A \"revista vexatória\" e sua \"utilidade inconfessável\" no sistema penal brasileiro.

May 24, 2017 | Autor: Cristina Rauter | Categoria: Psicologia Juridica, Direitos Humanos, Prisões
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A" “revista" vexatória”" e" sua" “utilidade”" inconfessável" no" sistema" penal" brasileiro." Como citar este artigo: Rauter, C. A “revista vexatória” e sua “utilidade” inconfessável no sistema penal brasileiro. Brandão, E. P. (org). In: Atualidades em Psicologia Jurídica. Rio: Nau, 2016, pp. 221-238.

" Cristina"Rauter" Vem$se$instaurando$como$rotina$no$sistema$penal$brasileiro$um$procedimento$ realizado$quando$da$entrada$de$visitantes,$conhecida$por$“revista$vexatória”,$porém,$ chamada$ nos$ estabelecimentos$ prisionais$ de$ “revista$ íntima”.$ Sua$ finalidade$ seria$$ impedir$a$entrada$de$drogas$e$celulares$nos$presídios$que$poderiam$estar$escondidos$ no$ interior$ do$ corpo$ dos$ visitantes,$ em$ especial$ na$ boca,$ vagina$ e$ ânus.$ Agentes$ penitenciários$ do$ mesmo$ sexo$ do$ visitante$ são$ responsáveis$ pela$ revista.$ O$ visitante$ deve$abrir$a$boca$e$botar$a$língua$para$fora.$O$procedimento$inclui$agachamentos$ou$ pulos$repetidos.$No$caso$das$mulheres,$a$abertura$dos$lábios$vaginais$com$os$dedos$é$ comumente$solicitada,$enquanto$um$espelho$é$colocado$no$chão$de$modo$a$visualizar$ a$vagina.$O$procedimento$pode$ser$feito$individualmente$ou$em$grupos$de$visitantes.$ As$ crianças$ podem$ estar$ presentes,$ junto$ com$ as$ mães,$ e$ fraldas$ de$ bebês$ são$ comumente$ revistadas.$ O$ visitante,$ homens$ ou$ mulheres,$ devem$ ficar$ nus$ e$ virar$ de$ costas$(o$motivo$alegado$é$o$de$que$drogas$poderiam$estar$presas$às$costas$com$fita$ adesiva);$o$ânus,$em$especial$no$caso$de$homens,$é$examinado,$incluindoNse$também$ agachamentos$e/ou$pulos,$que,$imaginaNse,$farão$com$um$objeto$escondido$apareça.$É$ de$se$notar$que$são$admitidos$aos$presídios$como$visitantes$apenas$cônjuges$de$sexos$ diferentes$ (casados$ ou$ em$ união$ estável),$ filhos$ e$ irmãos,$ embora$ a$ lei$ de$ execução$ penal$mencione$parentes$e$amigos.$A$maioria$dos$visitantes$é$composta$de$mulheres,$ sendo,$ portanto,$ a$ maior$ parte$ dessas$ revistas$ realizadas$ em$ visitantes$ do$ sexo$ feminino.$Todo$o$procedimento$é$Justificado$em$nome$da$segurança,$mas$parece$não$

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ter$sido$capaz,$como$é$notório,$de$impedir$a$entrada$quer$de$drogas,$quer$de$celulares,$ ou$mesmo$de$armas$nos$presídios.$$ Médicos$têm$apontado$a$inutilidade$dos$agachamentos$e$dos$pulos$e$também$a$ possibilidade$reduzida$de$sucesso$em$esconder$objetos$nessas$partes$do$corpo$(Dutra,$ 2008).$ Em$ alguns$ estabelecimentos$ é$ verificado$ se$ há$ sangue$ na$ vagina$ ou$ no$ ânus,$ procedimento$que$parece$desconhecer$a$fisiologia$humana,$pois$a$presença$de$sangue$ na$ vagina$ ou$ ânus$ pode$ ter$ outras$ causas$ bem$ mais$ plausíveis.$ É$ sabido,$ há$ muitos$ anos,$que$na$maior$parte$dos$casos,$os$responsáveis$pela$entrada$de$drogas$e$celulares$ nos$presídios$são$agentes$penitenciários,$que$podem$até$mesmo$pertencer$a$facções$ criminosas.$É$notória$a$corrupção$interna$dos$funcionários$dos$presídios,$o$que$pode$ também$explicar$a$entrada$desses$itens$e$até$de$armas$nesses$estabelecimentos,$além$ de$ saídas$ especiais$ para$ alguns$ presos,$ entradas$ de$ mulheres,$ entre$ outras$ infrações$ do$regulamento$penitenciário$com$frequência$divulgadas$pelos$meios$de$comunicação.$ Entre$ as$ infrações,$ a$ comida$ fornecida$ pelo$ governo$ aos$ presídios$ é$ frequentemente$ desviada,$ bem$ como$ medicamentos.$ (Dutra,$ 2008,$ p.$ 79)$ Tais$ denúncias$ são$ monotonamente$ feitas$ há$ décadas.$ Alguns$ desses$ casos$ resultam$ em$ inquéritos$ administrativos$e$até$processos$criminais,$levando$à$prisão$de$alguns$responsáveis.$$ Nosso$propósito$neste$artigo$não$é$tanto$o$de$denunciar$o$mau$funcionamento$ da$ prisão$ tal$ como$ o$ conhecemos$ no$ Brasil$ atual,$ mas$ o$ de$ revelar$ nesse$ funcionamento$ uma$ utilidade$ estratégica.$ Seguindo$ a$ primorosa$ análise$ de$ Foucault$ sobre$a$prisão,$feita$na$terceira$parte$de$Vigiar$e$Punir$(Foucault,$1977)$pretendemos$ fazer$ o$ esforço$ de$ enxergar$ no$ seu$ funcionamento,$ e$ em$ particular,$ na$ revista$ vexatória,$ uma$ “positividade”.$ $ São$ frequentes$ as$ análises$ que$ apontam$ para$ um$ fracasso$contínuo$da$prisão,$para$um$negatividade$que$nela$se$faria$presente$de$modo$ inexorável.$Porém$Foucault$nos$convida$a$fazer$o$exercício$inverso:$o$de$enxergar$uma$ positividade$ nesse$ contínuo$ fracassar$ da$ prisão.$ $ Parto$ do$ principio,$ presente$ na$ filosofia$ de$ Spinoza$ e$ compartilhado$ por$ Foucault,$ de$ que$ tudo$ o$ que$ existe,$ “existe$ necessariamente1”o$ que$ quer$ dizer$ que$ se$ algo$ existe,$ é$ porque$ foi$ produzido$ por$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$

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$Spinoza,$Ética$I,$33.$Nesta$proposição,$Spinoza$diz$que$as$coisas$não$podem$ser$diferentes$do$que$são$ uma$vez$que$expressam$a$potência$de$Deus.$Ou$como$aparece$na$proposição$34,$também$da$Ética$I:$ Deus$é$causa$de$si$mesmo$e$de$todas$as$coisas.$O$Deus$spinozista$é$um$plano$único$a$partir$tudo$que$

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causas$ que$ estão$ neste$ mundo.$ O$ mundo$ deveria$ ser$ de$ outra$ maneira?$ Sim,$ todos$ gostaríamos,$mas$esse$“dever$ser”,$essa$atitude$de$julgamento,$não$é$suficiente$para$ transformáNlo.$Só$temos$um$mundo$para$viver$e$se$queremos$que$ele$seja$diferente$do$ que$é,$só$nos$resta$compreender$as$causas$dos$fenômenos$que$nele$se$verificam$hoje$ e$agir$sobre$elas.$Uma$multiplicidade$de$fatores$altamente$complexos$só$poderão$ser$ compreendidos$através$de$um$pensamento$altamente$complexo.$No$entanto,$muitas$ simplificações$ estão$ presentes$ nas$ análises$ televisivas$ sobre$ o$ crime$ e$ também$ em$ teorias$ ditas$ científicas,$ que$ o$ atribuem$ a$ causas$ internas$ individuais,$ tendências$ negativas,$fatores$genéticos,$etc.$ Se$um$procedimento$como$a$revista$vexatória$tem$durado,$não$obstante$o$seu$ inegável$ fracasso$ no$ que$ tange$ aos$ objetivos$ de$ segurança,$ é$ preciso$ enxergar$ nele$ uma$utilidade$inconfessável.$Há$uma$crítica$monótona$da$corrupção$que$sempre$leva$a$ pedidos$de$prisão,$o$que$é$um$incrível$paradoxo,$já$que$a$corrupção$é$a$essência$do$ próprio$funcionamento$prisional.$Na$verdade,$não$há$nada$no$funcionamento$prisional$ que$ já$ não$ esteja$ presente$ no$ mundo$ fora$ da$ prisão,$ ou$ que$ não$ esteja$ presente$ noutra$instituições$da$rede$de$instituições$disciplinares2$da$qual$a$prisão$faz$parte.$Se$a$ prisão$é$mundo$perverso,$não$devemos$esquecer$que$essa$perversidade$é$de$qualquer$ forma,$demasiado$humana,$para$parafrasear$Nietzsche.$O$fracasso$da$prisão$tem$sido$ apontado$desde$o$surgimento$da$pena$de$prisão$moderna,$sendo$contemporâneo$da$ própria$ pena$ de$ prisão,$ tal$ como$ a$ conhecemos$ nas$ sociedades$ disciplinares.$ Autoridades$judiciárias,$penitenciárias,$políticos,$jornais,$todos$discutem$o$fracasso$da$ prisão,$ quase$ sempre$ propondo$ algum$ tipo$ de$ reforma$ da$ própria$ prisão,$ o$ que$ garante$ sua$ continuidade$ até$ nossos$ dias,$ quando$ a$ quantidade$ de$ pessoas$ presas$ parece$ ter$ atingido$ níveis$ inusitados.$ Segundo$ Salo$ de$ Carvalho$ (2015),$ o$ Brasil$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$ existe$é$engendrado,$não$existindo$neste$processo$nenhum$valor$prévio,$nem$mesmo$o$bem$e$nenhuma$ finalidade.$ 2

$ A$ denominação$ “instituição$ disciplinar”$ foi$ ampliada$ pelas$ noções$ de$ biopoder$ e$ de$ sociedades$ de$ controle,$ descritas$ por$ Foucault$ e$ Deleuze.$ As$ engrenagens$ disciplinares$ são$ compostas$ por$ uma$ rede$ de$ instituições:$ a$ escola,$ o$ quartel,$ o$ hospital,$ a$ prisão,$ etc.$ No$ capitalismo$ avançado$ atual$ verificamos$ uma$ desorganização$ de$ alguns$ “dentes”$ dessas$ engrenagens$com$a$entrada$em$cena$de$outras$modalidades$de$controle$que$atuam$de$modo$ conjugado,$nos$pontos$claros$deixados$pela$maquinaria$disciplinar.$Assim,$não$é$preciso$pensar$ no$ fim$ das$ disciplinas$ para$ falar$ de$ controle,$ opondo$ um$ tipo$ de$ controle$ a$ outro.$ (Rauter,$ 2012).$! $

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provavelmente$ chegará$ ao$ bicentenário$ de$ sua$ independência$ com$ um$ milhão$ de$ presos,$ sendo$ hoje$ a$ quarta$ população$ carcerária$ do$ mundo.$ Atualmente,$ a$ prisão$ parece$estar$na$moda.$Há$mesmo$uma$militância$de$juízes$e$promotores$no$sentido$do$ encarceramento,$levando$a$que$muitos$permaneçam$por$longos$períodos$nas$prisões,$ como$ no$ caso$ dos$ presos$ provisórios,$ que$ ainda$ aguardam$ julgamento$ ou$ mesmo$ aqueles$ que$ cometeram$ os$ chamados$ delitos$ de$ bagatela$ (o$ roubo$ de$ um$ shampoo,$ um$pacote$de$manteiga,$suficientes$para$manter$alguém$preso,$até$por$anos,$segundo$ alguns$casos$conhecidos.$$ Pretendemos$ aqui$ analisar$ a$ eficácia$ da$ revista$ vexatória,$ não$ no$ que$ diz$ respeito$ aos$ seus$ objetivos$ de$ segurança,$ mas$ analisáNla$ em$ sua$ eficácia$ política,$ em$ sua$ positividade,$ como$ mencionamos.$ Essa$ positividade$ não$ se$ revela$ de$ imediato,$ mas$ se$ insere$ na$ lógica$ das$ engrenagens$ carcerárias.$ Já$ foi$ apontado$ que$ a$ pena$ de$ prisão$ se$ estende$ aos$ familiares$ dos$ presos.$ Sabemos$ que$ os$ efeitos$ do$ encarceramento$se$fazem$sentir$não$apenas$sobre$o$apenado,$mas$também$sobre$sua$ família.$ A$ mancha$ da$ prisão$ se$ estende,$ dessa$ forma,$ para$ o$ campo$ social,$ em$ sua$ vocação$ para$ produzir$ dor.$ Ao$ examinar$ os$ efeitos$ da$ revista$ vexatória,$ talvez$ possamos$ampliar$nossa$visão$sobre$os$mecanismos$que,$intervindo$sobre$o$campo$da$ subjetividade,$ concorrem$ para$ uma$ extensão$ dos$ efeitos$ da$ prisão$ sobre$ o$ campo$ social.$ Se$ pudermos$ recusar$ a$ visão$ de$ que$ existe$ uma$ tendência$ inata$ ou$ constitucional$ para$ o$ crime,$ que$ desde$ a$ criminologia$ positivista$ do$ fim$ do$ século$ dezenove$faz$escola3,$podemos$lançar$alguma$luz$sobre$os$mecanismos$que$fazem$com$ que$a$mancha$da$prisão$se$estenda$para$o$campo$social,$fazendo$da$reincidência$uma$ consequência$quase$inevitável$do$encarceramento.$$ A$revista$vexatória,$com$certeza,$é$um$modo$de$estender$a$pena$a$esse$grupo$ mais$ amplo$ de$ pessoas$ que$ não$ cometeu$ qualquer$ delito.$ Mas$ não$ seria$ essa$ justamente$ essa$ a$ principal$ função$ da$ prisão?$ Estender$ mais$ e$ mais$ sua$ ação$ de$ controle$sobre$o$campo$social,$auxiliada$por$uma$rede$de$vigilância$e$de$produção$de$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$ 3 $ Para$o$criminólogo$italiano$Enrico$Ferri,$por$exemplo,$havia$uma$tendência$criminosa$inata,$mas$que$ poderia$se$conjugar$com$fatores$ambientais,$que$ele$denominava$o$“caldo$de$cultura”$da$criminalidade.$ Ver$Ferri,$Enrico.[1884]$Sociologia!Criminal.$Madrid:$Góngora,$1907.$ $

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estigmas?$ Ao$ analisar$ a$ produção$ da$ delinquência$ como$ efeito$ da$ prisão,$ como$ fez$ Foucault,$podemos$entender$porque$ela$produz$alguns$seres$inadaptáveis,$que$terão$ dificuldade$ de$ trabalhar$ e$ de$ se$ reinserir$ socialmente$ por$ sua$ folha$ de$ antecedentes$ criminais,$por$terem$passado$grandes$períodos$em$companhia$de$outros$condenados$ com$ os$ quais$ estabeleceram$ inevitáveis$ laços$ de$ convivência,$ ao$ passo$ que$ foram$ se$ distanciando$de$sua$família$ou$de$outros$grupos$nos$quais$convivia;$por$terem$deixado$ de$ trabalhar$ enquanto$ o$ mercado$ de$ trabalho$ se$ tornava$ mais$ e$ mais$ competitivo...$ Todos$ esses$ fenômenos$ que$ marcam$ a$ vida$ do$ exNpresidiário,$ farão$ com$ que$ muitas$ vezes$ este$ retorne$ ao$ crime$ (se$ ainda$ tiver$ forças,$ depois$ de$ viver$ as$ terríveis$ condições$ de$ nossos$ presídios)$ e$ por$ isso$ mesmo,$ o$ judiciário$ e$ a$ polícia$ são$ autorizados$ a$ vigiáNlo$ e$ a$ perseguiNlo.$ Uma$ das$ funções$ maiores$ da$ produção$ da$ delinquência$é$autorizar,$como$se$vê,$que$a$polícia$e$hoje$também$a$guarda$municipal,$ as$seguranças$privadas,$mantenham$sob$a$vigilância$toda$população$das$cidades,$com$ ênfase$sobre$as$áreas$pobres,$tudo$a$título$de$nossa$proteção.$$ Dizer$ que$ a$ prisão$ produz$ o$ delinquente$ diz$ respeito$ a$ reconhecer$ que$ o$ que$ ela$faz$é$um$certo$tipo$de$gestão$do$coletivo,$fazendo$pairar$sobre$todo$tipo$de$conflito$ social$o$estigma$do$crime.$Qualquer$tipo$de$oposição$à$lei$pode$ser,$a$partir$da$noção$ de$delinquência,$criminalizada.$O$crime$se$torna,$neste$contexto,$muito$mais$que$uma$ infração$à$lei.$Por$certo$há$grandes$diferenças$entre$roubar$para$comer,$quebrar$uma$ janela,$ matar$ para$ roubar,$ matar$ por$ raiva$ ou$ ciúme,$ ou$ matar$ em$ série.$ Porém$ quando$ o$ crime$ se$ torna$ uma$ abstração,$ tornaNse$ possível$ também$ generalizar$ os$ sentimentos$ de$ condenação$ dirigidos$ a$ quem$ o$ comete,$ independente$ do$ tipo$ de$ crime.$São$todos$bandidos,$como$repete$com$insistência$o$noticiário$televisivo,$em$sua$ sangrenta$monotonia.$$ O$ crime$ passa$ a$ ser$ sintoma$ de$ uma$ anormalidade$ que$ mobilizará$ grande$ número$ de$ técnicos$ dispostos$ a$ diagnosticáNla,$ multiplicando$ seus$ efeitos$ no$ interior$ das$escolas,$que$contam$no$Rio$de$Janeiro$hoje,$em$muitos$casos,$com$a$presença$da$ polícia$ e$ com$ uma$ arquitetura$ que$ lembra$ muito$ a$ prisão,$ com$ grades$ e$ portões$ trancados,$ em$ especial$ as$ escolas$ públicas.$ A$ prisão$ realiza$ certo$ tipo$ de$ gestão$ do$ conflito$social$sempre$associada$à$criminalização$e$à$punição,$e$esse$processo$não$se$ dá$ somente$ no$ interior$ da$ prisão,$ mas$ se$ estende$ numa$ rede$ institucional$ que$ $

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denominamos$ “engrenagens$ carcerárias”,$ que$ incluem,$ por$ exemplo,$ a$ mídia,$ a$ chamada$opinião$pública,$o$sistema$socioeducativo,$a$escola,$etc.$$ Como$ atuam$ as$ engrenagens$ carcerárias?$ Pensamos$ que$ a$ intervenção$ dessa$ rede$ se$ dá$ privilegiadamente$ de$ modo$ a$ produzir$ a$ dissolução$ e$ o$ enfraquecimento$ dos$laços$que$os$indivíduos$podem$estabelecer$entre$si,$e$que$constituem$a$multidão.$ Trabalhando$ com$ o$ conceito$ de$ multidão$ de$ Spinoza,$ Bove$ (2010)$ aponta$ que$ sob$ todas$as$instituições$está$a$multidão,$enquanto$uma$dimensão$que$não$pode$nunca$ser$ inteiramente$controlada$ou$calada.$Ainda$que$as$engrenagens$carcerárias$nos$pareçam$ fortes$ e$ onipresentes$ no$ mundo$ atual,$ elas$ devem$ ser$ pensadas$ numa$ correlação$ de$ forças.$ Nas$ prisões$ brasileiras$ existe$ quase$ sempre$ um$ pequeno$ número$ de$ agentes$ penitenciários$em$proporção$ao$número$de$presos,$o$que$nos$leva$sempre$à$pergunta:$ por$que$eles$não$se$revoltam?$É$a$mesma$pergunta$que$podemos$fazer$a$respeito$do$ nosso$ modo$ de$ vida$ no$ capitalismo$ atual:$ vivemos$ sempre$ com$ muitas$ pessoas$ em$ imensas$cidades,$sob$condições$semelhantes.$Muitos$têm$que$viajar$horas$para$chegar$ ao$ trabalho$ em$ ônibus$ lotados$ e$ caros.$ Mas$ por$ que$ são$ tão$ raras$ as$ ocasiões$ de$ sublevação?$ Antes$ de$ responder$ a$ essas$ indagações,$ retornemos$ ao$ conceito$ de$ multidão.$$$ O$estado$de$multidão$se$estabelece$a$partir$dos$laços$de$natureza$afetiva$que$ estabelecemos$com$aqueles$a$quem$consideramos$nossos$semelhantes.$São$laços$que$ se$ dão$ por$ contágio,$ por$ imitação,$ dizem$ Spinoza$ e$ Gabriel$ Tarde$ (1901).$ Essas$ relações$ que$ estabelecemos$ com$ aqueles$ a$ quem$ consideramos$ semelhantes$ nos$ levam$ a$ constituir$ com$ eles$ um$ corpo$ comum,$ que$ podem$ nos$ levar$ a$ pensar$ e$ agir$ como$ se$ fossemos$ um$ só.$ As$ engrenagens$ carcerárias,$ no$ entanto,$ agem$ no$ sentido$ inverso:$o$de$desfazer$essa$possibilidade,$dificultando$o$contágio$afetivo,$que$poderia$ ser$ capaz$ de$ produzir$ um$ pensamento$ e$ uma$ ação$ comuns$ diante$ da$ experiência$ de$ viver$situações$semelhantes$de$opressão$e$injustiça.$ Retornemos$à$revista$vexatória:$como$parte$que$é$das$engrenagens$carcerárias,$ uma$ de$ suas$ utilidades$ é$ a$ de$ minar$ as$ relações$ de$ solidariedade$ que$ podem$ se$ estabelecer$ entre$ quem$ está$ preso$ e$ quem$ não$ está,$ ou$ seja,$ entre$ as$ famílias$ e$ aqueles$com$quem$possuem$fortes$laços$afetivos$e,$por$isso,$se$reúnem$para$visitáNlo:$

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um$ pai,$ um$ filho,$ um$ irmão$ preso.$ De$ que$ modo$ funciona$ esse$ dispositivo?$ Um$ dos$ argumentos$ para$ a$ manutenção$ desse$ procedimento$ é$ o$ fato$ de$ que$ “alguns”$ visitantes$tentam$entrar$com$drogas.$Muitos$familiares$se$queixam$desses$que$“agem$ errado”$ e$ fazem$ com$ que$ os$ demais$ paguem$ pelo$ erro.$ É$ o$ mesmo$ mecanismo$ que$ leva$ a$ família,$ ao$ passar$ pela$ revista$ vexatória$ e$ outras$ experiências$ de$ humilhação$ quando$da$visitação,$culpar$seu$familiar$por$fazêNlos$passar$por$isso.$A$experiência$de$ desnudarNse$diante$de$estranhos$e$em$presença$de$filhos$e$filhas$em$idade$infantil$foi$ descrita$ por$ um$ familiar$ como$ comparável$ a$ “estar$ morrendo”$ (Dutra,$ 2008).$ Alguns$ familiares$ escondem$ das$ crianças$ o$ objetivo$ do$ que$ estão$ fazendo,$ dizendo$ que$ se$ trata$de$um$exame$médico.$ O$que$torna$essa$situação$tão$insuportável$para$muitos$e$capaz$de$gerar$efeitos$ que$interferem$sobre$as$relações$entre$familiares$e$presos?$Em$nossa$cultura$judaicoN cristã$ bem$ descrita$ na$ psicanálise$ freudiana,$ pudor,$ repugnância,$ moral4,$ se$ opõem$ como$barreiras$à$sexualidade.$Essas$barreiras$fazem$com$que$a$sexualidade$seja$algo$ delicado,$ cercado$ de$ múltiplos$ significados.$ DesnudarNse,$ e$ mais$ do$ que$ isso,$ expor$ seus$ órgãos$ sexuais$ a$ pessoas$ estranhas$ com$ utilização$ de$ espelhos,$ etc.$ não$ é$ algo$ banal.$ É$ preciso$ considerar$ inicialmente$ que$ nada$ que$ diga$ respeito$ à$ sexualidade$ pode$ ser$ banal,$ embora$ haja$ toda$ uma$ produção$ midiática$ em$ torno$ da$ sexualidade$ que$nos$leva$a$crer$que$o$sexo$é$algo$liberado,$que$não$existem$mais$tabus,$etc.$Assim,$ não$existiriam$mais$tantos$pudores$em$relação$ao$sexo$e,$portanto,$a$revista$vexatória$ seria$apenas$um$desconforto$necessário.$Recordemos$também$que$para$Freud,$Eros$é$ uma$força$gregária,$que$leva$os$homens$a$estabelecerem$laços$entre$si.$Desse$modo,$ intervir$ sobre$ a$ sexualidade$ é$ intervir$ sobre$ o$ coletivo,$ sobre$ a$ constituição$ desses$ laços$ afetivos$ que$ unem$ ou$ desunem$ as$ pessoas,$ no$ mesmo$ sentido$ do$ que$ sublinhamos$no$que$diz$respeito$ao$conceito$de$multidão$em$Spinoza.$Não$é$à$toa$que$ muitas$ mulheres$ de$ presos$ passem$ a$ não$ mais$ visitaNlos,$ preferindo$ buscar$ um$ companheiro$que$não$esteja$preso$(Dutra,$p.$108).$A$intervenção$da$instituição$penal$ no$ corpo$ da$ família$ dos$ prisioneiros,$ assim$ como$ no$ deles$ próprios$ quando$ saem$ e$ retornam$ao$presídio$é$uma$demonstração$por$parte$da$instituição$de$que$o$preso$(e$ agora$ seu$ familiar,$ que$ não$ cometeu$ crime)$ não$ dispõe$ de$ nenhuma$ privacidade$ ou$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$

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$Freud$se$refere$a$esses$três$elementos$constituintes$das$barreiras$que$se$opõem$à$sexualidade$ humana,$erigidas$a$partir$da$moral$familiar$e$da$escola,$principalmente.$

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controle$ sobre$ o$ próprio$ corpo.$ Recordemos$ Kafka$ (1998),$ em$ seu$ conto$ A" Colônia" Penal:$ali$é$narrado$o$funcionamento$de$uma$sangrenta$engenhoca$cuja$finalidade$era$ a$de$escrever$a$lei$no$corpo$do$condenado.$Não$lhe$era$informado$o$conteúdo$de$sua$ sentença,$ isso$ não$ era$ importante.$ O$ importante$ era$ que$ ele$ experimentasse$ a$ lei$ esculpida$ no$ próprio$ corpo.$ Algo$ semelhante$ se$ dá$ na$ revista$ vexatória:$ proibições,$ pudores,$tudo$é$letra$morta.$O$que$importa$é$mostrar$que$a$instituição$tudo$pode$e$ que$não$resta$nenhuma$parte$do$corpo$deixada$em$claro$pelo$dispositivo$de$poder.$A$ nudez$ é$ também$ exigida$ em$ procedimentos$ hoje$ comuns$ nos$ presídios,$ nos$ quais$ presos$ são$ mantidos$ despidos,$ deitados$ ou$ acocorados,$ por$ longos$ períodos.$ Esses$ procedimentos$ ensinam$ ao$ preso$ que$ ele$ nada$ pode$ diante$ do$ poder$ irrestrito$ da$ engrenagem.$Da$mesma$forma$que$no$conto$de$Kafka,$isso$não$é$expresso$apenas$por$ palavras,$mas$pela$experiência$corporal.$ Temos$que$compreender$a$revista$vexatória$no$interior$das$estratégias$de$que$ se$ valem$ as$ engrenagens$ carcerárias$ para$ minar,$ tanto$ quanto$ possível,$ as$ possibilidades$de$resistência$coletiva,$considerando,$como$já$mencionamos,$que$todas$ as$instituições$se$apoiam$sobre$a$multidão,$dela$emanando$seu$poder,$como$um$poder$ confiscado$(Lordon,$2010).$Recordemos$que$a$prisão$moderna$se$associa$ao$projeto$de$ tornar$ toda$ oposição$ à$ ordem$ capitalista$ crime,$ fazendo$ confundir$ todo$ tipo$ de$ ilegalidade$popular$com$a$expressão$de$uma$anormalidade$que$pode$afetar$indivíduos$ e$coletividades:$a$delinquência.$Uma$das$funções$das$engrenagens$carcerárias$é,$pois,$ o$esvaziamento$do$coletivo.$$ Não$esqueçamos$que$os$agentes$penitenciários$(ou$guardas)$são$geralmente$de$ origem$popular.$Com$frequência$se$encontrarão$no$cárcere,$um$como$agente$e$o$outro$ como$preso,$pessoas$que$têm$a$mesma$origem$e$muitos$hábitos$em$comum,$o$mesmo$ se$dando$no$caso$do$policial,$profissão$na$qual$a$quantidade$de$negros$é,$ao$menos$no$ Rio$ de$ Janeiro,$ provavelmente$ mais$ elevada$ que$ noutras$ e$ que$ se$ apresenta$ como$ uma$ possibilidade$ de$ ascensão$ social$ para$ muitos$ jovens$ pobres.$ No$ entanto,$ essa$ origem$ comum$ será$ gerida$ pelas$ engrenagens$ carcerárias$ de$ modo$ a$ produzir$ separação$ e$ desfazer$ possíveis$ alianças,$ manipulando$ justamente$ este$ desejo$ de$ ascensão$ e$ fazendo$ transformar$ a$ solidariedade$ em$ competição,$ sentimento$ de$ superioridade$ e$ ódio.$ A$ transformação$ de$ amor$ e$ outros$ sentimentos$ gregários$ em$ $

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ódio$ é$ uma$ possibilidade$ sempre$ presente$ na$ economia$ dos$ afetos,$ tal$ como$ Reich$ mostrou$quando$analisou$a$Psicologia"das"Massas"do"Fascismo$(2001).$$ O$asco$ou$nojo$com$relação$aos$órgãos$sexuais$deve$ser$superado$pelo$jovem$ para$ que$ e$ este$ possa$ chegar$ a$ ter$ relacionamentos$ sexuais$ e$ amorosos.$ No$ caso$ da$ Revista$Vexatória,$o$nojo$e$o$asco$são$trabalhados$no$sentido$inverso,$ou$seja,$no$de$ sua$intensificação.$Tais$sentimentos,$acreditamos,$podem$ganhar$facilmente$um$novo$ alvo,$passando$a$ser$dirigidos$contra$o$preso.$Assim,$a$eficácia$da$revista$vexatória$diz$ respeito$ à$ carga$ de$ afeto$ que$ é$ capaz$ de$ mobilizar$ ao$ interferir$ sobre$ a$ sexualidade.$ Essa$ carga$ de$ afeto$ pode$ ser$ transformada$ em$ ódio$ e$ outros$ sentimentos$ negativos$ dirigidos$ ao$ parente$ preso,$ ou$ contra$ si$ próprio,$ sob$ a$ forma$ de$ sentimentos$ de$ humilhação,$culpa$e$menosvalia.$$ Tive$ oportunidade$ de$ atender$ como$ psicóloga,$ atuando$ na$ equipe$ do$ Grupo$ Tortura$ Nunca$ MaisNRJ,$ à$ mãe$ de$ um$ exNpresidiário.$ Dona$ Dulce5$ era$ uma$ mulher$ negra,$em$torno$de$45$anos$de$idade,$mãe$de$João,$um$rapaz$de$cerca$de$20$anos$que$ fora$preso$pelo$roubo$de$um$carro.$Um$jovem$negro$de$classe$média,$morador$de$um$ subúrbio$do$Rio.$A$mãe$era$funcionária$pública,$o$pai,$motorista$de$uma$empresa,$com$ muitos$ anos$ de$ trabalho.$ Como$ dizia$ sua$ mãe$ “ele$ não$ precisava$ roubar,$ pois$ tinha$ tudo”.$ Costumava$ frequentar$ uma$ casa$ noturna$ de$ samba$ e$ certo$ dia$ quis$ aparecer$ motorizado$ para$ melhor$ impressionar$ as$ moças.$ Não$ era$ estudioso,$ fizera$ algumas$ tentativas$ de$ trabalho$ sem$ sucesso.$ Gostava$ mesmo$ era$ de$ garotas,$ festas,$ ver$ televisão,$ ouvir$ música,$ fumar$ maconha.$ Desde$ antes$ do$ ocorrido,$ os$ pais$ o$ consideravam$um$problema,$“um$rapaz$mimado”,$segundo$eles$próprios$reconheciam,$ que$não$se$interessava$por$nada.$A$mãe$se$orgulhava$de$pertencer$a$uma$família$negra$ trabalhadora$e$honesta,$mas$seu$filho$era$diferente.$Junto$com$um$amigo,$tentou$fazer$ uma$ ligação$ direta$ num$ carro$ estacionado.$ Na$ mesma$ rua$ em$ que$ roubou$ o$ carro,$ passava$uma$patrulha$da$polícia,$tendo$João$sido$preso$imediatamente$após,$sem$ter$ tempo$de$curtir$o$carro$no$tal$samba.$Foi$levado$para$um$quartel$da$PM$próximo$dali,$ onde$foi$submetido$a$uma$tortura$que$consistia$num$corredor$polonês,$em$que$uma$ fila$de$jovens$soldados$o$espancava,$estando$ele$encapuzado.$Ficou$preso$cerca$de$2$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$ 5

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$Nomes$fictícios.$

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anos$ e$ meio,$ solto$ em$ livramento$ condicional,$ graças$ ao$ advogado$ que$ os$ pais$ pagaram.$$ A$razão$pela$qual$Dona$Dulce$fora$encaminhada$para$atendimento$era$que$não$ conseguia$livrarNse$das$memórias$do$que$passara$no$período$da$prisão$de$seu$filho$e$ retomar$sua$vida.$Em$especial,$ela$não$conseguia$esquecer$o$cheiro$da$prisão.$Era$um$ cheiro$ que$ lhe$ invadia$ as$ narinas$ nos$ locais$ mais$ inusitados.$ Sua$ mãe,$ segundo$ ela,$ tivera$ sua$ morte$ apressada$ também$ por$ causa$ da$ prisão$ do$ neto.$ Os$ dias$ de$ visita$ eram$dias$de$calvário:$ficar$horas$no$sol,$na$fila.$E$depois$a$revista:$desnudar$as$partes$ íntimas,$ se$ agachar,$ ouvir$ os$ comentários$ das$ guardas$ sobre$ o$ cheiro$ que$ sentiam,$ além$ do$ tratamento$ em$ geral$ grosseiro$ recebido$ durante$ as$ visitas.$ Até$ sua$ mãe$ foi$ submetida$ a$ esse$ procedimento$ quando$ visitou$ o$ neto.$ Para$ ela$ própria,$ tornouNse$ uma$rotina$semanal.$Mesmo$porque,$estava$sempre$preocupada$com$a$sorte$do$filho$ na$prisão$e$por$isso$não$podia$descuidar$de$visitáNlo.$Lembra$com$horror$o$dia$em$que$ chegou$ para$ a$ visita$ e$ ele$ tinha$ desaparecido,$ para$ reaparecer$ na$ semana$ seguinte,$ sem$nenhuma$explicação.$Imaginou$que$ele$estava$morto,$mas$depois$pensou$que$esta$ pode$ter$sido$uma$forma$de$chantagem.$O$casal$tinha$um$pequeno$negócio,$um$bar,$ no$bairro$em$que$morava.$Teve$que$vendêNlo$para$pagar$a$propina$que$garantiu$uma$ melhoria$ das$ condições$ carcerárias$ do$ filho:$ uma$ alimentação$ melhor,$ um$ colchão,$ medicamentos.$Todo$esse$conjunto$de$experiências$vividas$se$constituía$num$trauma$ de$ difícil$ elaboração.$ Sua$ vida$ se$ dividia$ entre$ antes$ e$ depois$ dessas$ experiências,$ o$ que$ é$ apontado$ pela$ psicanalista$ Françoise$ Sironi$ (1999)$ como$ uma$ experiência$ comumente$vivida$por$pessoas$que$sofreram$tortura.$$ Quando$ comecei$ a$ atendêNla,$ o$ filho$ já$ tinha$ sido$ solto$ há$ algum$ tempo,$ mas$ ela$ me$ confessou$ que$ não$ conseguia$ suportáNlo.$ O$ nojo,$ o$ cheiro$ da$ prisão$ se$ estendera$a$ele,$como$fui$percebendo.$O$pai$também$compareceu,$dizendo$que$a$vida$ dos$dois$já$não$era$a$mesma.$LembravamNse$do$passado$com$saudade,$a$vida$boa$que$ tinham$e$que$não$podiam$ter$mais.$D.$Dulce$perdera$a$alegria$de$viver,$não$tinha$mais$ interesse$ no$ trabalho$ e$ culpava$ o$ filho.$ Pouco$ tempo$ depois,$ João$ saiu$ de$ casa$ para$ morar$com$amigos,$um$deles$seu$companheiro$na$prisão.$Tentou$trabalhar,$a$princípio$ como$pedreiro,$depois$numa$motoNtaxi.$Tenta$continuar$a$vida,$mas$o$ódio$que$a$mãe$ passara$ a$ ter$ dele$ o$ empurrava$ para$ a$ marginalidade.$ A$ mãe$ chegava$ a$ lhe$ negar$ $

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comida$e$impedir$sua$entrada$em$casa,$para$logo$em$seguida$passar$noites$em$claro,$ culpada.$O$atendimento$ficou$inconcluso,$pois$creio$que$vir$ao$consultório$falar$deste$ assunto$era$penoso$demais$para$ela,$pois$fazia$com$que$se$lembrasse$da$experiência$ de$ ir$ ao$ presídio$ semanalmente.$ O$ ódio$ do$ filho,$ o$ afastamento$ do$ filho$ parecia$ ser$ para$ela$o$único$caminho$de$recuperação$da$própria$vida,$mas$tal$caminho$não$estava$ se$ mostrando$ frutífero,$ pois$ ao$ mesmo$ tempo$ não$ aceitava$ esse$ sentimento,$ sendo$ torturada$pela$culpa.$$ Creio$ que$ a$ revista$ “íntima”$ como$ era$ chamada$ nos$ presídios$ cariocas,$ ou$ vexatória,$como$preferimos$chamáNla,$está$na$raiz$da$produção$do$ódio$de$D.$Dulce$ao$ filho,$ bem$ como$ dos$ sentimentos$ negativos$ que$ a$ impossibilitam$ de$ seguir$ com$ sua$ vida$depois$das$experiências$vividas$na$prisão.$Em$conjunto$com$outros$procedimentos$ que$ocorrem$nas$visitas,$tornaNse$uma$arma$poderosa$para$a$exacerbação$de$todo$tipo$ de$ “afetos$ tristes”,$ no$ sentido$ spinozista.$ Spinoza$ descreve$ como$ afetos$ tristes$ uma$ variedade$de$afetos,$que$vão$do$ódio,$à$culpa,$ao$ressentimento,$a$inveja,$o$espirito$de$ vingança,$ etc.$ Todos$ eles$ correspondem$ à$ despotencialização:$ quando$ estamos$ dominados$ por$ esses$ sentimentos$ pensamos$ e$ agimos$ pior,$ tendemos$ a$ não$ confiar$ em$ ninguém$ e$ perdemos$ a$ alegria$ de$ viver.$ Podemos$ considerar$ a$ revista$ vexatória$ como$ uma$ tecnologia$ que$ age$ no$ sentido$ de$ multiplicar$ sentimentos$ negativos.$ Ao$ interferir$ no$ campo$ da$ sexualidade,$ ela$ mobiliza$ intensos$ afetos,$ trabalhando$ com$ sentimentos$negativos$que$comumente$cercam$a$sexualidade,$como$o$nojo,$o$asco,$a$ culpa,$ e$ que$ provêm$ justamente$ das$ proibições$ sexuais$ impostas$ ao$ homem$ dito$ civilizado.$ Ou$ seja,$ a$ revista$ vexatória$ intensifica$ e$ agrava$ o$ que$ já$ existe,$ realizando$ uma$gestão$da$afetividade$que$vai$ao$sentido$do$afastamento$do$outro.$ $O$campo$da$sexualidade$é$também$aquele$no$qual$também$se$tornam$visíveis$ os$ costumes$ de$ um$ povo,$ traduzidos$ como$ regras$ passadas$ de$ geração$ em$ geração.$ Talvez$não$haja$nenhum$povo$na$face$da$terra$que$não$tenha$regras$que$cerquem$e$ regulem$ a$ atividade$ sexual,$ embora$ a$ culpa$ e$ o$ pecado,$ o$ asco,$ e$ a$ repugnância$ relacionados$ ao$ sexo$ sejam$ características$ mais$ marcantes$ nas$ sociedades$ judaicoN cristãs.$$

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Haveria$por$certo$outros$meios$técnicos$muitíssimo$mais$eficazes$para$impedir$ que$ objetos$ indesejáveis$ adentrassem$ o$ estabelecimento$ prisional.$ Por$ que$ não$ são$ usados?$ Responder$ a$ essa$ pergunta$ nos$ recorda$ do$ “a$ mais”$ de$ violência$ que$ é$ caraterístico$dos$sistemas$totalitários.$Há$uma$série$de$procedimentos$inúteis,$alguns$ violentos,$ realizados$ nos$ cárceres,$ que$ se$ mantém$ um$ tanto$ misteriosamente.$ Uma$ violência$inútil,$totalmente$irracional,$mas$ainda$assim,$praticada.$Primo$Levi$(1997)$se$ debruçou$ sobre$ essa$ questão$ ao$ analisar,$ por$ exemplo,$ o$ transporte$ de$ prisioneiros$ nos$ trens$ de$ carga$ para$ os$ campos$ de$ concentração$ durante$ o$ nazismo.$ Por$ que$ os$ nazistas$exigiam$que$mesmo$os$velhos$quase$moribundos$fossem$transportados,$para$ morrer$ no$ caminho?$ Por$ que$ era$ exigido$ do$ prisioneiro$ que$ mantivesse$ a$ cama$ impecavelmente$ arrumada,$ mesmo$ que$ aquele$ que$ ali$ dormia$ fosse$ ser$ em$ breve$ executado?$ Creio$ que$ a$ revista$ vexatória$ se$ inclui$ entre$ essas$ aparentes$ irracionalidades$ das$ instituições$ totalitárias.$ No$ entanto,$ é$ possível$ enxergar$ nesses$ procedimentos$ uma$ racionalidade:$ a$ revista$ vexatória$ se$ revela$ desse$ ponto$ de$ vista$ um$ mecanismo$ “inteligente”,$ pois$ interfere$ sobre$ as$ famílias$ no$ sentido$ de$ dissolver$ ou$ minimizar$ os$ laços$ de$ solidariedade$ e$ de$ amor$ familiar$ que$ persistem,$ mesmo$ quando$o$membro$de$uma$família$é$preso.$Não$é$à$toa$que$as$prisões$brasileiras$hoje$ tendem$ a$ proibir$ visitas$ de$ parentes$ não$ consanguíneos,$ como$ por$ exemplo,$ genros,$ ou$primos$mais$distantes,$tios,$assim$como$amigos,$apesar$de$sabermos$que$a$família$ extensa$ é$ uma$ forma$ de$ organização$ familiar$ que$ ainda$ persiste$ em$ nossas$ camadas$ populares.$Foucault$menciona$como$um$dos$pilares$da$construção$da$prisão$moderna,$ inserida$ nas$ redes$ do$ poder$ disciplinar,$ essa$ sua$ “inteligência”$ em$ desfazer$ possíveis$ laços$de$solidariedade$entre$aqueles$que$cometem$delitos$e$a$sociedade$em$geral$e$de$ produzir$ a$ figura$ do$ crime$ como$ um$ amálgama$ composto$ dos$ vários$ tipos$ de$ ilegalidade$popular,$como$se$todos$fossem$uma$coisa$só.$Ainda$que$se$possa$perceber$ facilmente,$ no$ Brasil$ e$ na$ América$ Latina,$ que$ aqueles$ que$ vão$ presos$ sejam$ preferencialmente$os$mais$pobres,$e$entre$esses,$os$mais$pretos,$ou$os$mais$indígenas,$ conforme$ a$ região,$ há$ que$ se$ ter$ um$ mecanismo$ que$ dificulte$ os$ sentimentos$ de$ solidariedade$ que$ possam$ surgir;$ por$ exemplo,$ num$ momento$ como$ a$ visita,$ que$ é$ uma$experiência$coletiva,$já$que$ali$estão$também$os$familiares$de$outros$presos.$Nada$ é$tão$evitado,$tão$dificultado$nos$presídios,$quanto$a$experiência$coletiva.$Bem$sabem$ disso$os$psicólogos$e$professores,$que$costumam$enfrentar$muitas$dificuldades$para$ali$ $

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desenvolverem$ atividades$ em$ grupo,$ por$ quebrarem$ as$ rotinas$ de$ isolamento$ a$ que$ estão$submetidos$os$presos,$em$nome$da$segurança.$$ São$impressionantes$os$índices$de$tuberculose$nos$cárceres$cariocas6$e$para$a$ manutenção$desse$flagelo$atuam$também$alguns$procedimentos$inúteis$e$irracionais,$ conforme$ mostrou$ Diuana$ (2008).$ Agentes$ penitenciários$ não$ costumam$ zelar$ para$ que$o$preso$continue$a$tomar$o$medicamento$contra$tuberculose$uma$vez$iniciado$o$ tratamento,$pois$experimentam$uma$espécie$de$desonra$ao$fazêNlo,$alegando$que$não$ são$ “babás$ de$ preso”.$ Por$ essas$ e$ outras$ razões,$ incluindo$ procedimentos$ de$ segurança$nos$quais$todos$os$pertences$do$preso,$incluindo$medicamentos,$podem$ser$ confiscados$ e$ destruídos,$ os$ altos$ índices$ de$ interrupção$ do$ tratamento$ se$ mantêm.$ No$ entanto,$ prender$ a$ respiração,$ falar$ à$ distância$ do$ preso,$ são$ procedimentos$ de$ que$se$valem$os$agentes$para$se$proteger$do$contágio.$Procedimentos$inúteis,$mas$que$ podem$ revelar$ outro$ tipo$ de$ utilidade:$ a$ de$ dificultar$ ainda$ mais$ o$ convívio$ entre$ guardas$e$presos$nos$cárceres$(Diuana,$p.$109)$$ Uma$ espécie$ de$ fantasmática$ prisional$ faz$ crer$ a$ muitos$ profissionais$ e$ autoridades$ que$ atuam$ nos$ cárceres$ que$ não$ existem$ outros$ meios$ para$ impedir$ a$ entrada$ de$ drogas$ e$ celulares$ naqueles$ estabelecimentos.$ Muitas$ outras$ limitações$ impostas$ à$ entrada$ de$ visitantes$ aos$ presídios$ revelam$ esse$ alto$ grau$ de$ irracionalidade,$ e$ por$ outro$ lado,$ uma$ positividade,$ uma$ utilidade$ no$ sentido$ de$ dificultar$ os$ laços$ afetivos$ entre$ presos$ e$ não$ presos$ e$ de$ impor$ um$ a$ mais$ de$ sofrimento$ a$ familiares$ e$ presos.$ Mas$ apesar$ de$ todos$ esses$ procedimentos$ ainda$ é$ possível$ouvir,$“sob$os$múltiplos$dispositivos$de$encarceramento$[...]$o$ronco$surdo$da$ batalha”$ como$ afirmou$ Foucault$ na$ página$ de$ encerramento$ de$ Vigiar$ e$ Punir$ (Foucault,$1977,$p.$279)7.$$ $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$ 6

$Em$2008,$a$incidência$nos$cárceres$cariocas$era$36$vezes$maior$que$a$da$população$em$geral.$

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$ Enquanto" terminava" este" artigo," deu@se" a" aprovação" do" projeto" de" lei" 77/2015," pela" Assembleia" Legislativa" do" Rio" de" Janeiro," de" autoria" dos" deputados" Marcelo" Freixo," Jorge" Picciani" e" André" Ceciliano,"que"determina"o"uso"de"outros"métodos,"como"detector"de"metais"e"scanner"corporal"para" realização" de" revistas" nos" presídios" e" proíbe" a" revista" íntima." Uma" importante" vitória," fruto" da" militância" de" familiares" de" presos" e" militantes" de" direitos" humanos." No" entanto," esse" projeto" de" lei" acaba"de"ser"vetado"pelo"governador"Pezão."Resta"aguardar"que"o"veto"venha"a"ser"derrubado"pela" assembleia"estadual.$ $ $

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Referências" $ 1.$ Bove,$ Laurent.$ Espinosa" e" a" Psicologia" Social." Ensaios" de" ontologia" política" e" antropogênese."Belo$Horizonte:$Autêntica,$2010.$$ 2.$ Foucault,$Michel.$O$nascimento"da"Biopolítica.$São$Paulo:$Martins$Fontes,$2008.$ 3.$ _____."História"da"Sexualidade,"1."A"Vontade"de"Saber.$Rio$de$Janeiro:$Graal,$ 1999.$ $ 4.$ _____.$Vigiar"e"Punir.$Petrópolis,$Vozes,$1977.$$ 5.$ Freud,$Sigmund.$Three"Essays"on"the"Theory"of"Sexuality.$[1905].$Vol.$VII,$p.$ 135N222.$Standard"Edition"of"The"Complete"Psychological"Work"of"Sigmund" Freud.$London:$The$Hogarth$Press$and$The$Institute$of$PsychoNAnalysis,$1975.$$ $ 6.$ Dutra,$Yuri$Frederico.$Como"se"estivesse"Morrendo."A"prisão"e"a"revista"íntima" em"familiares"de"reclusos"em"Florianópolis.$Dissertação$de$Mestrado.$Programa$ de$Pós$Graduação$em$Direito,$Universidade$Federal$de$Santa$Catarina,$2008.$$ $ 7.$ Kafka,$Franz.$O"Veredicto"/"Na"Colônia"Penal.$São$Paulo:$Companhia$das$Letras,$ 1998.$$ $ 8.$ Levi,$Primo.$A$Trégua.$São$Paulo:$Companhia$das$Letras,$1997.$ $ 9.$ Lordon,$ Fréderic.$ La$ puissance$ des$ institutions.$ Revue" du" Mauss" permanente." Disponível$em$http://hyperspinoza.caute.lautre.net/,$p.$21,$2010.$$ $ 10.$Rauter,$Cristina.$Do$Medo$do$Crime$à$Rebelião:$Algumas$Indicações$para$Pensar$ a$Experiência$Coletiva$Brasileira$a$partir$da$Filosofia$de$Spinoza.$Revista"Polis"e" Psique,$UFRGS,$2013;$3(2):151N161.$$ $

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11.$_____$ .$ O$ Estado$ Penal,$ As$ Disciplinas$ e$ o$ Biopoder.$ In:$ Loic" Wacquant" e" a" questão"penal"no"capitalismo"neoliberal.$Rio$de$Janeiro$:$Revan,$2012,$p.$69N76.$$ $ 12.$Reich,$Wilhelm.$Psicologia"das"Massas"do"Fascismo.$São$Paulo:$Martins$Fontes,$ 2001.$ 13.$Sironi,$ F.$ Bourreaux" et" Victimes:" Psychologie$ de$ la$ torture.$ Paris:$ Odile$ Jacob,$ 1999.$$ 14.$Tarde,$Gabriel.$L’Opinion"et"la"Foule.$Paris:$Sandre.$1901.$ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $

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