A Revolução da misericórdia: ganhar perdendo

August 10, 2017 | Autor: Carlos João Diogo | Categoria: Teologia, Papa Francisco
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A revolução da misericórdia: ganhar perdendo1 Preâmbulo Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual (Evangelii Gaudium, 11).

Ao abordar o tema proposto – Francisco vai e reconstrói a minha Igreja, que está em ruinas – associado à renovação que o Papa Francisco iniciou, quero expor qual é, no meu entendimento, a revolução que a Igreja precisa. Por detrás das alterações na forma de estar, nas atitudes, o que nos propõe o Papa Francisco? Que palavra percorre a sua mensagem e actuação? O que está a propor à Igreja e, por contágio, a todo mundo? Há duas linhas fortes que atravessam os primeiros números da Evangelii Gaudium: a alegria2 e a misericórdia3. Deus vem salvar-nos através do Seu Amor de misericórdia e não há nada que

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Comunicação proferida no IV Colóquio de Teologias Feministas, 14 e 15 de novembro de 2014, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Lisboa, com o tema “Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja que está em ruínas”, organizado pela Associação Portuguesa de Teologias Feministas e o CES (POLICREDOS). 2 Evangelii Gaudium nº 6: aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade. 3 EG nº 24 A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam.

CARLOS JOÃO DIOGO 18/02/15 A REVOLUÇÃO DA MISERICÓRDIA: GANHAR PERDENDO

possamos fazer para merecer este amor. Essa é, na minha opinião, a experiência fundamental do Papa Francisco, revelada aliás no seu lema episcopal «miserando atque elegendo»4. Antes de mais o Papa Francisco parte da novidade perene que é Cristo, da força que tem o Evangelho hoje, e anima-nos a acreditar que, apesar das nossas debilidades, é possível viver – como Igreja e individualmente – partindo continuamente dessa novidade. É Cristo quem nos leva a romper os esquemas que nos debilitam, a querer ser divinamente criativos. Desafia-nos a voltar ao princípio, ao fundamental, à experiência de encontro com Ele e à certeza da sua misericórdia para connosco. Hans Urs Von Balthasar, eminente teólogo, escreveu um livro que se tornou para mim referência na compreensão de quem é Deus, quem é Cristo e como Ele nos ama – Das Herz der Welt. A ideia que consta do título desta comunicação está fortemente enraizada no que nessa obra é expresso:

«Ningún luchador es tan divino como aquél que puede aprestarse a vencer mediante la derrota. En el momento en que recibe la herida mortal, su adversario cae definitivamente herido a tierra. Pues él ataca al amor y resulta afectado por el amor. Y mientras el amor se deja atacar, demuestra lo que había que demostrar: que precisamente es el amor.» (Balthasar, 2007: 30)

Estas aparentemente simples palavras dizem o que é o mistério da encarnação. Deus, podendo ficar longe da realidade humana, escolhe entrar nessa realidade, deixando-se afectar, submetendo-se a essa realidade. Vindo do alto, sendo Deus, só pode manifestar-se baixando, descendo. O ser humano procura elevar-se para se aproximar de Deus, quando de facto Ele está a fazer o movimento inverso, está a descer – já desceu – ao seu encontro.

O esquecimento da misericórdia na teologia Quero começar fazendo um breve olhar para trás, para a forma como a teologia tratou – ou não tratou – a misericórdia. A primeira coisa que gostaria de afirmar é o esquecimento da misericórdia por parte da teologia. Durante muitos séculos a misericórdia foi votada ao esquecimento do ponto de vista teológico, ocupando um lugar demasiado marginal na reflexão (Kasper, 2013:19). Ao longo da história a teologia focou-se muito mais nos atributos que derivam da essência metafísica de Deus - a infinitude, a eternidade, a omnisciência, por exemplo – entre os quais não se encontra a misericórdia, que decorre da Sua auto-revelação histórica. Então, se Deus é a perfeição do ser – incluindo, portanto, a impassibilidade - e se tal perfeição não inclui o sofrimento, entendido como carência, torna-se muito difícil falar de um Deus capaz de partilhar o sofrimento com as suas criaturas. Como consequência deste pensamento, a misericórdia só podia ser vista no sentido em que se opõe ao sofrimento, isto é, é apresentado como remédio para o sofrimento humano. Do ponto de vista pastoral esta compreensão levou 4

Cf. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/elezione/stemma-papa-francesco.html

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à concepção de um Deus muito afastado da realidade humana, levou a um afastamento entre a experiência da realidade e o anúncio da fé, com consequências catastróficas na compreensão de quem é Deus. Uma das consequências mais sérias foi a distorção da imagem de Deus na maioria dos cristãos. Ainda nos dias de hoje encontramos muito enraizada a ideia de um Deus castigador, justiceiro (à maneira dos homens), que deseja o mal para o ser humano, que envia sofrimentos para experimentar a fé, só para dar alguns exemplos. Aqui é importante fazer uma pausa para falar sobre a forma como Deus é justo, como é a sua justiça. Como pode ser compatível a justiça de Deus com o facto de Ele ser misericordioso e não castigar os pecadores? Na linha da reflexão teológica descrita acima, o resultado foi: Deus castiga aqueles que não se arrependem e não se convertem, ficando a misericórdia de Deus subordinada a esta compreensão da justiça divina. Ou seja, o arrependimento ou a falta de conversão do ser humano limita a misericórdia divina; o ser humano limita a acção do Amor de Deus, impede-O de amar como Ele é: livremente. Só que a justiça de Deus não se mede por critérios humanos, caso contrário seria justiça humana. O século XX, e em particular João Paulo II5, vem devolver a misericórdia ao centro da vida cristã, esclarecendo que a justiça de Deus é a Sua misericórdia, é a sua santidade. Deus é justo sendo misericordioso, recuperando-se com muita força a imagem do Pai Bom que Jesus nos anunciou. Daqui surgem algumas perguntas que devemos responder, ainda que de forma muito resumida e incompleta. 1. O que quer dizer “creio num Deus misericordioso? 2. Que significa a mensagem da misericórdia para a praxis da Igreja e como fazer resplandecer na vida dos cristãos a fundamental mensagem da misericórdia divina? Lançando um breve olhar ao Antigo Testamento, encontramos que – como já referimos atrás – Iahweh se revela como misericordioso, compassivo, entristece-se, comove-se (cf. Ex. 3, 7; Gen. 6, 6; Os 11, 8). Deus tem pelo ser humano um amor verdadeiramente apaixonado. A palavra em hebraico hesed é um conceito relacional, não uma acção isolada mas antes uma acção que se prolonga no tempo. Hesed aplicado a Deus expressa, em favor da humanidade, um dom imerecido que ultrapassa todas as expectativas e categorias humanas. No Novo Testamento encontramos a revelação plena do significado da misericórdia de Deus, em Jesus de Nazaré. Vou socorrer-me de uma citação do Evangelho de S. João em que Jesus se encontra com a aplicação da pena de um julgamento sobre uma mulher adúltera (cf. Jo 8, 311), a aplicação da Lei de Moisés. No texto é descrito como uma armadilha preparada para apanhar Jesus numa contradição, ou a usurpar a autoridade romana. O que me interessa aqui é o facto de Jesus se dirigir-se às mesmas testemunhas que a acusavam e condenavam à morte6. Jesus chama aquelas pessoas a usarem de misericórdia para com aquela mulher, a 5

Com a Encíclica Dives in misericordia, de 1980, a instituição do Domingo da Misericórdia entre muitas outras acções. 6 É curioso este aspecto, para contextualizar esta passagem: estes casos eram julgados com 2 ou 3 testemunhas credíveis, habitualmente os anciãos, que confirmavam a veracidade dos factos. O Juiz só tinha que dizer se eles falavam verdade ou não. A pena de apedrejamento era então aplicada, sendo as testemunhas as primeiras a atirar pedras.

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mesma misericórdia que Deus usa para com eles. Está a “empurrá-los” a reconhecer a igualdade de dignidade e a mostrar que o ser humano também é capaz de misericórdia para com o seu irmão. É extraordinário que os primeiros a deixar cair as pedras são precisamente os mais velhos, os anciãos, prováveis acusadores. Se quem acusa deixa de o fazer, perde o olhar acusador, e o substitui por um olhar de misericórdia fica sem motivos para aplicar a pena e, por contágio, todos os outros que se preparavam para os seguir. Depois disto Jesus dirige-se à mulher e pergunta: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» Na mesma linha remeto-me agora à Última Ceia, no momento em que Jesus lava os pés aos seus discípulos (Jo 13, 1-17). Sabemos que Jesus, de acordo com as regras sociais da altura, nunca deveria lavar os pés mas sim devia ser objecto de que lhe lavassem os pés. Este era um trabalho feito apenas pelos escravos de menor importância. Segundo alguns autores, na sequência de estudos sobre o posicionamento dos discípulos na última ceia, referem que provavelmente quem deveria lavar seria aquele que ocupava o último lugar; estes autores indicam que este lugar seria ocupado por Pedro. Seria essa a razão para que Pedro se espante e recuse deixar-se lavar por Jesus7 uma vez que deveria ser ele a lavar os pés a todos os presentes. Mas Jesus força-o a deixar-se lavar com a promessa que compreenderá mais tarde o que Ele está a fazer. No final faz-lhes a seguinte pergunta: “«Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo mais do que o seu Senhor, nem o enviado mais do que aquele que o envia. Uma vez que sabeis isto, sereis felizes se o puserdes em prática.»” O que é que devemos compreender? O que é que Jesus está a explicar através de um gesto e palavras tão simples? Jesus está a querer que compreendamos que somos todos convidados a participar da maneira específica com que Deus nos ama: Deus é amor, essencialmente amor misericordioso, que se abaixa (kenótico) até à realidade que não queremos assumir. Deus amanos especialmente naquilo que em cada um e na humanidade não é amável, naquilo que ninguém quer amar. E convida-nos a participar da sua maneira de amar: sendo misericordiosos. Com a garantia de que seremos felizes se assim fizermos. Trocar o julgamento, a acusação, pela misericórdia faz-nos viver mais de acordo com os sentimentos de Deus para com a humanidade. Neste sentido é agora altura para colocar a pergunta:

De que periferias8 fala o Papa Francisco? Fala essencialmente das periferias existenciais, tudo aquilo que ninguém quer assumir, a parte da humanidade – e não apenas dos seres humanos – que nos causa repulsa (própria e 7

Jo 13, 6 – 8: «Senhor, Tu é que me lavas os pés?» 7Jesus respondeu-lhe: «O que Eu estou a fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.» 8Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» 8 Evangelii Gaudim nº 46: “A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou

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comunitária). É claro que nos chama a periferias sociais, urbanas, aos doentes e marginalizados, aos mais velhos e esquecidos. Mas todas estas situações são os rostos visíveis de uma vivência interior longe de Deus, longe desse olhar de misericórdia que resgata e levanta todo aquele que com ele se cruza. Essas realidades são o rosto das consequências de que ninguém quer assumir o que mais custa, o que não brilha, o que é escuro e frio. Então,

Qual é a revolução? É voltar ao princípio, a Cristo, acolher o convite a participar do amor de Deus pelo que não é amável, pelos pobres, pelo que não é. É redescobrir que aquilo que nos parece mais distante de Deus é de facto o lugar onde podemos estar mais perto d’Ele – interior ou exteriormente. A revolução é reaprender a amar como Cristo aquele que é diferente – não somos todos diferentes? Amar a diferença e perceber nela a possibilidade de um amor maior, um amor aos pés do outro, que até me pode rejeitar, como Pedro, mas que precisa desse amor para viver em plenitude a sua dignidade enquanto pessoa. Precisa experimentar que há alguém – Alguém – que tem compaixão, que padece com, que ama, assume, se entrega, por si; também por aquilo que se descobre como desprezível… Arriscaria mesmo dizer: principalmente por isso. Quero terminar com uma citação de Von Balthasar, do mesmo livro já referido, que sempre me causou perplexidade, mas que resume em poucas palavras esta realidade: parecendo que se perde ao amar aos pés do outro, colocando-nos ao serviço, ganhamos. Ganhamos em felicidade porque entramos num caminho de aprender a amar aquilo que ninguém quer e que só Deus nos pode ensinar, porque só Ele sabe amar assim. Mas todos nós somos convidados a entrar nesta revolução. «Lo más incomprensible es la verdadeira realidad: precisamente en lo que tú eres no-Dios, en eso te asemejas a Dios. Y precisamente en lo que estás fuera de Dios, en eso estás en Dios.» (Balthasar, 2007: 22.)

Bibliografia: EVANGELII GAUDIUM. Lisboa: Paulus Editora, 2013 VON BALTHASAR, Hans Urs - El Corazón del Mundo. Buenos Aires: Agape Libros, 2007. KASPER, Walter - La misericordia – Clave del Evangelio y de la vida cristiana. Santander: Sal Terrae, 2013.

renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.”

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