A revolução como uma urgência da história

July 21, 2017 | Autor: Valerio Arcary | Categoria: Marxism, Socialism, História, Situações históricas de crise orgãnica., Trotskismo
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A revolução como uma urgência da história


Será necessário que se reunam condições completamente excepcionais,
independentes da vontade dos homens ou dos partidos, para libertar o
descontentamento das cadeias do conservadorismo e levar as massas à
insurreição. Portanto, essas mudanças rápidas que as idéias e o estado de
espírito das massas vivem nas épocas revolucionárias não são um produto da
elasticidade e mobilidade da psíque humana, mas, ao contrário, de seu
profundo conservadorismo(...) As massas não vão à revolução com um plano
preconcebido de sociedade nova, mas com um sentimento claro da
impossibilidade de continuar suportando a sociedade velha. Só o setor
dirigente de cada classe tem un programa político, programa que, no
entanto, necessita todavía ser submetido à prova dos acontecimentos e à
aprovação das massas(...) As distintas etapas do processo revolucionário,
consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros, cada vez más
radicais, sinalizam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que
o impulso adquirido pelo movimento tropeça com obstáculos objetivos. Então
começa a reação: decepção de certos setores da classe revolucionária,
difusão da apatia.[1]
Leon Trotski


1 Introdução
A crise econômica aberta em 2008 expõe os limites do capitalismo,
confirma a necessidade de transformações no mundo contemporâneo, e
contextualiza a iminência de situações revolucionárias nos elos mais
frágeis do sistema. Não existiu, todavia, na história crise econômica sem
saída para o Capital. A saída de crises econômicas nunca foi,
evidentemente, indolor. Exigiu destruição massiva de capitais, um aumento
do patamar de exploração da força de trabalho, uma intensificação da
concorrência entre monopólios, e da competição entre Estados, ou seja,
imensos perigos.[2]
Enquanto o capitalismo vivia sua época histórica de gênese e
desenvolvimento, estas crises destrutivas eram, relativamente, mais rápidas
e suaves. O debate histórico mais interessante da atualidade remete,
portanto, a este tema: a época em que o capitalismo ainda tinha um papel
progressivo, ficou ou não para trás? O argumento deste texto é que estamos
diante de um período histórico de decadência do sistema. Uma época em que
reformas são mais difíceis, embora não sejam impossíveis, e revoluções mais
prováveis, embora o desenlace da luta pelo socialismo permaneça muito
incerta.
As últimas crises confirmam que os limites históricos do capitalismo
estão mais estreitos. Estes limites não foram, não são, não poderiam ser
fixos. Eles resultam de uma luta política e social. Em alguns períodos se
contraíram (depois da vitória da revolução russa; depois da crise de 1929;
depois da revolução chinesa; depois da revolução cubana), e em outros se
expandiram (depois do New Deal de Roosevelt; depois do acordo de
Yalta/Potsdam, ao final da II Guerra Mundial; depois de Reagan/Thatcher nos
anos 80). O capitalismo não terá "morte natural", o que não é o mesmo que
dizer que não se manifestou na história uma tendência à "crise final", isto
é, uma tendência a crises cada vez mais sérias e destrutivas, que ficou
conhecida na tradição marxista como a teoria do colapso.[3]
Todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição dominante no
mercado mundial, estão condicionados pela pressão do capital financeiro. Os
mágicos keynesianos substituíram os artistas neoliberais à frente de vários
governos, mas enfrentam muitas dificuldades para "salvar" o capitalismo dos
capitalistas. Os impostos futuros, consumidos nos últimos anos na forma de
emissão de dívida para a compra de participação estatal em empresas e
bancos ameaçados de falência, comprometerão a possibilidade de emissão de
novos títulos amanhã, sob pena de uma desvalorização das moedas de
entesouramento (dólar norte-americano; libra inglesa, franco suíço, euro;
yen), ou seja, o perigo de inflação. A crise aberta em 2008 vem confirmando
as análises que estimam que ela só pode ser comparada com a crise de 1929,
e não deve ser considerada somente a forma da última crise cíclica, como em
2000/2001, 1991/92, ou 1981/82.[4]


2 2008/2011: uma crise diferente das últimas três crises
Em perspectiva, a questão histórica determinante para a compreensão
das três últimas décadas foi o significado da derrota político-social que
assumiu a restauração capitalista, primeiro na China, a partir de 1978, e
depois na URSS, a partir de Gorbatchev. economia capitalista conheceu, ao
longo dos últimos trinta anos, três ciclos de ampliação econômica que
dependeram muito da financeirização, embora ela tenha sido, essencialmente,
uma inovação em consequência da recessão dos anos setenta. Foi a
financeirização que facilitou a expansão do crédito que impulsionou os mini-
booms dos anos oitenta com Reagan, dos anos noventa com Clinton, e dos anos
de 2001/2008 com Bush. Operaram, com força de influência variada, os outros
quatro fatores identificados por Marx como contra-tendências de freio à
queda da taxa média de lucro, expressão do esgotamento e da tendência à
decadência: o barateamento das matérias primas; a renovação de tecnologias;
a internacionalização até à última fronteira e, o mais importante, o
aumento da exploração do trabalho.
Nas dois primeiros mini-booms verificaram-se quedas importantes nos
preços do petróleo e dos grãos, embora não na última; o desenvolvimento da
micro-eletrônica e da telemática foram significativas para o impulso da
restruturação produtiva, sobretudo, nas duas últimas duas décadas do século
XX; o crescimento chinês e, em menor medida, da Índia, foi um fator de
impulso nos últimos vinte anos; a estagnação do salário médio nos EUA e a
restauração capitalista, incorporando centenas de milhões ao mercado
mundial, pressionou para baixo o salário médio na Europa e Japão.
Mas foi o barateamento do crédito o fator decisivo da rápida
recuperação das últimas três crises mundiais. A montanha de derivativos
cresceu até atingir o pico de US$ 600 trilhões, ou mais de 10 PIB's
mundiais e, transformou-se em um obstáculo intransponível, porque o
movimento de rotação de capital não é possível nesta escala: deixou de ser
possível a valorização de capital, mesmo que seja muito lenta, quando o
volume de capitais fictícios atingiu esta dimensão estratosférica. Em
outras palavras, esse estoque de capitais, se a valorização for à escala de
2,5% ao ano, ou seja, o nível da inflação anual dos países centrais, teria
que consumir 25% do PIB mundial, o que só seria verossímil com a
restauração de condições de vida semelhantes às da escravidão.
O mesmo problema está na raiz da crise dos endividamentos públicos
acima dos 100% dos PIB's nos países centrais. O endividamento do Estado não
é senão a antecipação para o presente de receitas fiscais futuras, os
impostos que serão pagos nos anos por vir e, em prazo mais longo, pelas
futuras gerações. Ao contrário de empresas, Estados não podem falir, mas
podem cair em situação de inadimplência por incapacidade de rolagem dos
juros, com moratória das dívidas. Foi o que aconteceu com o Brasil durante
o governo Juscelino Kubitschek, nos anos cinqüenta, e José Sarney, nos anos
oitenta. Isso significa que Estados, mesmo os Estados centrais, não
conseguem se endividar além de sua capacidade de pagamento, porque os
investidores perderão a confiança nos títulos, e exigirão em contrapartida
juros mais elevados para renovação dos empréstimos. Um maior endividamento
se traduzirá em um comprometimento de despesas que impedirá investimentos
futuros e provocará recessão crônica, ou desestabilização política pelos
cortes nas despesas dos serviços públicos com seqüelas sociais
imprevisíveis. A expectativa dos rentistas condicionou, historicamente, o
volume de estoque das dívidas públicas e o custo de rolagem dos
empréstimos. A financeirização transformou os títulos públicos de qualquer
Estado - inclusive, no limite, os dos EUA - em papéis que podem, também,
apodrecer, desde que os investidores percam a confiança de que o Estado
poderá honrar seus compromissos. Não há qualquer garantia, a priori, de que
os títulos públicos não virem tóxicos.
A parasitagem das dívidas públicas foi um dos negócios mais rentáveis
da expansão mundial da liquidez das últimas três décadas. Os credores dos
títulos públicos se entesouram nestes papéis, buscando a máxima
rentabilidade e a máxima segurança. O aumento da dívida do Estado em
relação ao PIB eleva, contudo, o custo da rolagem da dívida. O que se
revelou, no passado, incompatível com a preservação dos gastos públicos e
traz como ameaça um agravamento da recessão. Desde que Washington renunciou
à convertibilidade fixa do dólar, em 1971, e preferiu que ela flutuasse
livremente, em função da oferta e procura, o Estado aumentou as
possibilidades de endividamento. Foi uma resposta fiscal de tipo keynesiano
à desaceleração do crescimento do pós-guerra nos anos setenta. A moeda
norte-americana desvalorizou-se, porém, preservou o seu papel de moeda de
reserva mundial.
Por isso é que os marxistas afirmam que o limite do capital é o
próprio capital. Em outras palavras, a superação da crise atual não é
impossível, mas terá o custo de uma regressão econômica social imensa –
pelo menos a destruição do padrão de vida na Europa no último meio século -
reatualizando o prognóstico marxista de socialismo ou barbárie.
Mudanças desta magnitude só foram possíveis depois de um brusco,
intenso, e desfavorável deslocamento da relação social de forças entre as
classes em cada país, e uma alteração do posicionamento dos Estados no
sistema mundial. Essas gigantescas transferências de riqueza e poder entre
classes, entre monopólios, e entre Estados nunca puderam ser feitas sem
enfrentar resistências. Quando a reação fracassa, e a possibilidade de
concessões parciais, por variados fatores, fica diminuída ou é mais
restrita, a probalidade de situações revolucionárias aumenta. O que está em
disputa é uma reconfiguração econômica, social e política do mundo tal como
o conhecemos.
O argumento deste texto é que quando uma ordem econômica, social e
política revela incapacidade para realizar mudanças por métodos de
negociação, concertação ou reformas, as forças sociais interessadas em
resolver a crise de forma progressiva recorrem aos métodos da revolução
para impôr a satisfação de suas reivindicações. Essa foi a forma que
assumiu a defesa de interesses de classe na história contemporânea. A
história, contudo, não é sujeito, mas processo. O seu conteúdo é uma luta.
Essa luta assume variadas intensidades. A revolução política é uma dessas
formas, e a frequência maior ou menor em que ela se manifesta é um
indicador do período histórico. Todas as revoluções contemporâneas tiveram
uma dinâmica anticapitalista, maior ou menor, mas não foram todas
revoluções, socialmente, proletárias. Todas as revoluções socialistas da
história começaram como revoluções políticas, ou como revoluções
democráticas.
Quando existiu a possibilidade de revolução, esteve presente, também,
o desafio de vencer o perigo da contra-revolução. No passado, soluções
reacionárias da crise econômica, como depois da crise dos anos setenta, ou
até uma saída contra-revolucionária, como foi o nazi-fascismo depois da
crise 1929, permitiram uma recuperação transitória, que não foi suficiente
para impedir que novas crises, ainda mais sérias, explodissem alguns anos
mais tarde. O sistema conseguiu ganhar algum tempo, mas a anarquia da
produção capitalista voltou a se manifestar de forma catastrófica,
demonstrando que o prognóstico marxista sobre o destino do capitalismo
permanecia vigente.
O ano de 2001 foi o ano em que a revolução atingiu o norte de África e
o Médio Oriente, aumentando o isolamento político de Israel, e
potencializando a resistência palestina. Uma segunda onda revolucionária
sacudiu o mundo árabe com uma força de impacto só comparável com a onda que
se iniciou na luta pelas independências dos Impérios europeus, e que
culminou na Argélia entre o final dos anos cinquenta e início dos sessenta.

As consequências desta segunda onda revolucionária, em uma das regiões
onde se decidirá o futuro da situação mundial, ainda são incertas, por
muitas razões. Entre outras, poderá até incendiar a disposição de luta de
dezenas de milhões de muçulmanos que constituem a fração mais explorada do
proletariado da Europa, sobretudo, na França, onde os árabes já superam 10%
da população economicamente ativa, e na Alemanha, onde a imigração dos
turcos foi essencial para manter reprimidos os custos da força de trabalho.
O ano de 2011 foi, também, o ano em que as mobilizações na Grécia, na
Espanha, em Portugal e, em menor medida, na Itália, sinalizaram a
perspectiva de situação revolucionárias na Europa do Mediterrâneo, pela
primeira vez, desde o final dos anos setenta. Estará em disputa a
possibilidade da revolução no norte da África e do Oriente Médio abrir o
caminho para segundas independências, com todas as sequelas que teria a
aperda de controle do imperialismo sobre as maiores fontes de abastecimento
de petróleo, mas, também, a destruição das políticas públicas de bem estar
social que ainda estão de pé na europa Ocidental, ou a redução da Grécia,
Portugal e, talvez, até da Espanha à condição de semi-colônias do eixo
franco-alemão na União Européia.
A iminência da revolução é um conceito perigoso, porém, inescapável:
por iminência deve-se compreender ameaça ou proximidade. O que condicionou,
historicamente, a possibilidade de revoluções foi a pressão objetiva de
crises de dimensões catastróficas. Mas, só a existência de crises nunca foi
o bastante para que se iniciassem processos revolucionários. Foi
indispensável, igualmente, que a mentalidade de milhões de pessoas fosse
sacudida pela experiência terrível de que não existiria mais esperança em
saídas individuais. Somente quando a nova geração acordou para a
inescapável constatação de que teria que aceitar condições de sobrevivência
inferiores às dos seus pais, ou seja, somente quando o que era
inacreditável em condições normais se impôs de forma ineludível, se
precipitaram situações revolucionárias. A hipótese deste texto é que a
urgência da revolução voltou a ter significado político imediato. Mas não
autoriza a conclusão de que o socialismo está mais perto. A luta pelo
socialismo requer mais do que ações revolucionários contra o governo e
regime no poder: exige protagonismo proletário independente e projeto
internacionalista.


3 Mais difícil
Já se disse que as próximas revoluções serão sempre mais difíceis que
as últimas, porque a contra-revolução aprende depressa. A contra-revolução
burguesa foi um dos fenômenos de dimensão mundial do século XX. As
revoluções contemporâneas manifestam-se como revoluções na esfera nacional,
mas esta aparência é uma ilusão de ótica que remete à centralidade da luta
política imediata contra o Estado. As revoluções do séculço XX não
enfrentaram somente os seus inimigos nacionais imediatos, mas a contra-
revolução à escala internacional. Os Estados se definem pela vigência das
fronteiras nacionais, todavia a dominação mundial capitalista foi se
estruturando, crescentemente, sobre uma institucionalidade mundial: o
sistema internacional de Estados, ou seja, ONU, a Tríade ( EUA, UE, Japão),
o FMI, o G-8, o G-20, o Banco Mundial, o Banco de Compensações
Internacionais de Basiléia, etc.
As revoluções contemporâneas estiveram inseridas, desde o fim da
Primeira Guerra Mundial, em contextos, pelo menos, regionais, ou semi-
continentais, e assumiram a forma de ondas de expansão que cruzaram mais ou
menos rapidamente as fonteiras nacionais. Por isso as revoluções
contemporâneas merecem ser caracterizadas como processos de refração da
revolução mundial. A revolução mais recente pode ser interpretada,
portanto, como "o futuro de um passado", e começa onde a última foi
interrompida. Essa é uma das tendências do processo histórico da época
contemporânea. Mas a hipótese da iminência da revolução, ou seja, a
possibilidade de revoluções mais próximas, não
A situação revolucionária aberta na Alemanha em novembro de 1918 foi
muito mais difícil do que aquela que seguiu-se ao fevereiro de 1917 na
Rússia, porque a burguesia é uma classe dominante que reage à escala
internacional, e retira, prontamente, suas lições e conclusões. A crise
revolucionária aberta na Espanha em 1936, com o início da guerra civil de
pois da vitória eleitoral da Frente Popular foi muito mais difícil do que a
crise aberta na Rússia com a tentativa de golpe de Kornilov em agosto de
1917. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a revolução vietnamita foi muito
mais difícil que a chinesa. A revolução em El Salvador foi muito mais
difícil que na Nicarágua nos final dos anos setenta.
Entretanto, a crise do capitalismo aberta em 2008 sugere que a
precipitação de situações revolucionárias é uma hipótese cada vez mais
provável. A evolução da situação na Grécia indica a dinâmica da situação
nos países europeus mediterrânicos. Paradoxalmente, a experiência histórica
das últimas décadas sugere, também, que rupturas anticapitalistas que
iniciam a transição ao socialismo ficaram mais difíceis. A etapa histórica
dos substitucionismos sociais e políticos, entre 1945/75, ficou para trás.
No Programa de Transição de 1938, Leon Trotsky tinha previsto que,
excepcionalmente, em condições extraordinárias de crise, aprisionados entre
a pressão do imperialismo e a pressão da mobilização de massas, direções
nacionalistas poderiam ir além dos limites do capitalismo. O que tinha sido
previsto como improvável, acabou sendo quase um padrão entre 1945 e 1975.
Uma parcela das direções nacionalistas radicalizadas, acossadas pelo
imperialismo e apoiadas na mobilização das massas populares, mas ameaçadas,
também, pelo perigo de um desbordamento pela sua esquerda, expropriaram o
capital. O substitucionismo social do proletariado por massas camponesas e
populares, e o substitucionismo político dos marxistas por direções
nacionalistas traduziram a grandeza e, também, os limites das revoluções do
pós-guerra.
Ao mesmo tempo, em uma parte das ex-colônias ou semicolônias que
mergulharam em situações revolucionárias, mas aonde não se deu a ruptura
anti-capitalista - como Argélia nos anos sessenta, ou na Nicarágua e Irã,
no final dos setenta - surgiram Estados independentes. Alguns lograram
manter esta independência, sobretudo, em países com recursos estratégicos
como o petróleo. Entretanto, revoluções sociais anti-capitalistas não
aconteceram mais desde a derrota americana no Vietnam. Portugal, Nicarágua,
Irã, Haiti, Filipinas, Indonésia e África do Sul, entre outros países,
conheceram revoluções políticas que derrubaram regimes ditatoriais pró-
imperialistas, mas não transbordaram em revoluções sociais. Os processos
revolucionários estagnaram e foram contidos nos limites dos novos regimes.
As direções nacionalistas, não só recuaram, primeiro, de qualquer
veleidade anti-capitalista – vide o PC da África do Sul, o mais influente
partido comunista depois da restauração do capitalismo na URSS - como
recuaram depois, em sua maioria – vide a OLP de Arafat - do projeto de se
afirmar até como Estados independentes.


4 A revolução no Magrehb: o século XXI começou no norte de África
O ano de 2011 inaugurou uma nova situação internacional com a onda de
revoluções políticas no Magreb. Duas conclusões se impõem de forma
irrefutável ao final de onze meses. Primeiro, o que aconteceu nas ruas de
Túnis e Cairo, e tantas outras cidades do mundo árabe, merece ser
considerado como revolução no sentido pleno do conceito: uma irrupção
legítima e amplamente representativa da vontade popular com o objetivo de
derrubar as ditaduras. Segundo, o processo revolucionário se estendeu na
forma de uma vaga sincronizada que foi contaminando, em maior ou menor
medida, todos os regimes da região, pelo efeito arrebatador do exemplo das
vitórias fulminantes na Tunísia e Egito. Mas afirmar que foram somente
revoluções políticas democráticas significa dizer, também, que não só não
realizaram rupturas anticapitalistas, como destacar que a participação
política dos trabalhadores não ocorreu ainda, predominantemente, de forma
independente.
Estas duas formas políticas da revolução árabe não foram,
historicamente, incomuns. As ditaduras do Cone Sul da América Latina –
Argentina, Uruguay e Brasil – foram, também, desafiadas por mobilizações de
massas entre 1982/84. Estes processos sugerem que existe um padrão
recorrente, se analisarmos a dinâmica política da época contemporânea.
Parecem corresponder a duas regularidades: (a) regimes ditatoriais em
países periféricos em processo de urbanização podem se manter no poder, até
por algumas décadas, mas serão derrubados por revoluções democráticas, mais
cedo ou mais tarde, pelo surgimento de um bloco social muito mais poderoso
do que a oligarquia arcaica que os sustentou: um proletariado e uma classe
média asssalariada plebéia massiva; (b) o efeito exemplo do triunfo de uma
revolução democrática, em uma época histórica em que a informação circula
quase instântaneamente, acelerou a experiência política de massas, e
funcionou como um gatilho que incendiou os países da região vizinha,
produzindo uma internacionalização rápida da revolução.


5 Revoluções políticas e revoluções sociais
Não obstante a radicalidade do processo, é verdade que estas
revoluções democráticas não foram revoluções sociais. Revoluções sociais
são aquelas nas quais a derrubada do governo coincide com o deslocamento da
classe dominante do poder. Uma revolução só pode ser caracterizada como
revolução social quando se abre um processo de transição ao socialismo. Mas
estes conceitos, como todos os conceitos teóricos, são aproximativos,
portanto, relativos, porque são por definição generalizações abstratas.
A vitória de uma revolução política significa a queda abrupta dos
governantes odiados, e, simultaneamente, o colapso do regime político, ou
seja, da forma institucional que o Estado assumia. Nada mais, mas também,
nada menos: o poder não pode continuar sendo exercido com antes. Conquistam
o poder outros representantes da classe dominante, ou, mais
excepcionalmente, e somente quando as revoluções políticas são muito
radicalizadas, das classes médias que pretendem negociar com a burguesia. O
desenho do novo regime político tem que ser radicalmente diferente diante
da nova legitimidade que nasceu das ruas e, por isso, quase invariavelmente
eleições são convocadas em prazos maiores ou menores.
Os novos governos provisórios perseguem o objetivo de desmobilizar as
massas em luta e estabilizar o novo regime. No entanto, todas as revoluções
políticas da história contemporânea tiveram alguma consequência econômica e
social. A revolução portuguesa de 1974/75 derrubou um regime fascista,
desapropriou quase 70% das propriedades que controlavam o PIB do país, e
chegou a existir, por poucas semanas, um governo provisório em que a
representação direta da burguesia era quase invisível - o V Governo
dirigido por Vasco Gonçalves -, mas a burguesia não tinha sido derrotada:
tinha passado para a oposição ao governo sem perder o controle de uma parte
das instituições do regime. Se o controle do Estado, ou mesmo somente de
uma parcela das instituições do Estado, em especial, se uma parte das
Forças Armadas não escapou à burguesia, ainda não triunfou uma revolução
social.
Quando triunfa uma revolução política, muda o regime político, mas a
ordem econômica e social permanece mais ou menos ilesa, e as relações de
propriedade ficam, para o fundamental, incólumes. Foi assim na Nicarágua em
1979: a ditadura sucumbiu, as propriedades da família Somoza foram
expropriadas para fins de reforma agrária, mas o novo regime anunciou,
desde o início, que iria manter o funcionamento de uma economia de mercado
com uma forte regulação estatal, mas capitalismo. Os dirigentes sandinistas
decidiram, com o apoio da direção cubana, que a Nicarágua não seria uma
nova Cuba.
Todas as revoluções da época contemporânea se iniciaram como
revoluções políticas, porque o ato de derrubar o governo – a principal
instituição de poder de qualquer regime político, mas não a única - e,
quando mais radicalizadas, os próprios regimes políticos – ou seja, o
deslocamento da maior parte das instituições do Estado, ou a totalidade
delas - foi o ato inaugural do processo revolucionário. O que aconteceu,
nos últimos vinte anos, de inusitado, ou até mesmo inesperado, é que: (a)
revoluções políticas aconteceram contra variados tipos de regimes, ou seja,
governos bonapartistas ditatoriais, como na Tunísa, Egito, Líbia, Bahrein,
Yemen ou Síria, ou governos democraticamente eleitos, como no Equador,
Argentina e Bolívia; (b) a eclosão de revoluções na forma de ondas
sincronizadas confirmou a natureza da época histórica como uma época de
decadência do capitalismo, mas o desafio de reconstrução do
internacionalismo socialistas permanece intacto.


6 Interpretações objetivistas e subjetivistas do marxismo
Argumentamos que revoluções são cada vez mais prováveis, mas que as
transições ao socialismo revelaram-se mais difíceis. Em outras palavras, a
surpresa histórica foi que o bloco de classes disposto a ações
revolucionárias foi mais amplo do que a hipótese formulada pelo marxismo
clássico, mas a imaturidade do proletariado em assumir a luta
anticapitalista foi também maior do que o previsto.
Uma análise muito diferente que parte de premissas, em certo sentido,
opostas aquelas expostas anteriormente foi apresentada por Kurz. O enfoque
de Kurz foi radicalmente anti-politicista, portanto, anti-subjetivista,
afirmando que já teríamos assistido a uma mudança de época, mas não porque
o capitalismo tivesse superado as contradições da época do imperialismo,
mas porque teria mergulhado a civilização na barbárie. Defendeu que o novo
quadro histórico, se definiria pela tendência ao esgotamento da forma
mercadoria e pela anulação do valor, quase simultaneamente a conclusões
semelhantes desenvolvidas por Mészáros. A tese defendida por Kurz é que as
forças produtivas capitalistas de tão maduras, já começaram a apodrecer: ou
seja, defende a possibilidade de ir além da regulação imposta pelo valor em
escala generalizada, ultrapassando a forma de mercadoria que ainda assumem
os bens e serviços. Estaríamos assim, segundo Kurz, paradoxalmente, no
limiar de uma nova época de barbárie global. Nunca as possibilidades de
emancipar a humanidade da ditadura da necessidade estiveram tão perto, mas
nunca os obstáculos políticos para avançar no sentido da socialização da
produção e da distribuição foram tão grandes: tão longe e tão perto, essa é
a amarga ironia.
Entre outras razões, segundo Kurz, porque o proletariado se integrou
de forma irreversível: uma nova atualização das teses "soixante-huitards"
vaticinando o aburguesamento dos trabalhadores. Mas a discussão ficaria
desfocada se considerássemos a análise do estágio atingido pelo
desenvolvimento das forças produtivas sem o sentido das proporções, que
deve ser apreciado pela dimensão das necessidades humanas globais. Ainda
assim, parece muito razoável que pelo menos em relação aos bens e serviços
com menor valor agregado que são, por sua vez, os que respondem às
necessidades mais intensamente sentidas, que Kurz tem razão, e que elas
poderiam ser satisfeitas se a produção não estivesse bloqueada pelas
relações mercantis. Esta análise anuncia os limites históricos do modo de
produção capitalista, que estaria realizando uma curva civilizatória
regressiva e perigosa:


Se, no início do século XX, a transformação do modo de produção
capitalista (...) (imperialismo, economia de guerra, taylorismo,
ideologização das massas, etc.), (...) talvez a ruptura de época, no
final do século XX, exija uma transformação ainda mais ampla. (...)Só
agora, passado o período de incubação dos anos 80, as novas forças
produtivas pós-fordistas da microeletrônica e seus conceitos
correlatos de racionalização (descritos em seu conjunto, de acordo com
o referencial teórico escolhido, como segunda ou terceira revolução
industrial) mostram seu verdadeiro potencial de crise: pela primeira
vez, a riqueza material (e também ecologicamente destrutiva) é
produzida antes pelo emprego tecnológico da ciência que pelo dispêndio
trabalho humano abstrato. O capital começa a perder sua capacidade de
valorização absoluta e alcança com isso aquele estágio, extrapolado
logicamente por Marx, no qual a forma de socialização do sistema
produtor de mercadorias – que "repousa no valor" – esbarra em seus
limites históricos. A crise da forma-mercadoria é, no entanto,
filtrada pelo movimento do mercado mundial (...) luta essa que
possibilita (e domina) as próprias forças produtivas que serão
responsáveis pela desvalorização da força de trabalho. Os capitais
mais produtivos abatem concorrencialmente aqueles que não podem mais
acompanhar o elevado padrão de produtividade, mobilizando para tanto
vultuosas somas de capital fixo. Os velhos perdedores e os novos
retardatários só podem continuar no páreo à custa de baixos salários
(ou ainda trabalho forçado ou escravo)(...)Podia parecer, à primeira
vista, que o processo de crise transcorreria de maneira
escalonada(...) e deixaria por último as nações mais fortes do ponto
de vista do capital, capazes de sustentar por mais tempo o processo de
simulação monetária através do endividamento do Estado e do sistema de
crédito. Primeiro sucumbiram as economias do Terceiro Mundo e do
socialismo de Estado, que passaram a ser exemplo de uma "modernização
tardia", fadada desde então ao fracasso no interior do horizonte
burguês. Nos anos 90, porém, a crise parece avançar a passos largos em
direção às economias nacionais estabelecidas."[5]


Estamos, portanto, diante de uma análise original, que identifica nas
novas forças produtivas liberadas pela micro-eletrônica, a capacidade de
abrir uma nova época histórica, em que mudam os fundamentos do processo de
acumulação do capital, e que inaugura uma fase de desenvolvimento que se
definiria tendencialmente pela anulação histórica do valor. A nova época
teria como traços constituintes a crescente barbarização das relações
sociais, como expressão dos limites do trabalho com a forma mercadoria. Em
outras palavras, a proporção de valor agregado pelo trabalho vivo seria
cada vez mais irrelevante, na medida que a ciência e a tecnologia se
emancipam como a principal força produtiva, e a queda da taxa média de
lucro atingiria tal nível, que o horizonte histórico dos limites da
acumulação estariam cada vez mais próximos.
Ao mesmo tempo, paradoxalmente, em uma identificação dos impasses do
modo de produção de continuar garantindo a valorização do capital,
condenado à crise de superacumulação, e à degeneração na barbárie global.
Naturalmente decorre desta análise, de uma radicalidade objetivista que
surpreende, uma nova compreensão do papel dos sujeitos sociais na luta
anticapitalista. Como se poderá conferir no fragmento que apresentamos na
seqüência, Kurz desenvolve a crítica da esquerda a partir da ótica da
necessidade de superar o politicismo. Afirma a abertura de uma nova época
histórica, de estagnação degenerativa do capitalismo. Coloca-se, portanto,
contra a corrente, em uma linha de crítica irreconciliável da "terceira
via", e da exaltação de uma nova Renascença. Rema também contra a maré do
socialismo de mercado, a nova coqueluche da esmagadora maioria da esquerda
mundial.
Suas premissas são, na verdade, simétricas: onde a esquerda
politicamente organizada (pós-comunista ou pós-socialdemocrata) conclui
pela perenidade da regulação mercantil em um processo de transição ao
socialismo, Kurz defende a sua caducidade, e a necessidade de ir além da
forma mercadoria e além das formas estatistas. O outro aspecto original de
sua análise é o deslocamento do protagonismo revolucionário das mãos do
proletariado:


Os remanescentes do velho radicalismo chegam a ponto de denunciar os
prognósticos de uma transição iminente para a barbárie global como
'falsa certeza'(...) Os náufragos críticos da sociedade foram de tal
modo arruinados pela política e imbecilizados pela agitação, que só
pode lhes parecer amalucada a tentativa de analisar uma revolução
industrial (a microeletrônica), lançando mão de conceitos teóricos de
crise. Eles tomam por supérfluas tanto uma definição de época, quanto
uma nova historização do desenvolvimento interno do capitalismo, pois
este, concebido em conceitos escolares, nunca deixou de ser o mal de
sempre, imutável (...) Eles não ousam mesmo acusar de 'objetivismo',
precisamente, a análise e a crítica das estruturas (realmente)
objetivadas, por terem desde sempre operado com conceitos burgueses
irrefletidos de sujeito e vontade. Não chega a espantar, assim, que a
demanda por uma supressão da forma-mercadoria e da forma-política, que
no atual estágio da crise do sistema mundial plenamente desenvolvido
deve ser formulada de maneira muito distinta que no passado, seja
vista como reformismo ou fundamentalismo. [6]


Todas as grandes revoluções políticas da nossa época foram, também,
revoluções sociais em processo, porque só a mobilização de massas em grande
escala pôde garantir a vitória das revoluções democráticas. Mesmo quando
classificadas como democráticas, pelas tarefas colocadas, as revoluções
políticas merecem caracterizadas como revoluções sociais incompletas, ou
interrompidas, pelos sujeitos sociais que foram convocados para o seu
triunfo. A armadilha da história é que as revoluções democráticas são
processos em disputa cujo desenlace é incerto.
Não eram vermelhas as bandeiras dos jovens que saíram às ruas de
Túnis, do Cairo, da Líbia, do Bahrein, do Yemen, e da Síria. Inexistem
organizações marxistas revolucionárias importantes no mundo árabe. A
revolução voltou à primeira cena da arena mundial, porém, as massas
populares em luta contra as ditaduras de Ben Ali, Mubarak, Gadhafi, Assad e
os outros califas não fizeram reivindicações anticapitalistas. As situações
revolucionárias abertas nesses países ainda não se encerraram. Aonde os
ditaduras foram derrubadas, a revolução democrática foi uma antesala de
combates de classe cuja dinâmica histórica será, objetivamente,
anticapitalista, porque a contra-revolução da nossa época histórica foi,
invariavelmente, burguesa. Mas este terrível aprendizado de que as
revoluções democráticas foram revoluções inacabadas terá que ser feito no
calor das lutas que virão, ou seja, com uma margem de improviso político
elevado.


7 Dois perigos teóricos simétricos
Existem dois perigos simétricos de impressionismo na análise de
processos revolucionários como o da Primavera Árabe: sobreestimar o grau de
independência política da classe trabalhadora e a dinâmica anti-capitalista
da revolução; ou subestimar a grandeza da revolução democrática como
revolução popular, em função da fragilidade política da auto-organização do
proletariado. Os dois erros, embora opostos, têm como fundamento comum um
excesso de determinismo sociológico. Em sociedades que viveram a
industrialização de forma ainda muito incompleta, e a urbanização moderna
há menos de duas gerações, a classe operária costuma ser muito minoritária
proporcionalmente à população economicamente ativa. Este marco histórico é
importante, mas não deve ser exagerado. A espontânea aliança operária e
estudantil que observamos no Egito, e na maioria das situações
revolucionárias do mundo árabe, sinaliza que um proletariado,
politicamente, inexperiente, pode ser socialmente muito mais poderoso que o
seu peso demográfico.
Os últimos 150 anos têm sido pródigos de exemplos de revolucionários
socialistas que generosamente foram vítimas do auto-engano em relação à
avaliação das situações e conjunturas nas quais estavam chamados a atuar. A
aferição das relações de força entre as classes é com certeza uma das
questões decisivas do abecedário marxista, o que não impediu que os
impressionismos "derrotistas" ou "ufanistas" tenham sido recorrentes. Nem
Marx e Engels ficaram imunes a esse tipo de erros. A seguir uma arguta
localização do tema, ou seja, das medidas subjetivas do tempo, e da pressa
dos revolucionários, feita por Gorender:


A sofreguidão de Marx e Engels não é difícil de explicar. A
expectativa de realização de um ideal revolucionário não pode ser
postergada para além da vida do revolucionário. Se este não tiver em
vista a possibilidade do êxito do seu esforço ainda em sua geração,
estará, na verdade, adotando um credo religioso. A esperança da
realização de um ideal pelas gerações seguintes equivale à fé na vida
após a morte, à crença no sobrenatural. O revolucionário luta para que
ele próprio e seus contemporâneos façam a revolução. E se convence de
que sua perspectiva é acertada. Marx e Engels se distinguiram dos
utopistas sectários pelo projeto de elaboração de bases científicas
para o objetivo comunista e pelo encaminhamento do movimento operário
no sentido da luta política. Mas se identificavam com eles no que se
refere à paixão revolucionária(...) O que sucede é que, ao lutar pelo
triunfo revolucionário em seu proprio tempo, os revolucionários, no
melhor dos casos, contribuem para que a revolução triunfe em algum
tempo. No deles ou no dos seus sucessores."(grifo nosso)[7]


Assim como as revoluções podem ser confundidas com a idéia da
revolução, também se pode, de forma precipitada, confundir a crise do
socialismo, ou melhor, do movimento socialista, com uma crise das
revoluções. São, evidentemente, dimensões muito diferentes da questão. As
revoluções políticas e as revoluções sociais são um fenômeno histórico
anterior à divulgação das idéias socialistas e, embora tenham estado
associadas no século XX à preponderante influência do marxismo nos
movimentos sociais, em especial no movimento operário, é muito duvidoso que
venham a diminuir a sua frequência. Evidentemente, sem revoluções, o
projeto socialista perde sua vigência. Não obstante, a precipitação de
situações revolucionárias, embora condição necessária, demonstrou-se,
historicamente, condição insuficiente para abrir o caminho para transições
ao socialismo. A transição socialista é um desafio que exige condições
subjetivas muito mais complexas do que a derrubada de ditaduras tirânicas.
Sem uma reorganização da esquerda em escala mundial, o futuro do socialismo
permanece muito longe.


8 Cinco dimensões novas do desafio socialista
Isto é assim porque a crise da esquerda e, portanto, do projeto
socialista, é ainda muito grave. Os argumentos críticos ao marxismo e sua
hipótese sobre a transição pós-capitalista são poderosos e merecem ser
considerados. As dificuldades remetem à questões irresolvidas em, pelo
menos, cinco dimensões diferentes: (1) a crise objetiva do sujeito social,
porque o peso econômico-social decrescente do operariado teve uma tendência
de diminuição sobre o conjunto da população economicamente ativa, e as
diferenciações sociais dentro do proletariado aumentaram com a
reestruturação econõmica dos anos 80/90, criando obstáculos à afirmação
hegemônica da classe operária sobre a maioria da população oprimida; (2) a
crise subjetiva do sujeito social, já que o proletariado ainda não
demonstrou, pelo menos, nos países imperialistas, depois do pós-guerra de
1945, o mesmo protagonismo revolucionário do passado, à excepção, até hoje,
da classe operária portuguesa, ou seja, em um país periférico do centro,
como a Grécia, e, por outro lado, teve muitas dificuldades de controlar
suas organizações burocratizadas; (3) a crise do internacionalismo, já que
a questão nacional se confirmou uma pressão ideológica perene ao longo do
século, e a dificuldade do proletariado de se organizar para além de
fronteiras nacionais foi crônica; (4) a crise do estatismo, já que a
experiência da URSS, entre outras, demonstrou que a expropriação
anticapitalista não conduz "em linha reta" à socialização, pelo menos, sem
mobilização permanente e democracia de massas alargada; (5) a crise das
experiências de democracia socialista e da representação livre do
proletariado nas experiências revolucionárias, já que as experiências de
democracia direta foram fugazes.
Todas essas considerações são tão importantes quanto polêmicas, e da
sua resposta depende a capacidade de gerar uma nova esquerda marxista que
possa ambicionar ter novamente influência de massas. A inexistência de
qualquer experiência de uma sociedade em transição ao socialismo, neste
início do século XXI, diminuiu a força de atração do marxismo como programa
político nas grandes mobilizações revolucionárias que eclodiram no mundo
árabe. A destruição do internacionalismo com o divórcio, durante mais de
três décadas, das lutas no Ocidente e no Leste, e a identificação do
socialismo às tiranias burocráticas estão entre as derrotas mais profundas
daqueles que, ainda que divididos em diferentes partidos e tendências,
reivindicam o marxismo. Essas derrotas políticas antecederam em muito a
restauração capitalista dirigida pelos dirigentes dos partidos comunistas,
mas não foram menos nefastas. Sem a reconstrução do internacionalismo,
infelizmente, o socialismo continua muito longe.

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[1] TROTSKY, Leon. Historia de la Revolucion Russa. Bogotá, Pluma, 1982,
Volume 1, p. 8.
[2] O livro de Osvaldo Coggiola é uma recente e excelente referência sobre
o tema. As Grandes Depressões (1873-1896 e 1929-1939) . São Paulo, Editora
Alameda, 2009.
[3] Há um debate interessante sobre o tema. Uma referência útil pode ser
encontrada no livro organizado por Lucio Colletti: El marxismo y el
"derrumbe" del capitalismo. 3ª ed. México, SigloVeintiuno Editores, 1985.
[4] O livro de Robert Brenner O boom e a bolha', publicado em português
pela Record em 2003 é uma apresentação do tema da crise que exploduiu ao
final dos anos noventa.
[5] KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis , Vozes , 1998. p.67-8.
[6] KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1998. p.75-6.
[7] GORENDER, Jacob, Marxismo sem Utopia, São Paulo, Ática, 1999, p.16.
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