A REVISTA DO CLUBE MILITAR: A VOZ DAS FORÇAS ARMADAS PÓS-DITADURA MILITAR

July 22, 2017 | Autor: Andrielly Leite | Categoria: Memoria, Ditadura Militar
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A REVISTA DO CLUBE MILITAR: A VOZ DAS FORÇAS ARMADAS PÓSDITADURA MILITAR ANDRIELLY NATHARRY LEITE DA SILVA OLIVEIRA1

Introdução Muitas vezes quando pensamos sobre os caminhos que levam a determinado acontecimento na história, nos indagamos quase que secretamente se poderia ter sido diferente? E como teria sido? Estudar a ditadura militar no Brasil hoje ainda significa levantar muitos questionamentos, pois infelizmente não temos alternativa se não costurar essa história com pequenos pedaços de tecidos de formatos diferentes, juntando-os em uma espécie de colcha de retalhos. Se algum dia teremos metros de tecido suficiente para uma colcha que cubra nossas dúvidas é algo que não podemos saber, mas que história afinal pode ser reconstruída em sua integridade plena? Que história pode se dizer portadora da realidade tal como aconteceu? O fato é que o período de ditadura militar, por ser um acontecimento ainda próximo e possuir um caráter extremamente traumático para a sociedade brasileira,tem uma amplitude maior que a maioria dos objetos de estudos das ciências humanas, uma vez que a necessidade de compreensão desse acontecimento extrapola os interesses acadêmicos-cientifícos se tornando uma questão de profundo interesse de toda a sociedade brasileira. O presente trabalho constitui-se a partir de minha pesquisa de mestrado na qual buscamos pensar a memória militar sobre o golpe de 1964 e a ditadura no período de redemocratização (1985-2010), a partir da Revista do Clube Militar: a casa da república. A referida Revista – vinculada ao Clube Militar – foi fundada em 1926 e se caracteriza como porta-voz de assembleias, palestras e discussões realizadas no âmbito do Clube Militar. Seus artigos são relacionados principalmente às atividades cotidianas desenvolvidas no Clube Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, sob orientação do Prof.Dr.Cândido Moreira Rodrigues. Bolsista da Capes.

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Militar - bailes, salões de artes, eventos desportivos, palestras -, mas privilegiam também análises pontuais que envolvem o processo de desenvolvimento econômico e político do país. direcionada principalmente a forma de condução do partido que está no poder; e ainda apresenta um espaço de considerável relevância à preservação da memória militar, seus grandes homens e feitos. Nosso objetivo no presente artigo é estudar a Revista do Clube Militar como uma fonte histórica que nos permita compreender a forma como vem sendo absorvidas pelas Forças Armadas as mudanças no quadro político brasileiro no período pós-ditadura militar. Para tanto buscamos pensar primeiramente o processo de transição para a democracia e suas características fundamentais, aprofundando-nos nos conteúdos e características essenciais da fonte, a Revista do Clube Militar: a casa da República.

Finalmente estudaremos os

elementos que compõe seu discurso (políticos) no período de transição, especificamente o período que compreende o governo Sarney (1985-1989), e sua relação com o período de ditadura militar. A abertura “lenta, gradual e segura” Na segunda metade do século XX muitos países da América Latina vivenciaram uma série de golpes militares e implantações de regimes ditatoriais que se “justificaram” em nome de uma disputa mundial pela hegemonia do modelo econômico, a qual polarizou o mundo entre capitalistas e socialistas. Assim sendo, os militares brasileiros aliados aos interesses capitalistas estadunidenses e apoiados por setores expressivos da sociedade civil deflagraram, em 1964, um golpe de estado depondo o presidente democraticamente eleito, João Goulart. Os processos de repressão, violação das liberdades individuais, censura dos meios de comunicação, implantação de órgãos de vigilância e investigação, enfim, os métodos de controle social adotados pelos militares da América Latina, tiveram em comum a fundamentação na Doutrina de Segurança Nacional2, embora houvesse diferenças quanto à 2

Definida por Nilson Borges como uma “manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os países ocidentais” (BORGES, 2012, p.24), a Doutrina de

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intensidade de seu emprego de forma que alguns regimes são conhecidos como mais violentos que outros. No processo de abertura política, contudo, o caso brasileiro se difere substancialmente dos demais. Francisco Teixeira da Silva elenca alguns atores que surgiram a partir de meados da década de 1970 no cenário político e econômico do Brasil que condicionaram o ritmo do processo de abertura: Tais são os atores principais e seus condicionantes a serem considerados na reconstrução do cenário de redemocratização no Brasil: a pressão externa e os condicionantes da economia mundial, na qual o Brasil já se inseria de forma determinante e definitiva; os militares e seus condicionantes institucionais, compreendidos como a corporação e seus organismos e, por fim, a oposição representada pelo MDB e seus condicionantes inscritos na cultura política envolvente. (SILVA, 2012, p.249).

São, com certeza, nos condicionantes institucionais dos militares que devemos deter nossa atenção, visto que, aqui se encontra o maior ponto de divergência com os demais processos de abertura política. Os condicionantes institucionais referem-se à série de etapas implementadas pelo projeto Geisel-Golbery que previa uma abertura política lenta, gradual e segura, caracterizada mais como uma legalização do regime, que buscou eximir-se de dispositivos inconstitucionais como o Ato Institucional nº 5.

O projeto de abertura

apresentado pelo governo, portanto, “representava uma volta ao Estado de Direito, a reconstitucionalização do regime, mas não exatamente a redemocratização do país.” (SILVA, 2012, p.262). Com o processo de abertura conduzido pelo próprio governo militar temos como característica principal uma transição compactuada entre civis e militares que, através de uma lei que consentia uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, assegurou o resguardo físico e social dos atores políticos envolvidos, em especial os militares.

Segurança Nacional e sua concepção de estado de guerra (civil) disseminada pelas Forças Armadas é a ideologia que subsidia não apenas o Golpe, mas também as políticas autoritárias adotadas pelos governantes militares e a suposta razão da continuidade no poder durante vinte e um anos.

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Ainda que não tenha havido punições aos militares envolvidos da ditadura, em especial em casos de crimes contra os direitos humanos, sua imagem perante a sociedade sofreu de um profundo descrédito. Os olhares da sociedade agora os acusam, são de desconfiança e temor pelo que se mostraram capazes e ainda paira no ar a insegurança quanto ao podem fazer no futuro. Estes sentimentos são vistos pelos militares como “revanchismo” causado pela história dos vencidos e que teriam-no perpetuado nos livros e nos meios de comunicação, guiados pela esquerda. Segundo esta visão, o revanchismo consiste na degradação moral da classe, ou seja, na exaltação dos efeitos negativos e na supressão dos efeitos positivos do regime. A isso, os militares acusam de falta de anistia moral sobretudo expressa pela postura adotada principalmente pela imprensa (D’ARAUJO; CASTRO, 2001, p.19 a 21). Nesse contexto de descredibilização e afastamento das Forças Armadas na esfera pública, não devemos crer que se trata de um afastamento definitivo no âmbito das discussões políticas. Existem alguns meios de comunicações (impressos e eletrônicos) nos quais grupos representativos das Forças Armadas expõem suas ideias quanto ao desenvolvimento político, social e econômico durante os sucessivos governos civis. A utilização e ampliação, portanto, desses meios de comunicação, por parte dos militares da reserva das Forças Armadas podem se constituir como uma forma de preservação e difusão de sua versão sobre a história recente do país e ainda a manutenção de sua presença nas articulações políticas do país. A Revista do Clube Militar: a casa da República O estudo da imprensa enquanto lugar privilegiado de formulação e disseminação de ideias é recente, visto que a concepção de documento, qualificado para a escrita da história, erigida pela escola metódica do século XIX exigia objetividade, neutralidade, fidedignidade, credibilidade e também deviam assegurar o devido distanciamento do presente. A imprensa em contrapartida, oferecia “registros fragmentários do presente, realizados sobre influxos de interesses, compromissos e paixões” (LUCA, 2011, p. 112).

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É apenas com a terceira geração de historiadores da conhecida Escola dos Annales e o processo de alargamento no campo de interesses do historiador que se configurou em uma ampliação nas temáticas, que a partir de então abordam-se questões como o inconsciente, o mito, as mentalidades, aspectos do cotidiano, enfim, temas que focam nos sistemas culturais. (LUCA, 2011, p.113). Como salienta Rodrigo Patto Sá Motta: Os impressos são veículo fundamental na divulgação e disseminação dos valores das diferentes culturas políticas, e são usados propositalmente com tal fim. Nos textos dos livros e jornais, e também nas suas imagens visuais, desfilam heróis (e, tão importante quanto esses, os desprezíveis inimigos), mitos, símbolos e valores morais do grupo, e nessas publicações muitas pessoas encontraram motivação para identificar-se e aderir. (MOTTA, 2009, p.24).

A Revista do Clube Militar: a casa da república teve sua fundação em 1926 e está vinculada ao Clube Militar, instituição que agrega em seu corpo de associados oficiais da Marinha, Aeronáutica e Exército 3 , os quais majoritariamente são oficiais da reserva ou reformados 4 .

Revista que se caracteriza como porta-voz de assembleias, palestras e

discussões realizadas no âmbito do Clube Militar, constitui-se em documento privilegiado para compreendermos o processo de ditadura e de redemocratização, na ótica da construção de um discurso de memória das Forças Armadas. Seus artigos são relacionados principalmente às atividades desenvolvidas no Clube Militar - bailes, salões de artes, eventos desportivos, palestras. Há análises pontuais que envolvem o processo de desenvolvimento econômico e político do país, direcionadas principalmente à forma de condução do partido que está no poder e a preservação da memória militar, seus grandes homens e feitos. O Clube Militar em artigo disponibilizado sem eu

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A revista do Clube Militar circula em todo território nacional com acesso restrito aos oficiais das Forças Armadas associados ao Clube Militar até 2010, ano que edições da Revista passam a ser publicadas em versão digital. No período que corresponde nossa pesquisa, entre Janeiro de 2001 a agosto de 2002 a tiragem da Revista era de 30.000 exemplares por edição, baixando para uma margem de 17.500 a 18.000 entre 2002 e 2008, e limitando-se a 14.000 entre 2008 e 2012. 4 Embora o corpo de associados do Clube Militar seja restrito aos oficiais das Forças Armadas, a Revista do Clube Militar constantemente recebe contribuições de civis em seus artigos.

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website declara como um de seus principais objetivos da Revista do Clube Militar preservar a “memória militar”, além de: [...] atender àqueles interesses, congregando os militares das Forças Singulares no desejo de manter a dignidade e a respeitabilidade das Forças Armadas e participantes das grandes causas nacionais; a esta luta agregaramse civis que propugnam pelos mesmos ideais de manutenção da Democracia, da Soberania, da Unidade Nacional e do Patriotismo.5

O estudo da Revista do Clube Militar6 nos serve como fonte de pesquisa privilegiada à medida que a mesma apresenta um discurso em que se declara portadora de uma versão sobre assuntos de alta relevância nacional e representantes das forças militares. O interesse, vinculação e pré-disposição a interferências em assuntos de ordem política consta desde sua fundação, registrada na declaração de um de seus fundadores, o Tenente Tomás Cavalcanti, de que seria plantada a “bandeira do protesto, possivelmente da revolução, tudo dependendo das circunstâncias”. Esta afirmação que traduz bem o caráter assumido pelo Clube Militar a partir de sua fundação, apresentado no Art. 2°, nos inciso IV e XVIII, respectivamente: “promover e incentivar manifestações cívicas e patrióticas, bem como estudo e discussão de assuntos nacionais de alta relevância” e “defender os interesses nacionais relevantes, podendo, para tanto, promover ações nas esferas administrativa e judicial”. Embora a Revista do Clube Militar não seja essencialmente política, assim como a maioria dos meios de comunicação não o são, ela pode torna-se política, como os demais, “em virtude de sua destinação” (RÉMOND, 2003, p. 441), ou seja, expressa por meio do espaço destinado aos assuntos de interesse político, bem como por meio do teor das discussões que têm por objetivo conduzir à formação de uma determinada opinião no leitor. Dessa forma a Revista do Clube Militar se configura como um importante documento para compreender não somente como os militares entendem e se enquadram dentro do regime democrático, mas

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Histórico da Revista do Clube Militar. Disponível em: < http://clubemilitar.com.br/revista/>. Acesso em: 08 de junho de 2013. 6 O Clube Militar é uma instituição fundada em 1887, que teve como primeiro presidente o Marechal Deodoro da Fonseca, e que ao longo de sua existência suas funções administrativas foram ocupadas inúmeros militares de alta patente que se destacaram também no cenário político nacional.

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também nos permite visualizar quais são os princípios norteadores do discurso que se perpetua através da mesma. Entre passado e presente: o discurso do Clube Militar pós-ditadura militar O Clube Militar tem sido assunto frequente na mídia quando se trata da opinião pública das Forças Armadas, seja pela anual comemoração da “revolução de 1964” ou pelos assuntos referentes à Comissão da Verdade e à Anistia. Assim sendo, tais assuntos estão indiscutivelmente associados ao passado recente do Brasil de ditadura militar. Contudo, como destacamos anteriormente, a Revista do Clube Militar assume uma postura política de caráter mais amplo, segundo ela voltada para a necessidade de “informar seu leitor dos acontecimentos políticos”, uma vez que, seus artigos possuem quase sempre um tom de análise crítica quanto à administração civil das instituições públicas. Os primeiros anos de publicações da Revista do clube militar pós-1985, período referente ao governo Sarney, ao contrário do que poderíamos supor por se tratar de um momento de transição em que questões delicadas estão sendo debatidas no processo de democratização, há praticamente sua ausência dos debates políticos. A Revista preenche suas páginas principalmente com eventos relacionados ao Clube Militar, com artigos de conteúdo histórico sobre as Forças Armadas e seus comandantes, e ainda, trivialidades do cotidiano, tais como gastronomia e turismo. Podemos supor duas razões para o silêncio da Revista do Clube Militar nos primeiros anos de governo democrático, sobretudo no refere-se à ausência de artigos que fazem menção às medidas adotadas pelo governo de Sarney quanto à economia, política externa, programas de desenvolvimento sociais e outras pautas que estiveram presentes nas edições a partir de 1990 com significativa frequência e se acentuaram no decorrer das sucessões presidenciais. A primeira razão deve ser levada em consideração quanto à natureza delicada da questão, pois as Forças Armadas representaram, durante todo o período republicano, uma instituição que gozava de confiança e credibilidade frente a sociedade. Tal postura foi fortemente abalada depois da ditadura militar. Assim sendo, poderíamos entender como uma tática de não enfrentamento, pois estavam fazendo uma transição. Entendamos que a primeira

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razão deva ser levada em consideração, mas seria demasiado ingênuo considerá-la como definidora da questão, o que nos leva a uma segunda possibilidade. Com a morte de Tancredo Neves, primeiro presidente civil, eleito por voto indireto, e candidato que possuía a simpatia dos militares, tomou posse seu vice José Sarney. Sua posse gerou questionamentos a princípio, mas seu posicionamento foi de amistosidade em relação à classe castrense, colocando-a em lugar de relevância diante das decisões tomadas no governo, conferindo assim um lugar privilegiado no processo de fortalecimento democrático. Dessa forma, como afirma o almirante Henrique Sabóia em entrevista ao CPDOC “os ministros militares eram ‘fiadores daquele processo de evolução democrática que estava acontecendo’” (CASTRO, D’ARAUJO, 2001, p.17), e, portanto estavam inseridos de forma atuante no governo. Dessa forma, pela posição de proeminência garantida pelo governo Sarney às Forças Armadas, podemos entender a ausência de opiniões críticas direcionadas ao governo como uma abstenção de posicionamento, o que não significa completo contentamento. O ponto sensível desse período foi, sem dúvida, a Constituinte, “onde uma importante batalha seria travada entre os que defendiam as Forças Armadas e aqueles que, no entender dos militares, eram motivados por sentimentos de revanche.” (CASTRO, D’ARAUJO, 2001, p.17). Além da preocupação com os sentimentos de revanche, encontramos no discurso de Revista do Clube Militar considerações igualmente voltadas a justificarem a defesa das suas ações passadas. No entender da Revista o revanchismo poderia influenciar a formulação da nova Constituição no que concerne às atribuições da Forças Armadas na Nova República. Encontramos no discurso da Revista do Clube Militar argumentos de fundo ideológico e anti-ideológicos, como se pode observar no fragmento de artigo intitulado “As Forças Armadas e a Constituição” publicado em 1987. Estudiosos de grande saber têm emitido suas opiniões, muitas vezes divergentes, sobre o que deverá conter a nova Constituição. Um dos temas controvertidos é a da destinação das Forças Armadas. Há os que defendem a tradição republicana, que contempla a Instituição Militar com responsabilidades amplas na Segurança Nacional, vale dizer, tanto na sua componente externa como interna. Esta é uma tese valiosa não apenas do

9 ponto de vista histórico, mas sobretudo devido à natureza dos conflitos contemporâneos, nos quais vêm sendo empregados, cada vez mais, o terrorismo e a guerra revolucionária [...] É esse bom-senso que, estou certo, não haverá de faltar aos nossos constituintes, quando se ocuparem da destinação constitucional das Forças Armadas. Eles não as afastarão da tradição republicana, atribuindo-lhes unicamente o encargo de defender a Pátria de eventual inimigo externo. Se assim o fizessem, estariam marginalizando as Forças Armadas, alheiando-as da comunidade nacional e tirando-lhes a capacidade de impedir que o inimigo externo, por seus adeptos ideológicos no interior do País, atentem contra a Pátria, pondo em risco até mesmo suas mais sagradas conquistas, como a independência e a soberania. (REVISTA DO CLUBE MILITAR: A CASA DA REPÚBLICA, Jan/Mar 1987, p.42/43).

Os elementos elencados como argumentos às suas preocupações com a possível diminuição do poder de ação das Forças Armadas na esfera política retomam o mesmo discurso que legitimou o golpe em 1964, fundado na crença de que as ideias socialistas proferidas por alguns grupos específicos da população brasileira consistiam em uma ameaça de revolução, atentando assim, contra as conquistas ou valores consagrados pela nação. Dessa forma, as Forças Armadas necessitariam de autonomia para determinar quando e como agir em defesa dos interesses nacionais. A tradição republicana mencionada no fragmento diz respeito à presença militar em sucessivos períodos de crise da república brasileira, entre eles, a Revolução de 1932, a Revolta comunista de 1935, o Golpe do Estado Novo em 1937 e na deposição de Vargas em 1945., E, ainda, participaram do reestabelecimento do regime democrático que vigorou entre 1945 e 1964, e também garantiram a posse de Juscelino Kubistchek em 1955. Para Nilson Borges (2012, p.15/16) essa participação caracteriza-se por um posicionamento na condição arbitral-tutelar, em que existe uma intervenção para o reestabelecimento da ordem institucional, e em seguida seria repassado à condução do Estado novamente aos civis. Contudo, “a partir de 1964, as Forças Armadas intervêm no processo político, sem, contudo, transferir o poder aos civis, agindo, nesse novo contexto, como atores dirigentes e hegemônicos.” (BORGES, 2012. p.16).

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O apelo à tradição é próprio do caráter conservador7 do pensamento militar, ou ainda da cultura política que partilham. Entendemos cultura política como um “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhados por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”. (MOTTA, 2009, p.21). Dessa forma, embora nosso objeto de estudo situe-se no campo militar, entendemos que a cultura política que expressa não seja própria desse segmento da sociedade, embora nele possamos ver com maior clareza. Os elementos evidenciados no excerto anterior se repetem em outros artigos referentes ao mesmo assunto: a segurança nacional (externa e interna) e a tradição ou “missão” de tutela militar nos governos republicanos são os argumentos mais recorrentes. “Não houve jamais no pronunciamento daqueles ministros, outra ideia senão a de cooperar de forma conciliatória, mediante a qual, dentro das nossas condições históricas, as Forças Armadas possam desempenhar a missão que lhes compete, de defender a soberania nacional, além das fronteiras, e a ordem dentro da casa. A respeito, o Senador Amaral Peixoto, que é hoje um patriarca, curtido por uma experiência de mais de cinquenta anos no exercício de cargos de muita responsabilidade, fez observações que deviam calar nos espíritos dos políticos, que por motivos ideológicos, querem reduzir a expressão das Forças Armadas.” (A REVISTA DO CLUBE MILITAR: A CASA DA REPÚBLICA, Jun/Jul 1988, p.2).

Neste discurso há também o apelo ao “continuísmo” respaldado pela experiência histórica, o que fortalece o argumento da tradição, uma vez se a mesma se conserva no decorrer do tempo, e a partir dos princípios conservadores, assim deve ser. É importante destacar, que a história requerida pela Revista do Clube Militar para testemunhar em favor da continuidade não tem fundamento na ciência histórica, mas sim da elaboração de uma memória histórica construída a partir de símbolos que atendam aos seus interesses. Assim também observamos no próximo fragmento a recorrência a essa “história” quando faz menção à Batalha dos Guararapes e também quando menciona o dever 7

De forma mais objetiva tomaremos conservadorismo a partir da função que concentra no cenário político social, que para Bobbio “designa ideias e atitudes que visam à manutenção do sistema político existente e dos seus modos de funcionamento, apresentando-se como contraparte das forças inovadoras.”(BOBBIO, 1998, p.242).

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de cumprir com o sagrado juramento de defender os “princípios e valores republicanos pelos quais optaram os brasileiros cem anos antes”. O soldado brasileiro teve ontem, e tem hoje e terá amanhã importante papel a desempenhar no cenário nacional, não como tutor da sociedade, mas como integrante dela e guardião da Pátria. Desde Guararapes, sempre esteve presente e pronto a se sacrificar no cumprimento do dever, quando instado pela Nação a defender e preservar seus legítimos anseios e aspirações diante de ameaças internas e externas. Isto significa que tem o impostergável dever de observar a destinação constitucional das Forças Armadas e honrar o sagrado juramento proferido de defender a Pátria e garantir as instituições, a lei e a ordem, ou seja, manter os princípios e valores republicanos pelos quais optaram os brasileiros cem anos atrás. Quer dizer ainda que arca com a indeclinável responsabilidade de resguardar as instituições da tirania e velar para que a vontade da maioria, salvaguardados os direitos humanos, não se submeta às paixões e imposições de minorias ativas. Constitui-se, pois, o soldado em elemento de garantia dos poderes constitucionais, da liberdade pública legal, da livre manifestação de pensamento e das reivindicações lídimas e ordeiras. (REVISTA DO CLUBE MILITAR: A CASA DA REPÚBLICA: Jan/Fev 1989, p.3)

O fragmento acima trata-se do editorial da edição da Revista do Clube Militar posterior ao sancionamento da Constituição de 1988, a qual revela poucas mudanças em relação à Constituição de 1967 quanto a definição constitucional das Forças Armadas. Por esse motivo, podemos perceber o tom de reafirmação dos argumentos apresentados nos anos anteriores e observarmos que ainda, que além da tradição tutelar das Forças Armadas, há existência de ideias que comungam com ideologias contrárias aos valores nacionais republicanos, que colocam em risco as instituições democráticas consolidadas através da história. Outro traço que confirma o caráter conservador do discurso das Forças Armadas é o desprezo às minorias, que muito frequentemente está associado a reivindicações sociais de cunho progressista, que ferem com os direitos da maioria que está posto. Considerações finais

A Revista do Clube Militar: A Casa da República se constitui, portanto uma fonte importante de pesquisas para compreendermos o processo de transição do regime militar para

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o civil na perspectiva militar, e ainda como processo iniciado em 1964 pelos militares condiciona o posicionamento da Revista do Clube Militar diante de acontecimentos políticos posteriores ao período de governo militar. Bem como, compreender a importância da memória histórica preservada na Revista do Clube Militar, que tem como eixo central o discurso que legitimou e sustentou o golpe e os vinte e um anos de governo militar, fundamentado essencialmente na Doutrina de Segurança Nacional, e que é retomado no discurso sempre que há necessidade de defender os interesses políticos das Forças Armadas. Sendo assim, reafirmamos a originalidade e centralidade de estudarmos a Revista do Clube Militar: A Casa da República, como fonte importante

de pesquisas para

compreendermos as formas de propagação e manutenção do discurso de legitimidade do Golpe de 1964 e de tentativa de criação de uma memória histórica específica para as Forças Amadas sobre a história recente do Brasil.

Referências Bibliográficas BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 ed., 1998. BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 13-42. D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Militares e a Política na Nova República. Rio de Janeiro: FGV, 2001. LUCA, Regina Tania de. História dos, nos e por meio de periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi.Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 3 ed.,2011. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia”. In MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.) Cultura Política na História: Novos Estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 13-37 RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV editora, 2003.

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SILVA, Francisco C. Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil– 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de A. Neves (Orgs.) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. V.4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.p.243-283. Fontes Revista do Clube Militar: a casa da República (1985-1989) / www.clubemilitar.com.br

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