A sabedoria de um povo Jê

July 15, 2017 | Autor: Vanessa Lea | Categoria: Social Anthropology
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A sabedoria de um povo jê Publicado por admin - Sunday, 12 August 2012

LANÇAMENTO É a história, os costumes e as dificuldades dos mẽbêngôkre que a antropóloga Vanessa R. Lea relata no livro Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis. Lançado pela Editora da USP, com o apoio da Fapesp, sua pesquisa destaca a essência e perenidade da sociabilidade desse povo “Enquanto tivermos nossos nomes não vamos acabar.” O depoimento de Kena, uma mulher mẽbêngôkre, em meados de 2011, referindo-se à obra da hidrelétrica Belo Monte prestes a se iniciar, é um dos relatos sensíveis que a pesquisadora Vanessa R. Léa registrou. Num trabalho de campo que começou em 1978, estendendo-se, em diversas viagens, até dezembro de 2009, Vanessa acompanhou o cotidiano e as dificuldades enfrentadas por esse povo jê do Brasil Central, que habita as margens do rio Xingu. Fez um levantamento da situação territorial, observou problemas sérios, como a indústria de indenizações (ou seja, os títulos de prancheta e das terras compradas ilegalmente em áreas indígenas para obter indenização do governo), e, ao mesmo tempo, se aprofundou nas riquezas de sua arte e cultura. “Iniciei a pesquisa de campo com o subgrupo mẽtykire dos mẽbêngôkre, na aldeia de Kretire, uns 20 quilômetros ao sul da estrada BR 080, no Estado de Mato Grosso”, lembra a antropóloga. “Passei pouco mais de 14 meses com os mẽbêngôkre antes de completar meu doutorado no Museu Nacional. Ao retornar ao campo, em 1987, os dois subgrupos mẽtykire haviam se juntado numa única aldeia. Nas viagens seguintes, em 1994 e 1995, houve uma nova cisão. Um grupo estava morando perto da cachoeira Von Martius e o outro havia se transferido para o cerrado.”

As histórias dos mẽbêngôkre agora ganham voz no livro Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis – Os Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil Central, que acaba de ser lançado pela Editora da USP (Edusp), com apoio da Fapesp. Importante lembrar que as pesquisas da autora continuam e serão tratadas em publicações posteriores. A maior parte da observação foi realizada no Parque Nacional do Xingu, de renome internacional pela proteção aos povos indígenas que residem dentro de suas fronteiras. “A administração do parque, pelos irmãos Villas-Boas, nas décadas de 1960 e 1970, foi caracterizada pela tentativa de manter os estilos de vida tradicionais de seus habitantes – e não efetuar uma assimilação rápida, tal como exigia a política oficial do governo durante a ditadura militar”, explica Vanessa. “Tentaram mantê-los fora da economia monetária e minimizar o acesso a bens industrializados. Um kalapalo do Alto Xingu me disse que os Villas-Boas evitavam a circulação de dinheiro entre os índios afirmando: ‘Vocês não devem usar dinheiro porque são índios. Caramujos são o dinheiro dos índios’. Durante a administração dos Villas-Boas, os índios que realizavam trabalhos administrativos nos postos da Funai recebiam presentes e não salários.”

Vanessa afirma que, desde a sua inauguração, o Parque do Xingu foi um palco para exibir índios exóticos, robustos e autênticos para uma plateia selecionada. “Dignatários nacionais e estrangeiros, tais como embaixadores e políticos, recebiam convites do governo, além daqueles que visitavam por iniciativa própria, como cineastas, fotógrafos, jornalistas e pesquisadores em linguística, antropologia e medicina. Do início da década de 1960 até o início da década de 1970, tais visitantes esporádicos constituíam a principal fonte de bens industrializados distribuídos aos índios como presentes.” No final da década de 1970, os Villas-Boas se retiram do Parque e se aposentam. Em 1977, segundo a antropóloga, a direção seguinte inicia um projeto para cultivar arroz nas roças comunitárias, na esperança de fornecer um meio de troca alternativo com os kubẽ (vocábulo dos mẽbêngôkre que Vanessa escolheu para definir os não índios ou os chamados brancos), especialmente com os grupos com maior dependência de bens industrializados. “Suas provisões eram creditadas em troca da borracha, que iriam produzir no decorrer da estação

seguinte. Assim, eram escravizados por suas dívidas a seus fornecedores, que traziam bens em barcos levando embora a borracha. Os índios eram analfabetos, portanto, sem acompanhar a contabilidade registrada pelos comerciantes.” Esse projeto fracassou, mas o consumo de arroz entre os índios aumentou. “Em 1978, foi iniciado outro projeto, a venda de artesanato via Funai, transportado de avião para suas lojas, principalmente em Brasília e São Paulo. Tais lojas, denominadas Artíndia, ainda existem, mas os índios, quase sempre, procuram alternativas comerciais em lojas de particulares, que pagam preços mais altos.” Vanessa faz um histórico sobre esse sistema de trocas de artesanato dos índios com os bens industrializados e as suas dificuldades para sobreviver. Explica que outra fonte de renda era a participação em filmes nacionais, estrangeiros e documentários para a televisão brasileira, britânica e japonesa. Narrativas – “As sociedades jê contemporâneas estão espalhadas pelo Brasil do sul do rio Amazonas, no Estado de Maranhão, a Santa Catarina e Rio Grande do Sul, incluindo os Estados do Pará, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Minas Gerais, São Paulo e Paraná”, explica Vanessa. “Os mẽbêngôkre pertencem à família linguística jê, que faz parte do tronco macro-jê, que vive exclusivamente no Brasil.” A antropóloga conta que os mẽbêngôkre habitam áreas de transição entre a floresta tropical e o cerrado do altiplano do Brasil Central. “Eles conservam narrativas orais a respeito de seus primeiros encontros com os kubê (ou não índios), mas é difícil datá-las.” A antropóloga desenvolveu uma pesquisa detalhada sobre a cultura e o cotidiano nas aldeias. Observou a forma como planejam sua aldeia. “As casas não têm janelas. A iluminação é fornecida pelos espaços entre os paus que formam as paredes. As pessoas tentam enxergar entre as frestas. Durante os jogos de futebol, que ocorrem todos os dias na praça, à tarde, as mulheres e as moças conseguem acompanhar discretamente as mostras de competição e de proezas masculinas do conforto de seu lar. Os homens jamais entram numa casa que não seja de sua mãe ou esposa, por medo de provocar fofocas sobre adultério.”

O que mais impressionava Vanessa era o convívio pacífico de até 25 pessoas sob o mesmo teto. “As camas das famílias de duas ou mais irmãs e de uma mãe e suas filhas podem

distanciar-se por apenas um metro. À noite, estendem seus mosquiteiros, fabricados industrialmente de pano fino de algodão, improvisando uma espécie de barreira. Em alguns casos, como uma inovação, os maridos de duas irmãs erigem uma divisa interna dentro da habitação, separando os dois agrupamentos familiares.” As diferenças entre homens e mulheres permeiam o cotidiano dos mẽbêngôkre. “Os meninos brincam caçando insetos e pequenos animais em volta da aldeia. As meninas são obrigadas a ajudar suas mães. Logo que conseguem andar com firmeza, começam a carregar seus irmãos mais novos, presos no quadril.” A antropóloga e professora da USP Lux Vidal observa, na orelha do livro, que a pesquisa longa e intensiva de Vanessa R. Lea, foi inspirada pela leitura de Lévi-Strauss sobre “sociedades de casas” e posteriormente pelos escritos de Masrilyn Stratern sobre a circulação de riquezas no Altiplano de Nova Guiné. Destaca o ineditismo ao apresentar uma lista exaustiva de termos de referência triádicos, recurso estratégico para manter e realçar redes de relações. “A obra procura ainda uma aproximação entre as pesquisas na Melanésia e na Amazônia, inclusive, hoje, na expansão de riquezas, na forma de consumo e salários, uma nova maneira de manifestar distinção. Em resumo, este livro é uma contribuição inestimável para os estudos jê e para os próprios sujeitos e protagonistas da pesquisa, que poderão se confrontar com esta interpretação de sua história e sociedade e sobre ela refletir.” Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis – Os Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil Central, de Vanessa R. Lea, Edusp/Fapesp, 496 páginas, R$ 80,00. Compartilhe:

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