A Revolução Mexicana vista dos Andes: as análises de Mariátegui e Marof

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1 A Revolução Mexicana vista dos Andes: as análises de Mariátegui e Marof Ricardo Neves Streich1 1. Apresentação

José Carlos Mariátegui (1894-1930) foi um jornalista militante socialista no Peru. Autodidata de notável produção intelectual, seus escritos abrangem diversas áreas do conhecimento, de literatura e crítica literária até análises políticas e interpretações sobre a realidade peruana, as quais se aproximam muito da sociologia. Exerceu grande influência na vida política e cultural do Peru dos anos de 1920. Além do trabalho como jornalista, foi nome central na fundação no Partido Socialista do Peru (PSP) e da primeira central sindical de âmbito nacional no Peru, a Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP). No campo cultural, por sua vez, foi responsável pela produção de Amauta uma das revistas modernistas mais importantes da história latino-americana. Após o seu falecimento precoce, a direção do PSP cedeu às pressões da Internacional Comunista e, além de mudar o nome para Partido Comunista do Peru, iniciou uma campanha para eliminar o legado mariateguista do Partido e do movimento operário peruano. O boliviano Tristán Marof, pseudônimo de Gustavo Adolfo Navarro Ameller, nasceu em 1898 e morreu em 1979. Paralelamente às atividades burocráticas (no campo da diplomacia e da advocacia), se ocupou da produção jornalística e literária. Seus romances e escritos político-sociológicos tornaram-no figura central do debate políticointelectual da Bolívia nos anos de 1930. Em 1927 participou da fundação do Partido Socialista da Bolívia, mas foi posteriormente que ele se tornou um importante líder político, quando da fundação do Partido Obrero Revolucionario (POR) em 1935 (que viria a ser um dos partidos trotskystas mais importantes da América Latina). Após sua expulsão do POR, trabalhou na fundação do Partido Socialista Obrero de Bolívia (PSOB) que ocorreu em 1939. No pleito do ano seguinte, o partido recém-criado conseguiu eleger quatro, inclusive o próprio Marof, das cadeiras da Câmara dos Deputados, o que demonstra sua força política à época. Contudo, o enfoque nacionalista, tomado em detrimento do proletário, fez com que Marof se tornasse uma persona non grata para os setores da esquerda

2 boliviana. De modo que, ao morrer em fins da década de 1970, Marof se encontrava totalmente recluso e afastado da vida pública. O sucesso da Revolução Russa inspirou muitos intelectuais, inclusive Mariátegui e Marof, e líderes políticos latino-americanos a aderirem ao marxismo. Dessa forma, a vitória de Lênin também foi responsável por forte debate entre os setores da esquerda latino-americana. Passou-se, então, a debater qual seria a natureza da revolução na América Latina. Michael Löwy2 sugere que as posições diante do marxismo, variavam entre duas extremidades: o “excepcionalismo latino-americano” e o “eurocentrismo”. O excepcionalismo latino-americano entendia como absoluta a particularidade (histórica, política e social) da América Latina e, por isto, no limite tendeu a negar o marxismo como instrumental teórico europeu. O eurocentrismo, por outro lado, se limitou a transportar as categorias explicativas e históricas da Europa para a América Latina e, assim, acabou por desprezar suas particularidades. Curioso notar que, embora diametralmente opostas, estas concepções chegavam uma conclusão comum: o socialismo não se encontrava no horizonte de possibilidades da América Latina. Tendo em vista esse debate, além das posições marxistas propriamente ditas, o que torna sugestivo comparar os dois intelectuais andinos é o pioneirismo na tentativa de conjugar o legado Marx com as tradições indígenas do altiplano andino. Dessa conjugação, Marof e Mariátegui concluíam que o socialismo não era apenas possível, mas necessário, e não apenas nos países andinos, mas em todo o continente latinoamericano. Por isso, foi para melhor entender a posição que os dois socialistas andinos ocupavam nos debates sobre a natureza da revolução na América Latina que optamos por comparar as análises que eles realizaram de uma experiência política que escapou ao modelo revolucionário preconizado pela Internacional Comunista: a Revolução Mexicana.

2. A Revolução Mexicana como parâmetro

A importância da Revolução Mexicana no imaginário social e político latinoamericano pode ser observada na vastíssima produção bibliográfica da historiografia mexicana e internacional sobre o assunto. As reflexões sobre as articulações das

3 diferentes leituras sobre a experiência revolucionária mexicana e os dilemas de seus intérpretes foram muito bem analisada por Carlos Alberto Sampaio e Maria Aparecida de Souza Lopes (que montaram interessante quadro da historiografia sobre a Revolução Mexicana)3 e por Enrique Florescano4. Dessa forma, os textos dos autores que discutiram a Revolução Mexicana nos anos 1920 e 1930 também estiveram permeados por polêmicas e dilemas políticos. Alguns, como Jesus Silva-Herzog5, estavam demasiado próximos dos grupos vencedores e, por isso, buscaram legitimar as narrativas dos louros revolucionários. Outros, como Tristán Marof6, se afastaram politicamente dos rumos da Revolução e buscaram criticá-la, apontando seus limites e contradições. Compreender que os autores que analisaram a Revolução Mexicana estavam imersos em questões políticas torna interessante analisar como autores marxistas – cuja tradição teórica atribuiu bastante peso às possibilidades revolucionárias do operariado urbano – interpretaram um processo revolucionário tão marcado pelo elemento indígena e campesino. A análise se torna mais instigante se tivermos em mente que o contexto político-ideológico desses autores marxistas foi composto por grandes reticências de parte da intelectualidade latino-americana em aceitar a validade do marxismo, por conta de sua origem europeia, como instrumental analítico para a compreensão da América Latina. Também colabora para o nosso interesse o fato de que o marxismo não foi uma força ideológica hegemônica no processo revolucionário mexicano – e não é demais lembrar que Marof atuou próximo ao Partido Comunista do México em seu período de exílio mexicano -, justamente em função da “escassez de vínculos com uma ideologia universal” apontada Octavio Paz7. Finalmente,

acreditamos

que

pelas

razões

demonstradas

as

diversas

interpretações elaboradas sobre Revolução Mexicana se mostram um excelente parâmetro para situar e entender a diversidades existentes no intenso debate político sobre a natureza da revolução na América Latina dos anos 1920 e 1930.

4 3. As análises sobre a Revolução Mexicana

José Carlos Mariátegui, escritor profícuo cujas obras completas são compostas de 20 volumes, dedicou 18 artigos à Revolução Mexicana e aspectos subjacentes de seu desenvolvimento, além de mencioná-la 12 vezes (tanto como exemplo e modelo, quanto como parâmetro de comparação) no conjunto de sua obra. Sistematizar esse diagnóstico permite perceber que não se trata de uma abordagem estática, mas sim de uma interpretação que se modifica radicalmente. Poderíamos dizer que a Revolução Mexicana, para Mariátegui, seguiu um caminho que partiu do mito e terminou na negação. Em seus primeiros textos o socialista peruano se demonstrava bastante elogioso e simpático com o desenrolar da política mexicana. Em artigo publicado em 1926, ele chega a declarar que a Revolução Mexicana era socialista, mesmo sem saber e dizer que era8. Contudo, a visão se transformou radicalmente. Um dos seus últimos artigos, em 1930, declarava que a ideia de conciliação de classe – que caracterizaria a política mexicana do período - tinha aproximações perigosas com o fascismo9. Marof, por sua vez, escreveu um livro sobre a experiência mexicana. Ele esteve exilado no México, de 1928 a 1930. Após o governo Portes Gil aumentar a intolerância aos comunistas – dos quais Tristán Marof era bastante próximo – o socialista boliviano sofreu novo exílio e, assim, iniciou a redação do balanço da sua experiência no México. Por isso, o livro México de Frente y de perfil, publicado em 1934, possui um tom bastante duro em suas críticas ao regime que se consolidou no México após a Guerra Civil10. Contudo, o tom de rancor que caracteriza a obra de Marof não nos autoriza a imaginar que sua posição política diante do regime mexicano tenha sido estática. Verificando outras fontes, como o livro Opresión y falsa democracia (publicado em 1928, com grande ajuda do governo mexicano) e alguns artigos que ele publicou à época em diversos periódicos latino-americanos (Folha Acadêmica, Claridad, Amauta etc.) podemos perceber que a posição de Marof corre em um sentido bastante próximo ao José Carlos Mariátegui. Também para o boliviano, a esperança também deu lugar ao repúdio.

5 Dessa forma, é importante apontar quais as variáveis que eles abordam em suas análises sobre a Revolução Mexicana, atentando-se às suas semelhanças e diferenças. Em função dos limites de espaço do presente trabalho, elegemos alguns pontos para realizar a proposta de comparar como os antecedentes da Revolução, a bandeira do antiimperialismo, a questão da Igreja, as experiências estéticas e a reforma agrária. Ambos partem da mesma premissa. A Revolução Mexicana foi fruto de um período de modernização e crescimento econômico, sustentada por uma Ditadura, o que provocou um profundo mal-estar social e político, em função da aliança dos latifundiários com o capital estrangeiro. Em Mariátegui, as reflexões sobre os antecedentes da Revolução aparecem nos artigos iniciais, quando ele ainda analisava positivamente a experiência mexicana. Por isso, ele não se deteve de maneira profunda na análise das contradições do grupo que derrubou Díaz. Marof, por sua vez, buscou enunciar alguma diferenciação entre os aliados que derrubaram a ditadura porfirista. Nesse sentido, ele seguiu uma linha de análise que se tornaria o cânone marxista para pensar a América Latina, segundo o qual no desenvolvimento do capitalismo haveria um choque de interesses entre a burguesia nascente e os latifundiários “feudais”. Para Marof, o que derrubou Díaz foi a aliança das classes burguesas com o povo que demandava terras. Ainda assim, ambos reconheciam como fundamental, o poder simbólico da Revolução Mexicana como elemento da luta anti-imperialista na América Latina. Naquele momento, os autores enxergavam a luta anti-imperialista como a “segunda independência”, ou seja, depois das independências políticas conquistas no século XIX, a agenda agora deveria ser ocupada pela busca da autonomia e soberania no âmbito da economia e da cultura. Assim, a Constituição de 1917 – na sua disposição em nacionalizar os bens minerais, o petróleo, regulamentar leis trabalhistas e indicar a reforma agrária – foi vista com simpatia pelos dois socialistas andinos. Para Mariátegui a continuação da execução dos princípios de política social que constavam na Carta Magna de 1917 significava, então, a luta contra o “imperialismo ianque” e contras as forças conservadoras como ponto basilar na defesa da Revolução. Assim, Obregón e Calles foram vistos – no primeiro momento da análise de Mariátegui – pelo pensador peruano como os nomes que aprofundavam e realizavam os preceitos da Carta de 1917.

6 Contudo, o mesmo não pode ser dito das análises de Marof. Para ele, a incapacidade enfrentar os governo dos Estados Unidos, no campo diplomático, e as companhias de petróleo, no campo econômico, fez com que o governo mexicano adotasse uma fórmula diplomática que seria a tônica do período: “ceder sem parecer que estar cedendo”. A fraseologia revolucionária repousava, então, em uma prática de conciliação com os “inimigos”, na medida em que as cessões realizadas nos bastidores e em acordos secretos – eram muitas vezes apresentadas ao público como vitórias e conquistas. Por outro lado a Igreja Católica – em especial por conta da Guerra Cristera (1926 -1929)11 – foi duramente criticada por conta do conservadorismo e da posse de grandes lotes de terra. Nesse sentido, os enfrentamentos anticlericais que marcaram o governo de Calles foram compreendidos como disputas políticas que pouco tinha a ver com a questão religiosa em si. Para Marof, o embate com a Igreja não teve um desfecho diferente do da luta contra o imperialismo, pois o governo mexicano aceitou o embaixador estadunidense como mediador dos conflitos de interesses entre Vaticano e México. Assim, a disposição de conciliação com a Igreja, ainda mais intermediada pelos Estados Unidos, teria feito uma vez mais prevalecer a fórmula do “ceder, sem parecer que se está cedendo”. Para Mariátegui o momento de enfrentamento com a Igreja significou o momento de maior idealização da Revolução Mexicana. Surpreendentemente não pelo tom anticlerical do governo Calles, até porque o estopim do conflito havia sido questão do ensino laico que o peruano via como uma “desgastada fórmula liberal.”. Nesse sentido, ele disse: el laicismo en México -aunque subsistan en muchos hombres del régimen residuos de una mentalidad radicaloide y anticlerical- no tiene ya el mismo sentido que en los viejos Estados burgueses. Las formas políticas y sociales vigentes en México no representan una estación del liberalismo sino del socialismo. Cuando el proceso de la Revolución se haya cumplido plenamente, el Estado mexicano no se llamará neutral y laico sino socialista. Y entonces no será posible considerarlo anti-religioso. Pues el socialismo es, también, una religión, una mística. Y esta gran palabra religión, que seguirá gravitando en la historia humana con la misma fuerza de siempre, no debe ser confundida con la palabra Iglesia12.

7 Mais adiante, esboçaremos como essa perspectiva de idealização desembocou em uma negação completa da experiência mexicana como potencial revolucionário em Mariátegui. Por ora é importante refletir sobre um dos pontos fundamentais da construção do que seria o socialismo no México, as experiências estéticas. Mariátegui fundamentava sua apreciação estética na capacidade que a arte possuía de apreender e expressar valores e espíritos do novo tempo. Não é de se estranhar, portanto, o julgamento de que, naquele momento,o México possuía as artes “mais vitais do continente”. Por isso, além de admirar os murais – e seu caráter pedagógico – de Rivera, o jornalista peruano pontuou que a riqueza da novela de Azuela, consistia em captar os movimentos da Revolução, ao relatar a história, os anseios e os episódios das pessoas simples, “los de abajo”:

La revolución está hecha de muchos episodios como el de Los de abajo, pero está hecha también y sobre todo, de un gran caudal de anhelos y de impulsos populares y, después de mucho estrellarse y desbordarse, se abrió el hondo cauce por el cual corre ahora. La guerrilla es un arroyo que baja de la sierra, para perderse a veces; la revolución, un gran río que confuso en sus orígenes, se ensancha y precisa en su amplio curso13.

Em outra perspectiva, Marof, sempre partindo de um olhar bastante crítico, utilizou-se da arte para refletir sobre as limitações da cena intelectual no regime mexicano. Para o Boliviano, os intelectuais e artistas estavam reféns do modo de produção capitalista, afinal os burgueses tinham pouco interesse em financiar intelectuais e artistas verdadeiramente revolucionários. Por isso, a Revolução não teria gerado uma gama relevante – pela quantidade e pela qualidade - de intérpretes e divulgadores. Nesse sentido, além da admiração pela produção pictórica – e não pela pessoa, como ele faz questão de frisar – de Diego Rivera, o autor nos diz: Solamente dos escritores ha producido la revolución: los dos son informativos. El uno, Mariano Azuela, y el otro, Martín Luis Guzmán, pluma agilísima e interesante. Varias veces comentando con varios amigos, me he atrevido a decir que Martín Luis Guzmán es una de las plumas más agudas y mejor dotadas de su país. Entre los que se encuentran en México no sé con quién compararlo. Mariano Azuela, en cambio, es dramático, detallista y valiente14.

8 Outro ponto fundamental para compreendermos as análises que os socialistas andinos fizeram da experiência mexicana foi a Reforma Agrária. Como já citamos, Mariátegui via nos governos de Obregón e Calles a materialização da Constituição de 1917, incluindo aí a distribuição de terra aos menos favorecidos. Contudo, a resenha do livro de “La Revolución Mexicana” por Luis Araquistain pode ser tomada como marco (e todo marco é arbitrário) da transformação da perspectiva mariateguiana sobre a experiência mexicana. Assim, Mariátegui passou a problematizar a tática da frente única com a pequena-burguesia no México e chegou à conclusão de que as bandeiras obregonistas eram, então, “simbólicas” e “temporais”15. Ou seja, tratava-se de “cessões” feitas pela classe dominante para acalmar os ânimos das classes populares. A única saída plausível para o povo mexicano seria, então, a agitação classista. E aqui é importante traçar um paralelo com os dilemas políticos peruanos enfrentados por Mariátegui. Basta lembrarmos que, nesta mesma época Mariátegui fundou o Partido Socialista do Peru que se propõe exatamente à mesma tática que ele defendia para o México: o abandono da frente única e a adoção de uma prática e um discurso de agitação classista. O livro de Araquistain também forneceu material estatístico para as críticas de Marof aos rumos do governo mexicano. Todavia, sua análise versou mais sobre os mecanismos e as limitações econômicas que permeavam a política agrarista de Obregón e Calles. Assim a opção pela distribuição de pequenas propriedades – embora o autor reconheça que isso é uma melhoria em relação à anterior condição servil dos indígenas – foi duramente criticada por seu caráter liberal. Para além da pouca terra efetivamente distribuída, agravava a situação a baixa produtividade dos campos mexicanos. A situação não foi resolvida com as políticas de crédito agrícola, pois os diretores de bancos acabavam priorizando os grandes proprietários de terra – que em fins da década de 1920 eram os líderes revolucionários. Dessa forma, a questão agrária era calcanhar de Aquiles da Revolução, segundo Marof, e demonstrava a disposição governamental em negociar com a antiga casta de grandes proprietários de terra e com o imperialismo, pois as terras expropriadas eram indenizadas. Fazendo as contas, ele chegou à conclusão que seria necessário um bilhão de pesos mexicanos para realizar, dentro da lógica indenizatória, efetivamente a reforma

9 agrária. O problema consistia em o governo conseguir esse dinheiro, afinal não seria cabível toma-lo emprestado dos capitalistas donos de terra no México. Com efeito com o desenvolvimento das críticas à experiência mexicana, Mariátegui mudou completamente a sua análise sobre a experiência mexicana. Assim, se anteriormente Mariátegui afirmou que da Revolução Mexicana surgiria um Estado socialista, no final da vida ele cravou outra classificação. O processo político vivido pelos mexicanos desde 1910 seria, na verdade, uma Revolução Democrático-Burguesa, decorrente do “confusionismo ideológico” e da ausência de hegemonia político do proletariado. Entretanto, a crítica aos desdobramentos da Revolução, que diga-se de passagem se aproxima muito da historiografia contemporânea, não invalidou a experiência política vivida pelos mexicanos, no sentido de desconfiar de movimentos de massa dirigidos pela pequena-burguesia.

Mariátegui, então, se distanciou de maneira veemente

daqueles que enxergavam no México uma esperança tácita de que a sua Revolução proporcionaria à América Latina o padrão e o método da revolução sem um mínimo de teorização “europeizante”. A aposta na experiência revolucionária mexicana deu lugar à completa negação do mito e da Revolução Mexicana enquanto guia para a ação revolucionária na América Latina. Marof também se mostrou bastante crítico com a falta de coesão ideológica do México pós-revolucionário. Para ele, as posições do proletariado seriam determinantes para o conjunto do processo revolucionário. A observação é bastante curiosa, levandose em conta o caráter predominantemente rural e indígena que o México possuía à época. Não obstante, o socialista boliviano se insere, assim, na tradição marxista que costumou relevar, ou até mesmo negar, as potencialidades revolucionárias do campesinato16. O fracasso e as debilidades do processo revolucionário ocorrido no México são explicados pela incapacidade dos comunistas em estabelecer uma hegemonia no cenário político mexicano. Assim a “confusão ideológica” acabou por abrir o espaço necessário para que caudilhos oportunistas liderassem a Revolução. Dessa forma, em um dos raros momentos em que o autor enuncia as suas preferências políticas (e não deixa de ser curioso que ele não tenha fundado o Partido Comunista na Bolívia), ele nos diz:

10 Lo evidente es esto: el único partido que puede conducir a las masas hasta el triunfo final, sin compromisos con la burguesía y sin transacciones con el imperialismo, es el partido comunista, compuesto de todos los proletarios de la ciudad y del campo. La pequeña burguesía intelectual y la pequeña burguesía industrial pauperizada deben someterse al proletariado y aceptar su programa revolucionario. No hay otro camino. No existe la posibilidad de organizar una economía propia ni encerrarse en un nacionalismo estrecho17.

Por fim, após essa breve reconstituição das análises, podemos perceber como os socialistas andinos priorizavam os dilemas enfrentados pelo Estado que emergiu após o processo Revolucionário. Mas o que significa priorizar o Estado? Significa que Vasconcelos, Calles e Obregón, por exemplo, são mais citados que Zapata e Pancho. Significa que eles assumem o discurso do grupo de Sonora que fez a Revolução, ainda que para criticá-lo, extirpando Zapata e Pancho Villa. Dessa forma, cremos que o melhor a se fazer é entendê-los na sua historicidade, pois a centralidade que as questões do Estado ocupa nas interpretações dos intelectuais andinos sugere que os autores buscavam conciliar as demandas concretas de uma “revolução vencedora” com um projeto revolucionário de longo prazo. Por isto ao contrário do que sugere Luiz Bernardo Pericás18 - ao refletir especificamente sobre Mariátegui - não nos “espantamos” com as “ausências” dos “personagens centrais” como Zapata e Villa. Afinal se a Revolução Mexicana, a grande questão que nos resta é compreender se, e em que medida, a experiência mexicana se configurou como um “modelo” revolucionário na reflexão de Mariátegui e de Marof. Nesse sentido, podemos apontar que eles estão olhando o México a fim de pensar as táticas políticas em seus espaços nacionais (Peru e Bolívia), não se trata, portanto, de um olhar desinteressado. Por isso é possível perceber o quanto a interpretação da experiência mexicana está relacionada com as mudanças nas perspectivas políticas de cada um dos socialistas andinos em seu respectivo âmbito nacional. Não é coincidente, portanto, que nos momentos de proximidade ao governo mexicano – nas figuras de Obregón, Calles e Vasconcelos – eles fossem adeptos da tática da frente única. E tampouco deveria surpreender que a assunção de uma perspectiva classista, no âmbito de suas atuações políticas, acompanhou (ou foi acompanhada) de uma reavaliação das possibilidades mexicanas de chegar ao socialismo.

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4. Considerações finais

No contexto de crise do liberalismo do mundo pós-Primeira Guerra, como sustenta Olivier Compagnon19, a Europa deixou de ser vista como o “futuro” para os intelectuais latino-americanos que se engajaram na construção de uma nova identidade para o continente latino-americano e para seus respectivos espaços nacionais. Podemos dizer sinteticamente que essa iniciativa dos intelectuais tratou da apropriação de maneira consciente e programática do repertório cultural, político, ideológico, estético do Velho Mundo. No campo artístico, esse processo pode ser percebido na proposta vanguardista de (re)pensar a(s) identidade(s) nacional(is), em especial a chamada “questão indígena”, a partir de parâmetros politico-intelectuais europeus. A novidade dessa perspectiva, como bem indica Alfredo Bosi20, é a ambição de enfrentar a tensão “cosmopolitismo/nacionalismo” numa perspectiva dialética. Provavelmente, a síntese mais bem acabada dessa perspectiva pode ser encontrada na “filosofia antopófoga” de Oswald de Andrade. “Tupi or not tupi, that’s the question”, significava a disposição de pensar a particularidade do Brasil dentro do universal. Ou seja, a produção identitária não é concebida como mera descoberta de uma “essência” a-temporal e a-histórica, mas sim como produção que pode, e em tempos de crise necessita, reivindicar os desígnios que lhe pareçam mais convenientes. É nesse contexto que devemos entender a obra de José Carlos Mariátegui e Tritán Marof. Interessante observar que mesmo nesse contexto de crise, os socialistas andinos não buscaram tomar a Revolução Russa, e tampouco a Mexicana, como respostas e modelos automáticos para solucionar o momento de crise do liberalismo. Por isso, podemos dizer que estes, e tantos outros eventos, serviram de inspirações, ou seja, como ponto de partida e não de chegada, para que os intelectuais andinos realizassem reflexões que foram muito além da Rússia e do México propriamente ditos. Os intelectuais socialistas, então, se apropriaram, no sentido proposto pelo historiador Roger Chartier, de experiências alheias para prensar, repensar e agir no âmbito seus próprios espaços políticos (nacionais, no caso). É interessante observar que,

12 em alguma medida, eles pareciam ter consciência disso, basta se atentar para a metáfora que José Carlos Mariátegui usava para definir o marxismo: “bússola”. Não é demais lembrar que o marxismo foi alvo de intensos debates na época, como indicam as fortes críticas de Haya de la Torre ao marxismo “europeizado” de Mariátegui. Assim, o debate que se fazia sobre o lugar das ideias, em um contexto de crise do liberalismo, no qual a América Latina buscava (re)pensar a si mesma, é fundamental. As diferentes leituras da Revolução Mexicana, como esperamos ter demonstrado, possibilitam situar os socialistas andinos nos amplos debates sobre a natureza da revolução que ocorriam no continente latino-americano daquele período. Dessa forma, é imperativo anotar que a saída “classista” para a situação mexicana apontada pelos dois socialistas é coincidente e contemporâneo ao chamado terceiro período da Internacional Comunista. Coincidente em seu sentido estrito, aquilo que tem incidência ao mesmo tempo e não excludente. Não se trata de dizer que eles chegaram às suas posições de maneira isolada e independente, mas sim de pontuar que embora coincidente e relacionados (à Internacional Comunista e demais adeptos do marxismo) os socialistas andinos construíram suas leituras e ações políticas de maneira consciente – e não apenas copiando o Comintern. De novo, temos que pensar em termos de Apropriação (Chartier). Uma forte evidência de que as posições de Marof e Mariátegui não se limitaram a um decalque imposto pela Internacional Comunista é o fato de que apesar deles manterem posições consonantes às dos comunistas, os intelectuais andinos foram “demonizados” pela esquerda comunista ainda nos anos de 1930. Por fim, esse debate permite desmistificar e esclarecer um pouco a história dos primórdios do comunismo na América Latina – que muitas vezes é tratado de maneira monolítica, como se Stálin fosse forte desde o início dos processos de fundação dos Partidos Comunistas em nosso continente. Todavia, faz-se necessário, de maneira urgente, criticar as interpretações recorrentes que homogeneízam a história do comunismo em nosso continente, desprezando suas particularidades e multiplicidades. Afinal, se figuras divergentes – como Marof e José Carlos Mariátegui - eram possíveis é porque algum espaço para disputa havia.

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Mestrando em História Social na FFLCH-USP; [email protected] LÖWY, M. O marxismo na América Latina. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

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BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio; LOPES, Maria Aparecida de Souza. A historiografia da Revolução Mexicana no limiar do século XXI: tendências gerais e novas perspectivas. In: História. São Paulo, nº 20, p.163-198, 2001. 4 FLORESCANO, Enrique. El nuevo pasado mexicano. México D.F., 1991. 5 SILVA HERZOG, Jesus. Breve história de la Revolución Mexicana. México: Fondo de Cultura Economica, 1960. 6 MAROF, Tristán. México de frente y de perfil. Buenos Aires, Claridad, 1934. 7 PAZ, Octávio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1984. p.124. 8 MARIÁTEGUI, José Carlos. “Un libro de discursos y mensajes de Calles”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Nuestra América, Lima, Editora Amauta, 1971 9 MARIÁTEGUI, José Carlos. “La lucha eleccionaria en México”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Nuestra América, Lima, Editora Amauta, 1971 10 Como adverte o próprio autor: “Acosado por mil dificultades, viajando de un lugar a otro, no es en la calma ni la tranquilidad que han brotado estas páginas. Muchos capítulos son una síntesis de la cuestión tratada. Sobre cada capítulo se podía escribir un libro. Pero mi objeto tampoco ha sido escribir un libro recargado y pedante. Es apenas una visión de un hombre que analiza y que lucha por la justicia social. Por eso, tal vez, me dejo llevar por la pasión y ataco a hombres con los que hasta ayer tuve amistad. Pero no es posible escribir sin pasión. Apasionadamente vivimos y sufrimos porque pretendemos el honor de los viejos soldados que nunca pueden ser imparciales cuando combaten por una idea”. MAROF, Tristán. México de frente y de perfil. Buenos Aires, Claridad, 1934. p. 8. 11 As tensões sobre a aplicação dos preceitos anticlericais da Carta Magna de 1917 ultrapassaram o âmbito do político e chegaram ao militar. A Guerra Cristera (1926-1929) foi o conflito entre cristãos e o governo mexicano e teve oitenta mil mortos. 12 MARIÁTEGUI, José Carlos. “Un libro de discursos y mensajes de Calles”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Nuestra América, Lima, Editora Amauta, 1971. pp.45-6. 13 MARIÁTEGUI, José Carlos. “‘Los de Abajo’ de Mariano Azuela”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Nuestra América, Lima, Editora Amauta, 1971. p.85. 14 MAROF, Tristán. México de frente y de perfil. Buenos Aires, Claridad, 1934..p.121. 15 MARIÁTEGUI, José Carlos. “Origines y perspectivas de la insurrección mexicana”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Nuestra América, Lima, Editora Amauta, 1971. p.58. 16 Dizia ele: “el hogar del socialismo fue la urbe, hogar proletario, como el hogar del capitalismo fue el burgo. El agro puede ser teñido o influenciado por el socialismo, pero no puede gestarlo ni construirlo. Cualquier hombre honrado, cualquier caudillo demagogo, cualquier espíritu sincero, cualquier capitulero jacobino, poder predicar el socialismo, pero sólo el proletaria puede hacerlo. El es el único que no tiene vínculos con la propiedad ni con el lucro capitalistas”. MAROF, Tristán. México de frente y de perfil. Buenos Aires, Claridad, 1934. p.22 (grifo meu). 17 Ibidem. p.146. (grifo meu) 18 Sobre os escritos do jornalista peruano, Pericás escreve: “O primeiro ponto a se notar nos escritos de Mariátegui sobre o assunto são os ‘silêncios’, as ‘ausências’. Em etapa madura, praticamente deixará de lado, sem lhes dar a decida atenção ou protagonismo, personagens centrais como Zapata e Villa, por exemplo.” PERICÁS, Luis Bernardo. José Carlos Mariátegui e o México. Margem Esquerda. São Paulo, nº15.p.115. 19 COMPAGNON, Olivier. L'adieu à l'Europe. L'Amérique latine et la Grande Guerre. Paris, Fayard, col. L’épreuve de l'histoire, 2013. 20 BOSI, Alfredo. “A parábola das vanguardas latino-americanas”. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-Americanas. Edusp, São Paulo, 2008.

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