos como este os quais os porta-vozes buscam criar uma situação retórica que lhe seja favorável através de um ato retórico. Daí as dificuldades que cercaram a visita de João Paulo II a Cuba. Fidel Castro se propôs a recebê-lo como Chefe de

63

No próximo capítulo será mostrada a estrutura e organização do Vaticano. 47

Estado e não como líder religioso dado ao ateísmo militante do Estado cubano. Mas, na prática, nem sempre isso foi fácil de ser separado. Para que este ato retórico tenha efeito, o acordo prévio entre o orador e seu auditório tem que existir necessariamente. Entretanto, em outros momentos, devido a doutrinas ou dogmas muito antigos, frutos de construções sociais de outras épocas, este acordo entre o auditório e o orador parece não ocorrer. É aí que a capacidade política pode fazer a diferença a favor do Papa na elaboração de seu discurso e atividade retórica. Talvez para que consiga ser ouvida, a ICAR tem de buscar um novo papel além do episcopal, um novo ethos. Em um mundo aparentemente incompatível, o orador (a ICAR) e o seu auditório (o mundo) não parecem ter este acordo oriundo somente da fé, um novo viés de ligação entre eles se faz necessário. Nesse caso, a mídia tem se tornado o principal cenário onde a reconfiguração retórica da ICAR está ocorrendo e fez de João Paulo II o ―papa da mídia‖.

48

Capítulo II A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II

“João Paulo é o [papa] da perda do poder espiritual” Patrick Michel

Introdução Na análise do discurso do papa não podemos deixar de lado as questões políticas que envolvem a burocracia, a hierarquia e as lutas internas e externas que se empreendem no interior do todo campo religioso. Mary Douglas64 em seu livro Como as instituições pensam, trata da forma como as instituições fabricam para consumo próprio e externo uma visão de mundo, uma identidade. É preciso ir além e usar a imaginação sociológica para abordar como as instituições agem retoricamente para mudar a forma delas serem socialmente percebidas. Trata-se, segundo Halliday65, de verificar como por meio da retórica as multinacionais do Brasil se tornaram de organizações indesejáveis (persona non grata), em pessoas bem recebidas. A retórica é, nesse caso, uma forma de mudar percepções, e a Igreja se aproveitou muito bem disso, especialmente nas últimas quatro décadas do século XX, em especial após o pontificado de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Assim, neste capítulo iremos abordar o funcionamento interno do Vaticano, as relações entre seus funcionários e entre as autoridades, bem como seus reflexos na elaboração do discurso e da retórica da Santa Sé. Analisamos também como se dá a relação política e de que forma ela se 64 65

DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. Edusp, São Paulo. 1998 HALLIDAY, Tereza. A retórica das multinacionais. São Paulo, Summus, 1987. 49

faz presente no dia-a-dia desse Estado Soberano chefiado na figura do Papa. A diplomacia é uma extensão da política, porém em âmbito internacional. A tradição diplomática da Santa Sé também será tratado neste capítulo. A representatividade da figura do Papa será analisada, vez que autores como Thomas Reese defendem a idéia de que o papado é tanto uma instituição como um indivíduo. Em um segundo momento, abordamos a figura emblemática de João Paulo II, e veremos algumas peculiaridades de seu papado que, segundo Patrick Michel, é um dos Papas mais político da história do Vaticano. Pretendemos abordá-lo à luz das relações estabelecidas interna e externamente por este Papa. Tomando a queda do comunismo como o principal fato neste período, tentaremos mostrar como o fator político se apresentou e o quanto representou para João Paulo II.

2.1 – O viés político do Vaticano Por ser uma instituição, a burocracia está presente no funcionamento do Vaticano. E se existe burocracia, existem relações de hierarquia, poder e política. Se no plano interno esta questão é cotidiana, provavelmente acarreta em reflexos além dos muros da Cidade Estado do Vaticano. É necessária grande habilidade por parte da Cúria e membros da Igreja em relacionar esta condição com os princípios e dogmas católicos.

2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano A sobrevivência da religião em um contexto secular está atrelada ao seu capital simbólico, indubitavelmente. Porém, pode-se afirmar também que sua identificação com um papel diferente do religioso de outrora é outro aspecto que pode certamente corroborar para que a religião sobreviva. A secularização, que é comumente associada à separação e laicidade do Estado, dita os rumos da Igreja Católica nesse período.

50

O Vaticano é um Estado criado em 1929, oriundo do Tratado de Latrão, um pacto feito entre o reino da Itália e a Santa Sé, tendo em vista a criação de um Estado soberano que dotasse a ICAR de uma ampla presença política mundial. Assim, a Cidade do Vaticano é um estado eclesiástico, governado pelo Bispo de Roma, o Papa. A maior parte de seus funcionários públicos é formada de clérigos católicos. Segundo Thomas Reese66, ―Vaticano‖ é o antigo nome romano para uma colina e um terreno localizado a sua volta, onde se construiu a Basílica de São Pedro, o Palácio Apostólico e os Museus do Vaticano. Assim, o Estado da Cidade do Vaticano – sua denominação oficial – tomou para si o nome desta colina e suas redondezas. Reese67 afirma que o ―Vaticano mudou suas estruturas e procedimentos no decorrer do tempo‖, atribuindo essa mudança ―não apenas por causa dos diferentes papas, mas devido às mudanças no ambiente dentro do qual a Igreja operava‖. Hoje em dia, continua afirmando o autor, o próprio Vaticano não considera seu modelo de governo um exemplo para outras nações, este modo organizacional tem por finalidade ―proporcionar um território internacionalmente reconhecido onde a Santa Sé possa atuar em total liberdade, sem interferência política‖.68 O Vaticano é o território soberano da Santa Sé e o local de residência do pontífice. Durante o processo de unificação da Itália, no final do século XIX, os pequenos estados da península foram sendo absorvidos e, dentre estes, os Estados Pontifícios69. Neste processo, é oferecida uma indenização ao Papa Pio IX através do compromisso de mantê-lo como chefe do Estado do Vaticano. Porém, o Papa se recusou a aceitar esta situação e se considerou prisioneiro do poder laico. Esta questão de disputas entre o Estado e a Igreja só terminou em 1929 através do Tratado de Latrão, quando Pio XI aceita a condição anterior oferecida pelo reino da Itália, reconhecendo a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano, declarando um Estado soberano, neutro e inviolável.

66

REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. Ibid. p.17 68 Ibid. p.30 69 Estados Pontifícios eram um aglomerado de territórios, independentes, localizado no centro da península Itálica, sob a autoridade civil dos Papas. 51 67

Reese afirma que, além de incluírem durante séculos grandes partes da Itália, os Estados papais enfrentaram crise na ordem civil. O autor afirma que alguns papas tiveram êxito em proteger seu povo através de negociações ou armas. No ano de 452, o então Papa Leão Magno convenceu Átila, um huno, a não atacar Roma. No ano de 590, Gregório Magno tornou-se governante da Itália. Quando leigo, foi prefeito de Roma e, quando Papa, nomeou generais, remunerou soldados e negociou tratados; fez tudo isto sem que existissem os Estados Papais ainda. Pode-se notar que desde os primeiros séculos de sua história, a diplomacia, a construção retórica, a persuasão (como o exemplo de Leão Magno) sempre estiveram presentes e foram bem articuladas em seu uso pela Igreja Católica. E tal prática é presente em seu modo de gerir até os dias de hoje. A história nos mostra então que a Igreja participou com intensidade, ao longo dos séculos, da luta pelo poder temporal. Reese registra que: Durante onze séculos seguintes, os papas lutaram através da diplomacia e da guerra para manter ou reconquistar os Estados papais. Os nomes e as nacionalidades dos atores constantemente mudavam, mas a geopolítica permanecia constante. Como os Estados papais situavam-se no meio da Itália, os papas não queriam o mesmo poder controlando o norte e o sul da Itália. Quando um gigante tornava-se todo-poderoso na Itália, o papado sofria70.

Tecnicamente, o Estado da Cidade do Vaticano é uma monarquia eletiva. Pode-se dizer também que o Vaticano é uma autocracia, pois todos os poderes (executivo, legislativo e judiciário) são centrados na figura do Papa que não possui qualquer órgão que fiscalize seus atos como gestor. Por ser considerado sucessor do Apóstolo Pedro, o Papa não deve a prestação de contas a ninguém, pois é considerado o representante de Cristo na Terra. Reese71 defende que a Cidade do Vaticano proporciona ao papa uma base política independente ao mesmo tempo em que lhe fornece uma ―plataforma historicamente majestosa para eventos públicos‖. Logo o Vaticano é um lugar de ―trabalho ineficiente, servindo melhor como museu que como quartel-general da maior organização multinacional do mundo‖. Porém, continua o 70 71

Ibid. p.31 Ibid. p.39 52

autor, ―ainda assim consegue projetar certa imagem de mistério e tradição, consegue também transmitir uma imagem de uma instituição rica e arcaica‖, que chega a parecer de algum outro século longínquo. Reese também observa que o Vaticano possui suas próprias leis, porém por conveniência optou por seguir as leis italianas. Usa a lira italiana como moeda. Possui coleta de lixo, bombeiros, lojas e museus. Possui também correio, jardins, prédios, escritórios, uma estação ferroviária e uma força policial. Tem mais empregados do que cidadãos e é um dos poucos governos que consegue produzir lucro. Tais características nos levam a crer que o Vaticano é um Estado estruturado como a grande maioria. O que difere o Vaticano dos outros Estados é ser administrado por uma instituição religiosa. Ele possui sistemas legais de representação, é reconhecido no direito internacional mesmo sendo um estado confessional. Bobbio72 afirma que é ―impossível considerar a ligação entre o Estado e as confissões religiosas com o mesmo critério usado na análise dos vínculos entre os Estados‖. Portanto, a relação da religiosidade com um Estado assumiu uma característica peculiar ao Vaticano e a Santa Sé. O termo Sancta Sedes ou Sé Apostólica veio do latim e, do ponto de vista legal, é distinta do Vaticano, ou mais precisamente do Estado da Cidade do Vaticano. Ela é um instrumento de representação do governo central da Igreja, formado pela Cúria Romana e pelo Papa. Já o Vaticano, conseqüentemente, é o território sobre o qual a Santa Sé tem soberania. O atual Código de Direito Canônico73, quando trata da autoridade suprema da Igreja, dispõe: Com o nome de Sé Apostólica ou Santa Sé designam-se neste Código não só o Romano Pontífice, mas ainda, a não ser que por natureza das coisas ou do contexto outra coisa se deduza, a Secretaria de Estado, o Conselho para os negócios públicos da Igreja, e os demais Organismos da Cúria Romana. (Can. 361).

72

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, UNB. 1998. p.420 Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de Janeiro de 1983, pelo Papa João Paulo II, disponível em < http://www.vatican.va/archive/ESL0020/_INDEX.HTM >. Acessado em 15/05/2010. 53 73

A Santa Sé é o órgão que trata das relações internacionais do Vaticano. Os embaixadores estrangeiros não apresentam suas credenciais para a Cidade do Vaticano, mas sim para a Santa Sé. A Santa Sé possui uma secretaria própria para tais assuntos internacionais: a Secretaria de Estado. Segundo Reese74, a administração da Igreja em Roma é feita pelo papa e pela Cúria Romana. Para o autor, o termo Cúria Romana designava até a época de Pio X todos os escritórios papais. É uma burocracia que administra a instituição. O autor afirma ainda que ―devido ao seu tamanho relativamente pequeno e jurisdição ampla, alguns a consideram a burocracia mais eficiente do mundo‖. A Secretaria de Estado do Vaticano é o órgão que trata das relações internacionais. É ela a responsável por toda a parte diplomática além dos limites deste Estado. Segundo Reese75, originalmente a Secretaria de Estado era um escritório da Chancelaria Apostólica e tinha por função lidar com as correspondências secretas e diplomáticas. No papado de Leão X (1513-1521) foram criadas as funções de núncios apostólicos, diplomatas que reportavam a esta secretaria. Havia também o hábito de o Papa escolher como seu secretário um sobrinho ou um parente para a função de executivo-chefe, pois se pensava que a lealdade familiar o ligaria intimamente ao Papa. A partir do século XVII, o secretário de Estado, por hábito, passou a ser escolhido entre os cardeais. Isso significou que o cardeal incumbido desta função tornou-se o mais poderoso conselheiro papal, com capacidade de influenciar em questões políticas e religiosas. Os Papas também passaram a utilizar tais secretários em outras funções, levando o cardeal que ocupava o cargo a ser equivalente a um primeiro-ministro. Para Reese76, ―um dos instrumentos mais importantes de que dispõe [o Papa] para controlar a Cúria e tornar sua influência sentida por toda a Igreja e pelo mundo é a Secretaria de Estado‖. Ainda segundo o autor, devido ao seu papel dentro do Vaticano, nem todos os membros da Cúria gostam desta secretaria.

74

REESE, Thomas. O Vaticano... p.155 Ibid. p.157-158 76 Ibid. p.241 75

54

Como descreve um ex-funcionário do Vaticano, ―A Secretaria de Estado é o órgão que está entre o Papa e todos os outros. Vários funcionários da Secretaria consideram-se uma classe acima de todos os outros. Essa é uma atitude não facilmente aceita por todos os outros. Mas não se pode generalizar. Há muitas pessoas muito simples em seu contato, amáveis e com uma mente pastoralmente aberta. Há também muitos, talvez um número grande demais, que desejam se tornar núncios e se consideram dois pontos acima dos outros. Isto é humano.‖77

A Secretaria de Estado possui, nos dias de hoje, duas seções: a primeira seção que atua sobre as correspondências e documentos papais; a segunda seção que trata das relações com os Estados. Ainda para Reese78, às vezes a primeira seção é chamada de casos ordinários, enquanto que a segunda seção é chamada de casos extraordinários. A primeira seção funciona como a secretaria do Papa; qualquer documento ou correspondência que for expedida ou mesmo recebida pelo Papa, internamente ou externamente, passa por esta seção. Antes de tais documentos chegarem ao Papa, esta seção da secretaria pode levar a correspondência a outras repartições da Cúria. Esta seção é dividida em oito idiomas. Mesmo que o italiano seja o idioma cotidiano na Cúria, são necessárias outras línguas diferentes, pois correspondências chegam de diferentes partes do mundo. Para o autor, a maioria dos católicos do mundo é de língua espanhola, porém a maioria das pessoas usa o inglês nas correspondências internacionais. O autor afirma que ―milhares de cartas provêm de chefes de Estados, bispos, padres, leigos e malucos‖. Quando uma carta vem de algum governo, e é de caráter oficial, esta vai para a segunda seção. Esta seção equivale ao Ministério das Relações Exteriores da Santa Sé. Qualquer questão que chega e é relacionada com a política, vai para esta seção. Esta seção é organizada por países, semelhante às secretarias de Estados de muitos governos, inclusive em sua maioria os governos laicos. O que difere a Santa Sé dos outros governos é a dimensão desta segunda seção; por ser reduzida, um funcionário fica responsável por diversos países. Reese afirma que pensar que a primeira seção lida somente com questões religiosas e pastorais enquanto que a segunda seção 77 78

Ibid. p.242 Ibid. p.243-258 55

trabalha com questões políticas e diplomáticas é um erro. Ele afirma que ―para a Santa Sé, questões políticas importantes estão freqüentemente interligadas com questões religiosas‖. Devido a esta condição, a divisão da segunda seção, por países, segue não só as ―relações Igreja-Estado, mas também a vida interna da Igreja em seus países‖. Freqüentemente, as duas seções trabalham juntas nas comunicações com os governos. Tudo que for escrito e que possa ter alguma utilidade política, passa pela segunda seção. Assim, é contínua a interação entre as duas seções. Segundo Reese79, os pronunciamentos papais ao corpo diplomático, por exemplo, são oriundos da segunda seção. Já documentos para organizações internacionais podem ser de qualquer uma das duas. E as cartas credenciais para novos embaixadores provem da primeira seção. Em outros tempos, a Santa Sé teve que negociar com muitos governos sobre indicações de bispos. Essa questão era tratada na segunda seção. Portanto, tudo que envolve Igreja e Estado é por lá que passa. Um dado interessante de se relevar é que, segundo Reese80, como o Papa não pode escrever todos os documentos, cartas e pronunciamentos que são divulgados em seu nome, muitos destes são escritos na Cúria, em especial na Secretaria de Estado. O autor afirma que esta é uma antiga tradição na Secretaria, pois são capazes de ―entrar na mentalidade do Papa‖. Nesse sentido, os funcionários que escrevem estes discursos não são escritores, mas sim ghost writers81, na medida em que procuram ser fiéis ao pensamento do Pontífice. Nessa hierarquia, a Secretaria de Estado, como observa Reese82, é o segundo escalão no Vaticano. No século XX, praticamente todos os secretários que serviram à diplomacia da Santa Sé foram italianos, com exceção do cardeal francês Jean Villot (1969-1979). Os secretários de Estado em sua maioria concentraram-se mais em questões diplomáticas do que em questões internas, especialmente em épocas de 79

Ibid. p.246 Ibid. p.263 81 Ghost Writer é o nome dado à pessoa que, tendo escrito uma obra ou texto, não recebe os créditos de autoria, ficando estes com aquele que o contrata ou compra o seu trabalho. Neste caso da Santa Sé, o crédito é do seu superior. 82 Ibid. p.249 56 80

transtornos internacionais, afirma Reese. O autor exemplifica isso citando o cardeal Agostino Casaroli, que foi secretário das relações internacionais de Paulo VI e foi também quem arquitetou a política da Santa Sé com os governos dos países do Leste Europeu na década de 70, a Ostpolitik. Dentro da Igreja, muitos não acreditavam na permanência de Casaroli quando João Paulo II assumiu a função de Papa. Entretanto, impressionado com a competência do funcionário, o novo papa não só o manteve como secretário de Estado como também o nomeou cardeal. Quando este cardeal se aposentou no ano de 1990, João Paulo nomeou como secretário o cardeal Angelo Sodano, ―talvez tendo sido convencido por aqueles que defendiam a tese de que um papa não italiano precisava de um secretário de Estado italiano‖. 83 Sodano foi núncio apostólico no Chile entre 1978 e 1988, durante o regime militar de Pinochet. Nesta função, segundo Reese, ele ―desencorajou confrontações com o governo e supervisionou a indicação de bispos conservadores‖. Não se pode afirmar concretamente qual das qualidades impressionou mais João Paulo, se a não confrontação com governos ou as indicações de bispos conservadores, mas Sodano assumiu o segundo posto mais importante do Vaticano. Depois do secretário de Estado, o funcionário mais influente é o que preside a seção dos assuntos gerais (primeira seção), chamado de sostituto (substituto). Reese afirma que embora o sostituto seja somente arcebispo, ele é mais influente que a maioria dos cardeais. Alguns dentro da Cúria chegam a queixar-se do ―poder excessivo centralizado nesta função‖.84 Toda indicação e todo documento passa por este funcionário. Diante deste panorama, nota-se que dentro do Vaticano a relação entre funcionários e membros é política, hierárquica e de poder. Quanto mais próximo ao Papa, mais influência esta pessoa tem dentro da Cúria. Há uma relação política e diplomática interna, uma barganha aqui, outra acolá, sempre visando seu interesse nesta burocracia. O jogo de poder interno é constante nesta instituição. Sobre isso vale a pena continuar citando aqui Reese: 83 84

Ibid. p.250 Ibid, p.252 57

Como está ocupado tratando com os governos, o secretário das relações internacionais em geral não desafia a posição do sostituto, exceto em questões políticas e diplomáticas. A única pessoa que está em posição de desafiar o sostituto é o secretário particular do papa, que está em contato constante com o papa. Em muitos pontificados, o secretário pessoal do papa tem atuado como uma porta dos fundos para o papa que passa por cima do Secretário de Estado. Na melhor das hipóteses, há uma tensão produtiva entre os dois funcionários, mas em alguns pontificados eles tiveram discussões sérias.85

O secretário particular de João Paulo II Entre 1966 e 1978 foi o Monsenhor Stanislaw Dziwisz. Dziwisz foi capelão e secretário particular do então arcebispo da Cracóvia, Karol Wojtyła, o futuro João Paulo II. Desde a eleição deste pontífice, em outubro de 1978, até a sua morte, em abril de 2005, Dziwisz desenvolveu a função de secretário particular do Papa, tornando-se o seu mais direto e íntimo colaborador. Reese86 afirma que Dziwisz foi o secretário pessoal de um Papa mais poderoso da atualidade. Por acompanhar João Paulo desde quando era Karol Wojtyla e ser tão próximo ao Papa, os funcionários do Vaticano, incluindo o Secretário de Estado e o sostituto ―tratam-no com deferência‖, afirma Reese.

―Aqueles que desejam favores especiais‖ procuram o Monsenhor Dziwisz, relata um padre italiano. ―Percebem que pelos caminhos normais não vão conseguilos.‖ Por exemplo, a Opus Dei e os Legionários de Cristo queriam ter universidades eclesiásticas em Roma. Diziam que as outras universidades não eram suficientemente ortodoxas. Todas as outras universidades opuseram-se a elas, como também a Congregação para a Educação. ―Então, não se dirigiram à Secretaria de Estado, mas ao Monsenhor Dziwisz. No fim, foram aprovadas por decreto papal e a Congregação teve de assinar.‖87

85

Idem, p.252 Idem, p.256 87 Ibid. p.257 86

58

Fica claro, portanto, que o jogo de poder político dentro da instituição se dá em todos os níveis da hierarquia. Quanto mais alta, maiores as chances de se conseguir impor sua vontade. No caso exemplificado por Reese, o secretário pessoal do Papa foi uma porta dentro da instituição que passou por cima da hierarquia formal do Secretário de Estado e do sostituto. Nota-se que as relações internas são políticas e, desta forma, não poderia refletir fora do Vaticano de outra maneira. Sua própria essência burocrática e estatal exige que seja desta maneira a sua representatividade. Quando o nome da Igreja aparece relacionado a qualquer questão em qualquer lugar do mundo, é senso comum ligar tal questão à religião. Porém, a instituição é uma burocracia, com relações de poder e encontra-se imersa nas características deste meio. Sua essência é a religião, porém sua existência é política. É impossível separar onde começa uma característica e termina a outra. Max Weber88 trata em seus textos do processo de transferência do carisma pessoal para o espaço institucional que ele chama de ―carisma de função‖. A esse processo, Weber deu o nome de ―rotinização do carisma‖. No caso do papado, a função faz da pessoa de um cardeal, eleito Papa no Conclave, a agir, falar e sentir-se como a liderança apostólica que teria sido atribuída por Jesus Cristo ao apóstolo Pedro. Há, portanto, na figura do papa a ação do próprio Deus, de quem ele representa como vigário de Cristo na face da Terra. Ao mesmo tempo o Papa é Sumo Pontífice (palavra que vem de ponte, de mediação ou ligação) da Igreja de Cristo e a autoridade maior de um Estado soberano, filiado à ONU e que mantém relações diplomáticas com a maior parte das nações da Terra. Podemos analisar a dominação papal a partir dos tipos puros de dominação analisados por Weber. É claro que essa tipologia pura nem sempre está presente nas organizações, pois, o Papa exerce uma dominação tradicional, no qual a relação entre o dominador e os dominados é de ―senhor‖ e de ―súditos‖, relação santificada, regulada e fixada pelas tradições. Além da dominação tradicional, ele exerce a dominação carismática, definida por Weber em ―virtude de devoção afetiva 88

WEBER, Max, Os Três tipos de dominação legítima, in Sociologia: Grandes cientistas sociais(Cohn, Gabriel, org.) SP, Ática, 1982, p.128-141 59

à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória‖.89 Todavia, na qualidade de chefe de Estado e de uma organização multinacional, o Papa desenvolve um estilo de dominação burocrática. A dominação burocrática foi descrita por Weber como um estilo de dominação legal, pois há a existência de um estatuto que controla o funcionamento da Igreja. É a existência desse quadro administrativo, profissional, embora não-remunerado, com regras para o império, permanência e saída, com níveis de comando e de execução, existência de regras impessoais e racionais de regulamentação. Daí o fato de haver no interior de todo sistema burocrático tensões oriundas da forma carismática e tradicional de dominação. O Papa e o concílio vivem em tensões constantes, explorada por Janus 90, no livro coletivo de século XIX O papa e o concílio (reduzido, introduzido e comentado por Rui Barbosa). A retórica papal tem, portanto, profundas ligações com a forma da Igreja se organizar e de como se relacionar as camadas de poder dentro dela. Nesse caso, a política é aqui vista como tensões, conflitos, negociações entre as partes na tarefa de administrar uma determinada organização.

2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé

O Vaticano é uma máquina burocrática e diplomática, onde sua estrutura e funcionamento internos refletem nas suas atitudes externas. Não se pode negligenciar que, além de Igreja, o Vaticano é uma das mais antigas burocracias do mundo. A figura do Papa é imprescindível nesta instituição. Thomas Reese91 afirma que o papado é tanto uma instituição quanto um indivíduo e que o centro de poder da Igreja é sito na figura do papa. O Papa é o sucessor de São Pedro, Bispo de Roma, chefe do Colégio dos Bispos e chefe do Estado da Cidade do Vaticano. O autor afirma ainda 89

Ibid, p.134 JANUS. O Papa e o Concílio. (2 V.) Rio de Janeiro, Elos, 1877. 91 REESE, Thomas. O Vaticano... p.17 -21 60 90

que o pontífice é bispo de Roma devido a Decisão de Pedro de se estabelecer em Roma. O pontífice governa como Papa e como chefe do Colégio dos Bispos. Por se sediar em Roma, Itália, a primeira questão de política se dá no relacionamento com governos locais. Thomas Reese92 afirma que ―desde que vivem em Roma, os papas têm estado especialmente ligados à política local, às vezes governando a cidade e outras vezes ficando à mercê dos governantes de Roma‖. Ele ainda afirma que até surgir a Cidade Estado do Vaticano, os papas lutaram para manter os Estados Pontifícios, muitas vezes através da diplomacia ou da guerra. Completando seu raciocínio, o autor afirma que embora o Vaticano, através da Santa Sé, tenha de tratar com diversas nações questões de paz, direitos humanos e justiça, trata com o governo romano questões como o preço da água e energia elétrica. Mesmo que a Cidade do Vaticano propicie ao Papa um Estado Soberano, não é oriundo desta condição sua função de Papa, mas sim de ser o chefe do Colégio dos Bispos. Desde o Vaticano II, o papel dos bispos vai além das suas dioceses locais. Os bispos são responsáveis pela Igreja Universal também. Entretanto, Reese93 afirma que ―o colegiado é importante, mas o papa tem a última palavra e pode muitas vezes agir por conta própria‖. Para o autor, é arriscado demais um só homem guiar a Igreja, como também é complicado visões diferentes entrarem em conflito sobre o rumo da instituição. Daí o risco apontado também no livro de Janus, O Papa e o Concílio. Assim descreve Reese: O papel do Colégio dos Bispos na direção da Igreja universal é extremamente importante se as decisões tomadas no âmbito mais elevado foram responsáveis pela realidade das igrejas locais. Os bispos são responsáveis por toda a Igreja, não somente por suas igrejas locais. A História mostra que depender de um só homem para cuidar do bem-estar da Igreja, sem controle mútuo, é um negócio arriscado. Por outro lado, os desacordos públicos entre os bispos e o papa podem causar confusão e desordem na Igreja, e uma Igreja dividida tem mais dificuldade de sobrevier em um ambiente hostil.94

92

Ibid. p.28 Ibid. p.40 94 Ibid. p.41 93

61

Pode-se afirmar, então, que existe um conflito de interesses – locais e universais – no cerne da liderança católica. O viés político se mostra presente nos interesses do rumo da própria Igreja. Se não houver astúcia política entre o chefe dos bispos e os próprios bispos, o funcionamento desta máquina estaria seriamente comprometido. A política permeia tanto internamente, quanto externamente à Santa Sé. Reese95 explana a idéia de que desde o início os cristãos estariam envolvidos em conflitos com os líderes dos governos. Jesus foi executado pelo governador romano de Jerusalém, seus discípulos perseguidos por autoridades também romanas. Quando o catolicismo se tornou a religião oficial do império, houve uma mudança de perseguição do Estado para a liberdade da religião cristã oficializada. Porém, esta liberdade veio carregada de influência do Estado. Reis e imperadores competiam com líderes da Igreja pelo controle dela, do seu pessoal, crenças e, principalmente, propriedades. Assim, a figura do papado torna-se primordial na luta sobre quem controlaria a Igreja - líderes civis e líderes religiosos. Vale reafirmar que o autor sustenta que o próprio Vaticano não considera seu modelo de governo monárquico um modelo para as outras nações, porém seu propósito além de proporcionar um território internacionalmente reconhecido onde a Santa Sé possa atuar com total liberdade e sem interferência política, reforça o poder da figura do Papa. ―João Paulo II deseja pregar o Evangelho ao mundo e não permanecer no Vaticano com os documentos‖.96 Talvez desta sua concepção tenham surgidos os impulsos por viagens internacionais. Se o líder da instituição possui tal mentalidade, conseqüentemente o reflexo na atividade diplomática é inevitável. Para Bobbio97, a diplomacia caracteriza-se como ―a condução das relações internacionais através de negociações. O método através do qual estas relações são reguladas e mantidas por embaixadores e encarregados; o ofício ou a arte do diplomata". Assim, o objeto principal da diplomacia é o meio através do qual são conduzidas as negociações e não o conteúdo das negociações em si. Olhando para essa definição de Bobbio, em 95

Ibid. p.43 Ibid. p.264 97 BOBBIO, Norberto. Dicionário... p.348 96

62

paralelo ao conceito de Bourdieu que afirma ser importante a legitimidade do portavoz e não o conteúdo do discurso, a diplomacia pode ser, então, qualificada na condição de meio de persuasão, de uma prática retórica na qual envolvem elementos que caracterizam o ato retórico como uma ação diplomática. Bobbio98 ainda afirma que o desenvolvimento das atuais formas de diplomacia se deve, principalmente, a três fatores do século passado: maior consciência de cada Estado pertencer a uma comunidade de nações; a influência crescente da opinião pública; e o desenvolvimento das comunicações. O autor continua afirmando que no século XX, graças à revolução tecnológica, aos novos meios de comunicação, e ao surgimento de fatores decisivos nas relações internacionais, como a ideologia, por exemplo, as funções clássicas do diplomata voltaram-se para a criação do ―homem político‖. Uma conseqüência desta forma de administração papal é a grande importância que se dá à diplomacia. Reese99 registra queixa da Cúria contra o Papa pois ele não levaria o trabalho deles a sério, visto como mau administrador, pois como papa prestava mais atenção à questões externas, deixando de lado a administração interna a cargo dos burocratas do Vaticano. O autor afirma ainda que esse Papa preferia personalidades ―fortes e vigorosas, como ele‖. Tanto que os cardeais mais influentes no seu papado foram os que tinham personalidades fortes e defendiam energicamente suas posições, tanto que, o seu sucessor, Joseph Ratzinger, o atual Bento XVI, era um desses cardeais. A diplomacia foi um pilar no papado de João Paulo II, mas isto não significa que ela seja oriunda especificamente deste papado. Como foi citado anteriormente, a diplomacia sempre fez parte da Igreja e da Santa Sé. Desde os tempos medievais a sede episcopal de Roma tem sido reconhecida como uma entidade soberana. Em Constantinopla, a partir de 453, já havia representantes papais junto ao imperador. No século XI, o envio de representantes papais aos príncipes, em uma missão temporária ou permanente, tornou-se freqüente. Assim como no século XV tornou-se habitual os 98 99

Ibid. p.249 REESE, Thomas. O Vaticano... p.266 63

estados creditarem embaixadores residentes e permanentes em Roma para os representarem junto ao Papa. Porém, a Nunciatura Apostólica foi fundada apenas em 1500, em Veneza.100 Nos dias atuais, a Academia de Nunciatura101 é muito bem organizada e estruturada. Reese102 afirma que o curso de estudos na Academia em geral dura cerca de quatro anos. Dentre as matérias dos alunos estão: cursos de idiomas, direito internacional, história diplomática, diplomacia eclesiástica e redação diplomática. O curso nessa Academia não visa à obtenção de um diploma acadêmico, mas a vivência dos alunos a fim de que ―absorvam a cultura e a atmosfera do serviço diplomático do Vaticano‖. Depois de graduado, o aluno é enviado para trabalhar em alguma nunciatura como assistente. A promoção nesta carreira é por idade. Estas pessoas que entram nesta carreira vivenciam as relações de poder internas e externas ao Vaticano. Reese103 afirma que é importante trabalhar para um funcionário de destaque no Vaticano e que esta pessoa deve chamar a atenção de algum funcionário do alto escalão da instituição para ser promovida. O treinamento e a experiência internacional desses diplomatas os tornam muito influentes quando retornam ao Vaticano. Tendo trabalhado em diferentes países e culturas, têm um conhecimento direto das Igrejas locais e de seus países. Tendo trabalhado nas nunciaturas, estão ainda melhor capacitados para interpretar as informações que chegam das nunciaturas para Roma. Mudando de um lugar para o outro, também fizeram muitos amigos e contatos nas Igrejas locais, no serviço diplomático do Vaticano, na Secretaria de Estado e na Cúria. Esta rede informal de amigos e contatos, que tem início na academia, é uma fonte de informações essencial, necessária para conseguir que as coisas sejam feitas no Vaticano.104

O Vaticano possui uma cultura diplomática de longa data, portanto, a estrutura atual de formação de seus núncios é oriunda de uma longa tradição nesta área. No 100

Para conhecimento da história da diplomacia da Santa Sé ver em: LAJOLO, Giovanni. Nature & function of papal diplomacy. Institute of Southest Asian Estudies, Singapura. 2005 101 Núncio apostólico ou núncio papal é um representante diplomático permanente da Santa Sé que exerce a função de embaixador em um determinado país. 102 REESE, Thomas. O Vaticano... p.213 103 Ibid. p.215 104

Ibid. p.216

64

entanto, o frutífero período diplomático experimentado até a primeira metade do século XVII, entrou em declínio, talvez, após a Paz de Westfália105, em 1648. Após 1870, com a extinção dos Estados Pontifícios e a questão da perda de soberania territorial, seria suprida somente em 1929 com a criação do Estado do Vaticano. Todavia, nessa data os juristas estavam incertos sobre se a Santa Sé poderia continuar a funcionar como uma personalidade independente em assuntos internacionais, seria um caso de um Estado sem território algum. Com a Primeira Guerra Mundial e suas conseqüências, o número de países com relações diplomáticas com a Santa Sé aumentou. Pela primeira vez desde que foram quebradas as relações entre o Papa e a Inglaterra no século XVI, uma missão diplomática britânica foi enviada à Santa Sé naquele período. Desde então, ao invés de diminuir o número de diplomatas creditados junto da Santa Sé, este número passou de 16 em 1871 para 27 em 1929, antes mesmo da fundação do Estado da Cidade do Vaticano. No mesmo período, a Santa Sé concluiu um total de 29 concordatas e outros tipos de acordos com diversos Estados, incluindo o Império Austro-Húngaro, em 1881; Rússia em 1882 e 1907; e a França em 1886 e 1923. Duas destas concordatas foram registradas na Liga das Nações a pedido dos países envolvidos. O Tratado de Latrão de 1929 e da fundação da cidade do Vaticano não aumentou o número de Estados com os quais a Santa Sé mantinha relações oficiais. Isso veio depois, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial.106 A Segunda Guerra Mundial foi causa de muita polêmica com relação à diplomacia da Santa Sé, principalmente em relação à Alemanha. Existem muitas visões e versões divergentes sobre a postura do Vaticano no período da Guerra. O Papa nesta época era Pio XII e seu nome é freqüentemente citado em questões sobre o nazismo e o holocausto. Há muitos críticos da política da Santa Sé em relação ao extermínio de judeus, como também existem defensores. O relevante para esta pesquisa é o fato de que a Santa Sé mantinha relações diplomáticas com o Reich. 105

Paz de Westfália foi uma série de tratados que encerrou a Guerra dos Trinta Anos, além de reconhecer oficialmente as Províncias Unidas (atuais Países Baixos ou Holanda) e a Confederação Suíça. Marcou o fim das guerras entre protestantes e católicos na Europa. 106 LAJOLO, Giovanni. Nature… 65

Friedlander107 faz referencia à documentos que apontam para a existência de uma relação cordial entre o embaixador alemão em Roma e o Papa desde a época em que Eugenio Pacelli era cardeal. O embaixador a serviço de Hitler era Diego Von Bergen, o qual passou um longo período no Vaticano, onde teve contato com diversos membros da Cúria, inclusive com o cardeal Pacelli, que em 1939 se tornou o Papa Pio XII. Tal fato mostra que mesmo em um período polêmico e controverso, a diplomacia da Santa Sé funcionava normalmente. Quando Bergen não mais ocupou esta função, ele mesmo relata aos seus superiores alemães que a Cúria estava convencida de que ele permaneceria em Roma até o final da guerra e foi uma surpresa sua partida. Essa informalidade na relação entre o embaixador e o Papa é uma característica da Santa Sé, sendo até hoje explorada essa característica de cordialidade na formação dos núncios na Academia de Nunciatura. É possível então afirmar que a Santa Sé adquiriu ao longo da história um modus operandi que refletiu nas relações políticas visíveis tanto internas como externamente. Assim, o discurso e a palavra política estão presentes em todos os aspectos de seu funcionamento, não sendo algo novo, mas sim uma tradição desde tempos antigos.

2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial João Paulo II foi uma figura marcante no final do século XX. Ele possuía características e personalidade de retor, aquele que possui todas as condições ideais de falar em nome da ICAR. A queda do comunismo foi um divisor de águas em seu papado, marcando os novos rumos do cenário mundial na última década deste século.

2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II Atualmente, é inegável que o prestígio e a visibilidade da Igreja Católica particularmente na mídia, se devem em grande parte a João Paulo II. Karol Wojtyla 107

FRIEDLANDER, Saul. Pio XII e a Alemanha Nazi. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1967 66

se tornou Papa passando à mídia uma fisionomia carismática, sendo um dos rostos mais conhecidos do último século. Karol Josef Wojtyla nasceu em 7 de Maio de 1920. Perdeu a mãe e um irmão ainda jovem e foi criado somente pelo pai, quem também perdeu na adolescência. Wojtyla nasceu em uma cidadezinha polonesa chamada Vadovice. Nesta cidade, 20% da população era judia. Ali, Karol Wojtyla por estar presente, vivenciou o comportamento e a inculturação anti-semita por parte dos nazistas. Um fato interessante é que naquela cidade, judeus e católicos se misturavam com facilidade. Ora, desde os tempos apostólicos nenhum Pontífice Romano, o qual Wojtyla iria se tornar, tivera um contato tão estreito com a vida judaica. Wojtyla conhecia inclusive as festividades judaicas, chegando a assisti-las quando podia. Porém, este estreito relacionamento com judeus não era comum na Polônia: longe disto, havia na Polônia, assim como em outras partes da Europa, um anti-semitismo enraizado, que seria aproveitado pelo nazismo. Além do anti-semitismo, Karol Wojtyla também vivenciou o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando do início da Guerra, em setembro de 1939 a Cracóvia foi bombardeada, até porque os alemães tinham escolhido a Polônia como sua presa. Em 6 de Setembro daquele mesmo ano já haviam ocupado a cidade. Neste período, os nazistas ordenaram o trabalho compulsório para todos os adultos poloneses e todos os judeus acima de 12 anos de idade. Para os nazistas, os poloneses eram subumanos e tinham que se sentir como tal. A pressão nazista era intensa e qualquer pessoa que não tivesse um trabalho reconhecido pelas autoridades alemãs corria o risco de ser deportada para a Alemanha. Assim, Wojtyla foi obrigado a arrumar um trabalho. Ele se tornou trabalhador braçal na empresa química Solvay, em outubro de 1940. Karol tinha então 20 anos de idade. Este emprego lhe deu uma licença de trabalho, isentando-o de ser requisitado para as turmas de trabalho forçado pelos nazistas, além de lhe garantir um passe para se deslocar à noite, um salário, e maiores rações de alimentos, já que as operações da Solvay estavam relacionadas com o esforço de guerra. Em suma, este emprego lhe forneceu uma considerável proteção contra a ocupação nazista. 67

Persiste o fato de que sua experiência na pedreira e na fábrica, tal como suas ligações anteriores com judeus em Vadovice (muitos dos quais iriam dentro em breve morrer em Auschwitz, perto dali), deu a João Paulo II um aprendizado que nenhum Pontífice romano tivera antes dele. Seus anos na Solvay lhe proporcionaram uma percepção imediata das condições dos operários, o que lhe seria muito útil na sua futura luta contra o regime comunista polonês e o levaria a encarar a alienação e a exploração dos trabalhadores de um modo impensável para um Papa.108

Cornwell109 afirma que quando Wojtyla se tornou Papa, em seus 12 primeiros anos ele escreveu três encíclicas importantes sobre questões de política, economia e trabalho. A primeira é do ano de 1981 e chama-se Laborem exercens (Sobre Trabalho Humano) e é uma ―excursão poética sobre o significado do trabalho por um homem que tinha pleno direito a emitir opiniões sobre o assunto‖. O autor afirma ainda que isso foi devido ao seu trabalho forçado na juventude, onde ele tinha ―passado anos carregando aos ombros pedras em baldes pendentes de um balancim numa pedreira polonesa‖. O autor ainda afirma que nesta encíclica, João Paulo evitou questões socialistas de propriedade dos meios de produção, como também tentou desmentir a idéia baseada em uma interpretação parcial da bíblia de que ―trabalho é uma punição divina para o pecado original cometido por Adão e Eva‖. Ele tentou mostrar em sua encíclica que o trabalho é criativo, um ―processo de auto-realização, de desenvolvimento pessoal‖. Segundo Bernstein e Politi110, Wojtyla era um grande admirador das artes, especificamente do teatro. Fora ator, poeta, autor teatral e filósofo. Quando conheceu o teatro, Karol Wojtyla ficou extremamente fascinado e o resultado deste encontro com a arte foi imediato; logo ele estava envolvido em leituras de textos teatrais e tardes de música de câmara e declamação de poesia. Devido a esta paixão pelo teatro, foi inevitável que Karol se tornasse ator. No final do colégio, conheceu um professor 108

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. p.63 109 CORNWELL, John. A Face Oculta do Pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005. p.135 110 BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.63-64 68

de literatura polonesa totalmente dedicado ao teatro. Foi nesta época que surgiram outras paixões de Wojtyla: línguas e letras. Daí em diante ele caminhou entre atuar, escrever poesias, peças teatrais, entre outros. Seus amigos não sabiam se Wojtyla se tornaria um ator ou um homem das letras. Esta experiência com artes e letras tornouse uma fonte de resistência da cultura polonesa ao nazismo e um modo de se contrapor a ocupação alemã. As raízes de tudo que ele sentia e faria como Papa, tanto em termos de dogma católico como de doutrina geoestratégica podem ser encontradas no solo da sua Polônia de origem, afirmam Bernstein e Politi111. Como muitos de seus compatriotas, quando jovem teve sua formação na tradição do messianismo polonês, na concepção de que a Polônia tinha que redimir as nações através de seu próprio sofrimento e a missão dos peregrinos poloneses era a de anunciar às nações do ocidente um mundo novo, um mundo transformado espiritualmente. Cornwell112 afirma que a perspectiva crucial de João Paulo, que guiou sua visão, era que o ―seu senso da Polônia, e o seu próprio destino, estavam profundamente imbuídos de tradições marianas de proteção e intervenção‖. Wojtyla optou pelo sacerdócio em 1948, tornando-se assim padre. Começou a sua vida pastoral em uma aldeia isolada a cerca de 45 quilômetros de Cracóvia. Durante esses anos de padre experimentou como funcionava a máquina comunista, muitas vezes tendo que realizar encontros escondidos com jovens, relação esta que se tornaria também uma marca na sua vida pastoral. Em 1958, 10 anos após tornar-se padre, foi nomeado bispo da Cracóvia. Nessa época, a Polônia passava por uma transformação diferente da dos seus vizinhos socialistas. Durante séculos, através de guerras e partilhas, a cultura polonesa e os camponeses do país estavam intimamente ligados à Igreja. E a Polônia pós-guerra tinha uma liderança atéia. A Igreja era de fato uma força que os comunistas teriam que combater, tornando assim a sua contenção uma das prioridades das lideranças políticas. Com 95% da população de católicos logo a Igreja se tornaria um sério problema para os comunistas. E foi exatamente isso 111 112

Ibid. p.265 CORNWELL, John. A Face… p.120 69

que aconteceu. A Igreja na Polônia tornou-se uma voz ainda que tímida de oposição ao comunismo. Karol Wojtyla ganhou notoriedade entre os membros da Igreja durante o Concílio Vaticano II, se tornando em pouco tempo o porta-voz da delegação polonesa. Freqüentemente Wojtyla negociava em seu nome com bispos franceses e alemães. Os poloneses formavam a delegação mais importante do mundo comunista, e por isso mesmo tinham certa autoridade em questões que envolviam a ―cortina de ferro‖. Em 1963 tornou-se Arcebispo de Cracóvia ganhando mais destaque em meio à comunidade católica, e, quando o debate no Concílio Vaticano II voltou-se para a questão da liberdade de consciência e de religião, seus discursos adquiriram maior peso devido a sua experiência com o comunismo. Em 1967, quando Paulo VI era sumo pontífice, fez de Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, cardeal. Karol tinha então 47 anos de idade. Paulo VI e o então Cardeal Wojtyla se tornaram muito ligados, principalmente depois de Wojtyla ajudar o Papa a escrever a encíclica Humanae Vitae. Bernstein e Politi registram que ―esse episódio ligou Paulo VI ainda mais estreitamente ao cardeal Wojtyla, a quem ele recebia regularmente em audiências privadas. Entre 1973 e 1975, o arcebispo de Cracóvia entrou onze vezes no estúdio do Papa para audiências privadas‖.113 Além de bem relacionado no Vaticano, o cardeal Wojtyla era conhecido como filósofo, como a pessoa que pensava na autodeterminação do ser humano. Pensava também que, para isso, uma sociedade e um sistema político tinham que dar ao indivíduo a oportunidade da autodeterminação. Além de filósofo, o cardeal Wojtyla era conhecido também por ser poliglota. Falava alemão, russo, francês, inglês, italiano e espanhol, além de sua língua materna. Essa facilidade lingüística era complementada por uma inclinação por viagens, quando participava de congressos, visitando comunidades polonesas ao redor do mundo. Ele era ainda cardeal e já havia visitado lugares como a Terra Santa, os Estados Unidos, a Austrália, Nova Guiné, entre outros.

113

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.121 70

Os membros da Cúria observavam Wojtyla com grande interesse. Até onde se sabia, sua personalidade agradava a muitas pessoas no Vaticano, mas a grande maioria não o conhecia intimamente. Sabia-se que ele exercia um poder carismático sobre os jovens e pessoas que o encontravam ficavam impressionadas por sua externa simplicidade de modos. Bernstein e Politi114 afirmam que ele ―não possuía praticamente nada a não ser seus livros, paramentos eclesiásticos, algumas lembranças de família, esquis (que guardava no palácio episcopal) e roupas de excursionista.‖ Novamente, mesmo que não intencional, aflorava aí seu ethos. Algo que é relevante de se dizer é que Karol Wojtyla tinha uma certa aversão à mídia. Raramente lia jornais e muito menos tinha interesse em assistir ao noticiário na televisão ou ouvi-lo pelo rádio. A cada duas semanas, recebia os resumos das notícias dos jornais muito censurados na Polônia e na TV Estatal, a pedido próprio. Não só não tinha interesse nas notícias gerais como também não tinha nenhuma prática da intervenção da imprensa e da opinião pública nos negócios da Igreja. Ficava impressionado que em Roma, por exemplo, mais cedo ou mais tarde tudo terminava nos jornais, seja lá o que fosse, como encontros a portas fechadas, comunicações secretas, etc. Curioso é que na era da mídia de massas, Wojtyla se recusava a ter uma ligação pessoal com essa força aparentemente essencial da vida contemporânea, mesmo fazendo dela um uso tão freqüente mais tarde, muito mais do que qualquer outro personagem da história do século XX. Sobre isso novamente afirmam Bernstein e Politi: ―para um bispo vindo da Polônia, isso era inimaginável. Wojtyla desconfiava do modo pelo qual a mídia influenciava o debate interno da Igreja (e quando se tornou Papa, seu secretariado de Estado iria expedir uma ordem proibindo os funcionários executivos da Cúria de dar entrevistas sem permissão especial)‖.115 Em agosto de 1978, o Colégio de Cardeais, inclusive Wojtyla, reuniu-se em conclave116 no Vaticano e escolheu Albino Luciani como Papa, que adotara o nome de João Paulo I para suceder Paulo VI. Ora, Paulo VI havia herdado de João XXIII, 114

Ibid. p.121 Ibid. p.102 116 Reunião do Sacro Colégio de Cardeais, convocado para eleger um novo pontífice. 71 115

em 1963, uma Igreja em transição, pois, com o início do Concílio Vaticano II, João XXIII havia aberto um novo tempo na Igreja, propondo novas visões e temas essenciais, como a renovação da atitude espiritual, das estruturas eclesiásticas e da reforma da doutrina. Paulo VI foi o Papa dos anos 60 e 70 que vivenciou esta mudança de postura da Igreja diante do mundo, portanto, um papa de transição, em uma época de buscas de novas formas de ser Igreja Católica no mundo. Bernstein e Politi117 afirmam que

―o Papa Paulo VI tinha passado seus últimos anos cada vez

mais atormentado pelo dilema de como equilibrar a continuidade doutrinária, o consenso dos fiéis e os ditames da sua própria consciência‖. Em setembro de 1978, um mês depois da eleição de João Paulo I, o Vaticano de repente encontra-se em meio a uma enorme confusão. O recém eleito Papa, Albino Luciani, é encontrado morto em seu quarto, vítima de um infarto do miocárdio, segundo o boletim oficial. A notícia da morte do Papa pegou todos de surpresa, inclusive Karol Wojtyla, que já havia recebido uma quantidade considerável de votos na eleição de Albino Luciani. No mínimo, ele poderia imaginar que eram grandes as chances de não comparecer ao próximo conclave somente como espectador ou mero eleitor. Segundo os autores118, a tensão de Wojtyla se confirmou, pois, dos 108 cardeais presentes no novo conclave, 99 lhe deram os seus votos. O inimaginável ocorreu: foi escolhido um Papa de um país entregue à União Soviética, um país de um governo marxista e ateu. Era o primeiro Pontífice não-italiano em 450 anos. Um Papa jovem, com apenas 58 de idade. Para expressar o seu compromisso com o legado dos três últimos Papas e sua afinidade com Albino Luciani, adotou o nome de João Paulo II. Paolo Vian registrou em um jornal este acontecimento insólito da seguinte forma: ―Un Papa nuovo. Un Papa che vieni da un paese lontano, dalle chiese del silenzio e della persecuzione. Un Papa che viene dall’est, daí campi di

117 118

Ibid. p.408 Ibid. p.157-167 72

deportazione e di sterminio. Un Papa della terra dei confesssori e dei mártir, baluardo della fede e della liberta contro regimi ateistici e totalitari‖.119 Karol Wojtyla torna-se, assim, João Paulo II. Desde cardeal ele já possuía um impulso por viagens, que na função de Papa ficou ainda mais evidente. Paulo VI em 15 anos de papado fez apenas oito viagens ao exterior e a destinos óbvios, com significados religiosos. Visitou lugares como Jerusalém, Istambul, Fátima, Bombaim e a sede das Nações Unidas em Nova York. Já João Paulo II nos primeiros seis anos de seu pontificado visitou lugares como a Polônia, México, Irlanda, Estados Unidos, Turquia, Zaire, Congo, Quênia, Burkina Fasso, Costa do Marfim, França, Brasil, Alemanha Ocidental, Paquistão Filipinas, Guam, Nigéria, Gabão, Guiné Equatorial, Portugal, Grã-Bretanha, Argentina, Espanha, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Guatemala, Honduras, Belize, Haiti, Áustria, Coréia, Canadá e África do Sul. Além de um impulso por viagens, pode-se dizer também que tal condição fazia parte da sua diplomacia e o simbolismo que isso representava era uma coisa inédita até então.

Ele estava cobrindo sistematicamente o globo, dirigindo-se pessoalmente a multidões de católicos e não-católicos. Literalmente, bilhões de pessoas o tinham visto na televisão. No dia dedicado a S. Pedro e S. Paulo, 29 de junho de 1982, ele disse aos cardeais no Vaticano que suas viagens eram um exercício do ―carisma de Pedro numa escala universal‖. – Se ficasse no Vaticano, como a Cúria gostaria que fizesse – observou ele para seu amigo, padre Malinski - então ficaria sentado em Roma escrevendo encíclicas, que seriam lidas apenas por um punhado de pessoas. Mas se viajar e for às pessoas, então me encontrarei com uma porção delas, tanto

VIAN, Paolo. Un Papa ―Nuovo‖. In L’Osservatore Della Domenica nº 42, Roma, p. 05, 22 de Outubro de 1978. ―Um novo Papa. Um Papa que vêm de um país distante, da igreja do silêncio e da perseguição. Um Papa que é do Leste [oriente], dos campos de deportações e de extermínio. Um Papa da terra da confissão e martírio, bastião da fé e da liberdade contra o regime ateu e totalitário‖. (Tradução livre do autor). 73 119

gente simples como políticos. E elas me escutarão. Caso Contrário, nunca virão a mim.120

Sua primeira viagem papal foi para a América Latina em 1979, especificamente ao México, para a Conferência dos Bispos Latino-americanos, a convite do arcebispo de Guadalajara. O México é um país onde a grande maioria da população é católica, embora naquela época o México possuísse uma constituição anticlerical. Os padres não podiam sequer usar suas batinas nas ruas e o país não mantinha relações diplomáticas com a Santa Sé. O Governo não demonstrou nenhum interesse na visita papal. Esta era a atmosfera do México durante a primeira viagem de João Paulo II. Segundo Bernstein e Politi121, na véspera de sua chegada, alguns jornais noticiaram como a ―chegada de um papa católico‖, enquanto outros noticiaram a chegada de ―um polonês de cinqüenta e oito anos de idade‖. Quando o avião chegou, não havia formalidades nem recepções; somente o Presidente o recebeu. Porém o povo mexicano rompeu o cordão de isolamento correndo em direção ao Papa. Na sua primeira viagem papal, João Paulo II trouxe uma notória visibilidade à Igreja, visibilidade esta que a instituição havia perdido há um bom tempo. Os autores afirmam que ―uma criança correu para abraçá-lo, um homem enorme abriu seu poncho na frente do Papa e atirou uma cascata de rosas‖. Eles ainda dizem que um sombreiro de aba larga foi na direção de João Paulo II. Ele colocou este sombreiro na cabeça e ―com esse pequeno gesto, conquistou o México... e grande parte do mundo‖ Evidentemente que os autores aqui querer fazer alusão ao poder simbólico deste ato. O que se pode afirmar também é que este simbolismo, característico deste papado, foi o fator nevrálgico para a construção de seu ethos.

120 121

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.402 Ibid. p.208 74

2.2.1 – O papado e a queda do comunismo

Patrick Michel122 afirma que ―João Paulo II é o último Papa‖. Não se trata para ele de o último no sentido literal da palavra, mas o último Papa que ―teve condições para dar crédito, por menor que fosse, à tripla ficção da universalidade, da autoridade e de uma norma que tenha sentido e seja válida em toda parte e para todos‖. Para Michel ―somente o político tem condições de tornar operacional‖ esta característica. Porém, para o autor esta característica é oriunda do fato de a estratégia católica de compensação profética, estratégia onde o discurso profético não é ouvido e justamente por isso a Igreja o conserva para além de qualquer julgamento, fracassar ante

o

contexto

secular,

a

luta

―contra

um

processo

multiforme

de

desinstitucionalização da fé, cujo efeito principal é privar a Igreja de seu poder‖. Assim a crise de civilização que atingiu o homem no final do segundo milênio para João Paulo é a ―distância tomada em relação à Igreja‖. Cornwell123 afirma que na visão de João Paulo o pluralismo, a democracia e a livre iniciativa podem levar a novas formas de tirania se não houver uma cultura moral para ―lhe impor restrições e lhes dar forma‖. A partir desta visão, João Paulo via na Igreja Católica os ensinamentos sociais que seriam vitais para esta nova ordem mundial. Michel124 afirma que a Igreja já mostrava esta preocupação na encíclica Mirari vos (1832) do Papa Gregório XVI e na Quanta cura (1864) do Papa Pio IX. Assim, o discurso de ―deploração da perda‖ devido ao desaparecimento de uma referência estruturadora, fez com que João Paulo II se transformasse em um indicador do desencantamento do mundo. Em conseqüência desta condição, o Papa ―ao pretender submetê-la a uma referência total‖, acabou por incriminar a essência da própria democracia, pois a Igreja seria a referencial total. Assim, João Paulo II é o Papa da perda do poder espiritual. Michel afirma que foi o político que estruturou este papado, sendo a queda do comunismo o acontecimento central de onde tudo gira. 122

LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 123 CORNWELL, John. A Face… p.142 124 LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.349 75

Para Bernstein e Politti, ―João Paulo II, o Papa dos ‗direitos dos homens‘, oriundo de um país no qual, segundo ele dizia, o primeiro dever da Igreja era defender os direitos do homem, deu a impressão de constituir o próprio vetor de um processo de saída do comunismo e, portanto, da instauração da democracia política‖.125

Como vimos, desde quando era padre o Pontífice havia convivido com o comunismo. Michel126 afirma que até 1989 o Papa foi uma referência para todos que estavam interessados no fim do comunismo. Por isso, quando João Paulo afirmou que o principal são os direitos dos homens, ele ―credibiliza um dispositivo de resistência, inteiramente centrado na limitação do político‖. O local onde se deu a principal articulação política de João Paulo foi em seu país de origem, a Polônia. O regime Comunista naquele local teve uma plataforma que contrapôs sua essência e funcionamento encabeçados pelo Papa. Michel continua afirmando que o primado pelos direitos do homem o qual defendia João Paulo, possibilitou articular uma plataforma contra o comunismo que mobilizou os operários, intelectuais e Igreja. Devemos aqui observar, que devido a isso, a Polônia, desde a primeira visita de João Paulo II como pontífice, nunca mais foi a mesma. Bernstein e Politi 127 afirmam que do avião do Papa era possível enxergar filas intermináveis de pessoas e multidões se acumulando na rota em que ele seguiria do aeroporto até o centro da cidade. Nos primeiros momentos da visita papal, confirmou-se que na Polônia a Igreja alcançara um status sem precedentes em qualquer outro país socialista. A Igreja era realmente um poder na Polônia devido a toda sua história, condição política frente ao regime comunista e ligação com a população polonesa. Os autores afirmam ainda que durante os nove dias da estadia do Papa, o país parecia em transe ou em êxtase, não só por um compatriota seu que havia atingido o patamar mais alto da Igreja e que estava voltando pra casa, mas era como a chegada de um messias. Na manhã seguinte à chegada de João Paulo II à Polônia, o pontífice realizou uma missa para dezenas de milhares de universitários na frente da igreja de Sant‘Ana. Esperava-se atrair para o 125

Ibid. p.350 Ibid. p.351 127 BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.460 76 126

evento cerca de 30 mil estudantes, porém rapidamente cresceu para uma reunião de 200 mil pessoas. Nas suas homilias128, João Paulo II deferiu palavras que logo de cara romperam a política externa do Vaticano com Estados comunistas, a Ostpolitik, que já durava 20 anos. Em momento algum pronunciou uma palavra sequer que pudesse iniciar um confronto de Igreja e Estado. Cornwell129 afirma que a ―mágica que ele realizou foi a de converter a reprimida insurgência, potencialmente violenta, numa pacífica, mas não menos determinada transformação de consciência‖. Simplesmente estava encaminhando a Igreja para desempenhar um novo papel não só na Polônia, mas também na Europa Oriental, na União Soviética e em questões mundiais. Ao tratar diretamente com os rumos de um regime comunista que era ativo no país, ele automaticamente tornara-se uma figura de representatividade mundial nesta questão. Bernstein e Politi registram:

Através dele, a Igreja estava reivindicando um novo papel, não mais apenas pedindo um espaço para si mesma. Através do Papa, estava exigindo respeito tanto pelos direitos humanos como pelos valores cristãos, respeito para cada homem e mulher e a autonomia do indivíduo. Essas exigências representavam um ataque frontal contra as pretensões universais da ideologia marxista, que a esta altura havia se transformado numa casca vazia nos países sob a influencia soviética.130

Fica claro então que João Paulo II, em seu país de origem, se tornou a inspiração e o protetor do Solidariedade, um movimento de trabalhadores nãocomunistas, que crescia no país, e recebia fundos financeiros do ocidente para sua atuação. Um de seus líderes, devido à tamanha ligação com o pontífice, chegou a ser recebido em audiências privadas no Vaticano. Cornwell131 afirma que existem indicações que João Paulo doou 50 milhões de dólares para este movimento. Esta 128

Homilia é o comentário do Evangelho, depois de sua leitura, por ocasião da missa. CORNWELL, John. A Face… p.121 130 BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.15 131 CORNWELL, John. A Face… p.119 77 129

soma foi provavelmente doada através do Banco do Vaticano. Cornwell afirma que ―circulavam rumores de que o dinheiro tinha sido passado para o Solidariedade via Roberto Calvi, o banqueiro da Máfia que em 17 de junho de 1982 foi encontrado enforcado sob a Ponte de Blackfriars em Londres‖. A liderança comunista da Polônia sofreu um profundo impacto com a presença de João Paulo II, pois aquela situação era enxergada pela liderança como uma revolução disfarçada de preces. Até porque, João Paulo II, além de inflamar o povo em um encontro que teve com líderes poloneses, apresentou uma lista de reivindicações e de garantias de direitos humanos básicos que era inconcebível para um país comunista. Mesmo não querendo derrubar o sistema comunista, estava lançando uma política pessoal de pressionar o regime para obter mudanças na conduta do governo, uma política baseada nos princípios de igualdade e justiça, a mesma propaganda usada pelo comunismo, mas que não ocorria na prática. Isso causou uma desestabilização no sistema, pois o papel de igualdade e justiça que o governo não conseguia colocar em prática, a Igreja era capaz de fazer, ou ao menos representar. Para um país cujo governo era ateu, discursos de caráter religioso se tornaram muito mais do que simplesmente um estado de espírito. Assim se expressa João Paulo II132, conforme o L’Osservatore Romano:

Nestas palavras exprime-se a doutrina social da Igreja que sempre dá apoio ao autêntico progresso e ao desenvolvimento pacífico da humanidade; por conseguinte – enquanto todas as formas do colonialismo político, econômico ou cultural continuam em contradição com as exigências da ordem internacional – é necessário apreciar todas as alianças e os pactos que se baseiam sobre o respeito recíproco e sobre o reconhecimento do bem de cada nação e de cada Estado. (...) E com a mesma, ou talvez até com aumentada intensidade, em conseqüência da distancia, continuarei a sentir no meu coração tudo o que poderia ameaçar a

132

JOÃO PAULO II, L’Osservatore Romano, em 10 de Junho de 1979, p. 05 78

Polônia, e que poderia lesá-la, causar-lhe prejuízo – o que poderia significar estagnação ou crise.

Esse impacto causado por João Paulo II diante do mundo comunista não foi exclusividade da Polônia. William Casey, diretor da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (a CIA) se encontrou com o pontífice em Roma, no início do governo Reagan, e entregou-lhe uma foto tirada de um satélite espião da Praça da Vitória, Varsóvia, em 1979 na missa rezada por João Paulo II. Bernstein e Politi133 defendem a idéia de que aquela foto demonstrou que do outro lado do mundo o Papa também era analisado. E a mesma foto ajudou a selar uma aliança secreta informal entre a Santa Sé e o governo do presidente Ronald Reagan. Ao longo da história, Reagan e João Paulo II se encontrariam algumas vezes até que o comunismo caísse, primeiro na Polônia, depois na Europa Oriental e, finalmente, na própria União Soviética. Ao longo desses anos, João Paulo II recebia informações da CIA, não somente sobre a Polônia, mas sobre qualquer assunto que importasse ao Pontífice ou à Santa Sé. João Paulo II foi, sem dúvidas, um fator crucial para a queda do comunismo.

Desde quando tomara posse [Ronald Reagan], vinte meses depois de o satélite norte-americano ter fotografado o Papa na Polônia, Casey e seu protetor, Ronald Reagan, tinham chegado à conclusão de que havia uma possível terceira superpotência no mundo – o quadrado de vinte quarteirões da cidade-Estado do Vaticano – e que seu monarca, o Papa João Paulo II, tinha sob seu comando um notável arsenal de armamento não-convencional que poderia contribuir para alterar

133

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.20 79

o equilíbrio da Guerra Fria, principalmente com o apoio ostensivo e clandestino dos Estados Unidos.134

O poder político do Papa havia aumentado tanto que Casey chegou a informálo que a Polônia era a mais alta prioridade da política externa norte-americana. Para Reagan, pouco importava se o Papa não queria o colapso do comunismo, que seus interesses não fossem os mesmos de João Paulo II, o que importava para Reagan é que o Pontífice poderia realizar algo que era o objetivo de suas próprias políticas globais. A Guerra Fria agora não era mais só entre Moscou e Washington, mas agora existia o Vaticano e Varsóvia. A Santa Sé somente assumiu que houve uma aliança secreta com os Estados Unidos 10 anos após esta ocorrer. Bernstein e Politi135 assim afirmam:

Uma década mais tarde, por ocasião da primeira notícia pública sobre uma Santa Aliança entre os Estados Unidos e o Vaticano, Gorbachev (a época secretário de Agricultura do Comitê Central) escreveria: ―Pode-se dizer que tudo que aconteceu na Europa Oriental nos últimos anos teria sido impossível sem os esforços do Papa e o enorme papel, inclusive o papel político, que ele desempenhou na arena mundial‖. A essa altura, Gorbachev e Reagan tinham deixado o cenário mundial e apenas o Papa envelhecido ficara para vociferar ante o novo mundo que ele tinha ajudado a tornar realidade.

João Paulo II definitivamente estava tornando a atuação da Igreja cada vez mais relevante no cenário mundial. Os Estados Unidos perceberam que o Vaticano era um potencial ―aliado‖, pois muitos de seus interesses andavam em paralelo com 134 135

Idem. Ibidem, p.21 80

os interesses norte-americanos. Por exemplo, na Nicarágua, em 1979, os sandinistas derrotaram a oligarquia da família Somoza depois de 40 anos de ditadura apoiada pelos Estados Unidos. Entretanto, surgiu no país uma linha da Igreja Católica, denominada ―Igreja do Povo‖, influenciada por uma reflexão teológica denominada de ―Teologia da Libertação‖, a qual seus adversários atribuíram ser simpática à ideais marxistas. Esta corrente de pensamento não agradava aos Estados Unidos, muito menos ao Vaticano. Por indicação de William Casey, João Paulo II foi fazer uma visita à América Central e, dentre os países visitados, estava a Nicarágua. João Paulo II passava uma mensagem com o intuito de encorajar a transição para a democracia ao mesmo tempo em que procurava bloquear as forças esquerdistas que estavam alinhadas à Cuba ou à União Soviética. Quando os sandinistas tomaram o poder, o conflito interno da Igreja sobre a participação dos sacerdotes no governo revolucionário, a chamada ―Igreja do Povo‖ não resistiu à ofensiva desencadeada pelo Vaticano. Como fator político, esta Igreja progressista foi importante antes do período revolucionário e durante este; como movimento social, nunca alcançou a amplitude e o potencial de outros países. Sobre este assunto, Bernstein e Politi assim registram suas observações: ―Em meio aos aplausos ininterruptos de um grande contingente de freiras colocadas à direita do altar, João Paulo II insistiu em que, para o bem da unidade da Igreja, era preferível para as pessoas ‗abandonar as idéias próprias, os projetos próprios, os engajamentos próprios, mesmo que sejam bons‘‖.136 A visão de João Paulo II demonstrava que a Igreja poderia ser um fator preponderante no cenário mundial, não apenas uma entidade episcopal e de caráter diplomático, mas também uma força humanitária. Bernstein e Politi137 afirmam que o Papa João Paulo II nunca se ―concentrara exclusivamente no funcionamento interno da Igreja. Sempre vira a Igreja como um fator proeminente no mundo, não apenas uma entidade espiritual e diplomática, mas também uma enorme força social e humanitária‖. Para eles, a Igreja Católica educava ―mais pessoas do que qualquer instituição não-governamental no mundo, prestava assistência a mais refugiados, 136 137

Ibidem, p.375 Ibidem, p.445 81

administrava mais hospitais, possuía mais tesouros culturais‖. João Paulo II conseguiu um novo papel para a Igreja, principalmente nos anos 80, como conseqüência do seu engajamento com causas sociais, vendo consolidar-se este aspecto que deixou um caráter universal para o papado. Daí mais uma observação de Bernstein e Politi:

O fim do comunismo marcou o começo do Terceiro Ato do Pontificado de João Paulo II. O Primeiro Ato tinha sido de orgulhosa confirmação de sua mensagem cristã depois de anos de incerteza: - Abram as portas para Cristo! – O Segundo Ato, nos anos 80, viu a consolidação de um papel universal para o Papado e a batalha vitoriosa pela libertação da Polônia do totalitarismo soviético.138

A queda do comunismo foi sem dúvidas o fato de maior repercussão para João Paulo II e para a Igreja. Embora este Papa tenha se tornado um dos heróis da queda do comunismo, seu ideal de evangelização se dissipou junto com o final do comunismo. Patrick Michel139 afirma que participação da Igreja no episódio da queda do comunismo teve dois erros: o primeiro sobre o conteúdo dos direitos do homem, as partes que constituíram a plataforma que ocasionou a queda do comunismo abraçaram a causa, porém sem definir quais seriam tais direitos. Segundo o autor, para o Papa a vitória sobre o comunismo era a vitória da religião sobre a origem do comunismo ateu, a modernidade. Após a queda do comunismo, as sociedades que até então estavam sob o controle comunista adotaram todos os mesmos defeitos das sociedades ocidentais. Não existe mais um ―adversário comum‖ entre o Papa, os operários poloneses e os Estados Unidos. O Papa eslavo que triunfara sobre o comunismo fazia o Vaticano crer que este fato seria um aspecto importante na reconquista do mundo. Segundo

138 139

Ibidem, p.494 LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.352 82

Michel140, essa visão por parte de João Paulo II o leva a cometer mais três erros. Segundo o autor, João Paulo II acredita, ou finge acreditar, e leva a acreditar que o comunismo seria uma versão bárbara da modernidade; o esquema no Leste Europeu era uma luta entre religião e política, quando de fato era uma ―guerra de religiões‖; é possível ser parte integrante de um conflito e ficar fora dele, pois o simples fato de criticar a modernidade era suficiente para criar um espaço não regido por ela. Assim, a Polônia, terra natal de João Paulo II, não é mais a favor dos ideais da Igreja, mas contra eles na medida em que caminha para a democracia. Para Michel141, João Paulo II encontra dificuldade em afirmar um poder espiritual por conta da individualização da fé, além do que afirmar um poder religioso esbarra nessa desinstitucionalização da fé. A questão da democracia também é um grande empecilho para o pensamento de João Paulo II. Afirmar uma hierarquia como é a organização católica, vai ao encontro do consenso sobre a democracia, a recusa do autoritarismo. Porém, a Igreja reafirma sua universalidade como uma permanência em oposição à mudança. Entretanto, nos dias de hoje, o universal deixou de ser plausível, assim, questiona o autor, ―o que sobra para Igreja então‖? Michel142 afirma que ―todos que se exprimem publicamente expõem-se à contradição‖. Além do mais, ocorreu um ―esgotamento do monopólio de gestão do capital simbólico‖. A saída para esta condição que se deu no papado de João Paulo II foi a reafirmação de valores humanos e morais, valores que nenhuma maioria ou nenhum Estado poderá criar, modificar ou destruir. Em tempos onde o religioso é individualizado e desinstitucionalizado, a questão do social, principalmente vinculado com a paz, surgiu como um destes valores reafirmados durante este papado. No universo da mobilidade o que conta não é a verdade absoluta, mas a autenticidade. Assim, João Paulo II faz uma adaptação do discurso católico. Para Michel, a democracia tem o respeito do Pontífice, mas tem também sua preocupação em relação à sua ―saúde‖. É a recusa da democracia de se apresentar como árbitro da verdade que legitima o pensamento do Papa. 140

Idem, p.355 LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.360 142 Idem, p.361 83 141

Essa é a situação da Igreja da qual João Paulo II foi peça chave para atingir visibilidade e o prestígio que se moldaram no decorrer de seu papado. A Igreja chama para si um papel humanitário que se torna o cerne para as mediações e intervenções que fez ao longo desses anos. O carisma, a liderança e ao mesmo tempo a diplomacia que exerceu, lhe deram uma grande bagagem e experiência em questões internacionais. Claro que nem em todas as questões João Paulo II conseguiu seus objetivos, como, por exemplo, em 1991 quando George Bush decidiu lançar a operação ―Tempestade no Deserto‖, não dando a menor atenção aos apelos do Papa, cobrindo-o com expressões de apreço e depois o ignorando, João Paulo II tornou-se uma espécie de símbolo da paz. Ele mesmo abraçou a responsabilidade por questões que envolvesse a paz em qualquer parte do mundo em que pudesse contribuir. É como se Karol Wojtyla tivesse incorporado João Paulo II rapidamente, ter percebido a importância de um Papa e de cada decisão que tomaria daqui por diante.

Conclusão

João Paulo II foi um dos protagonistas do cenário mundial no final do século XX e marcou com seu carisma e personalidade os rumos da Igreja Católica. Oriundo do Leste Europeu se mostrou um crítico incisivo dos totalitarismos e é considerado por historiadores e cientistas políticos como um dos principais fatores que desencadearam a queda do comunismo no final dos anos 80. Conseguiu apoio durante esses anos 80 da política dos Estados Unidos, liderada por Ronald Reagan, um convicto

anticomunista.

Após a queda do muro de Berlim e o resultado da luta contra o comunismo se mostrar desfavorável para as pretensões da Igreja, João Paulo II passou a denunciar com firmeza os excessos do capitalismo, suas injustiças sociais, a solicitar o perdão da dívida externa dos países pobres e também criticou o perigo de que uma só potência dominasse o cenário mundial. 84

João Paulo II foi uma voz de peso nos momentos de investidas militares, principalmente por parte dos Estados Unidos, que ocorreram durante o seu papado. Ele pediu com todas suas forças que não se desencadeassem guerras imprevisíveis, cujas conseqüências eram desconhecidas e que podia desembocar numa guerra de religiões. Em inúmeras ocasiões públicas, ele discursou pela paz no Oriente Médio, fez referência às guerras na África e aos conflitos na América Latina. A condenação à guerra foi explícita ao longo de seu pontificado, tanto que chegou a figurar entre outros para o Prêmio Nobel da Paz. Além de seus pronunciamentos, o Papa cumpriu gestos históricos e simbólicos sem precedentes e de grande impacto político e moral. Foi o primeiro pontífice da história que entrou em uma sinagoga, em Roma, e a ter estabelecido relações diplomáticas com o Estado de Israel. Foi também o primeiro chefe da Igreja católica que entrou em uma mesquita e que pediu perdão em nome da Igreja por todos os erros cometidos pelos católicos durante as cruzadas, as guerras de religião, o tráfico de negros e contra os judeus. Foi também o primeiro pontífice que visitou Cuba, o último reduto do comunismo no Ocidente, em janeiro de 1998, e a aparecer em público com Fidel Castro. Esteve também no palácio presidencial chileno com o ditador Augusto Pinochet, suscitando a desaprovação de muitos católicos, que interpretaram o gesto como uma benção ao regime militar. Esforçou-se também nas relações inter-religiosas. Apesar de seus empenhos a favor da unidade, não conseguiu aproximar os ortodoxos nem cumpriu sua desejada viagem a Moscou, para visitar o patriarca Alexis II. O Papa, que mobilizou as multidões, sobretudo os jovens, durante suas inúmeras viagens pelo mundo e em particular na América Latina, não pôde deter, entretanto, a redução das vocações religiosas e inclusive o avanço das seitas protestantes nesse continente, onde vive a metade dos católicos. Houve também o lado negativo, se assim pode-se dizer, de seu papado. Internamente, foi um conservador para o Vaticano. Condenou firmemente os métodos anticoncepcionais e o uso do preservativo para evitar a AIDS. Foi defensor de rigorosos princípios em matéria de moral sexual e família. Tais posturas acabaram 85

por ―desencantar‖ muitos católicos imersos na modernidade, pois paira uma sensação de incompreensão diante da evolução dos costumes no mundo moderno por parte do Vaticano. Um papado tão rico de fatos marcantes e simbolismos certamente influenciou as práticas retóricas de João Paulo II e da Igreja Católica naquele período. Certamente os atos retóricos do início do papado, nos anos 70, no final do papado e começo do século XXI, possuem significativas mudanças em sua forma. No âmbito da doutrina católica dificilmente mudanças ocorreram, porém politicamente a prática retórica certamente mudou. E é isto que será exposto no próximo capítulo desta dissertação.

86

Capítulo III A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo II durante a mediação no canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque (2003)

“A retórica ressurge sempre em período de crise” Michel Meyer

Introdução Neste capítulo serão analisados, à luz da teoria de Tereza Halliday (Atos Retóricos – mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Summus, 1988), os atos retóricos referentes ao período do papado de João Paulo II. Os atos retóricos escolhidos foram: o discurso relativo à mediação no Canal de Beagle no início dos anos 80, quando a Santa Sé foi convidada a mediar o conflito entre Chile e Argentina, conflito que quase terminou em guerra no final dos anos 1970. Será mostrado como a retórica se mostrou adequada na mediação entre Chile e Argentina em disputas territoriais no Cone Sul; o segundo ato retórico a ser analisado se deu durante a invasão norte-americana ao Iraque no ano de 2003. Neste fato, a Santa Sé tentou evitar que tal invasão ocorresse por meio da prática retórica e diplomática. O interessante é que este fato se deu já no final do papado de João Paulo II, pois ele faleceu dois anos após o conflito, e que o conflito envolvia duas nações não-católicas; com forte influência protestante presente nos Estados Unidos, e o Iraque, onde majoritariamente o islamismo predomina. Foram dois momentos distintos do papado. Um deles situado bem no início e o outro já no final. Porém, ambos os eventos foram relevantes para a Santa Sé e neles a retórica pode ser perfeitamente separada para uma análise do discurso católico. 87

3.1 - O Caso do Canal de Beagle O caso do Canal de Beagle ganhou notoriedade entre os anos 1970 e início dos anos 1980 quando dois países vizinhos quase entraram em guerra por questões de limites e soberania.

3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle

A situação retórica em questão teve sua origem no conflito pela posse do Canal de Beagle, no extremo sul da América do Sul, nos limites entre Chile e Argentina. A beligerância em questão era a disputa pela soberania das ilhas Picton, Lennox e Nueva, situadas na entrada oriental do Canal de Beagle e do Cabo Horn, entre os Oceanos Atlântico e Pacífico.

Fonte: Google Earth

88

A questão da soberania e a disputa entre Argentina e Chile sobre o canal já é antiga. Porém, o objeto desta pesquisa é focar especificamente a mediação da Santa Sé e a sua prática retórica. Entretanto, para melhor contextualizar o conflito, um bosquejo histórico sobre os antigos tratados, negociações e questões de soberania se faz necessário. Retomaremos aqui algumas informações contidas no texto de Salmo Caetano de Souza em seu livro Mediação da Santa Sé na questão do Canal de Beagle, publicado no ano de 2008. Os limites entre a Argentina e o Chile foram estabelecidos no século XIX, onde foi levada em conta a linha natural que é formada pela Cordilheira dos Andes, a qual se estende por aproximadamente cinco mil quilômetros. Entre 1822 e 1833, os chilenos estabeleceram como seu limite sul o Cabo Horn, o ponto mais antártico das Américas. Desde 1840 o país começou a utilizar a zona do Estreito de Magalhães, um canal que liga os Oceanos Atlântico e Pacífico, local que foi fundamental para a navegação internacional da época porque livrava as embarcações de cruzarem a temida Passagem de Drake, entre o Cabo Horn e a Antártida, famosa por ser o local com as piores condições meteorológicas marítimas do mundo. Em 1856 foram instalados assentamentos militares chilenos em Punta Arenas, cidade próxima ao Estreito de Magalhães, ocasionando um mal-estar nas relações com a Argentina, que afirmava serem suas estas possessões. Neste mesmo ano, ambos os países firmaram um Tratado de Paz, Amizade, Comércio e Navegação, onde se aplicava o princípio de que a cada Estado corresponderiam os territórios efetivamente ocupados por eles em 1810. Em caso de conflito, eles seriam resolvidos pela via diplomática ou arbitral. Nesta época, a região da Patagônia era somente ocupada por pequenas populações indígenas. Os primeiros conflitos que se tem conhecimento na região datam do ano de 1888, sete anos após a assinatura do Tratado de Limites, no momento em que um mapa argentino surge com as ilhas em questão (Picton, Lennox e Nueva ) sob a soberania argentina. Tal tratado leva em consideração conceitos de Direito Internacional, como o Uti possidetis iure – ―como possuía, possuirás‖. Embora as ilhas possuam pequenas extensões, seu valor estratégico por estar entre os oceanos 89

Atlântico e Pacífico é muito grande, o que ocasionou um longo conflito entre ambos os Estados no final do século XIX, e durante grande parte do século XX, pois a cada novo Tratado assinado, uma série de contestações e interpretações se seguia. Isso provocou crises diplomáticas e aumento da tensão militar na região. No ano de 1959, depois de uma série de incidentes, foi consolidada a declaração dos Cerrillos, onde os governantes dos dois países se comprometeram a buscar uma solução por meio da arbitragem. Em março de 1960, os países concordaram que a Ilha Lennox seria de soberania do Chile e que se submeteria a decisão inapelável da Corte de Haia a questão sobre a soberania das Ilhas Picton e Nueva. Porém, este acordo não foi ratificado por nenhum dos dois países. No ano 1970, a fim de resolver a questão pacificamente, nomeou-se como árbitra a Rainha Elizabeth II da Grã-Bretanha, quem em 1977 considerou como chilena a posse das três ilhas em litígio, pois eram vistas como uma unidade. Restou à Argentina a posse da Ilha Becasses e a livre navegação para o acesso ao Ushuaia. Porém, para os argentinos, através da projeção territorial, a posse por parte chilena destas ilhas atrapalharia suas futuras reivindicações e seus direitos na divisão da Antártida. Assim, a decisão favorecendo a República do Chile não foi bem recebida pelos argentinos, que declararam no início do ano seguinte inválido o laudo arbitral e se mostraram dispostos a tomar posse das ilhas pelo uso da força.

3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle

O problema retórico em questão é conhecido como ―Conflito de Beagle‖, um desacordo entre a Argentina e o Chile sobre a entrada oriental do canal de Beagle, o que inevitavelmente afetava a soberania das ilhas ali localizadas e seus espaços marítimos adjacentes. O conflito chegou a seu ponto culminante quando as Forças Armadas da Argentina se dispuseram a ocupar as ilhas pelo uso da força.

90

Segundo Souza143, a mediação da Santa Sé, na figura de João Paulo II, foi formalmente assinada em Montevidéu no dia 8 de janeiro de 1979. Para o autor, o esforço bilateral da resolução do conflito perdia terreno para um conflito bélico. A mediação do Papa foi aceita por unanimidade em ambos os governos, pois a opinião pública nos dois países era favorável à resolução do conflito. Houve um grande alistamento nas Forças Armadas Argentinas, enquanto o Chile já procurava a Organização dos Estados da América (OEA) a fim de solicitar intervenção, pois as relações diplomáticas entre ambos os Estados estavam à beira da ruptura. Souza afirma que ―faltavam apenas algumas horas para o desfecho do conflito, motivo pelo qual surgia a decisão do Santo Padre de intervir no litígio‖. Assim, algumas autoridades da Argentina foram convencidas e enviaram a contra-ordem dos ataques que, naquele momento, já havia até se iniciado, porém sem grandes danos. Bernstein e Politi defendem que para o papado, e até pessoalmente para João Paulo II, a mediação ia além da resolução da controvérsia dos países católicos da América Latina. Eles afirmam que o conflito em si não era o objeto principal desta questão, mas a mediação se mostrara um sinal de novos tempos para a Igreja. Segundo os autores, embora alguns críticos fossem contra tal mediação por se tratar de ditaduras militares, João Paulo II sabia que uma empreitada bem sucedida era o próximo passo para dar seguimento ao seu pontificado. João Paulo II apoiava a ação humanitária do cardeal [Raúl Henríquez Silva144], porém achava que, quando a Santa Sé estava envolvida em iniciativas pela paz e a justiça, tinha que tratar até com os regimes mais antipáticos. A questão do canal de Beagle, em função da qual chilenos e argentinos tinham quase chegado aos tapas algumas semanas antes, era importante para o Vaticano porque, depois de um século de insignificância diplomática, o Papado estava uma vez mais sendo chamado a desempenhar um papel em negociações internacionais. (...) Do ponto de vista territorial, a disputa pelo canal de Beagle era um assunto periférico; para João

143

SOUZA, Ibid. p.9 Raúl Henríquez Silva era arcebispo de Santiago, opositor de Pinochet e havia instigado a fundação do Vicariato da Solidariedade para auxiliar as vítimas do regime e defender os direitos humanos. 91 144

Paulo II o que contava era o sinal que emanava disso – a Igreja tinha que fazer sua voz ser ouvida na cena internacional.145

A mediação da Santa Sé tornou-se, assim, um ato diplomático. João Paulo II é o porta-voz que fala ou indica quem pode falar em nome da instituição Igreja Católica, no caso, representada na figura da Santa Sé. O cardeal Antonio Samoré foi o encarregado da questão, pois foi figura presente na região do conflito. A eminência de um conflito militar aberto finalmente forçou os governos, em janeiro de 1979, a assinarem o Tratado de Montevidéu, pelo qual eles aceitaram a mediação da Santa Sé na pessoa do cardeal Antonio Samoré, representante especial do Papa João Paulo II. Os governos congratularam-se com a oferta de assistência intermediária na solução dos problemas na região sul e prometeram ‗considerar qualquer idéia a ser expressa pela Santa Sé‘.146

3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle

Segundo Souza147, quando o Papa aceitou ser o mediador da questão e escolheu o Cardeal Antônio Samoré, pediu a ambos os países envolvidos no conflito que enviassem representantes junto ao processo mediador. O pontífice solicitou que fossem pessoas ―entendidas nos aspectos técnicos da disputa, mas que fossem também hábeis negociadoras, com imaginação e boa margem de independência‖. A partir desta solicitação, pressupõe-se que esta solicitação corrobore com a adoção da via diplomática como meio de resolução da beligerância, vez que o processo de mediação seria com negociadores interados da situação de litígio e não simplesmente representantes de cada nação.

145

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. P.203 146 Johnston, Douglas M. The Theory and history of the ocean boundary-making. Quebec, Canadá. McGill-Queen‘s University Press. 1988. p.194 Tradução livre. 147 SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.158 92

Um fato curioso é que, ainda segundo Souza148, o representante que o governo chileno desejava enviar deveria ser de ―idade madura, católico e possuir ampla experiência diplomática‖. Entretanto, o representante escolhido realmente foi de idade madura e possuía ampla experiência diplomática, porém não era católico, era judeu. Na Santa Sé, seu nome foi muito bem visto mesmo não sendo católico, mesmo porque em um processo de mediação internacional não poderia haver diferenciações por causa de credos ou raças, embora seja praticamente impossível dissociar a figura do mediador da figura do representante chefe da Igreja Católica Romana, em negociações com um representante judeu do governo chileno. Um processo de mediação caracteriza-se, segundo Muszkat149, como um ―procedimento que traz em si a potencialidade de um novo compromisso político capaz de reduzir a desigualdade e a violência‖. A autora afirma ainda que seu objetivo é ―buscar acordos entre pessoas em litígio por meio da transformação da dinâmica adversarial, comum no tratamento de conflitos, em uma dinâmica cooperativa, improvável neste contexto‖.150 Necessariamente, a mediação consiste no envolvimento imparcial de um terceiro membro: a figura do mediador. Ele tem por função assistir e conduzir duas ou mais partes envolvidas no litígio a identificarem os pontos de conflito e, assim, desenvolver de forma mútua propostas que tenham por finalidade encerrar o conflito. O mediador, ou melhor, o representante de quem foi escolhido a mediar (no caso a Santa Sé), participa de reuniões com as partes conflitantes, apresenta propostas sobre a questão, coordena a discussão, facilitando a comunicação entre eles. Em casos de impasse, sua função é intervir para auxiliar uma fácil compreensão e reflexão dos assuntos e propostas. O mediador também não impõe às partes uma solução ou sentença, sugestões e conselhos se enquadram melhor nesta situação.

148

Ibid. p.159 MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo, Summus. 2008. p.09 150 Ibid. p.13 93 149

Souza151 afirma ainda que a mediação é um método diplomático de solução de controvérsia. Sua natureza é política e comporta todo tipo de argumentação além da argumentação jurídica. Para que aconteça a mediação, é necessário um acordo prévio entre as partes, na forma de um pedido formal de um mediador, o que demonstra uma predisposição de ambas as partes em solucionar o litígio. Assim, continua o autor, a ―essência da mediação consiste em aproximar possíveis divergentes e propostas‖. O processo de mediação no Caso de Beagle começou, segundo Souza152, com viagens do cardeal Samoré entre as capitais da Argentina e do Chile para recolher informações e se interar e colocar em andamento as posições de ambas as partes. O cardeal também tinha que apresentar idéias e projetos para ambos os Estados. A fim de reforçar a imagem de imparcialidade, quando o cardeal assistia a algum ato religioso em um país, assistia também no outro. Souza afirma ainda que o mais difícil para o Cardeal foi ―desbancar a desconfiança entre as partes, infundindo nelas a virtude contrária, ou seja, a confiança na gestão do Papa e a credibilidade entre Chile e Argentina‖. Em maio de 1979 chegam a Roma as duas missões dos dois países para se iniciar o processo de mediação da Santa Sé. A primeira fase da mediação foi entre maio e junho deste ano. Embora o processo de mediação começasse apenas em maio, a prática retórica de João Paulo II se iniciou no momento do Ângelus153 de primeiro de janeiro daquele ano. O interessante é que em um momento de expressão de fé para os católicos, o Papa se expressa sobre um conflito acerca de soberania estatal sem fazer menção a qualquer ato político no conflito.

151

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.179 Ibid. p.188 153 Ângelus é o momento que corresponde às 06hs, 12hs ou 18hs do dia, no qual os católicos relembram o momento em que o anjo Gabriel anunciou a Maria a concepção de Jesus Cristo. Trata-se de uma hora celebrada diariamente através de preces e orações. O Papa tem por hábito fazer seu pronunciamento também nesses momentos. 94 152

(...)y a la más reciente controversia surgida entre Argentina y Chile sobre la Isla del Canal de Beagle. Las Misiones enviadas por la Santa Sede han tenido, en uno como en otro caso, una cordial acogida, tanto por parte de las autoridades, como por parte de la población. Es necesario ahora que la plegaria de todos obtenga de Dios abundantes dones de clarividencia, equilibrio y fortaleza para que puedan recorrer los caminos de la paz, y se alcance cuanto antes la meta de una solución justa y honrosa.154

Segundo Souza155, em setembro de 1979 o Papa recebeu novamente as duas delegações, em audiência privada em sua biblioteca, a fim de estabelecer um método de trabalho na mediação. Novamente em um momento do Ângelus João Paulo II faz menção ao conflito entre os países. Aqui, o Pontífice já mostra um discurso mais aprimorado, fazendo menção indireta até às ditaduras militares, no momento em que toca no tema das pessoas desaparecidas. Diplomaticamente, através de construções retóricas, temas que não possuíam ligação com a religião são mencionadas em um momento de expressão de fé.

Como es bien sabido, Argentina y Chile tienen que resolver un problema, que los divide, sobre la zona austral de sus territorios. Desde los primeros meses de este año he aceptado la invitación a asumir la tarea de mediación. También los obispos se están afanando para crear un clima de distensión en el que sea más fácil superar la controversia. En la oración del Angelus de hoy, además de la alegría, debemos hacernos eco también de las preocupaciones, inquietudes y sufrimientos que no faltan en el mundo de hoy. No podemos olvidarnos cuando nos ponemos ante Dios, nuestro Padre, y cuando nos dirigimos a la Madre de Cristo y Madre de todos los hombres.

154

O discurso do Angelus de 1º de Janeiro de 1979 na íntegra encontra-se disponível em: . Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 155 SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.188 95

Así, con ocasión de los encuentros con peregrinos y obispos de América Latina, en especial de Argentina y Chile, se recuerda frecuentemente el drama de las personas perdidas o desaparecidas. Roguemos para que el Señor conforte a cuantos no tiene ya la esperanza de volver a abrazar a sus seres queridos. Compartamos plenamente su dolor y no perdamos la confianza de que los problemas tan dolorosos sean esclarecidos para bien no sólo de los familiares interesados, sino también para el bien y la paz interna de esas comunidades tan queridas para nosotros. Pidamos que se acelere la anunciada definición de las posiciones de los encarcelados y se mantenga un compromiso riguroso de tutelar, en cada circunstancia en que se requiere, la observancia de las leyes, el respeto a la persona física y moral, incluso de los culpables o indiciados de infracciones.156

Até o momento, as alocuções sobre o assunto proferidas por João Paulo II foram em ocasiões especificamente religiosas. A proposta papal para a solução do conflito foi feita em dezembro de 1980, diretamente às delegações da Argentina e do Chile presentes em Roma. Diferentes aspectos e temas aparecem nesta construção retórica que caminha entre ―vontade divina‖ e ―guerra entre os homens‖. João Paulo atribui em diversos momentos do discurso a Deus o fato de que os países nunca estiveram em guerra.

É verdade que, desde o momento em que os vossos povos adquiriram a independência no concerto internacional, não faltaram divergências entre eles. É verdade que nem sempre se verificou, nas relações mútuas, uma completa e luminosa «tranquilitas ordinis», expressão concisa consagrada por Santo Agostinho para definir de maneira insuperável a paz. Mas também é verdade — e salientei-o em setembro do ano passado perante membros destas representações governamentais que «é belo e consolador constatar 156

Este discurso do Angelus de 28 de Outubro de 1979 encontra-se disponível em: . Acessa no dia 11 de Janeiro de 2011. 96

que nunca houve um conflito bélico entre os dois Países». Trata-se de um facto singular, talvez único na história das relações entre as Nações limítrofes. Quase me atrevia a dizer que vejo nisto especial assistência da Providência de Deus misericordioso. Perante este facto, penso que ninguém poderá encontrar infundada ou carecida de lógica esta consideração: se Deus assistiu durante este tempo com tanto carinho ao desenvolvimento das relações entre as vossas duas Nações, como poderíamos eximir-nos nós a fazer tudo o que está nas nossas mãos para não perder esse dom inestimável da paz, privilégio da vossa história comum?157

Analisando retoricamente este trecho, João Paulo II inicia o seu discurso com uma alegoria. Segundo Olivier Reboul158, alegoria é ―uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata‖. No primeiro parágrafo, João Paulo II trabalha com a questão da divergência entre os países no âmbito internacional e encerra focando na busca de uma paz utópica de Santo Agostinho. Já no segundo parágrafo, o pontífice utiliza-se do exemplo como argumento. Para Reboul159, o exemplo em retórica é ―uma indução dialética, que vai de fato ao fato, passando pela regra subentendida‖, ou seja, procurase provar um fato futuro com uma ―regra‖ estabelecida a partir dos fatos passados. É o que o Papa busca fazer ao citar que as nações limítrofes nunca estiveram em guerra. No último parágrafo, João Paulo utiliza o argumento de autoridade: Deus. Reboul160 afirma que o argumento de autoridade ―justifica uma afirmação baseando-se no valor de seu autor‖. Para ele, esta autoridade ―baseia-se na moralidade‖, enquanto que em casos religiosos ―baseia-se na revelação‖. Assim, através de uma alegoria, um exemplo e um argumento de autoridade, o Papa faz claramente uma construção retórica neste discurso, argumentando com três figuras retóricas distintas para pousar 157

Discurso do Papa João Paulo II às delegações dos governos da Argentina e do Chile em 12 de Dezembro de 1980. Disponível em: Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 158 REBOUL, Olivier. Introdução... p.130 159 Ibid. p.154 160 Ibid. p.177 97

sobre o nós - nós no caso eles, o governo chileno e argentino - a responsabilidade de buscar a paz. Interessante que João Paulo II não fala explicitamente sobre o conflito, mas exalta muito a questão da paz – algo que posteriormente seria uma espécie de ―carro-chefe‖ em seu papado.

Se desta forma a controvérsia sobre a zona austral viesse a servir para que os desejos profundos dos dois povos se cristalizassem em tais compromissos, parece ao Mediador que nada de melhor se poderia desejar para essa zona do que convertê-la em símbolo e prova irrefutável de nova realidade; o que na minha opinião, se conseguiria declarando-a «Zona de paz», zona em cujo âmbito a Argentina e o Chile procurarão daqui por diante corroborar a sua decisão de convivência fraterna, abandonando todo o tipo de medidas ou atitudes que possam parecer menos adequadas para o desenvolvimento das suas relações amistosas.161

Neste trecho, novamente o papa utiliza o exemplo como argumento. Entretanto, este exemplo está atrelado a uma condição, se desta forma..., o que não descaracteriza o exemplo em si. A paz que tanto exalta em seu discurso junto de suas menções religiosas, caracteriza, segundo Reboul162, um exórdio, figura retórica que se encontra no início do discurso, ―que visa a tornar o auditório dócil, atento e benevolente‖. Ao exaltar a paz, ele cria um acordo com o auditório, pois ambas as delegações, assim como a opinião pública dos países, desejavam resolver a controvérsia de modo pacífico. Este acordo não significa o acordo pela solicitação da mediação, mas um acordo de valores, do verossímil entre as partes. Então, após estas construções retóricas, ele efetivamente entra na questão do litígio.

Neste contexto, sou da opinião que possíveis limitações das aspirações naturais, compreensíveis e respeitáveis, relativas àquela zona geográfica, 161 162

Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. REBOUL, Olivier. Introdução... p.248 98

dificilmente poderiam alcançar uma entidade tal que justificassem validamente a não aceitação de sugestões e conselhos destinados à solução da controvérsia e o consequente fracasso dessa integração, que já desde há tempo é objecto de negociações e aspirações muito lógicas. Por outras palavras: se a solução deste problema é destinada a abrir o caminho para um esplêndido desenvolvimento em benefício das duas Nações, vale bem a pena consagrar a essa solução a melhor boa vontade: as consequências vantajosas fariam, sem dúvida, esquecer todo o resto.163

Ao adentrar no litígio em si, primeiro João Paulo II expõe sua opinião sobre o conflito, sustentando seu raciocínio com um argumento pragmático, o que, segundo Reboul164, é o argumento no qual se ―permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis‖. O Papa não deixa também de exaltar as partes envolvidas e de valorizar o peso da opinião pública, algo que também viria a tornar-se um ponto nevrálgico em seu papado.

Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países — tão interessada neste problema — não deixará de ajudar e amparar aqueles a quem por razão das suas altas missões, corresponde tomar decisões adequadas nas próximas semanas. Por meu lado, considero verdadeira obrigação dar testemunho da diligência e da firmeza com que as Autoridades de ambas as nações, e todos os que aqui as representaram, expuseram e defenderam o que consideravam patrimônio das suas respectivas pátrias, com documentação abundantíssima e argumentos muito variados, explicados em centenas de conversações. Creio que ninguém — agora ou no futuro — deverá sentir-se autorizado a acusá-los de negligência ou incapacidade na defesa dos legítimos interesses nacionais, apesar de a aceitação, agora, das minhas sugestões e conselhos poder comportar modificações nas posições por eles mantidas. Fique sempre tranquila a sua consciência depois de terem cumprido cuidadosamente o próprio dever.165

163

Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. REBOUL, Olivier. Introdução... p.173 165 Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 99 164

Aqui João Paulo II inicia seu discurso com um entimenta, um ―silogismo rigoroso, mas que se baseia em premissas apenas prováveis (endoxa) que podem ficar implícitas‖.166 Tal figura fica caracterizada ao fazer alusão à opinião pública dos países: Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países... Ao discursar todo um parágrafo sobre os esforços dos países envolvidos, o Papa cria um argumento de superação em sua construção retórica. Para Reboul167, neste tipo de argumentação a ―finalidade desempenha papel motor‖, na medida em que o ―obstáculo transforma-se então num meio de passar para um estágio superior‖. O esforço dos países (o obstáculo) foi necessário para que se chegasse à resolução da beligerância. Esta primeira construção retórica de João Paulo II do ano de 1980 acerca do conflito parece bem articulada na medida em que mescla menções religiosas com menções políticas, propõe a paz e exalta os envolvidos. É uma construção retórica, que visa persuadir, claramente feito na forma de um discurso diplomático. Segundo Souza168, o conteúdo da proposta do mediador deveria permanecer confidencial até a aprovação por ambos os governos. João Paulo havia solicitado que ambos os governos deveriam expressar sua posição antes do dia 8 de janeiro de 1981. A proposta papal de mediação concedia as ilhas em disputa ao Chile, enquanto a zona marítima em questão seria uma zona econômica compartilhada por Chile e Argentina. Em 25 de dezembro de 1980, o regime militar que estava no poder no Chile professou sua aceitação à proposta papal. Já o regime militar argentino excedeu o prazo dado pelo Papa. A resposta então veio em forma de uma declaração pública em 25 de março de 1981 onde o governo argentino solicitou mais precisões e detalhes sobre a proposta mediadora. Assim, havia uma negativa por parte da Argentina. A negativa por parte da Argentina se dava em torno da soberania das ilhas e também da zona marítima em questão. Em 1982, João Paulo II recebe novamente as delegações dos países para uma nova tentativa de conciliação. Neste mesmo ano, a 166

REBOUL, Olivier. Introdução... p.247 Ibid. p.175 168 SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... 167

100

Argentina entra em guerra com a Inglaterra pela soberania das ilhas Malvinas. Era mais um empecilho no processo de mediação. Diplomaticamente, João Paulo II novamente faz menção a outro assunto além do Beagle (as Malvinas), porém, de maneira branda, evitando assim acirrar os ânimos de mais uma beligerância. É novamente um exórdio.

Excelentísimos Señores Subsecretario y Embajadores, y demás miembros de las distinguidas Delegaciones acreditadas para el desarrollo de los trabajos de la Mediación, Las preocupaciones de cada día y en especial de las últimas semanas por el grave conflicto entre una de vuestras Naciones y otra grande y no menos querida, no me han hecho olvidar el compromiso asumido, hace ya más de tres años, de ayudar vuestros Países a encontrar la solución al diferendo en la zona austral. A propósito de dicho conflicto, que ha tenido y sigue teniendo los ánimos en suspenso ante el temor de un lamentable enfrentamiento bélico, me he expresado repetidamente y en público durante los últimos veinte días, manifestando el deseo vivo —que ahora renuevo— de que se encuentre, gracias a la buena voluntad de ambas Partes, una solución satisfactoria basada en la justicia y en el derecho internacional, que excluya el recurso a la fuerza.169

Este discurso de João Paulo II, do ano de 1982, segue as mesmas linhas de pensamento do discurso de 1980, exalta a paz, opinião pública e o fato de que ambos os países nunca estiveram em guerra. Entre 1982 e 1984, ano em que definitivamente a controvérsia seria resolvida, a Argentina não só perde a guerra, mas também a guerra das Malvinas trouxe grandes conseqüências internas e externas ao país. Assim, assinado em 1984, o Tratado de Paz e Amizade entre Argentina e Chile solucionou definitivamente todos os problemas limítrofes nas ilhas e nas águas do sul dos países. 169

Audiência do santo padre João Paulo II às delegações de Argentina e Chile em 23 de Abril de 1982. Disponível em: Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 101

O tratado incluía a delimitação marítima, um procedimento para a solução de controvérsias, estipulava direitos de navegação e acertava de vez os limites no estreito de Magalhães. A proposta papal é aceita e, curiosamente, embasada no mesmo Laudo Arbitral de 1977, o qual a Argentina havia recusado. Segundo Souza170, o intercâmbio de direitos de navegação e a estabilidade do pacto entre as nações foram benéficos para as relações entre ambos os países e favoreceu o desenvolvimento da região. Tais avanços pareciam impossíveis no ano 1978. Na redação da proposta de paz nos Relatórios de Arbitragem Internacionais171 da ONU, há o laudo arbitral de 1977. Na parte do relatório onde efetivamente consta a mediação da Santa Sé, existe um prefácio de João Paulo II. Este prefácio é a reprodução na íntegra de seu discurso aos membros das delegações da Argentina e do Chile, feito no Vaticano em 1980. Em seguida, há um tratado de paz e amizade assinado entre os países. Na primeira linha do tratado consta: ―em nome de Deus o Todo-Poderoso, o Governo da República do Chile e o Governo da República da Argentina‖. Nesse mesmo tratado, ambos os países se comprometem a resolverem de forma pacífica os futuros litígios que, porventura, possam vir a surgir, além de se comprometerem também à cooperação econômica. Interessante é que em um documento oficial há, logo no exórdio, uma hipérbole, figura que para Reboul172 consiste em ampliar ou diminuir as coisas em excesso. Segundo o autor, uma hipérbole exprime o inexprimível, pois o que se tem a dizer é tão grande (ou pequeno) que não pode ser dito. A hipérbole é uma figura que tem papel fundamental na retórica religiosa, ―visto que só ela pode designar aquilo que não se pode denominar‖. No caso do tratado, a fundamentação do acordo está em Deus e assim se exprime: em nome de Deus o Todo-Poderoso. Outro aspecto interessante do documento é que essa fundamentação divina está presente logo no início. Ora, se o 170

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... ONU. Reports of International Arbitral Awards: Dispute between Argentina and Chile concerning the Beagle Channel. 18 Fevereiro 1977, VOLUME XXI, pp.53-264. Disponível em: Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 172 REBOUL, Olivier. Introdução... p.124 102 171

contexto secular, especialmente na diplomacia, era a praxe, logo tal menção pode ser um indicador que, no mínimo, a secularização não é um processo homogêneo, ou então que a Igreja Católica tentava retomar o seu papel dos tempos medievais, pois é um conflito em que a ICAR mediava entre dois países, não entre igrejas ou grupos religiosos.

3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle

Seguindo a fórmula de análise retórica proposta por Halliday, e considerando que todos os discursos têm suas limitações, é necessário que o retor saiba quais são as suas. Se tratando de uma mediação a nível internacional, a Santa Sé possui personalidade jurídica internacional para se apresentar como mediadora do caso. Entretanto, talvez com relação à legitimidade do Papa possa haver algum questionamento. A primeira questão a ser apontada é o processo de secularização que se encontrava em pleno funcionamento neste período. Recém eleito Papa, João Paulo II não poderia ainda ter noção da dimensão que o seu papado tomaria. Até então, ele era um Papa que possuía legitimidade oriunda de sua função religiosa e política, pois, um papa é chefe espiritual da Igreja e chefe do pequeno, mas reconhecido, Estado do Vaticano. Era um mediador legal oriundo de um Estado confessional. Além destes fatos, a Igreja Católica encontrava-se num período pós-Concílio Vaticano II (1963-1965). O objetivo da convocação deste Concílio pelo Papa João XXIII foi de buscar uma renovação para a Igreja, uma atualização de seus dogmas e posições até então nunca discutidas e impensáveis de serem mudadas. Ou seja, a Igreja buscava se colocar de uma forma eficiente no contexto histórico moderno. Muitos pensavam que era o momento dela definir-se a si própria, empenhar-se nos problemas do mundo com clareza, sabendo que era diferente do resto do globo, mas também co-responsável pela sua salvação. Em poucas palavras, a proposta era levar a Igreja a se atualizar no mundo e na história. O concílio encerrou-se em 1965 e os 103

papas pós- Concílio tiveram de lidar com suas conseqüências e incertezas, principalmente em quanto ao papel da Igreja Universal, além da questão da sua legitimidade perante o mundo. Giuseppe Alberigo173 em seu livro sobre a história dos Concílios escreveu:

Embora falando de ―proposta‖, João XXIII não deixava dúvidas sobre a sua determinação de convocar o concílio, dando-lhe o objetivo de renovação, que deveria abarcar todos os âmbitos cristãos, do mais próximo (o dos cardeais, aos quais o Papa pedia adesão e sugestões) ao mais remoto (dos nãocatólicos, a quem o Papa renovava o ―apelo a seguir-nos amavelmente nessa busca de unidade e de graça‖).

Outro aspecto que poderia pesar de forma negativa na retórica do Papa como mediador eram as ditaduras militares nas quais se encontravam Chile e Argentina. De 1973 até 1990, uma junta militar comandada por Augusto Pinochet governou o Chile, e quase sem oposição, pois os opositores eram presos ou mortos. Na Argentina também havia um regime ditatorial que se escondia por detrás do chamado Processo de Reordenação Nacional. Esse regime político dava igual poder aos três ramos das forças armadas argentinas e previa-se a alternância no poder, mas o exército sempre teve uma certa preponderância. Aparentemente, a Argentina se mostrava mais inflexível com o caso de Beagle, visto as declarações dos governantes. Assim, o cenário não se mostrava favorável a um acordo pacífico. Porém, tais condições foram certamente levadas em conta pelo pontífice, pois ele sabia que não poderia em momento algum dizer algo que incitasse ou levasse ambos os governos a algum tipo de confronto.

173

ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo, Paulus, 1995. p.395 104

3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle

O ato retórico da Santa Sé obteve êxito. Entretanto, a questão da paz que permeou toda a construção retórica de João Paulo II não está somente atrelada à nobreza da causa. A Igreja sabia da importância da América Latina para seus ideais e sabia que o ―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Nos anos 60 e 70, este continente sofria com ditaduras militares. Em 11 de setembro de 1973, os militares chilenos tomaram o poder e instauraram a ditadura dirigida por Pinochet. Além do caso chileno, semanas antes ocorreram golpes militares no Uruguai e na Argentina. Brasil e Bolívia já sofriam nas mãos dos militares desde a metade da década anterior. Como se não bastasse, Cuba aproximava-se da União Soviética, desde 1959, especialmente após a decretação dos embargos norte-americanos à ilha. Na América Central, no mesmo período da visita de João Paulo II ao México, a Nicarágua derrubava a ditadura Somoza, a qual durara mais de 40 anos, e os sandinistas tomavam o poder. Além disso, a metade dos católicos do mundo está na América Latina, daí ser uma região de extrema relevância para a Igreja. Quando Bernstein e Politi174 afirmaram que o sinal que emanava da mediação era importante no caso de Beagle, podem estar certos na medida em que a mediação incorporou positivamente o ethos de João Paulo II. Naquele momento se iniciou um estilo peculiar no seu papado baseando-se na questão da paz mundial. O conceito de paz da Santa Sé está baseado em encíclicas, que são documentos sociais, fundamentados em uma passagem bíblica. Neste caso, elas são a encíclica Pacem in Terris, o documento social Gaudium et Spes e a passagem bíblica ―Cristo é Nossa Paz‖, retirada da Carta do Apóstolo Paulo aos Efésios, Capítulo II, versículos 14 ao 17. Esse uso da Bíblia aparece tanto na encíclica como no documento social. Ora, essa passagem refere-se ao símbolo máximo do cristianismo, o próprio filho de Deus que numa religião monoteísta encarnado na Terra, em forma humana, morreu

174

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Id. p.203 105

crucificado pelos ―pecados‖ dos homens e ressuscitou, segundo os cristãos, oferecendo-se a si mesmo como base para a reconciliação e a paz entre os homens. A mediação feita por João Paulo II, além de dar a oportunidade de exposição a nível global da Igreja Católica, propiciou o que este Papa enxergou ser relevante no contexto da época, a paz. Assim, por meio desta questão, o Pontífice adquiriu legitimidade a nível mundial, consagrando-se como líder religioso e pacifista. Não é necessariamente fruto desta mediação tal condição, porém naquele momento a construção retórica além de persuadir os beligerantes a evitar o conflito, iniciou também uma persuasão sobre a dimensão da paz. Segundo Norberto Bobbio175, paz é sempre definida em função da definição de guerra. O binômio "paz-guerra" dá-nos a sensação que ora a palavra paz assume papel negativo e ora o papel positivo. Assim, se no sentido geral define-se paz no sentido negativo, a palavra guerra é a que assume o papel relevante. Já no sentido restrito, a paz assume papel positivo quando se quer por fim a um conflito particular. Nesse contexto de pós-guerra, Guerra Fria e de ditaduras militares, a Igreja parece ser a busca da paz, uma saída concreta para se adquirir legitimidade entre os povos, nações e indivíduos, dentro de um contexto movido pelo pluralismo e secularidade. Ao exaltar a paz, João Paulo a trata como um bem comum. O conceito de bem comum pode ser facilmente confundido com vontade geral. Segundo Bobbio176, embora bem comum seja um conceito objetivo, vontade geral é subjetivo, justamente pela relação de ambos os conceitos com bens individuais ou vontades particulares: tanto bem comum como vontade geral demonstram uma vontade moral dos indivíduos. Aí fica característico o acordo entre o retor e seu auditório. O acordo pressupõe a premissa da paz. Ao exaltar desta maneira a paz, João Paulo II cria uma figura de linguagem retórica que, segundo Reboul177, é uma ―figura pela qual o orador finge dirigir-se a outro auditório, e não ao seu‖. A paz torna-se um bem comum global, não somente para as delegações de Chile e Argentina ou para a Igreja. Ambos os conceitos encontram dificuldades. Empiricamente é humanamente 175

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986. Ibid. p.106-107 177 REBOUL, Olivier. Introdução... p.244 106 176

impossível dizer quem seria o portador da vontade geral, podendo-se aceitar apenas a vontade da maioria como sendo a vontade de todos. Sendo assim, é difícil saber quem seria o intérprete do Bem comum: podendo ser o magistério da Igreja, isto é, uma estrutura burocrática portadora do carisma, ou podendo ser os cidadãos que, ao contrário, na prática, ―lutam e entram em contraste entre si justamente pelas diferentes interpretações do que venha a ser Bem comum ou de qual seja o fim para onde encaminhar a sociedade humana.‖ A esse respeito Bobbio registra que:

O conceito de Bem comum é próprio do pensamento político católico, e, em particular, da esco-lástica nas suas diversas manifestações desde S. Tomás a J. Maritain, e está na base da doutrina social da Igreja, baseada no solidarismo. O Bem comum é, ao mesmo tempo, o princípio edificador da sociedade humana e o fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural e temporal. O Bem comum busca a felicidade natural, sendo portanto o valor político por excelência, sempre, porém, subordinado à moral.178

O ato retórico em questão agregou valores já existentes na Igreja e no Ocidente às novas demandas políticas, sociais e religiosas.

3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle

Depois de se discorrer sobre os antecedentes, fisiologia, o próprio ato retórico, suas contingências e sua interpretação, é a vez do julgamento do ato retórico. Este passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios pragmáticos, estéticos ou éticos à luz da formação do analista, segundo Halliday179. Como critério pragmático, uma ação persuasiva e tratando especificamente de Relações Internacionais, poderíamos incluir a política externa do Vaticano aparentemente 178 179

BOBBIO, Norberto. Id. p.106 HALLIDAY, Tereza. Id. p.130 107

como wilsoniana e idealista180, pois tais pensamentos baseiam-se na hipótese fundamental de que a paz e a ordem são objetivos naturais à condição humana. Pessoas agregam-se em favor de obter a organização necessária à sobrevivência, ao bem-estar e ao progresso; neste caso, é natural que em um estágio mais avançado, povos e nações inteiras venham a cooperar em busca de uma organização mundial, capaz de prover e manter a paz e a ordem. Isto não seria feito por mero altruísmo, embora resultante de uma necessidade concreta e necessária à sobrevivência. Esta é precisamente a inspiração da Organização das Nações Unidas, a maior exemplificação do pensamento wilsoniano. No entanto, ao se analisar a política idealista do Vaticano, é possível ver nela uma caracterização mais complexa. Agindo em nome de seus interesses institucionais e de sua missão, a Santa Sé tem adotado posições realistas em sua foreign policy conscientemente ou não, ao mesmo tempo em que promove uma visão idealista de mundo. Os realistas enxergam os conflitos de interesse como inevitáveis em um ambiente cujo desequilíbrio de forças produz hierarquias. Até porque a própria condição básica para a existência de um Estado, que é a soberania, é suficiente para suscitar atritos. Ora, se é soberano, um Estado não é obrigado a obedecer a outro, ou então deverá necessariamente admitir que já não é mais soberano. Além disso, existem dificuldades intransponíveis em se legislar sobre as relações interestatais. Considerando o conflito de soberania, fazê-lo não é ―simples‖ como legislar a relação de um Estado e o indivíduo. Podemos enxergar este realismo de modo bastante evidente na questão da queda do comunismo, por exemplo. Durante a Guerra Fria, nos pontificados de Pio XII, João XXIII, Paulo VI e posteriormente com João Paulo II, a Igreja tornou-se um referencial de resistência ao comunismo, principalmente na Polônia, no pontificado de João Paulo II, quando torna-se, então, uma figura-chave, do ponto de vista estratégico, principalmente norte-americano, no processo de queda dos regimes autoritários do Leste Europeu. Ou seja, mesmo que João Paulo II nunca tenha mencionado que almejasse acabar com o comunismo, ele foi um fator crucial 180

A respeito das Teorias das Relações Internacionais, ver em: BRAILARD, Phillippe. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa, FGB, 1990 108

que, querendo ou não, mexeu diretamente nas estruturas socialistas e, consequentemente, na questão da soberania dos Estados dirigidos pelos princípios do marxismo-leninismo. A União Soviética foi desmembrada com a queda do comunismo, surgindo então novos Estados Soberanos e uma nova Federação Russa. Portanto, mesmo com a visão idealista, algumas de suas ações podem ser vistas como realistas, pois podem trazer conseqüências realistas. No caso de Beagle pode-se dizer que, embora a busca pela paz seja idealista, a partir do momento que João Paulo II, líder da Igreja Católica Apostólica Romana assina como mediador, chefe de Estado da Cidade Estado do Vaticano, um tratado de paz entre duas repúblicas independentes, as conseqüências deste ato são realistas.

3.2 – A invasão do Iraque Um segundo exemplo aqui analisado de como a retórica da ICAR foi direcionada para questões internacionais pode ser recortado a partir do discurso por ocasião da invasão do Iraque por forças da ONU, porém, liderada pelos Estados Unidos no período Bush filho, em 2003.

3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque

Embora o conflito no Oriente Médio seja longo e extenso, o recorte deste trabalho para explicitar os antecedentes da situação retórica em questão tem seu início no dia 11 de Setembro de 2001, dia no qual ocorreu o atentado terrorista ao World Trade Center em Nova Iorque. Fato este que surpreendeu todo o mundo pela sua dimensão e, devido aos avançados meios de comunicação, transmissão em tempo real. Aviões comerciais foram usados como armas no maior ataque terrorista da história dos Estados Unidos, onde se estima que foram perdidas mais de 3 mil vidas. Há também as tensões não resolvidas da 1ª Guerra do Iraque na década anterior, quando Bush (pai) invadiu o Iraque a partir do Kuwait, no que deteve as tropas ante 109

de conquistar Bagdá. A reação do Papa foi assim descrita pelo historiador John Cornwell181: Assim como o resto do mundo, João Paulo soube que milhares de pessoas tinham morrido quando dois aviões comerciais seqüestrados com seus passageiros a bordo explodiram ao se chocar contra o World Trade Center em Nova Iorque. Menos de duas horas depois, um outro avião seqüestrado fora jogado contra o Pentágono, matando cerca de 200 pessoas, e um outro avião, a caminho de um objetivo desconhecido, caíra na Pensilvânia, não longe da residência presidencial de Camp David. Logo veio à tona que os ataques tinham sido obra de extremistas islâmicos: levou um pouco mais de tempo para ficar estabelecido que o sombrio organizador de tais atrocidades era Osama bin Laden e seu grupo terrorista, a Al Qaeda.

Tais ataques desencadearam reações em todos os países e mostraram a fragilidade da nação mais poderosa da Terra, lançando dúvidas sobre a capacidade mundial de controlar grupos extremistas. O medo tomou conta das nações ocidentais e as pessoas se viram obrigadas a entender suas diferenças e analisar suas desconfianças quanto à civilização islâmica. Na caçada pelos culpados e na busca pelo que se dizia ser ―segurança‖, a liberdade civil sofreu um baque tão poderoso quanto as torres gêmeas do World Trade Center. O Congresso Americano aprovou uma legislação mais dura contra o terrorismo. Países da Europa fizeram o mesmo, sob protestos de grupos de defesa dos direitos humanos. O 11 de Setembro produziu inúmeras conseqüências negativas. No plano interno, os Estados Unidos experimentaram uma grave retração dos direitos civis. No plano internacional, velhas rivalidades se acirraram. Sob o pretexto de combater o terrorismo, Israel investiu mais pesadamente contra os palestinos. O mesmo fizeram os russos em relação a tchetchenos e chineses em relação a uigures e tibetanos, citando apenas algumas disputas. Desde que o presidente George W. Bush se declarou em uma cruzada contra o terrorismo e o ―eixo do mal‖, os norte-americanos

181

CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005. p.233 110

invadiram países muçulmanos no Oriente Médio e, dentre esses, o Iraque e o Afeganistão. Em contraponto a esta invasão e principalmente às conseqüências de uma possível e eminente guerra, a Igreja Católica surgiu como uma força em prol da paz, utilizando-se de seu legado, legitimidade e influência diante do mundo. Imediatamente após os ataques, o Pontífice da Igreja se pronunciara repudiando os ataques à Nova York e Washington, quando se disse afetado pelo ―horror indescritível‖ dos ataques, manifestando toda sua preocupação com as vítimas inocentes que lá estavam. O líder católico enviou um telegrama ao presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, dizendo que rezaria pelas vítimas, expressando sua solidariedade ao povo norte-americano. João Paulo II afirmou ainda, durante seu pronunciamento, que o terrorismo nada constrói. Cornwell182 defende que o impulso de João Paulo II de agir contra a guerra vinha de sua leitura de um eminente confronto armado. Para Cornwell, ―estava claro que João Paulo e alguns de seus auxiliares, que liam pela mesma cartilha, estavam pressentindo que o mundo se encontrava sob a ameaça de um banho de sangue‖, enquanto que ―João Paulo preparava-se para se opor implacavelmente a uma ação militar‖. Porém, 15 dias depois, em 27 de setembro de 2001, o Vaticano se pronunciou legitimando um ataque dos Estados Unidos contra o Taleban, o grupo extremista islâmico que foi classificado como o responsável pelos ataques.183 Em uma entrevista à rede de televisão Televisa do México, na Armênia, o então porta-voz chefe do Vaticano, Joaquin Navarro-Valls, repetiu os pontos básicos de uma entrevista concedida no dia 24 de Setembro enquanto o Papa João Paulo II estava no Cazaquistão. Navarro-Valls disse à Televisa que uma eventual ação dos Estados Unidos não poderia ser vista simplesmente como um ataque, mas sim como uma ―ação de prevenção ativa‖ contra uma real ameaça que ocorreu dias antes e que poderia acontecer de novo. Essa seria a visão do Vaticano. Ele ainda afirmou que o Vaticano não estava dando "sinal verde" para Washington tomar a decisão de uma 182

Ibid. p.235 As datas apresentadas neste trabalho foram retiradas dos almanaques anuais da Folha de S. Paulo dos anos de 2001, 2002 e 2003. 111 183

ação militar indiscriminada, como alguns meios da imprensa noticiaram no início daquela semana. Ele frisou que a posição dele não era simplesmente ―faça o que quiser‖, pois como um cristão no posto de porta-voz chefe do Vaticano, tinha de ser fiel a uma ética cristã muito precisa no que se trata de ―legítima defesa‖ 184, retomavase assim a idéia de ―guerra justa‖. Cornwell defende que esta declaração do porta-voz foi profunda a ponto de caracterizar as ações diplomáticas deste ato retórico. O autor defende que os ―comentários atribuídos a Navarro-Valls no vôo em que saíram do Cazaquistão tinham sido interpretados pela rede noticiosa CNN como uma bênção papal aos bombardeios aéreos no Afeganistão‖.185 Ele ainda reitera que a declaração do porta-voz é a reprodução de instruções do próprio Papa. Isso contradizia frontalmente as declarações de João Paulo quando apelou para soluções pacíficas, bem como os comentários ufficiali de Kasper e Tucci no fim-de-semana. Indagado mais tarde a esse respeito, Navarro-Valls recusou-se a admitir que existisse qualquer contradição envolvida entre suas palavras e as do papa. Evitou outras perguntas dizendo: ‗Eu apenas repeti o que está escritos no catecismo sobre guerra justas‘.186

Ora, observamos que desde 11 de setembro de 2001 até o dia 20 de março de 2003, quando o primeiro bombardeio norte-americano caiu sobre Bagdá, foram inúmeras as ações tanto por parte do Vaticano, que tentou evitar a guerra a qualquer custo, quanto por parte dos Estados Unidos, que buscaram o conflito em todo momento a qualquer custo.

184

O princípio de legítima defesa na ética cristã será melhor estudado no item 3.2.5., sobre a interpretação do ato retórico. 185 Ibid.p.238 186 Ibid. p.237 112

3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas do Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque

O problema retórico a ser resolvido neste caso da invasão iraquiana, é o esforço público por parte do Vaticano, liderado por João Paulo II, que se aproveitou do prestígio adquirido ao longo de seu papado na tentativa de evitar esta empreitada norte-americana. Este esforço ficou característico nas atividades diplomáticas no período pré-invasão por parte do Vaticano. A Santa Sé buscou intervir nesta invasão também por meio de declarações de seu pontífice. As declarações e ações diplomáticas foram relatadas por diversos meios de comunicação em todo o mundo. As declarações completas e discursos dos membros da Santa Sé encontram-se disponíveis no jornal oficial do Vaticano, o L’Osservatore Romano.Segundo Thomas Reese187,

existe uma edição diária italiana, além de

edições semanais em espanhol, inglês, francês, alemão, italiano e português, além de uma edição mensal em polonês. Este jornal não possui praticamente propaganda nenhuma e, segundo Reese, teve um prejuízo de 5,5 milhões de liras no ano de 1994. Os seus gastos foram reduzidos no período de sua modernização, vez que seu maquinário era tão antigo que ―uma das prensas era tão velha que foi doada a um museu depois de sua substituição‖. Os índices de venda deste jornal estão atrelados às vendas decorrentes de assinaturas e bancas de jornal, porém estes índices ―cobrem cerca de metade dos custos da publicação‖. Reese sobre isso afirma que o jornal: L’Osservatore Romano tem sido comparado ao Pravda na época do Kremlin

anterior

à

Perestroika.

Seu

formato

pesado

está

repleto de

pronunciamentos papais, documentos do Vaticano e comentários aprovados. Como um serviço documental, é um instrumento de pesquisa valioso, mas para o leitor médio é uma cura para a insônia.188

187 188

REESE, Thomas J. O Vaticano... p.298 Ibid. p.298 113

3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque (2003)

Seguindo o esquema de análise retórica de Halliday, pode-se dizer que o ato retórico tem seu início na primeira declaração por parte do Vaticano acerca da invasão ao Oriente Médio, a declaração de Joaquim Navarro-Valls. Percebe-se neste momento o esboço de um protagonismo do Vaticano pós-11 de setembro. Essa teria sido a primeira ação diplomática do Vaticano sobre uma eventual investida militar. Quando Joaquin Navarro-Valls diz ser uma ―ação de prevenção ativa‖ e legitima uma eventual investida militar, faz eco a uma posição da Igreja consagrada no documento social Gaudium et Spes e abre uma espécie de canal de conversação com os Estados Unidos, utilizando-se muito bem das figuras retóricas, classificando a eventual investida militar como ―prevenção ativa‖. Através destas declarações, a Santa Sé coloca-se ao lado dos Estados Unidos, aludindo à ―legítima defesa‖ e se dizendo ―horrorizada‖ com os ataques. A Igreja entenderia ser a eventual investida militar como uma prevenção ativa, entretanto, ainda preferia que tudo fosse resolvido através de meios pacíficos. Em 3 de outubro de 2001, o Papa João Paulo II declarou que a religião não poderia justificar os conflitos no mundo e que cristãos e muçulmanos deveriam rejeitar a violência. No dia 11 de dezembro de 2001, o Pontífice condenou o terrorismo como um crime contra a humanidade, afirmando que o fundamentalismo fanático é uma atitude contrária à fé em Deus. E no dia 19 de dezembro de 2001, João Paulo II afirmou que as festividades de natal daquele ano estariam prejudicadas pela quantidade de guerras e conflitos que havia ao redor do globo. Esta foi a atmosfera que encerrou o ano de 2001, se tornando mais tensa em relação ao conflito na medida em que chegava o ano novo. No início de 2002, em seu tradicional discurso ao corpo diplomático, João Paulo II reafirmou que a luta contra o terrorismo é legítima, classificou o bordão ―matar em nome de Deus‖ como blasfêmia, e pediu aos dirigentes políticos que dessem preferência ao diálogo e negociações pacíficas para resolverem seus 114

conflitos189. Enquanto isso, George W. Bush dava sinais cada vez mais claros de que invadiria o Iraque. No dia 29 de janeiro de 2002, os Estados Unidos, na sua busca por uma justificativa, deixava claro em sua retórica a invasão militar, referindo-se ao ―eixo do mal‖ incluindo-se nele o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. Neste mesmo período, João Paulo II na tentativa de impedir uma guerra que se desenhava cada vez mais rápido, enviou aos governantes de todo o mundo um texto escrito por ele que condena a violência e o terrorismo, prenunciando a paz, intitulado o "Decálogo de Assis"190. Depois dos trágicos ataques do último 11 de setembro, que nunca serão esquecidos, e em vista da ameaça de novos conflitos, os religiosos acreditam na necessidade de intensificar suas preces para a paz, porque isso é, acima de tudo, um presente de Deus. Diante da violência que atinge muitas partes do mundo hoje, sentimos a necessidade de mostrar que as religiões podem alimentar a solidariedade, rejeitando e isolando os que exploram o nome de Deus com objetivos e com intenções que ofendem Deus.191

Ao dizer que a paz acima de tudo é um ―presente de Deus‖, João Paulo II transcende inclusive a própria Igreja e deixa o conceito de paz fora de qualquer ideologia, tornando-o um conceito ―apolítico‖ e colocado como um valor universal. Para tal, João Paulo, como é crível para um líder religioso, se utiliza do argumento de autoridade nesta construção retórica: Deus. Características oriundas de habilidades diplomáticas, ele fala para governantes de todo o mundo algo que interessa a todos no momento, baseado na autoridade divina que lhe é dada: a paz. Ao mesmo tempo, não dá margem a nenhum tipo de abordagem política ou ideológica de algum ouvinte de sua homilia. Outro ponto interessante de se abordar neste discurso é a forma como João Paulo II condena o uso da religião para intenções ruins. Ou seja, de uma forma O discurso ao corpo diplomático na íntegra se encontra em L‘Ossservatore Romano nº 50, de 15 de dezembro de 2001. p.8 e 9. 190 Para melhor conhecimento do Decálogo de Assis, ler em L’Osservatore Romano nº 10, de 9 de março de 2002. p.1. 191 JOÃO PAULO II, O Decálogo de Assis para a Paz in L’Osservatore Romano, em 19 de março de 2002. p.01 115 189

não direta, João Paulo II faz menção aos grupos terroristas extremistas que justificam seus ataques sob pretensões religiosas. De um modo sutil, ele não acusa ninguém, mas dá seu recado implícito ao mundo islâmico, protagonista direto e indireto do conflito, na medida em que os atos de guerra e de paz afetam todos os islâmicos e não somente os extremistas. O segundo semestre de 2002 caracterizou-se pela movimentação e preparação de George W. Bush para invadir o Iraque, começando por embargos financeiros contra esse país, logo em 1º de Agosto. Depois dos embargos financeiros, os Estados Unidos começaram a tratar de questões militares e começaram a deslocar a sua máquina de guerra para o Oriente Médio, enviando o seu porta-aviões USS Constellation para o Golfo Pérsico com outros seis navios em novembro deste ano. Neste mesmo período o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que exigia o desarmamento do Iraque. O país chegou até a entregar à ONU um dossiê com cerca de 12 mil páginas sobre seu programa de armas, mas mesmo assim foi insuficiente para brecar a ofensiva militar dos Estados Unidos. Já no fim do ano de 2002, próximo ao Natal, o Papa, vendo que a guerra estava cada vez mais próxima, apela pela paz mais uma vez em seus discursos. Ele pediu, em sua mensagem de Natal, que o mundo evitasse um conflito no Iraque e apelou pela paz entre israelenses e palestinos. Foi a primeira menção pública que o Papa fez especificamente à crise iraquiana e à eminente invasão192. Já o ano de 2003 se caracterizou pelas ações diplomáticas mais relevantes do Vaticano. Neste caso do Iraque, podemos enumerar algumas das ações mais relevantes por parte da Igreja, vejamos: em seu discurso ao corpo diplomático, no dia 13 de Janeiro de 2003, o Papa discorreu inteiramente baseado na encíclica Pacem in Terris; o Cardeal Roger Etchegaray foi o enviado especial do Papa a Bagdá para encontrar com o então presidente iraquiano Saddam Hussein, no dia 15 de fevereiro de 2003; o Cardeal Pio Laghi foi enviado a Washington para um encontro com o presidente norte-americano, George W. Bush, no dia 5 de Março de 2003; o Cardeal 192

Tal menção pública foi feita em uma de suas homilias na praça da Basílica de São Pedro para as festividades de natal do ano de 2002, noticiada pela Folha de São Paulo no dia 21 de Dezembro de 2002, no caderno Mundo. 116

Celestino Migliore, observador permanente da Santa Sé junto à Organização das Nações Unidas, discursa sobre a situação do Iraque e Kuwait no dia 19 de fevereiro de 2003. Na primeira situação retórica citada acima, em seu costumeiro discurso ao corpo diplomático, o Papa trata de alguns temas sobre a paz apropriados para o ano de 2003. Para isto, mostrando que a Igreja tinha uma posição própria e consolidada há 40 anos, ele recorreu às grandes declarações católicas a respeito da guerra e da paz. Fez assim uma abordagem da encíclica Pacem in Terris (1963), permitindo, por um lado, demonstrar a importância deste documento e sua influência e, por outro lado, atualizar a mensagem da encíclica segundo a situação do mundo em que vivia, mesmo depois de quatro décadas de sua publicação. O Papa, através da citação da encíclica, fala em ―consciência espiritual‖ e suas conseqüências públicas e políticas. Este gancho feito por Wojtila demonstrou uma relevância no campo dos direitos humanos, sendo a paz possível somente por meio da consciência da dignidade humana e do valor de tais direitos. Para tal argumentação, João Paulo cita a encíclica de João XXIII e o faz como um argumento de exemplo, justificando o presente num fato passado. Outra característica desta intervenção diplomática é a reprodução de capital simbólico à luz do conceito de Pierre Bourdieu193; João Paulo não produz necessariamente algo novo para a questão, mas reproduz o conteúdo da encíclica dos anos 60. À vista da crescente consciência dos direitos humanos que se ia manifestando a nível nacional e internacional, João XXIII intuiu a força contida em tal fenômeno e o poder extraordinário que tinha para modificar a história. Uma singular confirmação disto mesmo, temo-la no que sucedeu poucos anos depois, sobretudo na Europa Central e Oriental. O caminho para a paz, como o Papa ensinava na encíclica, devia passar pela defesa e promoção dos direitos humanos fundamentais.194

193

Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 Idem, Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano nº51, em 21 de Dezembro de 2002, p.08 117 194

Outro ponto que a mensagem de João Paulo II releva é a idéia de um bem comum universal. O Papa endossa a legitimidade de uma autoridade pública a nível internacional, com capacidade de promover o bem comum universal, bem comum esse que fica claro se tratar da paz, visivelmente apontando para um possível papel a ser desempenhado pela Organização das Nações Unidas, criada em 1945, e da Declaração dos Direitos do Homem, de 1948. Uma das conseqüências desta transformação era evidente: a necessidade de haver uma autoridade pública a nível internacional, dispondo de efectiva capacidade para promover o referido bem comum universal. Esta autoridade – acrescentava imediatamente o Papa – não deveria ser estabelecida por coacção, mas apenas com o consentimento das nações. Deveria tratar-se de um organismo que tivesse como objectivo fundamental o reconhecimento, o respeito, a tutela e a promoção dos direitos da pessoa.195

Para embasar sua construção retórica, João Paulo utiliza aqui o argumento pragmático, que se sustenta pela sua conseqüência: a necessidade de haver uma autoridade pública a nível internacional. Há também um entimenta na sua construção retórica, na medida em que parte da premissa do verossímil, no caso o bem comum universal. Outro aspecto neste discurso, que se torna fundamental para o rumo das ações diplomáticas do Vaticano, é a questão moral. Neste aspecto, o Papa busca passar a mensagem de que a realização da paz não é algo que diz respeito somente às instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade de cada homem. Ao passar essa mensagem o Papa reforça seu papel de ―força moral‖ contra a guerra, incentivando a responsabilidade da paz de forma individual, em uma tentativa, a nosso ver, de conquistar a opinião pública. Assim, para o seu discurso o Papa passaria a agir não só em nome da Igreja, mas em nome da humanidade. A este respeito, quero com humilde ousadia fazer notar que a doutrina plurissecular da Igreja que vê a paz como ’tranquillitas ordinis‘ – tranqüilidade da ordem – segundo a definição de Santo Agostinho (De civitate Dei 19, 13) 195

Id. Ibid. p.08 118

aprofundada na Pacem in terris, se revelou particularmente significativa no mundo contemporâneo, tanto para os Chefes das nações como para os simples cidadãos.196

Para sustentar seu argumento, João Paulo se utiliza novamente do exemplo ao citar a Pacem in terris, além de se utilizar de uma alegoria, buscando metaforicamente mudar a realidade conhecida, enunciando uma realidade abstrata. Em relação à divergência no âmbito internacional entre os países, a alegoria se faz presente na busca metafórica de uma paz utópica de Santo Agostinho. Estes são alguns dos aspectos relevantes do discurso de João Paulo II ao corpo diplomático, em 2003, meses antes da invasão do Iraque. Esta é a primeira ação diplomática importante a respeito de tal invasão no ano em que ela ocorreria. Aqui vale relembrar o historiador Cornwell: No primeiro dia do ano, Dia da Confraternização Universal, ele [o Papa] antecipou o quadragésimo aniversário da grande encíclica Pacem in terris (Paz na Terra) do seu predecessor João XXIII. Era como se ele estivesse se firmando para enfrentar uma investida de retórica de guerra. Uma vez mais, recorreu a um papa do passado para sustentar sua visão pontifical.197

A segunda e mais intensa ação diplomática devido ao deslocamento de membros da Cúria, no caso o presidente do Conselho para a Justiça e a Paz, Cardeal Roger Etchegaray, para encontrar-se com Saddam Hussein em Bagdá. Este encontro se deu em 15 de Fevereiro de 2003, onde o cardeal entregou uma mensagem do próprio Papa ao presidente iraquiano. Ao mesmo tempo em que Etchegaray estava em Bagdá, o pontífice recebia em audiência no Vaticano Tarek Aziz, Vice Primeiro Ministro do Iraque. É importante salientar que a grande maioria da população iraquiana é muçulmana e não católico-cristã. Mesmo assim, ocorre a ação diplomática por parte do Cardeal, que mesmo sabendo de tal condição repassa a mensagem de João Paulo II. A mensagem exalta a paz acima de qualquer governo ou religião, característica no jogo de palavras, onde o auditório da construção retórica é 196 197

Idem. p.08 CORNWELL, John. A face... p.281 119

chamando de ―descendentes de Abraão‖, englobando assim cristãos, judeus e muçulmanos, as principais partes envolvidas no conflito. Etchegaray afirma depois o seguinte: Não fiz senão segui-lo pelo meio das comunidades cristãs, de todo o povo iraquiano, junto do Presidente Saddam Hussein, que manifestou uma intensa e profunda escuta da palavra viva que vem de Deus e que todos os crentes, descendentes de Abraão, recebem como o fermento mais seguro da paz.198

Analisando retoricamente, ao fazer referência a descendentes de Abraão, João Paulo estabelece o acordo como orador com seu auditório. Entretanto, pela dimensão da expressão, o pontífice tenta ampliar o alcance de sua construção retórica partindo em busca do auditório universal. Reboul199 afirma que o ―auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico‖. Porém a sua função seria a do ―ideal argumentativo‖. O autor afirma que o orador ―sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo‖. A mensagem assim se dirige na direção de outros auditórios ―possíveis que estão além dele‖, onde o orador considera ―implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções‖. Outro ponto que a mensagem ao presidente iraquiano realça é a necessidade de aderir às resoluções das Nações Unidas. Entretanto, Etchegaray apresenta a Saddam Hussein essa adesão como em nome da comunidade internacional, se referindo à tensão entre o Iraque e a ONU devido à inspeção de armamentos de destruição em massa. ―A nova e breve trégua que se impôs deve ser utilizada por todos, integralmente e num espírito de confiança recíproca, para corresponder às exigências da comunidade internacional‖.200 Aqui novamente o entimenta; a premissa da comunidade internacional em função do argumento pragmático da conseqüência da adesão à comunidade internacional. ETCHEGARAY, Roger. A paz ainda é possível no Iraque e para o Iraque! in L’Osservatore Romano nº 8, em 22 de Fevereiro de 2003. p.01 199 REBOUL, Olivier. Introdução... p.93 200 ETCHEGARAY, Roger. Id. p.01 120 198

Quase ao mesmo tempo em que enviava um mensageiro à nação que provavelmente seria invadida, João Paulo II enviava também um mensageiro à provável nação invasora. Em 5 de março de 2003, o Cardeal Pio Laghi, delegado apostólico do Papa em Washington, se encontrou com o Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Naquele país, a maioria da população é protestante. O conteúdo daquela mensagem continha dois aspectos relevantes que podem ser caracterizados como uma evocação dos princípios de convívio internacional consagrados após a II Guerra Mundial. O primeiro aspecto foi a insistência de que diferenças podiam ser resolvidas por meios pacíficos, uma vez que, neste período, a invasão por parte dos Estados Unidos parecia muito próxima. Porém, neste momento a Santa Sé não se pronuncia classificando a investida norte americana como uma prevenção ativa como a primeira declaração de Joaquim Navarro-Valls, mas sim como uma guerra, a qual deveria ser evitada e o impasse resolvido através de meios pacíficos. Ao longo destas últimas semanas, ele [Papa João Paulo II] não poupou esforços, recorrendo a todos os instrumentos de que dispõe, com vista a pedir a quantos estão investidos da mais alta autoridade política, a fim de que tomem decisões justas para resolver, com o recurso a instrumentos adequados e pacíficos, o conflito que impede a humanidade de percorrer o seu caminho no nosso tempo.201

Aqui o Cardeal ao fazer menção ao esforço público por parte do Vaticano utiliza do argumento de autoridade ao citar João Paulo II. Na questão de Beagle, havia desconfiança acerca do papado de João Paulo II devido à sua recém eleição. Em 2003, no caso da invasão iraquiana, o nome de João Paulo II é usado em uma construção retórica na qual ele próprio encontra-se envolvido, porém desta vez seu nome é um argumento de autoridade, contrastando com o ambiente de uma de suas primeiras ações de âmbito global como pontífice.

LAGHI, Pio. Unidos a ―Cristo, nossa paz‖, podemos salvaguardar e preservar o dom precioso que é precisamente a paz. in L’Osservatore Romano nº 11, em 5 de março de 2003 p. 06 121 201

O segundo ponto relevante da mensagem do cardeal Pio Laghi foi acerca da Organização das Nações Unidas. O motivo alegado pelos Estados Unidos para a invasão do Iraque foi sobre o ―armamento de destruição em massa‖ que o ―Iraque dispunha‖ e, durante o período pré-guerra, a ONU ficou encarregada de descobrir a verdade sobre tais armas. O Iraque chegou a entregar um relatório sobre o assunto à ONU, entretanto todos estes trâmites foram muito lentos e suscitaram dúvidas sobre a legitimidade deste relatório. Portanto, da mesma forma que logo após os ataques de 11 de Setembro o Vaticano declarou que uma guerra de defesa seria legítima, aproximando-se da posição americana de retaliar um possível inimigo e conferindo a ela uma legitimidade moral, nesta mensagem do pontífice se apresentou uma aparente coincidência de posições. Entretanto, esta mensagem fazia menção à ineficiência e/ou impotência das Nações Unidas sobre a questão do desarmamento iraquiano. O Cardeal Pio Laghi escreveu no jornal oficial da Igreja: Pois bem, as instituições podem ser imperfeitas, e por vezes podem agir de maneira demasiado lenta, e talvez ainda não tenham aprendido a enfrentar as realidades contemporâneas que ameaçam a ordem mundial. Todavia, elas fundamentam-se sobre princípios autênticos e válidos para todos os tempos: o diálogo honesto e paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada um dos membros da Família das Nações, respeitar integralmente as suas obrigações.202

Este trecho do discurso do Cardeal em análise retórica caracteriza uma alegoria, na medida em que anuncia uma realidade conhecida - as instituições podem ser imperfeitas, e por vezes podem agir de maneira demasiado lenta, e talvez ainda não tenham aprendido a enfrentar as realidades contemporâneas que ameaçam a ordem mundial – em função da busca de uma realidade abstrata: o diálogo honesto e paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada um dos membros da Família das Nações. É interessante notar também o termo ―Família das Nações‖ que o cardeal Pio Laghi utiliza em seu discurso. Este termo engloba simbolicamente todas 202

Ibid. p.06 122

as nações e, quando o cardeal fala em diálogo honesto e paciente entre a ―Família das Nações‖, ele fala também em nome de uma comunidade global definida em termo de família. Após declarar ao corpo diplomático a necessidade de paz, após enviar cardeais ao Iraque e aos Estados Unidos, o Vaticano também se manifestou na ONU, através do Observador Permanente da Santa Sé no local, o Cardeal Celestino Migliori. Novamente um discurso por parte da Santa Sé fez referência à comunidade de nações. Desta maneira, o discurso se enquadra do orador para o auditório universal, pois não é simplesmente a opinião da Igreja, mas sim um entimenta, uma condição que se pressupõe. Ao exaltar a comunidade de nações, o discurso se enquadra também como uma manifestação de boa parte das nações do mundo, algo parecido com o que vimos que fez o cardeal Pio Laghi. Sobre isso escreve Migliori: ―

No

que diz respeito ao Iraque, a vasta maioria da comunidade internacional está a pedir a uma resolução diplomática da disputa e a exploração de todos os recursos, em ordem a um resultado pacífico de tal problemática. Por isso, este apelo não deveria ser ignorado‖.203 Há ainda outro aspecto que vale ser ressaltado. A questão retórica da invasão iraquiana se deu em ações diplomáticas. Uma ação diplomática pode ser interpretada como um meio de argumentação da análise retórica. Reboul204 afirma que uma apóstrofe é uma figura retórica ―pela qual o orador finge dirigir-se a outro auditório, e não ao seu: auditório que poderá ser uma pessoa ausente, um morto, um príncipe, etc.‖. Assim, quando um discurso de um cardeal, por exemplo, dirigido a um líder de um país, o cardeal no momento do ato retórico passa a ser o orador e o líder seu auditório. Porém, a ação diplomática não visa somente àquele instante. Visa, por sua essência, a resolução de uma questão de litígio que não naquele lugar. Assim, quando um ato diplomático com um governante torna-se uma apóstrofe, é na medida em que o discurso se dirige também a outros líderes que não presentes naquele momento.

203

MIGLIORI, Celestino. A vasta maioria da comunidade internacional pede uma resolução diplomática da crise iraquiana. in L’Osservatore Romano nº11, em 15 de Março de 2003. p.10 204 REBOUL, Olivier. Introdução... p.243 123

3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003)

Neste ponto da análise de Halliday são levados em conta os limites e restrições deste tipo de discurso. Porém, antes de relatar as contingências do discurso na invasão iraquiana, vale discorrer acerca das contingências desta pesquisa. O levantamento dos discursos sobre a invasão iraquiana foram feitos nas publicações do jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano. O jornal relatou todos os discursos das personagens envolvidas por parte da Santa Sé no conflito. Houve cardeais falando diretamente com o presidente norte-americano como também com o primeiro ministro iraquiano. Houve também um contato com Saddam Hussein. Os discursos encontrados neste veículo de comunicação se referem a tais encontros e suas conseqüências. Porém, como se trata de uma negociação diplomática, não se sabe o quanto podem ter ocorrido de negociações confidenciais. Portanto, esta pesquisa trabalha com os discursos publicados e divulgados amplamente pela mídia especializada. Ao se tratar de contingência de discurso, o ―terreno‖ a se percorrer por parte da Santa Sé é um empecilho. O Iraque é islâmico e os Estados Unidos em sua maioria protestante, como uma doutrina diferente destas poderia se sustentar onde o campo não lhe é favorável? Segundo Cornwell205, nos Estados Unidos os bispos estavam unânimes à decisão de João Paulo II em ir contra a invasão. Porém, eram somente os bispos que defendiam esta posição, pois outros clérigos e leigos eram ―inflexíveis em sua convicção de que a guerra era não só justa, mas uma ‗obrigação moral‘‖. Em relação à visita de Etchegaray a Saddam Hussein, Cornwell206 afirma que ―bem-intencionado, embora senil, o bom cardeal revelou uma certa ausência de realismo quando relatou que Saddam tinha escutado ‗atenta e profundamente‘ o apelo do papa em favor da paz‖. 205 206

CORNWELL, John. A face... p.282 Idem, Ibidem, p.285 124

O fato de maior repercussão sobre os atos diplomáticos em relação às contingências do discurso foi a visita de Tariq Aziz ao Vaticano. Cornwell 207 afirma que Aziz anunciou no aeroporto que ―tinha vindo a Santa Sé para apelar a Sua Santidade em pessoa para que ajudasse a mobilizar ‗todas as forças do bem contra as forças do mal‘‖. Em uma conferência em Roma, o vice - primeiro ministro entrou em uma discussão ao afirmar que não entraria naquela conferência se soubesse que havia judeus lá após ser questionado por um correspondente de Israel. Além do mais, o mandatário iraquiano foi ao santuário de São Francisco e rezou com os franciscanos. Cornwell208 afirma que ―aqueles que conheciam bem Aziz, incluindo os iraquianos no exílio, protestaram, afirmando que os frades franciscanos tinham sido manipulados‖. Mesmo sendo cumpridos todos os protocolos diplomáticos, no âmbito individual não se pode dizer que o alcance do discurso é o mesmo entre a opinião pública norte- americana e a postura dos governantes do Oriente Médio em face da opinião pública mundial e a doutrina da paz católica. Outro aspecto interessante de se apontar como contingência é o fator de saúde do pontífice. No ano de 2003, João Paulo encontrava-se totalmente debilitado. Cornwell209 afirma que ―uma vez mais, era evidente que ele estava a preparar-se para embarcar em sua última grande jornada pontifícia, sem deixar nada ao acaso para garantir a segurança de sua visão quanto ao futuro da Igreja Católica‖. Tal fator de saúde levanta questões sobre a capacidade do pontífice de ainda ser efetivamente o líder da instituição, tendo havido inclusive debates sobre uma possível renúncia do Papa.

3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque Estas

ações

diplomáticas

nos

demonstram

algumas

peculiaridades.

Diferentemente do início do papado de João Paulo II quando ele interveio na América 207

Idem, p.285 Idem, p.286 209 Idem, p.288 208

125

Latina, neste início de século XXI a Igreja se preocupava com todas as nações do mundo, fossem elas influenciadas pelo cristianismo (países com muitos católicos principalmente) ou não, como no Iraque, um país onde católicos são praticamente inexistentes. Tal condição, distinta da legitimidade do Canal de Beagle, mostra entre outras coisas uma evolução e crescimento do ethos de João Paulo II. A Santa Sé durante o papado de João Paulo II consolidou um status mundial de portadora da mensagem de paz. Nos atentados de 11 de Setembro sua atitude não foi diferente. A legitimidade alcançada pela Igreja neste período permitiu que ela se manifestasse em lugares onde não possui enraizamento cultural. O poder simbólico que isto representa é oriundo do capital simbólico adquirido também ao longo de diversos papados, especialmente de João Paulo II. Uma característica desta condição é a doutrina da paz, que vem de antes com a idéia de João Paulo II de transformar a zona do litígio de Beagle em ―Zona da Paz”. Na questão iraquiana, a paz assume a ―vontade das nações‖ e exprime explicitamente um bem comum universal. À luz da teoria de Bourdieu no livro A Economia das trocas simbólicas, a reafirmação da encíclica Pacem in terris e do documento social Gaudium et spes indicam a reprodução do capital simbólico. Tal encíclica e documento se mostraram atualizadas mesmo em contextos diferentes daqueles de sua criação. No papado João XXIII foi publicada a encíclica Pacem in terris (11/4/63), expressão latina que significa paz na terra. Sua confecção se deu em uma época bastante conturbada, com alguns fatos marcantes ao redor do globo. O ano de 1945 marcou o final da II Guerra Mundial; neste mesmo ano, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), para substituir a extinta Liga das Nações. Em 1947 ocorre a constituição do Bloco Soviético, reunindo países do leste europeu ao redor de um bloco que ganhou o nome ocidental de ―Cortina de Ferro‖, dando início ao que se chamou de ―Guerra Fria‖. No ano seguinte, 1948, inicia-se uma corrida armamentista entre a União Soviética e os Estados Unidos, em que triunfou o argumento de que a paz seria mantida por meio do equilíbrio de poderes, ou seja, o temor que um tinha do outro era o que mantinha ambos afastados de um confronto direto. Na verdade, o que os políticos tinham em mente era o perigo de uma guerra sem limites. Tudo isso sob o medo da recente 126

descoberta, a aplicação de energia atômica aos armamentos de guerra. O ―pesadelo‖ atômico e o medo da destruição do planeta mostravam a fragilidade da segurança global. Em contrapartida a tal situação, em 1948 a ONU aprova a Declaração dos Direitos dos Homens, a primeira iniciativa mundial pela condição humana no planeta, o ponto de partida para o que hoje de chama de Direitos Humanos. Decorrente da Guerra Fria, em 1961 foi erguido em Berlim, na Alemanha, um muro que se tornou conhecido como o Muro de Berlim. Esse muro, além de dividir a cidade de Berlim ao meio, simbolizou a divisão do mundo em dois blocos ou partes: Alemanha Ocidental, que era apoiada pelos países capitalistas encabeçados pelos Estados Unidos e Alemanha Oriental, mantida e apoiada pelos países socialistas simpatizantes do regime soviético. No ano seguinte, 1962, ocorreu a Crise dos Mísseis em Cuba, três anos após a vitória da Revolução Cubana210. Os soviéticos haviam instalado mísseis nucleares em Cuba e os Estados Unidos descobriram, divulgando fotos de um vôo secreto realizado sobre a ilha, onde havia cerca de 40 silos para abrigar mísseis nucleares. Consequentemente houve tensão mundial e parecia que uma guerra nuclear parecia próxima pela primeira vez. O presidente norte-americano, John F. Kennedy, avisou aos soviéticos que os Estados Unidos não teriam dúvidas em usar armas nucleares contra esta iniciativa russa. Ou desativavam os silos e retiravam os mísseis ou a guerra seria inevitável. Foram 13 dias de suspense devido ao medo da guerra nuclear, até que no mês de outubro houve um acordo entre as partes e os mísseis foram retirados de Cuba. Desde então, até o início dos anos 1990 o mundo esteve polarizado em duas superpotências ideológicas e vivendo o temor constante das armas atômicas. A Pacem in terris surgiu nesse contexto e foi uma ―resposta‖ às condições em que estava o mundo. Tal Encíclica já se mostrara diferente das outras, pois foi a primeira declaração da Igreja dirigida a todos os ―homens de boa vontade‖, ou seja, a todas as pessoas do mundo e não somente aos membros da Igreja. Ela também estabelecia a paz como um bem comum universal, trazendo à tona um conceito muito 210

Para melhor conhecimento sobre a Crise dos Mísseis em Cuba: GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2006. 127

conhecido no meio das Relações Internacionais, a reciprocidade, insistindo na afirmação de que o mundo é uma Comunidade de Nações. A Encíclica foi uma ―aposta‖ da Igreja de que conflitos armados não são os melhores caminhos para resolução de controvérsias, mas sim o diálogo. O documento papal exalta ainda muitos aspectos dos direitos humanos, seguindo linha de pensamento semelhante à Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948). Quando João XXIII escreve esta encíclica, ele se baseia em alguns pontos que servem de pressupostos para sua retórica: a paz como manifestação divina; a paz como construção obrigatória de justiça; a paz como obrigação de governantes e povos; a paz e a justiça social; a paz e os órgãos internacionais; ações urgentes. João XXIII inicia a sua encíclica afirmando que ―a paz na terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus‖.211 Por isso, a paz para ele é uma manifestação divina na história humana. Mais do que uma simples afirmação, ao dizer que a paz é uma dádiva divina, João XXIII neste aspecto impede de se vincular a paz a qualquer ideologia ou política humana. Sua convicção de que a paz só é possível através da consciência da dignidade de cada ser humano pretende ser uma afirmação totalmente apolítica, que transcende a própria Igreja. João Paulo II usa muito bem esta posição apolítica em relação à paz e em suas ações contra a invasão no Iraque, permitindo que a Santa Sé dialogue tanto com os Estados Unidos quanto com o Iraque. A paz vem de Deus e é o desejo de todos os homens, não é a vontade de nenhum líder político. Dessa forma o conceito ―paz‖ é universalizado. Esta encíclica foi dividida em cinco partes e a terceira parte trata direto das relações entre as comunidades políticas. João XXIII, neste capítulo da encíclica, começa discorrendo sobre sujeitos de direitos e deveres, afirmando que os governantes não podem jamais renunciar à sua dignidade natural, ou seja, não escapam da lei moral. Os homens não podem perder sua condição humana à frente de governos, que chegaram lá justamente por terem sido escolhidos por outros homens. Em seguida, o documento trata das relações dos Estados na base da verdade e da 211

Pacem in Terris, introd., 1963 128

justiça, afirmando que as relações entre os Estados devem basear-se na verdade. O que João XXIII trata aqui é um de seus eixos, a paz como construção obrigatória de justiça, onde cria-se um vínculo entre a política e a moral. A paz para a Igreja é fruto da ordem divina, e que deve ser realizada pelos homens de maneira justa. Sendo fruto da justiça, é uma virtude moral. Como diz a encíclica, a política é uma atividade humana e está sujeita ao juízo moral. João Paulo II retoma esses aspectos da retórica de João XXIII em seu discurso ao corpo diplomático em 2003, meses antes da invasão no Iraque, no entanto ele amplia o conceito de paz para a política internacional, dizendo que as políticas não estão em uma zona franca, livres de qualquer julgamento moral, pois ainda assim a política é uma atividade humana. ―Enquanto aqueles que ocupam posições de responsabilidade não aceitarem pôr corajosamente em questão o seu modo de gerir o poder e de procurar o bem-estar dos seus povos, será difícil que se possa verdadeiramente progredir rumo à paz‖.212 Um outro ponto importante nesta terceira parte da encíclica é referente ao tratamento das minorias e à solidariedade ativa. O Papa João XXIII começa afirmando que é injusta qualquer ação para reprimir as minorias. Os governos devem promover o desenvolvimento das minorias raciais, através de medidas eficazes sobre língua, cultura, tradições, etc. Na questão da solidariedade ativa, o Papa afirma que as Relações Internacionais se desenvolvem através de solidariedade em diferentes formas, como colaboração econômica, social, etc. Esta parte da encíclica é o outro eixo de João XXIII, a paz e a justiça social. Sobre a ascensão das comunidades políticas em fase de desenvolvimento econômico, o Papa instrui as nações economicamente mais desenvolvidas a auxiliarem as menos desenvolvidas. As nações menores não podem ser privadas de seus direitos a autonomia política e a tutela em seu desenvolvimento econômico. Entretanto, as nações que ajudam as menos desenvolvidas devem respeitar as características de cada povo, abstendo de qualquer tipo de domínio. A paz e a justiça social também passam pelo campo JOÃO PAULO II. Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano, em 21 de Dezembro de 2002. p.08 129 212

econômico. João Paulo II também utiliza esta linha de pensamento em seu discurso contra a guerra em 2003, só que a paz como justiça social utilizada por ele, fica como uma crítica aos países desenvolvidos e um pedido para que se auxiliem os países em desenvolvimento. No jornal oficial da Igreja assim ele se expressa: ―Ao mesmo tempo, somos testemunhas de um fosso preocupante que se vai alargando entre uma série de novos direitos promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os direitos humanos elementares que ainda não são respeitado sobretudo em situações de subdesenvolvimento‖.213 A corrida armamentista e o desarmamento não ficaram fora desta encíclica. João XXIII enxergava que países desenvolvidos empregavam muitos esforços na construção de armamentos enquanto outros menos desenvolvidos careciam de ajuda. Estes países justificavam esta corrida armamentista através da afirmação de que a paz se assegura com o equilíbrio de forças. Para o Papa, o resultado deste pensamento e de suas conseqüentes ações era uma ameaça constante para a paz e um terror permanente. Assim, por meio da Encíclica, a posição da Igreja fica clara acerca deste tema, uma vez que, para ela, a paz não se constrói com armas. João XXIII acreditava que era necessário reduzir e eliminar os armamentos das nações, na base de garantias mútuas e eficazes. O que vemos aqui é uma espécie de programa de princípios, deixando bem claro a responsabilidade dos atores internacionais com seus atos ao redor do mundo. O pontífice também instrui os chefes de Estado a não pouparem esforços enquanto o curso dos acontecimentos humanos não se conformarem (ou não fizerem parte) da razão e a dignidade do homem. Ainda neste ponto, João XXIII faz uma leve menção às Assembleias Internacionais ocorridas na ONU, dizendo que tais reuniões não devem ser esquecidas. João XXIII condenava as armas e a guerra em qualquer hipótese. Para ele, nenhum tipo de conflito era justificável, nem mesmo um eventual para se defender ele não achava certo. Em outras palavras, João XXIII fala em responsabilidade e apoia-se na questão da paz como obrigação de governantes e povos, já que havia definido a paz como um bem comum universal. Diferente é a retórica de João Paulo II, que em 2003, acerca 213

Ibid. p.08 130

da questão do Iraque, vincula a esta obrigação não só os líderes políticos, mas também todas as pessoas, individualizando a responsabilidade. Nesse aspecto a Santa Sé mostra, na perspectiva cristã, que a paz não está vinculada unicamente às instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade de cada homem e cada mulher, de maneira pessoal. Do mesmo modo que a paz é um bem comum universal, um direito do homem, o homem tem que cumprir com seus deveres. A paz como obrigação de governantes e povos é a afirmação de que cada um tem um dever para com a paz: a mensagem é para todos, de ser humano para ser humano. O auditório universal. Esse ponto de vista é externado por ele com as seguintes palavras: ―Uma maior consciência dos deveres humanos universais seria de grande benefício para a causa da paz, porque lhe daria a base moral do reconhecimento compartilhado de uma ordem das coisas, que não depende da vontade de um indivíduo ou de um grupo‖.214 Estes são alguns dos aspectos principais da encíclica Pacem in Terris em âmbito internacional. A paz para a ICAR passa também por um documento social: Gaudium et Spes, do latim, as alegrias e esperanças. Este documento foi publicado no ano de 1965, ao final do Concílio Vaticano Segundo, portanto dois anos após a Pacem in Terris. A Gaudium et Spes foi o último trabalho feito no Concílio Vaticano II. No entre período de Concílio, falecera o Papa João XXIII e fora eleito seu sucessor, Paulo VI. Independentemente da troca de papas, a Guerra Fria era uma realidade. A preocupação com a questão de armamentos era crescente e foi um tema muito debatido na Gaudium et Spes. Este documento segue basicamente a mesma linha da Pacem in Terris, entretanto, a Gaudium et Spes foi feita no concílio, ou seja, foi debatida entre diversas pessoas, enquanto a encíclica predecessora desta foi feita somente pelo Papa João XXIII. A quinta parte deste documento trata da promoção da paz e da comunidade internacional. A encíclica assinada por Paulo VI afirma que a paz não é a ausência de guerra nem o equilíbrio de forças adversas, condena também dominação despótica. 214

Ibid. p.08 131

Em uma seção deste mesmo capítulo, discorre sobre o princípio da defesa, afirmando que uma guerra de defesa é justa, pois a guerra nunca foi eliminada do mundo dos homens, não podendo negar aos governos o direito de legítima defesa quando esgotados todos os meios de se resolver algum impasse. Entretanto, continua condenando a corrida armamentista. Paulo VI afirma que para dissuadir possíveis inimigos, muitos pensam que o acumulo de armas é o meio mais eficaz para assegurar certa paz entre as nações, porém a corrida dos armamentos é um flagelo para a humanidade e prejudica os pobres de um modo intolerável. Notamos a diferença no princípio da legítima defesa, pois na encíclica Pacem in Terris de João XXIII, a guerra é condenada de todas as formas, e já na Gaudium et Spes de Paulo VI, fica legítimo o direito de um Estado defender-se em último caso. Esta é a principal diferença entre elas. Esses dois documentos são semelhantes entre si, pois o que foi tratado por João XXIII também aparece na Gaudium et Spes, a encíclica que afirma ser necessário um comum acordo das nações, fazendo clara alusão ao papel da ONU. A visão sobre a paz e os órgãos internacionais mostra como a posição de João XXIII na época da encíclica (1963) e o Concílio Vaticano II (que se encerrou em 1965) colocavam esperanças na ONU e na Declaração dos Direitos Humanos. João Paulo II, 40 anos depois, a Igreja ainda utiliza essa mesma posição só que agora pedindo uma atitude mais efetiva das Nações Unidas, uma vez que estar a ONU mais consolidada, 40 anos depois desta publicação. Por isso, João Paulo II em sua retórica se refere a esta instituição como uma autoridade pública a nível internacional, com uma capacidade efetiva de promover o bem comum universal, a serviço dos direitos humanos, da liberdade e da paz. A Igreja aposta na eficácia da ONU, tanto que uma das ações que se encaixa dentre as mais relevantes para evitar a guerra do Iraque em 2003 foi a declaração do observador permanente da Santa Sé na ONU, o Cardeal Celestino Migliori, que exaltou o papel dessa organização na relação entre os povos: Com efeito, em tal Declaração [Declaração Universal dos Direitos dos Homens de 1948] estavam fixados os fundamentos morais onde seria possível apoiar a edificação de um mundo caracterizado pela ordem em vez da desordem, 132

pelo diálogo em lugar da força. Nesta linha, o Papa [João XXIII] deixava a entender que a defesa dos direitos humanos pela Organização das Nações Unidas era o pressuposto indispensável para o aumento da sua capacidade de promover e defender a segurança internacional.215

Outro aspecto tratado na Encíclica é a construção de uma comunidade internacional, onde fica clara a idéia de que as instituições internacionais devem prover as necessidades dos homens como alimentação, saúde, educação, trabalho, etc. Afirma também, como na encíclica Pacem in Terris, que nações desenvolvidas devem ajudar as menos desenvolvidas, não como dominadora, mas sim como cooperadora.

Importa, porém, evitar equívocos: aqui não se pretende aludir à constituição de um super-Estado global; a intenção é, antes, sublinhar a urgência de acelerar os processos já em curso que visam responder à solicitação quase universal de formas democráticas no exercício da autoridade política, quer nacional quer internacional, e também ao pedido de transparência e credibilidade a todos os níveis da vida pública; penso, também, no direito à alimentação, à água potável, à casa, à autodeterminação e à independência. A paz exige que esta distância seja urgentemente reduzida, até ser superada.216

João Paulo II quando tenta interferir contra a invasão do Iraque, não o faz por livre e espontânea vontade. Ele baseia-se na posição cristã consolidada no início dos anos 60 nestes documentos e ressignifica a questão da paz, adaptando-se aos interesses dos Estados Unidos. Em seus respectivos contexto, estes documentos da Igreja foram como uma resposta à situação em que o mundo se encontrava. Enquanto as duas superpotências se armavam na suposição de que estariam assim garantindo o equilíbrio mundial, o Papa João XXIII percebia que um outro caminho podia ser traçado, escrevendo uma Encíclica voltada para todas as pessoas, trazendo a paz como um bem comum universal e tratando o mundo como uma comunidade de nações. Ele estabelece isso como princípio e começa a exigir retoricamente para a 215 216

Idem, p.08 Idem. 133

Igreja um papel de interlocução. É criada, então, uma espécie de ―doutrina‖ da paz, uma paz quase que utópica e que pode ser consolidada sem armas, através do diálogo e da consolidação dos direitos humanos. Este viés fica claro no papel da Igreja no mundo neste período final do papado de João Paulo II.

3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003)

Para julgar este ato retórico, utilizamos neste texto o critério pragmático. Novamente à luz da teoria das relações internacionais, foca-se o discurso da Igreja versus a ação da Igreja. O discurso da Igreja não é conflitante com a ação, como muitos pensam, e sim o discurso é uma das peças-chave de suas ações. A arma para as ―batalhas‖ diplomáticas que a Igreja trava ao redor do mundo é a palavra. A habilidade com que a Igreja, principalmente através do Papa João Paulo II, utilizou-se do jogo de palavras em prol de seus interesses é algo relevante. Ela manda seus recados ao mesmo tempo em que não abre lacuna alguma para qualquer tipo de conflito vindo de uma posição contrária. Dentro de um mesmo contexto, a Santa Sé é capaz de transitar desde uma ação ativa de prevenção ao invés de retaliação, até o uso da expressão ―filhos de Abraão‖, falando em nome de judeus, muçulmanos e cristãos. O discurso da Igreja e a utilização minuciosa de palavras é o grande trunfo que esta instituição utiliza para tentar evitar a invasão no Iraque. Embora houvesse um grande esforço, para a teoria das Relações Internacionais, a ICAR agiu por princípios idealista e wilsoniana, na medida em que mostrou o que se deve fazer e não o que é. Seu discurso neste caso não trouxe conseqüências realistas a sua investida, vez que o Iraque foi invadido, o único fato que seria de ordem realista e o próprio objeto da investida da retórica católica.

134

Conclusão Ao analisar retoricamente através dos seis passos propostos por Tereza Halliday, notam-se algumas diferenças e semelhanças entre os atos retóricos nos extremos do papado de João Paulo II – um no início e outro no final. Os antecedentes retóricos de ambos os atos contextualizaram uma época propícia ao conflito armado. Porém, um conflito quase ocorreu por questões limítrofes, enquanto o outro ocorreu por uma premissa muito além das fronteiras. O Vaticano em ambos os casos só pode se utilizar da habilidade retórica para ser um ator retórico nos conflitos. Contextos semelhantes, problemas distintos. O ato retórico em questão no Canal de Beagle foi a mediação de um litígio entre dois países vizinhos na América Latina, local de grande concentração de católicos. Já o ato retórico no Iraque foi uma ação diplomática por parte do Vaticano sobre os integrantes do conflito, os Estados Unidos e o Iraque, a fim de impedir a invasão premeditada por parte dos americanos. Nesta questão a Igreja Católica caminharia por terrenos desfavoráveis, pois nos Estados Unidos a maioria é protestante e no Iraque a maioria é muçulmana. A prática retórica do Iraque foi muito mais trabalhosa do que a da América Latina, pois era um conflito além de qualquer perspectiva da Igreja. Porém, por um ideal de paz universal, ela interveio diplomaticamente com uma legitimidade que era não só dos fiéis, mas do auditório universal. Isso caracteriza um papel diferente dos habituais desta instituição, não era somente episcopal. Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras retóricas e terem por função persuadir. No conflito de Beagle o discurso foi feito pelo próprio João Paulo II, enquanto na questão iraquiana a ação diplomática envolveu diversas autoridades católicas. Como afirma Halliday, todos os discursos possuem suas limitações. Em Beagle a legitimidade de João Paulo II era questionável devido a sua recém eleição, já no Iraque, seu ethos era de uma autoridade em questão de paz. Até um de seus cardeais o utiliza como argumento de autoridade. Em Beagle, os governos eram ditaduras militares, porém católicas. Já no caso da invasão do Iraque, ambos os países eram em sua maioria, de outras religiões e não a católica, nos 135

Estados Unidos majoritariamente predomina o protestantismo e no Iraque os muçulmanos. Porém, a autoridade moral do pontífice era considerável a ponto de sua investida diplomática conseguir certa notoriedade. A questão da paz mostrou-se constante na retórica de João Paulo II durante o seu papado. Em Beagle ele esboçava algo com relação a ela, tentou até declarar o local como Zona de Paz. Já no Iraque a paz era o bem comum da população mundial. Isto só é possível ao seu capital simbólico adquirido na construção de seu ethos no decorrer de seu papado. Tal perspectiva corrobora com a leitura à luz das Relações Internacionais que o Vaticano é um ator global em plena atividade.

136

Considerações Finais

Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre filósofos e oradores. Sua função e seu legado mudaram no decorrer dos anos, porém, ela sempre esteve presente em todos os povos e línguas. Sua função é persuadir, levar a crer em algo. Para que isto aconteça, é necessário que exista um orador e um auditório a ser persuadido. Entretanto, este termo pode tomar conotações negativas em relação ao seu sentido original. Isto pode levar a uma grande confusão e desvalorização da retórica; este sentido pejorativo apareceu muito tempo depois do surgimento da Retórica. Para que um ato retórico tenha efeito, é necessário um acordo prévio entre o orador e seu auditório. Como persuadir quando este acordo não parece tão óbvio? Esta é a questão que permeia a retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo II. A instituição milenar que é liderada entre 1978 e 2005 por João Paulo II parece estar fora do contexto secular em que se deu este papado. Além disto, trata-se também de uma retórica que envolve necessariamente a religião. Como articular, então, uma retórica religiosa em dissonância com o mundo em que habita? Esta é a questão que tentamos responder na pesquisa empreendida. O caminho escolhido para a busca desta resposta passou pela definição de retórica que, segundo Reboul, é a arte de persuadir pelo discurso. Quem quer persuadir se utiliza da palavra, ou melhor, da combinação ou jogo de palavras que lhe é favorável. Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras retóricas e terem por função persuadir. Mas persuadir quem? Quem quer persuadir? Por que persuadir? Estas respostas não são possíveis somente se sustentando na definição de prática retórica sem seus respectivos atores e contextos. Na elaboração do referencial teórico procuramos nos basear nas contribuições de Tereza Halliday. A Igreja Católica foi, por muito tempo, a referência de comportamento moral, jurídico, econômico e ético no Ocidente. Seu poder era enorme e sua influência praticamente impossível de se esquivar. Tudo passava necessariamente por ela. O 137

controle da sociedade estava em suas mãos. Ao longo do tempo, frutos de diversos processos sociais, este poder foi se esvaecendo. A secularização é um destes processos. Secularização é comumente associada ao esvaziamento da Igreja, porém sua conseqüência principal é a perda de referência religiosa no Ocidente. Quando uma grande instituição como a Igreja Católica perde o poder de outrora, não pode continuar com os mesmos discursos e ideais, pois já não são compatíveis com o mundo em que se encontra. Ora, vivemos em uma sociedade que não se pode querer estar fora dela estando dentro dela. Este parece ser o primeiro ponto destoante do pensamento da Igreja Católica instituição. O outro processo que mudou radicalmente o papel da Igreja, principalmente nos séculos XIX ao XXI foi a modernidade. Assim como o conceito de secularização é associado ao esvaziamento das igrejas, o conceito de modernidade é comumente associado à evolução das tecnologias. Porém, este conceito perpassa esta questão e está diretamente ligado à mentalidade do indivíduo. Na modernidade, o individuo passa a questionar os valores que lhe são inculcados por uma instituição, no caso, a Igreja Católica. Este indivíduo pensa e escolhe o seu destino por conta própria. Não mais existe uma referência religiosa que detém o absoluto do conhecimento. Este indivíduo adquire uma autonomia devido ao desencantamento que se processa nas sociedades ocidentais. Assim, quando falamos em religião, naturalmente pensamos no mistério, no transcendente que ela pode proporcionar. É um mundo encantado pelo sobrenatural, o não palpável para os humanos. A partir do momento que a religião passa a não conseguir mais explicar ou prover este mundo sobrenatural, é que ela se desencanta. O desencantamento do mundo, conceito clássico de Max Weber, passa pela evolução das ciências. A partir do momento que a ciência explica a maioria dos fenômenos prova a tese por A mais B - a religião perde sua capacidade de ―domar‖ este sobrenatural. Assim, a secularização, a modernidade e o desencantamento foram fatores preponderantes para a mudança do papel central da religião no cotidiano das sociedades ocidentais para um papel secundário, ou melhor, para um papel de coadjuvante. 138

Considerando que o cristianismo, primeiramente em sua forma católica, se tornou a religião oficial do Império Romano em torno do ano 300, até o século XIX foi um longo período de hegemonia e enraizamento cultural. Quando chegamos ao início destes processos de secularização, modernidade e desencantamento, mesmo com o declínio de seu poder, a religião cristã possuía uma bagagem adquirida ao longo destes séculos. Isto é o que Pierre Bourdieu (A Economia das trocas simbólicas, 1987) chama de capital simbólico. Isto mantém certa legitimidade diante dos indivíduos. Eles passam a não precisarem mais de uma referencia religiosa ou da força da tradição, embora ainda reconhecem a Igreja como uma instituição religiosa importante. No período em que a Igreja foi hegemônica, o capital simbólico acumulado por ela foi significativo. Dentro deste capital, pode-se afirmar que a prática retórica está presente. Mesmo que esta pesquisa foque a retórica no papado de João Paulo II no século XX, a prática retórica já foi há muito praticada por muitos papas antes do pontífice polonês. Bourdieu (A Economia das trocas lingüísticas, 1988) afirma que a língua é um reflexo do contexto social da época. Assim, fica claro que, embora a prática retórica sempre estivesse presente, seu conteúdo e aplicações sempre foram diferentes, porém, nenhuma prática retórica antiga da Igreja Católica foi feita em um contexto desfavorável não somente para a Igreja em si, mas para a própria religião. Fazendo eco ao contexto desfavorável, Gauchet (El desencantamiento del mundo, 2005) ainda afirma que o surgimento do Estado foi o fator nevrálgico para a mudança de papel da religião. Quando então a Igreja se separa do Estado, o poder da Igreja fica ainda mais comprometido, pois o Estado passa a prover os indivíduos de coisas que até então a religião lhes oferecia. Além disso, o autor afirma que o cristianismo foi a ―religião para a saída da religião‖, pois é ela que fornece as condições para que a religião inverta sua lógica: ao encarnar humanamente o Deus vivo e ser uma religião racionalizada e institucionalizada, automaticamente o caráter original de encanto e magia que se tinha nas sociedades primitivas deu lugar a uma religião onde o contato com a divindade se dá de maneira direta, entre o homem e o Deus. Esta relação que passa a ser direta não se dá mais de cima (o além) para baixo 139

(o mundo terreno). É este o contexto em que se localiza e com o qual o papado de João Paulo II se depara. Para uma instituição burocrática, de longa existência, que não detém mais o monopólio do poder, mas que possui uma bagagem adquirida ao longo de quase duas dezenas de séculos, o caminho que lhe parece mais favorável é o caminho político. Como já foi afirmado, a Igreja é uma instituição burocrática, daí ser impossível a inexistência de uma ação política em sua essência. Mesmo sendo uma instituição confessional ela possui um território soberano que lhe dá condições de ser um ator com certo destaque no campo das relações internacionais. E por se tratar de soberania e relações internacionais, é impossível que não haja diplomacia, afinal, existem diversos Estados soberanos no mundo com quem mantém relações. Neste contexto, a prática retórica ganha mais força ainda. A Igreja Católica tem em mãos um capital simbólico e um caminho onde a habilidade política é o meio de sobrevivência. Em outros tempos, ou melhor, em outras condições, a violência pode ser um artifício comumente usado nas relações entre os Estados. Porém, justamente por se tratar de uma instituição confessional, a não violência é o alicerce principal de sua prática retórica, o único meio dela se fazer presente e atuante neste contexto. Um aspecto interessante que a pesquisa nos mostrou é o volume de relações de hierarquia e poder existentes dentro da própria instituição. Isto é necessário para sua sobrevivência. Assim como um atleta ou um artista treina por muitas horas ao longo de todos os dias sua especialidade, quando este vai se apresentar ou competir, o seu feito nada mais do que um reflexo de seu treinamento cotidiano. Em paralelo a este exemplo, se o cotidiano da Igreja Católica nas suas relações dentro do Vaticano é essencialmente político, quando ela atua no contexto internacional sua postura é também um reflexo de seu funcionamento. Porém, algo que lhe caracteriza como diferente de outros atores internacionais é seu caráter confessional; é praticamente impossível distinguir quando um sacerdote ou o próprio Papa, por exemplo, pratica um ato diplomático como Papa ou como Chefe de Estado. Não dá para saber o ponto exato onde começa a função de líder espiritual ou onde termina seu papel de 140

governante laico. Isto pode ser um trunfo para o pontífice como pode ser também um fardo a carregar. No papado de João Paulo II, diversos autores defendem que a dimensão que este tomou, em termos de alcance tanto geográfico como simbólico, só foi possível devido ao uso do político e da mídia pelo Pontífice. João Paulo II foi uma das personalidades mais conhecidas do século XX em todo o mundo. Em um contexto secular, plural e sem referência religiosa, parece coerente que este status alcançado por João Paulo II seja oriundo de seu caráter político. Autores como Patrick Michel (Nem todos os caminhos levam à Roma, 199) defendem que o divisor de águas deste papado foi a queda do comunismo no leste europeu. A dimensão política do papado foi tamanha que uma questão como esta, que influenciou diretamente a soberania de diversos países, foi uma façanha realizada somente através da prática retórica (que aqui envolve diplomacia, simbolismo, ideologia, entre outros fatores) sem o uso da violência por parte do ―vencedor‖ da queda de braço. A retórica é uma infantaria poderosa se o seu general sabe como usála. Como tudo que envolve relações entre indivíduos, nada se dá da noite para o dia. Assim como a prática retórica da Igreja Católica foi um processo ao longo dos séculos, João Paulo II também foi aperfeiçoando sua peculiar prática retórica ao longo de seu papado. Justamente por ser um papado em um contexto relativamente recente, do qual se conhece o começo, o meio e o fim, é que foi escolhida por nós na analise da retórica da Igreja neste período. Mesmo assim sendo, duas práticas retóricas aparentemente distantes uma da outra, foram escolhidas foi para se tentar identificar alguma evolução ou involução nesse processo. Retórica trata de discurso, um orador e um auditório. Quando se buscou analisar o discurso no conflito pela soberania do Canal de Beagle entre Chile e Argentina em 1979 e sobre a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, os discursos a serem analisados foram os de caráter oficial e disponíveis ao público. Em nenhum momento o pesquisador teve acesso a possíveis documentos secretos que nem se sabe se possam existir. Mesmo assim, os discursos oficiais obtidos se tornaram uma rica fonte de pesquisa. 141

Nos atos retóricos escolhidos, João Paulo II enfrentou, como líder da instituição, contextos diferentes e que foram preponderantes na elaboração da prática retórica. No caso de Beagle, João Paulo era um pontífice recém eleito e não se sabia ainda o quanto sua imagem era carregada de capital simbólico. Já no conflito do Iraque o Papa havia consolidado seu ethos de pacificador e de um homem que estava além da sua função de líder espiritual. Ambos os conflitos foram questões de violência premeditada. João Paulo II, porém, não cria nenhuma idéia nova sobre a questão, ele reproduz um capital que a Igreja já possuía. Isto reflete o quanto o capital simbólico da instituição ainda tem seu peso. Caminhando por entre diversas figuras de linguagem a fim de por em prática sua retórica, vale ressaltar que algumas dessas, que se fazem presente não só pela ocasião dos conflitos em si, mas também pela condição da retórica religiosa de um pontífice em momentos de tensão militar; procuramos nos atar à hipérbole, à figura que tende ao exagero, principalmente em questões religiosas, com o objetivo de aumentar o divino; e a apóstrofe, figura na qual o discurso vai também para um auditório que não é o do orador. Quando João Paulo II fala de questões como a paz, por exemplo, ele não somente fala para o auditório do conflito em Beagle ou no Iraque, ele tenta alcançar a todo mundo, o que é outra figura retórica, o auditório universal. Em todo o momento elementos que caracterizam o discurso retórico, o discurso que tem por finalidade persuadir, aparecem nas alocuções de João Paulo II. Quando João Paulo II intervém na questão iraquiana, seu discurso teoricamente não teria peso perante os envolvidos nos conflitos, pois ambos os países não são de tradição católica. Entretanto, o fato de ele agir politicamente, não abre margem ao confronto religioso, mas sim moral. Pois neste período final do seu papado seu ethos já está consolidado não somente como líder religioso, mas também como pacificador e portador não só da voz da Igreja Católica, mas também da voz da opinião pública mundial. No primeiro conflito, a prática retórica foi na forma de uma mediação – o que não deixa de ser diplomática. No segundo momento desta análise retórica, a arte da persuasão se deu na forma explícita de diplomacia, com atos simultâneos com os 142

envolvidos, sendo sempre noticiados em tempo real por diversos veículos de comunicação em todo o mundo. Claro que não se pode negligenciar a evolução dos meios de comunicação para tal feito, porém não se pode também dedicar este panorama somente aos meios de comunicação. Caso a visibilidade de João Paulo II, para não se supor em demasia, fosse diferente, com certeza a cobertura dos modernos meios de comunicação seria outra. Um aspecto interessante que ficou também explícito nesta pesquisa, é que a articulação por parte da Santa Sé nestes conflitos é centrado na figura emblemática do Papa. A todo o momento é citado João Paulo II, porém a mediação em Beagle foi da Santa Sé. Na invasão ao Iraque quem designou os embaixadores foi a Santa Sé. Como afirma Reese (O Vaticano por dentro, 1997), o Papa além de um indivíduo é uma instituição e isto fica claro nas conotações em que parece que João Paulo II perpassa a própria Sé Apostólica Romana. Esta pesquisa mostrou também que a prática retórica é um meio poderoso não só de persuasão, mas também de poder. Em dois momentos distintos um líder religioso assume ethos diferentes, houve uma evolução neste sentido, e enfrenta em ambos os momentos a real possibilidade de conflitos armados ocorrerem. Em uma das ocasiões, onde não se tinha ainda conhecimento ou idéia de como seria seu papado, o conflito foi evitado. Em outro, onde seu papado já estava consolidado e tinha um legado, o conflito não foi evitado. Isto pode ser um indicador de uma ascensão e queda do seu papado, como também pode indicar alguma outra mudança no contexto das sociedades que somente uma nova pesquisa pode tentar responder. Outras considerações que abrem lacunas para que esta pesquisa continue, também aparecem. Por exemplo: houve alguma evolução no papel de João Paulo II? Se houve, como e quando ela ocorreu? Finalmente ficou claro para nós que as diversas situações retóricas colocadas em prática pela Igreja Católica estão atreladas a determinados momentos históricos, econômicos e culturais. A ação retórica não ocorre, portanto, no vazio, mas sempre em contextos reais e concretos. 143

BIBLIOGRAFIA Livros

ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo, Paulus, 1995.

ARISTÓTELES, Arte Retórica e Arte Poética, Rio de Janeiro, Ediouro, s/d.

BARRERA, Paulo. Pluralismo Religioso e Secularização: Pentecostais na periferia da cidade de São Bernardo do Campo no Brasil. Revista de Estudos da Religião, Março 2010

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, UNB. 1998

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987

BRAILARD, Phillippe. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa, FGB, 1990

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. São Paulo, Vozes, 1997.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo, Contexto. 2006. 144

CORNWELL, John. A Face Oculta do Pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005.

DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo, Edusp. 1998

FRIEDLANDER, Saul. Pio XII e a Alemanha Nazi. Lisboa, Tapir, 1967.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2001. GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2005.

GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2006.

HALLIDAY, T. A retórica das multinacionais. São Paulo, Summus, 1987.

HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988.

HARNECKER, Marta. La izquierda en el umbral del siglo XXI. México, Siglo XXI, 1999.

HERVIEU-LÉGER, Danielle O bispo, a Igreja e a modernidade in LUNEAU, René e MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p. 299

JANUS. O Papa e o Concílio. (2 V.) Rio de Janeiro, Elos, 1877

145

JOHNSTON, Douglas M. The Theory and history of the ocean boundary-making. Quebec, Canadá. Mc-Gill-Queen‘s University Press. 1988

LAJOLO, Giovanni. Nature & function of papal diplomacy. Institute of Southest Asian Estudies, Singapura. 2005 LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999.

MOSCA, Lineide A atualidade da Retórica e seus estudos: encontros e desencontros in Rhetoric. Proceedings of the First Virtual Congress of the Romance Literature Department. São Paulo, USP.

MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo, Summus. 2008.

ONU. Reports of International Arbitral Awards: Dispute between Argentina and Chile concerning the Beagle Channel. 18 Fevereiro 1977, VOLUME XXI

ORLANDI, Eni Puccinelli, Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, Pontes. 2003.

PERELMAN, Chaim. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

PIERUCCI, Flávio. O Desencantamento do Mundo: Todos os Passos do Conceito em Max Weber, São Paulo, Ed. 34, 2003.

146

PIERUCCI, Flávio. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37. São Paulo, 1998.

REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. REESE, Thomas J. O Vaticano por Dentro – A Política e a Organização da Igreja Católica. Bauru, Edusc, 1997.

ROHDEN, Luís. O poder da linguagem: A arte retórica de Aristóteles. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação da Santa Sé na questão do Canal de Beagle. Minha Editora. 2008.

SCHICKENDANTZ, Carlos. Cambio estructural de La Iglesia; Como tarea y oportunidad. Córdoba, Univ. Católica de Córdoba, 2005.

WEBER, Max, Os Três tipos de dominação legítima, in Sociologia: Grandes cientistas sociais (Cohn, Gabriel, org.) SP, Ática, 1982, p.128-141

Artigos

ALMANAQUE

DA

FOLHA.

Disponível

na

WEB

em:

, Acessado no dia 11 de Dezembro de 2010.

ETCHEGARAY, D. Roger. A paz ainda é possível no Iraque e para o Iraque!. In L’Osservatore Romano nº. 08. Roma, p. 01, 22 de Fevereiro de 2003.

147

JOÃO PAULO II. Abramos o coração e a inteligência aos grandes desafios que nos esperam. In L’Osservatore Romano nº. 03. Roma, p. 07, 19 de Janeiro de 2002.

JOÃO PAULO II. Deus pode voltar a orientar os corações dos homens para os pensamentos de paz. In L’Osservatore Romano nº. 15. Roma, p. 01, 13 de Abril de 2002.

JOÃO PAULO II. Não à morte! Não ao egoísmo! Não à guerra! Sim à Vida! Sim à Paz!. In L’Osservatore Romano nº. 03. Roma, p. 06, 18 de Janeiro de 2003.

JOÃO PAULO II. Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão. In L’Osservatore Romano nº. 50. Roma, p. 08, 15 de Dezembro de 2001. JOÃO PAULO II. O Decálogo de Assis para a Paz. In L’Osservatore Romano nº. 10. Roma, p. 01, 09 de Março de 2002.

JOÃO PAULO II. Ontem foi um dia obscuro na história da humanidade mas o mal e a morte não são a última palavra. In L’Osservatore Romano nº. 37. Roma, p. 02, 15 de Setembro de 2001. JOÃO PAULO II. Pacem in terris: um compromisso permanente. In L’Osservatore Romano nº. 51. Roma, p. 08, 21 de Dezembro de 2002. JOÃO PAULO II. Promovei o diálogo da Igreja. In L’Osservatore Romano nº. 46. Roma, p. 03, 17 de Novembro de 2001.

JOÃO PAULO II. Rogo a Deus afim de que conceda ao povo americano a força de que precisa nesta hora de amargura. In L’Osservatore Romano nº. 37. Roma, p. 01, 15 de Setembro de 2001. 148

LAGHI, D. Pio. Unidos a ―Cristo, nossa paz‖, podemos salvaguardar e preservar o dom precioso que é precisamente a paz. In L’Osservatore Romano nº. 11. Roma, p. 04, 15 de Março de 2003.

MARTIN, D. Diarmuid. O futuro dos povos do Médio Oriente depende da sua convivência no respeito recíproco. In L’Osservatore Romano nº. 15. Roma, p. 08, 13 de Abril de 2002. MARTINO, D. Renato Raffaele. O Papa e a Paz. In L’Osservatore Romano nº. 11. Roma, p. 12, 15 de Março de 2003.

MARTINO, D. Renato Raffaele. Apresentação à Imprensa da Mensagem de João Paulo II para o Dia Mundial da Paz - 2003. In L’Osservatore Romano nº. 51. Roma, p. 07, 21 de Dezembro de 2003.

MIGLIORI, D. Celestino. A vasta maioria da comunidade internacional pede uma resolução diplomática da crise iraquiana. In L’Osservatore Romano nº. 11. Roma, p. 06, 15 de Março de 2003.

VAN THUÂN, François Xavier Nguyên. Apresentação da Mensagem de João Paulo II para o XXXV Dia Mundial da Paz. In L’Osservatore Romano nº. 50. Roma, p. 08, 15 de Dezembro de 2001. VIAN, Paolo. Un Papa ―Nuovo‖. In L’Osservatore Della Domenica nº 42, Roma, p. 05, 22 de Outubro de 1978.

149

Documentos

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. Promulgado pela Autoridade do Papa João Paulo

II,

Roma,

25

de

Janeiro

de

1983.

Disponível

na

WEB

em:

. Acessado no dia 11 de Junho de 2007. GAUDIUM ET SPES. In Encíclicas e Documentos Sociais – Volume II. Frei Constantino (Org.) São Paulo, LTr, 1993 PACEM IN TERRIS. In Encíclicas e Documentos Sociais – Volume I. Frei Constantino (Org.) São Paulo, LTr, 1993

150

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.