A risível história de um Foucault \"fenomenólogo\" e neoliberal: as garras de François Ewald.pdf

June 1, 2017 | Autor: Rogério Mattos | Categoria: Michel Foucault, Economia, Filosofía, Biopolítica
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A risível história de um Foucault "fenomenólogo" e neoliberal: as garras de François Ewald

Por Rogério Mattos: [email protected] Não devemos nos remeter ou nos filiar a um Foucault “liberal porque não humanista”, curiosas leituras da pós-modernidade onde “it was Foucault’s turn to biopolitics, particularly once he grasped its relation to economic liberalism, which led him to revise the disciplinary hypothesis, not his interest in ancient arts of living 1”. O tema da chamada Aulas sobre a vontade de saber, de 1970, a aludida exceção aristotélica na Antiguidade e especificamente o texto O saber de Édipo, desmentem uma suposta conversão súbita, quase que religiosa, ao credo liberal, onde se pode ler não sem estupor: “In his concluding remarks about the Chicago School, Foucault presents neoliberalism as an almost providential alternative to the repressive disciplinary model of society2”, ou seja, “this was no minor correction: Foucault had, in effect, disowned a central argument of Discipline and Punish3”. Foucault vira discípulo de Pinochet, Chicago Boy, protagonista de um dos capítulos de La literatura nazi em America, de Roberto Bolãno. Leitura que se aproxima de certos aspectos da retrospectiva de maio de 1968 feita por Dosse: “Por trás de Maio, o traje Mao não passara de fantasia. Mao-Maio propiciava uma abertura para o espaço e dava acesso à vida de um representante made in USA4”. Leitura que não é criativa, inclusive por proporem uma “conversão” e não a utilização inteligente das contradições inerentes ao estudo de um pensamento complexo como o de Michel Foucault. As recentes leituras de um Foucault adepto do credo neoliberal, adepto do modelo de imposto negativo de Milton Friedman, como na obra dirigida por Daniel Zamora, Critiquer Foucault: Les Années 1980 et la tentation néolibérale, são duplamente frágeis: científica e eticamente. Para ser claro, cristalino, é impossível 1

BEHRENT, Michel C. Liberalism without humanism: Michel Foucault and the liberal creed, 1976-1979. Modern Intellectual History, 6, 3 (2009), p. 559. 2 Ibdem, p. 567. 3 Ibdem, p. 559. 4 DOSSE, François. Maio de 68, maio de 88: artimanhas da razão. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 133. Tais teóricos sobrevivem à luz de um ex-maoísta, um ganhador da Legião da Honra dado por Jacques Chirac, conselheiro da elite francesa, com certeza um dos mais legítimos representantes da dupla Mao-Maio, de um revolucionarismo enlatado, não muito diferente de nossos ex-marxistas, comunistas, como Roberto Freire ou Fernando Henrique Cardoso. É o que se costuma chamar de “revolução conservadora”, ou seja, a volta às formas oligárquicas, arcaicas, de poder, ainda que com revestimento “moderno”.

fundamentar a partir do curso intitulado Nascimento da biopolítica uma mudança de rumo que levaria o filósofo a endossar a economia política que legitimou o genocida governo de Pinochet. Estes teóricos não consideram: 1) Já no curso Em defesa da sociedade se pode ler a partir de sua análise das relações de poder: “Que essa unidade do poder assuma a fisionomia do monarca ou a forma do Estado pouco importa; é dessa unidade do poder que vão derivar as diferentes formas, os aspectos, os mecanismos e instituições de poder5”. Em suma, ignoram completamente um conceito fundamental do filósofo, o de soberania, ou seja, “o ciclo do sujeito ao sujeito, o ciclo do poder e dos poderes, o ciclo da legitimidade e da lei 6”. Ignoram, por consequência, a própria noção de genealogia tão debatida, se tratando de uma das mais originais leituras feitas sobre Nietzsche. Chegam, assim a estaca zero científica e abraçam, para lembrar novamente Roberto Bolaño (via Borges), as potências do falso: Pierre Menard. Dizem que Foucault – daí o erro ético e não só científico –, ao legitimar o neoliberalismo endossaria com uma suposta fuga da teoria do Estado (como se alguma vez a tivesse endossado) o que ele mesmo chamou a partir da aula de 31 de janeiro de 1979, a “fobia do Estado”, condição por excelência, numa Alemanha pós-Hitler, das discussões que levaram a erigir esse fenômeno civilizacional, a sociedade Mont Pelerin (Davos e seus correlatos mais recentes) ou a ascensão dos iluminados Chicago Boys (e seus correlatos – potências do falso). E quem ainda se vê insatisfeito (é claro que se trata de uma discussão que consumiria algumas laudas e não poucas linhas como se faz agora), que consulte a aula de 7 de fevereiro de 1979, onde se afirma a relação entre fenomenologia e ordoliberalismo, especificamente “assim como para Husserl uma estrutura formal não se oferece à intuição sem um certo número de condições, assim também a concorrência como lógica econômica essencial só aparecerá e só produzirá seus efeitos sob certo número de condições cuidadosa e artificialmente preparadas 7”. Será que, contudo, estes teóricos conseguiram tirar o Estado de suas considerações? Ou traveste seus pressupostos para fundamentar doutrinas das mais duvidosas? “Law and order quer dizer o seguinte: o Estado nunca intervirá na ordem econômica a não ser na forma de lei, e é no interior dessa lei, se efetivamente o poder público se limitar a essas intervenções legais, que poderá aparecer algo que é uma ordem econômica, que será ao 5

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 37. Idem, p. 38. 7 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo : Martins Fontes, 2008, p. 163-4. 6

mesmo tempo o efeito e o princípio da sua própria regulação8”. Não importa se estamos com Husserl ou seu discípulo, o entusiasta do Terceiro Reich, Heidegger; se estamos com Friedman ou Von Mise, Hitler ou Goebbels. Estamos em arena nazi, com ou sem a sombra de Pinochet, do Estado ou das demarcações legais de uma sociedade autoregulada onde se governa para o mercado ao invés de se governar apesar do mercado (condição esta a do liberalismo dito clássico). A questão de Foucault, que seja mais uma vez dito, é a da soberania (conceito múltiplo, fundamental para o acesso à usa analítica do poder), principalmente em seus últimos anos de vida, o da soberania sobre si mesmo, o do governo de si como condição (a leitura do diálogo Alcebíades) para se governar os outros. No mais, no prefácio que deu o título “Para uma vida não fascista”, o prefácio ao Anti-Édipo, ainda naquela época, já podíamos ler: Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (visto que a oposição de O anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora. Eu diria que O anti-Édipo (possam seus autores me perdoar) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França desde muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não se limitou a um “leitorado” particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo (e sobretudo) quando se acredita ser um militante revolucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que se tinham alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os traços mais íntimos do fascismo no corpo. Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, poderíamos dizer que O anti-Édipo é uma introdução à vida não fascista9.

2) A questão de Foucault com a militância de esquerda já é bem estabelecida no curso Em defesa da sociedade, onde afirma a similaridade que associa os quadros revolucionários, socialistas, de forma irrefutável com as correntes eugênicas do mesmo século XIX onde nasceu esta disciplina. As chamadas “esquerdas” ou os conservadores

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Idem, p. 239. FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. – v. 1, n. 1 (1993) – São Paulo, 1993, p. 200. 9

(os de “direita”) transitavam, se apoiavam em tais pressupostos. Como relatou na entrevista dada ainda do tempo em que visitou o Brasil com mais frequência, não estudou Marx, por exemplo, na Palavra e as Coisas, pelo pensamento de David Ricardo ser mais radical, estar mais enraizado neste autor as origens da economia política moderna do que o marxismo, até por Marx ter dito que seu Capital nada mais era do que um derivado, uma continuação, da teoria de valores de David Ricardo10. Não há distinção fundamental, dentro dos quadros do pensamento de Foucault, que faça divergir Marx da escola britânica de economia política. Surge, assim, antes uma similaridade do que um contraponto entre “liberais” e “anti-liberais”. Similaridade esta que, em sua origem, jamais existiu. São falsos arranjos sempre construídos nos pressupostos do bom senso e do senso comum, arranjos estes que ainda se aferram à imagem da divisão de tendências ocorridas durante a reunião das cortes francesas às vésperas da Revolução. Como diz Chartier, “a rede contraditória das utilizações” de uma obra, no caso de Foucault, não se deve desconsiderar, ainda, a similaridade entre o ordoliberalismo e o weberianismo alemães (não podemos nos perder em longas citações e/ou considerações), patente também na aula de 7 de fevereiro de 1979. Por outro lado, os neoliberais aprofundam a abstração realizada por Marx a respeito do valor da força de trabalho, valor ainda abstrato que será transformado no século XX no termo “capitalcompetência”, nas “máquinas-fluxo”, a nova utopia para além do comunismo: É Hayek, que dizia, há alguns anos: precisamos de um liberalismo que seja um pensamento vivo. O liberalismo sempre deixou por conta dos socialistas o cuidado de fabricar utopias, e foi essa atividade utópica ou utopizante que o socialismo deveu muito do seu vigor e do seu dinamismo histórico. Pois bem, o liberalismo também necessita de utopia. Cabe-nos fazer utopias liberais, cabe-nos pensar no modo do liberalismo, em vez de apresentar o liberalismo como uma alternativa técnica de governo. O liberalismo como estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação 11.

Essa a nova teoria para racionalizar a irracionalidade do capital (para dizer em termos weberianos). E estará certo quem diz que por isso, pela adoção de uma nova utopia, Foucault se tornou m filho de Mao-Maio? Podemos voltar novamente ao Em defesa da sociedade, justamente quando introduz o tema do biopoder, em 17 de março 10

“Acho que na geologia da Economia Política, em seus conceitos fundamentais, Marx não introduz uma ruptura essencial. Houve mesmo alguém que o disse antes de mim: Karl Marx. Ele mesmo afirmou que, em relação a Ricardo, seus conceitos eram derivados”. Uma entrevista com Michel Foucault. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ 11 Nascimento..., p. 301-2.

de 1976, tema este amplamente desenvolvido no curso de 1979. Lá não encontraremos qualquer Foucault utópico, esquerdista, socialista. Quando fala dos vínculos entre racismo e genocídio aponta: “o Estado socialista, o socialismo, é tão marcado de racismo quanto o funcionamento do Estado moderno, do Estado capitalista12”. Ou: “o socialismo foi, logo de saída, no século XIX, um racismo. E seja Fourier, no início do século, sejam os anarquistas no final do século, passando por todas as formas de socialismo, vocês sempre veem neles um componente de racismo13”. Voltamos ao tema dos “instrumentos mentais” tão caro a Lucien Febvre e retomado pela escola de antropologia histórica: não será com pobres recursos intelectuais, pobres ferramentas mentais, a da ideologia, da conversão religiosa (ao mercado!), da utopia, de esquerdismos ou direitismos que chegaremos a compreender o complexo pensamento político de Foucault, muito além da mentalidade de contador que se reveste praticamente todo o pensamento econômico do século XX, seja o monetarismo keynesiano ou o de vertente neoliberal. Mais uma vez a historiografia francesa da segunda metade do século passado é o instrumento adequado para corrigir distorções flagrantes a respeito de temas em que se deveria ter plena clareza e não ambiguidades provocadas por conceitos de cunho doutrinário. Falamos assim, porque lembramos do segundo grande trabalho de Fernand Braudel (considerado da segunda geração dos Annales, o chamado “presidente Braudel” fez o que chamou de geo-história e não abstração nas nuvens), a Civilização material, economia e capitalismo, obra em que um dos eixos centrais é a refutação de qualquer sociologia weberiana, de ética protestante calvinista ou usurária, à moda de Adam Smith, da escola britânica de um modo geral (na qual se filiou Karl Marx). É neste terreno intelectual que se pode situar as concepções mais elaboradas, mais complexas, de Michel Foucault, e não em modernismos fugazes como a de um Foucault fenomenólogo e neoliberal, marxista ou weberiano. Não, de forma alguma François Ewald é um ser capaz de verdade, no sentido grego ou foucaultiano. Por hipótese, poderíamos dizer que cabe a nossa pesquisa escrever um capítulo no estilo de trás para frente, ou seja, não como Foucault escreveu sua “vida dos homens infames”, mas talvez no estilo de Borges, segundo as potências do falso 14. Já temos o protagonista, o rebento

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Em defesa..., p. 219. Idem, p. 219-20. 14 Termo deleuziano, da Imagem-Tempo, inspirado no cinema de Orson Welles. 13

da geração made in usa – Mao-Maio –, o Pierre Menard que veste a medalha da Legião de Honra e se traveste de conselheiro das elites (qual outro papel, afinal, lhe caberia?).

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