A Roma Antiga de Machado de Assis

May 27, 2017 | Autor: Brunno V G Vieira | Categoria: Machado de Assis, Reception of Ancient Literature
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VIEIRA, B. V. G. A Roma Antiga de Machado de Assis. IN: LEITE, L. R. et al. (Orgs.) Leitor, leitora: literature, recepção, gênero. Vitória: Ed. PPGL, 2011. p. 17-25.

A Roma Antiga de Machado de Assis Resumo A proposta deste meu artigo é a de oferecer um breve panorama de citações latinas nas crônicas machadianas, buscando analisar nelas tanto a postura crítica em relação ao latim e ao seu uso, quanto o método de que Machado se serve na adoção das referências à Roma Antiga. Abstract The aim of this article is to offer a panorama of Latin quotations in the Machado’s newspaper columns, looking for to analyze in them so much the critical posture in relation to Latin language and to its use, as the method taken by Machado when he adopts ancient Rome reminiscences. A tarefa a que me propus é árdua: queria imitar em termos latinos o texto seminal de Jacyntho Lins Brandão “A Grécia de Machado de Assis” (cf. BRANDÃO, 2001). Não pelo simples prazer de seguir as sendas desse ilustre classicista, mas porque sinto uma necessidade premente de que classicistas se ocupem também pela recepção da literatura clássica em contexto lusófono. O texto de Jacyntho colhe os frutos de seu olhar de helenista e procurarei exercitar aqui na obra de Machado de Assis meu olhar de latinista. Convém que eu declare que, apesar de minha eleição de Jacyntho como modelo, não desconheço outros trabalhos à roda da presença de textos clássicos em Machado de Assis tanto no viés mitológico como no literário. Refiro-me aos estudos de pesquisadores tais como Maria Celeste Tommasello Ramos da UNESP de São José de Rio Preto, que tem apresentado um imenso progresso na análise das referências mitológicas machadianas, publicando e orientando inúmeros trabalhos nesse campo. Refiro-me também à tese de Patrícia Soares Silva, com o título “Dos antigos e dos modernos se enriquece o pecúlio comum: Machado de Assis e a literatura greco-latina” defendida na UFPE em 2007, que oferece igualmente um panorama bastante amplo, sobretudo tratando dos romances. Refiro-me, por fim, à dissertação de mestrado A Vrbs no Cosme Velho: análise da presença da Literatura Latina em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Priscila Mendonça Machado, desenvolvido no programa de PósGraduação em Estudos Literários da UNESP/Araraquara. A proposta deste meu escrito é a de oferecer um breve panorama de citações latinas nas crônicas machadianas, buscando analisar nelas tanto a postura crítica em relação ao latim e ao seu uso, quanto o método que Machado se serve na adoção das referências latinas na construção das suas crônicas. Como acabo de adiantar, o corpus que delimitei para perscrutar os latins de Machado se concentrará nas crônicas, seja porque o maior foco de interesse da

crítica têm sido romances e contos, seja porque muitas citações e reminiscências latinas parecem ser testadas primeiramente no cronista para depois serem reelaboradas no contista ou no romancista. A própria discussão sobre o uso dessas alusões vem declarada nesses textos hebdomedários. Além disso, sendo “as crônicas um meio privilegiado de entender a interação multifacetada entre o escritor e o mundo público em que se movia”, como bem nota Gledson (ASSIS, 2008a, p. 14), elas oferecem um interessante retrato dos bons e maus usos da cultura clássica no período.

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Panteon da Semana Illustrada (FLEIUSS, 2008, p. 39)

Principio por esta imagem de Machado sendo levado em triunfo com o exemplar de Chrysalidas, o primeiro livro de poesia publicado por ele, à mão. É uma imagem de Fleiuss de 1864, data do lançamento do livro. Trata-se de um triunfo romano à moda grega. A ideia do cortejo triunfal é romana, com louros, palmas e tudo. Mas a espécie de palium que eles vestem é grego, assim como a lira que se leva à frente. Machado com seu livro em punho vem, não sem grosseira ironia, em uma espécie de carro levado por Gonçalves Dias. Reconheço, ainda, no desenho à frente Joaquim Nabuco e Joaquim Manuel de Macedo (ao seu lado com a lira). À esquerda de Machado, levando uma palma, Lúcio de Mendonça entre outros que não fui capaz de reconhecer. O tom greco-romano da charge revela pictoricamente o que se lê no livro cujo tom clássico tinha sido já notado já por Caetano Filgueiras – no prefácio que faz a Crisálidas na edição de 1864 – nestes termos: “a clâmide romana em que se envolve o poeta lhe dissimula –

o vácuo do coração, e o coturno grego, que por suado esforço conseguiu calçar, lhe tolhe, apesar de elegante e rico, a naturalidade dos movimentos” (FILGUEIRAS, 2003. p. 53).

O poeta de Chrysalidas (FLEIUSS, 2008, p. 48)

Explorando ainda o campo imagético, por ocasião de Crisálidas, há uma outra litografia de Henrique Fleiuss, esta que traz Machado também com trajes greco-romanos tocando uma lira e sendo levado por uma lagarta. É como se a crisálida (o casulo que envolve a larva que está para se transformar em borboleta) tivesse acabado de irromper-se, metaforizando o lançamento do livro. As charges e o comentário de Filgueiras não deixam dúvida sobre o fato de que a clâmide romana de Machado, ou seja, o pendor clássico de seus escritos era amplamente reconhecido e interpretado na sua primeira recepção. O próprio Machado frequentou reuniões da Arcádia Fluminense entre 1865-6, como atesta ele mesmo no prólogo de sua obra mais amplamente greco-romana, a saber, a comédia Os deuses de Casaca (1866). Para quem não a conhece, trata-se de uma comédia em que os deuses olímpicos e sub-olímpicos (Júpiter, Marte, Apolo, Proteu, Cupido, Vulcano e Mercúrio) se encontram caracterizados como cidadãos cariocas do séc. XIX. No prefácio da peça dedicada a José Feliciano de Castilho, tradutor de Latim e presidente da Arcádia Fluminense, Machado declara que os participantes daquelas reuniões

eram arcades omnes, “todos árcades”.1 Essa auto-definição de Machado, que reflete os verdes anos de sua formação, vai se transformando com o decorrer do tempo e com o correr de sua pena, mas jamais será negada. Não se pode dizer que o escritor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro seja árcade, todavia essa formação árcade vai espraiar sua influência em toda obra de Machado, que jamais abandonou as referências à literatura, história e mitologia antigas. Assim o que no começo era um gesto imitativo entusiasmado – e até ingênuo – foi se tornando cada vez mais crítico de si mesmo. É inevitável não se pensar na declaração feita por Brás Cubas no célebre capítulo XXIV “Curto, mas alegre”, como contraste a Crisálidas e Deuses de Casaca, cito um trecho do capítulo:

Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação... (ASSIS, 1960, p. 155-6)

Ora, o que se encontra aí é justamente uma das posturas mais críticas ao uso que as elites fazem do latim. Essa ideia do latim, como decoração, como simulacro de erudição, como verniz, ainda hoje se pode ler nos jornais e se ouvir nas conversações... Aí se vê a visão de um Machado de 1881, aos 42 anos, em muitas das crônicas, após essa época, encontrei críticas a esse uso ornamental do Latim, censurado com a característica ironia machadiana. É inegável que o próprio Machado fizesse uso desses ornamentos, mas quase sempre essa prática foge ao caráter contemplativo e servil de seus contemporâneos. Essa prática, como demonstrarei no decorrer deste texto, é constituída no horizonte de reescritura e paródia habituais na produção literária machadiana. Em muitas das Crônicas, encontrei uma crítica a esse latim ornamental, recheado com a ironia imperdoável de Machado em relação a ele. Numa delas da série Bons dias! ele brinca com o fato de terem dado nomes latinos às ervas apreendidas pela polícia com um curandeiro.

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Em artigo recente investigo a influência de José Feliciano de Castilho sobre Crisálidas (cf. VIEIRA, 2009).

Primeiramente o cronista, cuja persona na série Bons dias! é a de um um relojoeiro, diz que não crê em curandeiros e que suas próprias doenças são sempre latinas ou gregas: Hão de fazer-me esta justiça, ainda os meus mais ferrenhos inimigos: é que não sou curandeiro, eu não tenho parente curandeiro, não conheço curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou relíquia, sequer, de curandeiro. Quando adoeço não é de espinhela caída, — coisa que podia aconselhar-me a curanderia; é sempre de moléstias latinas ou gregas. (ASSIS, 2008a, p. 295, grifo meu)

Mesmo o cronista-relojoeiro não tem doenças com nomes populares. Ele as tem em línguas clássicas. Depois se vê o porquê dessa advertência, quando o cronista ao final acaba tomando o partido do curandeiro que para ele “é pai de Hipócrates”. Antes disso, porém, há uma divertida passagem referindo-se ao parecer científico que fizeram das ervas do místico:

Pelo relatório se vê que Tobias [como era chamado o curandeiro] é um tanto Monsieur Jourdain, que falava em prosa sem o saber; Tobias curava em línguas clássicas. Aplicava, por exemplo, solanum argentum, certa erva, que não vem com outro nome; possuía umas cinquenta gramas de aristolochia appendiculata, que dava aos clientes; é a raiz de mil-homens. (ASSIS, 2008a, p. 295)

Ora não se pode deixar de ler neste trecho uma crítica aos latins do relatório e uma ironia sobre o classicismo reinante. É evidente que Tobias jamais teria pronunciado um desses nomes científicos em latim... Fica estranho dizer que uma figura tão popular como um curandeiro curava com ervas denominadas em língua latina. Machado não perdoa o anacronismo. Em crônica de A semana (20/05/1894) – publicada já no fim do exercício jornalístico de Machado que trabalhou como cronista até 1897 –, há uma outra crítica a esse culto protocolar da antiguidade adotado por Brás Cubas, trata-se de uma anedota sobre um dentista que tinha um busto de Cícero em seu consultório. Só a doutrina espírita pode explicar o que sucedeu a alguém, que não nomeio, esta mesma semana. É homem verdadeiro; encontrei-o ainda espantado. Imaginai que, indo ao gabinete de um cirurgião dentista, achou ali um busto, e que esse busto era o de Cícero. A estranheza do hóspede foi enorme. Tudo se podia esperar em tal lugar, o busto de Cadmo, alguma alegoria que significasse aquele velho texto: Aqui há ranger de dentes, ou qualquer outra composição mais ou menos análoga ao ato; mas que ia fazer Cícero naquela galera? Prometi à pessoa, que estudaria o caso e lhe daria daqui a explicação. A primeira que me acudiu, foi que, sendo Cícero orador por excelência, representava o nobre uso da boca humana, e consequentemente o da conservação dos dentes, tão necessários à emissão nítida das palavras. Como bradaria ele as Catilinárias, sem a integridade daquele aparelho? Essa razão, porém, era um pouco remota. Mais próxima que essa, seria a notícia que nos dá Plutarco, relativamente ao nascimento do orador

romano; afirma ele, — e não vejo por onde desmenti-lo, que Cícero foi parido sem dor. Sem dor! A supressão da dor é a principal vitória da arte dentária. O busto do romano estaria ali como um símbolo eloquente, — tão eloquente como o próprio filho daquela bendita senhora. Mas esta segunda explicação, se era mais próxima, era mais sutil; pu-la de lado. Refleti ainda, e já desesperava da solução, quando me acudiu que provavelmente Cícero fora dentista em alguma vida anterior (…). Tudo se perde na noite dos tempos, meus amigos; mas a vantagem da ciência, — e particularmente da ciência espírita, — é clarear as trevas e achar as coisas perdidas. (ASSIS, 2008b, p. 1072-3)

Bem, a anedota oferece uma crítica ao uso vão das referências clássicas, ou seja, como mera mostra de erudição. Não há lógica no fato de um dentista ter um busto de Cícero em seu consultório, ou seja, só pode ser coisa do espiritismo... Evidentemente, o mau uso das referências clássicas e a doutrina espírita estão em xeque, mas o cronista cumpriu o seu dever e estudou exaustivamente o porquê de Cícero estar ali. Passo a refletir brevemente sobre essa pesquisa. Nela, o cronista começa por referir-se a duas imagens que seriam mais coerentes: um busto de Cadmo ou uma alegoria bíblica. A reminiscência de Cadmo traz à luz as Metamorfoses de Ovídio, que Machado conhecia pela tradução de Bocage (Met. IV, 564603)2. Trata-se da transformação de Cadmo em serpente, como pena por ele ter matado uma víbora consagrada ao deus Marte. A dentística do mito é a seguinte: orientado por Minerva, Cadmo arrancou os dentes do monstro e os plantou; deles nasceram homens que lutavam entre si. Note-se que o episódio é bastante mau agourento e, por si só, fornece pistas de que o dentista não era dos melhores. A citação do texto bíblico é outra espetada nas qualidades do dentista. Aqui há ranger de dentes sem dúvida não soa muito convidativo em um consultório dentário... A citação vem alterada. No evangelho de São Mateus se diz “aí haverá choro e ranger de dentes” (ibi erit fletus et stridor dentium, Mt. 8, 12). Entendo que a troca do advérbio de lugar (lá por aqui) e do tempo verbal (haverá por há) soam bastante maléficas. Perscrutando ainda as explicações possíveis do estudioso cronista, a primeira delas tem sem dúvida caráter etimológico. Oratória, orador, oração (oratoria, orator, oratio) vêm do termo os, oris que em latim significa “boca”. Ao dizer então que “essa razão era um pouco remota”, é como se o cronista desconfiasse de que aquele busto estivesse ali por questões de linguística histórica. Ele não acredita que o dentista fosse capaz de tanto.

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Este é um dado registrado por Machado (2010, p. 55) que cita a declaração presente em crônica de 07/01/1894: Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo é mar; ao mar já faltam praias, dizia Ovídio por boca de Bocage. (ASSIS, 2008b, p.1037)

A segunda explicação revela uma importante fonte de Machado para biografias romanas e mesmo para a História Romana: Plutarco. Consta na biblioteca de Machado (MASSA, 2001, p. 37) uma tradução francesa de Plutarco de onde provavelmente se traduziu a ideia de que Cícero pariu sem dor. 3 Penso ser relevante nessa anedota o fato de ela revelar a distância em que o cronista se coloca em relação ao dentista em termos de erudição. Seus estudos revelam capacidade em decifrar e pesquisar as referências clássicas. A crônica é uma lição de iconografia, bem como de literatura clássica e cristã. Assim, o tom professoral do cronista revela sua perspicácia no trabalho com os temas da Antiguidade, mas também a habilidade em reescrever esses temas dentro do objetivo da crônica: ironizar o despropósito de um busto de Cícero num consultório dentário e, por extensão, satirizar as interpretações espíritas em voga. O tratamento da Antiguidade presente na crônica revela que o conhecimento do cronista vai muito além das “despesas da conversação”. Como no caso da citação bíblica acima, a paródia, a deturpação ou a simples adaptação das referências clássicas são práticas constantes. O próprio Machado declara esse uso da deturpação em crônica de Bons dias! de 26/01/1889. O cronista que assumira em crônica de 06/06/1888 ignorar profundamente o latim, raramente fica sem citar máximas nessa língua e chega a abrir três crônicas com citações latinas... Talvez devido a essa “ignorância” – mas nem sempre só por ignorância – as máximas vêm alteradas. Em uma delas a atitude é declaradamente paródica. Ao invés da máxima vanitas vanitatum et omnia vanitas (Ecl. 1:2, “vaidade das vaidades e tudo é vaidade”), o cronista assustado com a febre amarela abre seu texto assim: sanitas sanitatum et omnia sanitas (“saúde das saúdes e tudo é saúde”). Segue-se a isso uma interessante reflexão sobre a prática das citações. Reproduzo esse começo:

Sanitas sanitatum et omnia sanitas. Gracioso, não? É meu; quero dizer, é meu no sentido de ser de outro. Achei esta paródia de Eclesiastes em artigo de crítica de uma folha londrina. Já veem que não são só os queijos daquela naturalidade que merecem os nossos amores; também as folhas, e principalmente as que escrevem com sabor e graça. A parte minha neste negócio é aplicar melhor a frase, porque lá só trata de um livro, e cá tratamos da cidade inteira. Creio que saiu-me um verso decassílabo: “e cá tratamos da cidade inteira”. Não me sobra tempo para transpô-la em prosa. Repito o que disse, e acrescento que já alguém afirmou que citar a propósito um texto alheio equivale a tê-lo inventado. Creio que é tolice; mas, fiado nela, é que ousei dizer no princípio que a paródia era minha. (ASSIS, 2008a, p. 223) 3

“Sa mère le mit au monde sans travail et sans douleur” (PLUTARQUE, 1877, p. 602). Trata-se da mesma tradução consultada por Machado, mas em edição diferente da citada por MASSA, 2001, p. 37.

Note-se que Machado usa a licença de sua persona-cronista para versar sobre a incorporação de citações em seu texto. Ele declara a paráfrase e a explica, confessando que seu reaproveitamento “aplicará melhor a frase”. Ora, mudar o contexto das citações é como as ter inventado, como parece perceber o próprio cronista. Curioso ainda nessas práticas paródicas é a necessária reescrita em latim que elas demandam. Evidentemente alguém que substitui vanitas por sanitas precisa ter uma noção razoável de latim. Se for mesmo verdade que, nesse caso, a paródia não é de autoria machadiana, porém há outros momentos de evidente reelaboração, o que mostra que, se Machado não traduzia diretamente do latim, ele ao menos possuía uma noção propedêutica, já que para estas interferências isso me parece necessário. Vejamos dois exemplos de reescrituras de Machado em citações latinas: Donde os filósofos podem concluir com segurança que as vozes não são a mesma coisa que os nabos. Credo, quia absurdum era a máxima de Santo Agostinho. Credo, quia carissimum é a do verdadeiro dilettanti. (ASSIS, 2008b, p. 310 [História de Quinze dias, 01/08/1876]) Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde. Vamos todos, havanas e quebra-queixos, finos ou grossos, e os mesmos cigarros, e até as pontas de cigarro. Nunc est fumandum. (ASSIS, 2008b, p. 612 [Balas de estalo, 28 de maio de 1885])

Na primeira passagem, apesar de a terminação -um de neutro singular exatamente a mesma em absurdum e carissimum não é tão espontânea a inserção do superlativo carum/carissimum. No trecho de Balas de estalo, consigo perceber uma paródia do famoso hemistíquio de Horácio nunc est bibendum, que abre a Ode I, 37. Neste caso a alteração do verbo bibere de terceira conjugação por fumare de primeira, também requer algum fundamento de latim, ainda que fumare, no sentido de fumar cigarros, seja latinório risível. Por falar em risível há dois trechos remarcáveis. O primeiro, na série Bons dias!, brinca com a semelhança de sons e entre o verbo “fungar” em português e o verbo fungor em latim, que tem o sentido de “desempenhar”. Veja como Machado se diverte com a expressão ex autoritate qua fungor, cuja tradução portuguesa seria “a partir da autoridade pela qual desempenho (uma função)” trata-se de um termo do direito, usado, por exemplo, em cerimônias matrimoniais ou colações de grau: Desculpem, se lhes não tiro o chapéu; estou muito constipado. Vejam; mal posso respirar. Passo as noites de boca aberta. Creio até, que estou abatido e magro. Não?

Estou; olhem como fungo. E não é de autoridade, note-se; ex auctoritate qua fungor, não, senhor; fungo sem a menor sombra de poder, fungo à toa... (ASSIS, 2008a, p. 99)

Outra risível referência reproduz um discurso de “um estrangeiro, creio que polaco” sobre a situação das corridas de cavalo e sobre possíveis conversas entre os brutos. Chama atenção que esse discurso reportado seja construído nos moldes eruditos citando improváveis autoridades latinas, que, de fato, não passam de ficção. Reproduzo o trecho: Não mofe, que é imitar os ignorantes. Que os cavalos façam acordos entre si, é coisa sabida por todos os que folheiam livros antigos. Diculasius, op., lib. XXI, refere: “Os númidas contam que os seus cavalos combinam entre si, à imitação dos homens, a marcha que hão de ter, quando presumem que esta os fatigue em excesso, se forem pelo acordo dos cavaleiros”. Cneius Publius, confirmando essa versão, acrescenta que a espécie cavalar é daquelas em que mais se ajustam as vontades. Mas o primeiro que estudou detidamente este assunto (não falando dos árabes), foi o filósofo Claudius Morbus; esse achou que os cavalos escarnecem dos homens: “Os ruins cavalos, diz ele em um dos seus tratados, são muita vez cavalos excelentes; para escarnecer dos homens, fazem-se ruins, empacam, afrouxam o passo, ou simplesmente os cospem de si, para que eles os não aborreçam mais. Os cavalos que falam aos homens, como o de Aquiles, são raros, se é que ainda existe algum; geralmente falam entre si. Tendo estudado gestos de cabeça e de olhos, não menos que os relinchos, cheguei a formular um vocabulário, que me tem servido para alguma coisa”. (ASSIS, 2008b, p. 972-3 [A semana, 02/04/1893])

Evidentemente não existe nenhum Disculasius, nem Cneius Publius, nem Claudius Morbus, os nomes inclusive estão estropiados: Cneius ( lembra o pré-nome latino é Cneus); Claudius é já um cognomen, assim como Morbus e o composto Claudius Morbus, cuja tradução poderia ser “a doença manca”, é evidente gracejo. Esse trecho lembra aquela ideia presente no famoso conto O homem que sabia javanês, de Lima Barreto, no sentido de que o discurso segue o gênero das citações eruditas e ninguém pode negar uma erudição que desconhece. Ora, a tão só referência a autoridades em latim parece dar a entender que a argumentação é satisfatória e proba... Eis que Machado manifesta nessa paródia um uso perigoso da língua do Lácio, mostrando o perigo de se usar o prestígio, que lhe é próprio, para ocultar conteúdos e ações indecentes ou pouco prestigiosas. Exemplo desse uso desonesto da erudição é manifestado em crônica da série Notas semanais de 01/09/1878. Diante da negativa da Câmara em atender a demanda do procurador do Judiciário para que fosse servido jantar quando as reuniões do Tribunal do Júri se estendessem até tarde, Machado é implacável na crítica: Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a segunda, porque o jantar é, de certo modo,

um agente de corrupção. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deinde judicare. Não me venham com considerações de ordem fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza. Não me venham também com o jantar na política; porque, em certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade pública. O caso dos jurados é outra coisa. (ASSIS, 2008b, p. 468)

“Não me venham com sentenças latinas” expressa uma indignação contra a forma do discurso vigente tantas vezes desprovida de conteúdo. É como se os bordões latinos por si só garantissem a lisura do pedido. Machado coloca-se ao lado dos homens ilustrados que veem “as coisas de uma certa altura” e que não se deixam levar por essas erudições vãs. Se pensarmos nas crônicas que arrolei acima, há nelas uma reflexão coerente e uma bem fundamentada crítica sobre os enganosos usos do latim, expondo ao ridículo um certo tipo de elite e de discurso dos quais Brás Cubas era parte integrante. Todavia, a evidente seriedade de Machado ao se valer também de boas traduções latinas – como são as encontradas em sua biblioteca – revela que esse latim desonesto não era o único que pairava nas crônicas e na obra machadiana como um todo. Machado se coloca contra um mau uso do legado clássico, mas isso não o leva a bani-lo em absoluto. É verdade, que, a despeito desses maus usos, Machado não deixará de se servir de citações e reminiscências clássicas, porque via nelas algo mais que pura erudição e moda. O passado para ele surge entremeado por e refletido em muitos acontecimentos presentes, de modo que sua alusão e sua rememoração estão insistentemente presentes na escritura machadiana. Bom exemplo disso vem em crônica já tardia de 11/11/1894 que se abre com o seguinte pensamento: “A antiguidade cerca-me por todos os lados. E não me dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a coisas modernas, como que lhes troca a natureza” (ASSIS, 2008b, p. 1118). Depois dessa afirmação tocante, vem uma galhofa de alguém que parece querer desfazer o que disse, que a relativiza: Os bandidos da atual Grécia, por exemplo, têm melhor sabor que os clavinoteiros da Bahia. Quando a gente lê que alguns sujeitos foram estripados na Tessália ou Maratona, não sabe se lê um jornal ou Plutarco. Não sucede o mesmo com a comarca de Ilhéus. Os gatunos de Atenas levam o dinheiro e o relógio, mas em nome de Homero. Verdadeiramente não são furtos, são reminiscências clássicas.

O cronista, então, ao exemplificar seu pensamento anterior com a história dos bandidos gregos e que seus atos não são furtos, mas reminiscências clássicas, parece estar banalizando sua tocante impressão anterior. É a ironia machadiana querendo rir de si mesma e

com o leitor. Todavia, na sequência da crônica depois de lembrar de uma tradução da Eneida recém lançada na Inglaterra; depois de resenhar sumariamente os Cenários, livro de poemas de um jovem que para ele tem “um banho enorme de antiguidade”; depois de dizer que os Estados Unidos compraram uma coleção recém-descoberta de papiros gregos; depois de dizer que a França adquirira duas estátuas de Apolo encontradas em Delfos; o cronista se sente na obrigação de retomar o pensamento que abria a crônica e diz: “A antiguidade é boa, mas é preciso descansar um pouco e respirar ares modernos. Reconheci então que tudo hoje me anda impregnado do antigo, e que, por mais que busque o vivo e o moderno, o antigo é que me cai nas mãos.” (ASSIS, 2008b, p. 1119)

Ora, à beira dos sessenta anos Machado reconhece, como o jovem poeta de Crisálidas reconhecera, o verdor e o vigor da antiguidade no seu cotidiano. Depois dessas ideias, vale a pena eu retomar o texto de Jacyntho, que meu título imita e ao qual no início me referi. O meu colega helenista começa seu texto reportando uma declaração de Machado feita em carta de janeiro de 1908, ano de sua morte. Depois de referir-se a leituras matutinas do Prometeu de Ésquilo e do Phedon de Platão, Machado diz: “veja como ando grego, meu amigo”. Mas não foi só à hora da morte que esse sentimento da antiguidade visitara nosso autor. Em poética crônica de 07/01/1894, o cronista reporta um sonho em que se identificara com Virgílio, o grande épico latino. O verbo identificar aqui talvez seja pouco: o narrador no sonho encarna Virgílio. A crônica começa com o incômodo das cigarras que o não deixavam dormir. O narrador está na cama entre o sono e a realidade: Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo. (…) Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo, cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça, colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito o dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela Via Ápia, dobro a Rua do Ouvidor, e esbarro com Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um remanescente da Companhia Geral. Segue-se a vez de um passarinho que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela. (ASSIS, 2008b, p. 1036)

Interessante nessa crônica é a mistura entre Roma e Rio. “Subo a Via Ápia, dobro a Rua do Ouvidor” é um achado. O passado e o presente se misturam numa loucura mansa. Tal elucubração mostra bem que não só a Grécia fazia parte do cotidiano de Machado. A Roma Antiga estava presente com todos os seus signos mais destacados, Virgílio, Via Ápia,

Mecenas e Augusto. Essa mistura, essa prática “de meter sabor clássico e figuras antigas em figuras americanas” vai além do “gosto do tempo”, conforme o narrador de Dom Casmurro declara no segundo capítulo do mesmo romance na célebre descrição da Casa de Matacavalos reconstruída. Roma frequenta Machado, portanto, porque ele era e sempre foi um cultor/leitor de literatura romana. Mais do que as reminiscências deixam transparecer, a admiração que nosso escritor devota a Odorico Mendes, tradutor de Virgílio [e de Homero] (ASSIS, 2008b, p. 191 [26/09/1864]), Bocage (2008b, p.1037 [07/01/1894]) e Antônio Feliciano de Castilho (p. 1215 [04/07/1875]), tradutores de Ovídio, por José Feliciano de Castilho, tradutor de Lucano (2008b, p. 234 [29/11/1864]; p. 321[15/09/1876]; p. 1086 [15/06/1894]), para ficar só com alguns exemplos da poesia latina, é um índice de largo convívio com as fontes antigas que, embora lidas através de traduções, dão mostra de que Machado não se contentava com os cinco versos de Brás Cubas. A força de uma frase tal como “tudo hoje me anda impregnado do antigo” parece não provir de superficial verniz, mas de um escritor para o qual a Antiguidade servia de contraste constante na leitura de seu presente.

Referências Bibliográficas ASSIS, M. de. Bons dias! Introdução e notas de John Gledson. Campinas: Ed. Unicamp, 2008a. ASSIS, M. de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Ed. crítica a cargo da Comissão Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1960. ASSIS, M. de. Obra completa em quatro volumes. Organizada por A. Leite Neto, A. L. Cecilio e H. Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. Vol. 4 Crônica BRANDÃO, J. L. A Grécia de Machado de Assis. In: MENDES, E. A. M.; OLIVEIRA, P. M.; BENN-IBLEL, V. O novo milênio: interfaces lingüísticas e literárias. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001. FLEIUSS, H. Panteon da Semana Illustrada [1864]. IN: ASSIS, M. de. 100 anos de uma cartografia inacabada. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. p. 39 FLEIUSS, H. Litografia da Semana Illustrada [1864]. IN: GUIMARÃES, H.; SACCHETTA, V. Machado de Assis, fotógrafo do invisível. Rio de Janeiro: Moderna, 2008. p. 48 FILGUEIRAS, Caetano. O poeta e o livro: conversação preliminar. In: MACHADO, U. (org.) Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003.

MASSA, Jean-Michel. A biblioteca de Machado de Assis. In: JOBIM, José Luís. (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL/Topbooks, 2001. p.38-40. MACHADO, P. M. M. A Vrbs no Cosme Velho: análise da presença da Literatura Latina em Memórias Póstumas de Brás Cubas. 88 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus Araraquara, 2010. PLUTARQUE. Oeuvres de Plutarque. Trad. par D. Ricard. Paris: Brière, 1877. RAMOS, M. C. T. A paideia machadiana nas Memórias Póstumas: de Aquiles a Brás Cubas. Itinerários, Araraquara, n. 29, p. 271-85, jul./dez. 2009. SILVA, P. S. Dos antigos e dos modernos se enriquece o pecúlio comum: Machado de Assis e a literatura greco-latina. 143f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco. 2007.

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