A SAGA DO EGO EM \"QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA\", DE CAROLINA MARIA DE JESUS (Um estudo sobre gênero e racialização/Negritude)

May 27, 2017 | Autor: Patty Menezes | Categoria: Literatura brasileira, Estudios de Género, Negritude
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A SAGA DO EGO EM QUARTO DE DESPEJO: ´ DIARIO DE UMA FAVELADA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS Patr´ıcia Menezes

To cite this version: ´ Patr´ıcia Menezes. A SAGA DO EGO EM QUARTO DE DESPEJO: DIARIO DE UMA FAVELADA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS. Humanities and Social Sciences. 2016.

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Département d’Études Ibériques et Latino-Américaines (EILA) Master 2 - Études Lusophones

Patrícia SILVA MENEZES

A SAGA DO EGO EM QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS Um estudo sobre gênero e racialização/Negritude

Dissertação apresentada ao Departamento de Estudo Lusófonos da Universidade Sorbonne Paris 3. Sob a orientação de: Mme. Claudia PONCIONI

Paris, Setembro de 2016

Patrícia SILVA MENEZES

A SAGA DO EGO EM QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS Um estudo sobre gênero e racialização/Negritude

Paris, 2016

RESUMO

RÉSUMÉ

O estudo que é apresentado nas próximas linhas deste documento teve parte da sua problemática embrionada durante as leituras realizadas em algumas obras da autora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), notadamente do livro que foi sucesso editorial nos anos 1960, Quarto de despejo: diário de uma favelada, e que tornou-se objeto nosso de estudo. Aqui, o gênero literário autobiográfico, gênero do “Eu” por excelência, foi explorado a partir de abordagens conceituais e epistemológicas multidisciplinares em ciências humanas e sociais, envolvendo conceitos das Teoria da literatura, Linguística e Análise do Discurso (enunciação, organização discursiva sintático-semântica, marcas de subjetividade, recursos retóricos e estilísticos, comparatismo), das Ciências sociais (relações sociais de gênero e étnico-raciais, estigma e estereótipo), da Filosofia (conceitos base de fenomenologia como “cogito” e “consciência de si”, além das noções de “devenir” e de “revolta metafísica”) e da História(da Literatura), que nos auxiliaram na verificação da nossa hipótese de partida de que, ao contrário do que afirma a crítica, é possível encontrar pistas de problematização das questões conflituosas em que são inseridas as categorias sócio-humanas “feminino” e “Negro” através das marcas discursivas de um E(u)go enunciador que devient, que se revolta e que se afirma feminino e Negro, diante de uma realidade social machista e eurocêntrica.

L’étude présentée dans les prochaines lignes de ce document a pris naissance à partir des lectures réalisées depuis certaines oeuvres de l’auteure brésilienne Carolina Maria de Jesus (1914-1977), notamment son livre Le dépotoir qui fut un succès éditorial dans les années 1960 et qui est devenu pour nous notre objet d’étude. Ici le genre autobiographique, genre du “Je” par excellence a été analysé à partir des approches conceptuelles et épistémologiques multidisciplinaires en sciences humaines et sociales, comportant quelques notions de la Théorie de la littérature, de la Linguistique, ainsi que de l’Analyse du Discours (énonciation, organisation discoursive syntaxico-sémantique, marqueurs de subjectivité, moyens réthoriques et stylistiques, comparatisme), des Sciences sociales (rapports sociaux de genre et éthnico-raciaux, stigmate et stéréotype), de la Philosophie (les concepts de base de la phénoménologie comme cogito et “conscience de soi”, mais également ceux du “devenir” et de “révolte métaphysique”) et de l’Histoire (de la Littérature) qui nous ont aidées à conduire notre raison dans la soutenance de notre hypotèse de départ depuis laquelle, au contraire de ce qu’affirme la critique, il est possible de distinguer des indices d’une problematisations des questions conflituelles dans la quelles sont mises les catégories sócio-humaines “féminin” et “Noire” à travers les marques discoursives d’un Ego énonciateur qui devient, qui se revolte et que se positivise à soi-même en tant que “femme” et “Noire” devant une realité sociale dominée par le machisme et l’eurocentrisme.

Palavras-chave: Escrita autobiográfica, consciência de si, Ego, feminino, Negritude, devenir, revolta metafísica.

Mots-clés: Écrit autobiographique, conscience de soi, Ego, féminin, négritude, devenir, revolte metaphysique.

À Joan Eychenne, ma nature.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO …………………………………………………………………......…………………………………….…8 I/ LITERATURA BRASILEIRA: OS ECOS PERIFÉRICOS E AS CAROLINAS …...……………11 1.1 Carolina: A (bio) grafia de uma vida ………………………………………………………………..15 1.2 Literatura brasileira: os ecos das Carolinas ................................................……………………..24 1.3 Carolina de Jesus: Ego e devenir na escrita de si ………………………………………………29 II/ A REVOLTA NO QUARTO DE DESPEJO ……………………………………………………………….…..38 2.1 Estereótipo e estigma: dispositivos de interdição do Outro e as periferias ………….41 2.2 A Revolta metafísica e afirmação do Ego ……………………………………………………….....49 2.3 A estética da revolta: a fome como originalidade? ………………………………………….…56 III REVOLTA METAFÍSICA E SUBJETIVIDADE EM CAROLINA DE JESUS: DUAS PROPOSIÇÕES ………………………………………………………………………………………………………………...….62 3.1 Dispositivo 1: Racialização/Negritude …………………………………………………………..….62 3.2 Dispositivo 2: Gênero/feminino ……………………………………....……………………………..…72 CONSIDERAÇÕES FINAIS ………………………………………………………………………….……………….86 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ……………………………………………………………….……...89

ADVERTÊNCIA

Optamos, nesse estudo, por respeitar as ortografias ou a forma da escrita do “português carolininao” que em muitos momentos não se mostra de acordo com as regras do português normativo do Brasil. Assim sendo, as citações que foram selecionadas na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada e que versam no corpo dessa pesquisa, apresentarão, quando necessário for, o advérbio em latim sic (“assim”), para indicar que a citação é textualmente exata àquela contida no livro.

“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino.” (Valter Hugo Mãe)

INTRODUÇÃO

A intencionalidade foi um dos instrumentos da razão que nos conduziram a realizar este estudo. Intenção de desvelar, de interpretar, de desarticular parte da matéria opulenta e complexa que forma a obra de arte em questão, o objeto central que é Quarto de despejo: diário de uma favelada, da autora brasileira Carolina Maria de Jesus. Do mesmo modo, este estudo é formado de matérias diversamente constituídas e em evolução, de matérias multidisciplinares como é o caso da Teoria Literária e da Linguística, da Filosofia (com os conceitos de base da fenomenologia de E. Husserl e de “revolta metafísica” de Albert Camus, mas igualmente o labiríntico conceito de devenir1 desenvolvido por Gilles Deleuze & Felix Guattari), e as Ciências sociais (as relações sociais de gênero e racialização, estigma e estereótipo). Foi através da aliança destas múltiplas epistemologias que tentamos dar contar de responder nossa hipótese de base: como as instâncias do “cogito” ou da “consciência de si”, aliado ao movimento da “revolta metafísica”, marcam o discurso e a subjetividade caroliniana? E como (e se) essa sujeito reflete as relações sociais de gênero e de racialização 2 no seu cotidiano e como isso aparece em sua obra? Em suma, foi nos estados discursivos (estados de língua/linguagem, que “está no centro de toda atividade humana” (SEVCENKO, 1999:19); estados de mente; estados de sujeito social) que tentamos nos ancorar e que conduziram nosso entendimento no sentido, não de sondar a existência de um discurso militante ou ativista, mas de buscar saber através de quais mecanismos discursivos de Quarto de despejo: diário de uma favelada, essa “máquina” do Ego, “máquina” de rebelião, pode ser acoplada à máquina da dissidência. Nossa intenção não foi, portanto, a de fixar o discurso caroliniano no interior de categorizações estanques ou de afirmar de maneira negligente “esta autora não se manifestou em favor das mulheres, nem dos Negros”, o contrário. O que pudemos observar, ao longo da construção desse estudo e na visita ao discurso de parte da crítica à obra de Carolina de Jesus, é que as militâncias fixas, enregeladas, os 1 2

“Devir” [Tradução nossa] Racisation ou Racialisation, para citar os termos em francês, língua a partir da qual foram forjados, inicialmente, os termos, remetem a um dos primeiros estágios do racismo, que é a alocação do Outro dentro de uma categorização racial qualquer, com intenções perjorativas, desqualificatórias. Termos surgidos nos anos 1980 nos trabalhos do sociólogo Pierre-André Taguieff, notadamente em La force du préjugé, “les termes de racialisation ou de racisation renvoient, en sociologie, au processus psychologique, social, historique, politique de construction des catégories ou groupes, mais cette fois, il est question de « race ». L’usage de ce terme, dans ce type d’approche, fait d’ailleurs problème. Mais, en tout état de cause, ce vocable ne désigne plus des groupes de nature biologique qui disposeraient d’une réalité matérielle et détermineraient le comportement culturel de leurs membres comme dans les typologies de races des théories racialistes. La « race », dont il est question dans les analyses en termes de racialisation ou de racisation, n’a pas le statut de catégorie objective, mais fait référence à une idée construite, qui n’a pas de réalité dans l’ordre biologique, mais en garde une dans l’ordre social, en ce sens qu’elle fait partie de l’expérience de la vie de nombreuses personnes. [...]”. Contudo, para nós uma das características mais particulares desse tipo de visão, é que enfim, coloca-se acento sobre o produtor do discurso racista e não mais sobre aquele que o sofre. Desse modo, ser Negro, referência identitária que a princípio revela apenas o dado de uma identidade em primeiro grau - “données empiriques” - (BERND, 1995:18), não é um fato ou uma diferença fenotípica que deveria significar um fator de desqualificação, e não o é, mas constitui-se como o lugar a partir do qual certo tipo de sujeito é colocado em comparação a outros.

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ativismos que se movem sobre trilhos alcançando sempre a mesma direção, perdem a ocasião de ter uma visão que alcance os sentidos para além daquelas paragens do que é estritamente político, “promulgando palavras de ordem mais do que critérios de valor” (BARTHES, 2007:157), aportando, desse modo, certos prejuízos aos objetivos e as possibilidades de abertura de uma crítica literária de conteúdo mais sólido, entrelaçando aos objetivos e movimentos de transformações sócio-políticos e artísticos em voga na contemporaneidade. Assim, entendemos que para tratar de certos temas, como são os casos do feminino e do problema da racialização/preconceito racial no Brasil, é fundamental termos em mente algumas noções e conhecimentos relacionados aos movimentos sociais e às militâncias culturais contestatórias em voga nesse contexto, que pensam e que trazem à luz as culturas ditas populares. Sem tais fundamentos, corremos o risco de produzir, como consequência, percepções encrustadas de mal fundamentações ou superficialidades. É sempre possível encontrar um equilíbrio? Da nossa parte, o que fizemos foi tentar tirar proveito das “fissuras abertas pela palavra” de Carolina Maria de Jesus para esquadrinhar os sentidos, propondo outras interpretações para o dito (anteparo do não-dito) que gostamos de entender enquanto “rizoma” (deleuziano/guattariano) que, diferindo-se das raízes e radículas, não se mantém fixo, mas horizontaliza-se sobre as proposições possíveis. “Le rhizome en lui-même a des formes très diverses”3, e é dessas matérias diversas que alimentamos a escrita desse estudo. Para oferecermos uma visão geral do texto, tentamos organizá-lo de manira a fazê-lo “passar” através de um funil ou enquadrar-se em um modelo piramidal de base invertida, atravessando questões mais gerias até desembocar na questão mais central das nossas discussões. A saga do Ego começa já no Capítulo I, no qual abordamos questões mais gerias sobre a Literatura Brasileira, suas origens constitutivas, seu caráter canônico e as periferias reservadas a autores e autoras pertencentes a certos grupos/gêneros sociais, como é o caso de Carolina Maria de Jesus – mulher racializada/Negra, semianalfabeta, habitante de uma favela -, além de uma exposição sobre a vida e as condições de produção da escrita de Quarto de Despejo: diário de uma favelada e de como esses ecos periféricos se fizeram escutar através do corpo, antes sem audição, da Literatura do Brasil. É na última parte deste mesmo capítulo que adentramos no universo do Ego carolininano e atravessamos os continentes sísmicos dos conceitos de devenir e a passagens caroliniana pelos processos meta-transacionais de devenir-femme, devenir-escritora, devenir-Negra. O Capítulo II é, então, dedicado às observações sobre o movimento da “revolta metafísica” através da análise do discurso num trabalho de interdiálogos com a teoria e o texto autobiográfico, no intuito de entender como a existência de dispositivos de (auto)anulação de subjetividades, tais como 3

“O rizoma em si, tem diversas formas” [Tradução nossa].

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estigmatização e a estereotipia podem ter um papel devastador na existência de certos sujeitos, e como essas questões podem ser depreendidas através da escrita de si, nos textos de Carolina de Jesus. Neste momento das nossas análises temos a confluência entre os conceitos de consciência de si, Ego e os mecanismos de exclusão e/ou de opressão que conduzem à “revolta metafísica”, e então pudemos notar a importância dessas inter-relações para a afirmação do Ego. Para além destas coisas, deparamo-nos com a constatação de que esta estética da miséria, da fome ou “estética da revolta”, como preferimos entender e nomear, realiza uma interessante intertextualidade com outros movimentos artísticos e com os discurso de outro(a)s artistas brasileiro(a)s. Enfim, chegamos à análise dos nossos argumentos centrais que dão forma ao Capítulo III e que representa a parte, para nós, de mais refinamento em relação à análise do discurso carolinino, suas referências às problemáticas envolvendo as relações sociais de gênero e de racialização. Para tal, empregamos os resultados obtidos na construção dos capítulos anteriores para entender como os dois dispositivos de exclusão do Outro (nas sociedades e nas artes), por nós selecionados, atravessam a escrita e aparecem na subjetividade de Carolina de Jesus. Assim, visto que “todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo” (SEVCENKO, 1999: 20), formos explorar nas malhas textuais de Quarto de despejo, os caminhos que nos conduziram a essa saga do Ego.

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I/ LITERATURA BRASILEIRA: OS ECOS PERIFÉRICOS E AS CAROLINAS

Pensar num conjunto humano qualquer, que seja baseado em desigualdades, significa, para além das considerações acerca das posições de classe econômica, cogitar sobre as constituições – sejam elas físicas, psicológicas, sociológicas, étnicas, etc - e a participação social dos sujeitos emergidos desses contextos. A partir destas disposições, múltiplas questões podem ser colocadas, como por exemplo: se são as relações sociais desiguais, serão desiguais também os objetos culturais e artísticos produzidos no interior dessas sociedades? Como poderá um indivíduo que não está, não se sente, ou não se vê repre sentado - ou toma consciência de uma representação de si que está em desacordo com seus sentimentos, sua realidade e suas vivências no mundo - como pode este sujeito sentir-se parte integrante e integradora de um dado sistema cultural? Haverá então, o acontecimento do choque, uma colisão, em qualquer medida violenta, diante da constatação de que alguma coisa está incompleta ou defraudada, seja ele, o sujeito, seja sua cultura? Centro e Periferia. Para além do sentido circunscrito que conduz à ideia de simetria, na qual a posição central corresponde categoricamente ao meio, está inserido o conceito mais amplo desse duo. Existe uma necessidade relevante de compreensão quando se propõe a dialética dessas duas terminologias, uma vez que elas deixam de significar apenas uma relação geométrica de distanciamento espacial - ou seja, o que está localizado no ponto considerado como sendo o centro de determinada figura ou o que está afastado dele, a periferia - e engendra um vasto conjunto de relações que amparam suas existências no desigual, que baseiam suas estruturações por meio do que é assimétrico. Autoridade e subordinação. Outras duas noções que se coadunam àquelas de “Centro” e “Periferia”, para problematizarem-se de modo mutuo. Até aqui, perece-nos que as oposições constituem o mundo. Tomemos então, como exemplo, o tema economia Mundo; o que se verifica, concernente à dinâmica de funcionamento desse sistema compartimentado pelo modelo Centro/Periferia, é um movimento caracterizado pela autorregulação: aqueles países ocupantes das posições periféricas estão sujeitados às decisões dos países centralizado(re)s economicamente e é através de trocas desiguais que a posição de Centro é mantida. Assim, é importante perceber e apropriar-se de tais noções de modo a reconhecer no interior da relação dominante/dominado, na qual a desigualdade rege os preceitos de um

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sistema formado por “classes socio-spaciales”4, qualquer coisa de aniquilador para o polo do “dominado”. Mas deixemos de lado o exemplo Mundo e avancemos em direção a uma cor mais local. Para seguirmos um breve exemplo que possa nos conduzir à compreensão das diferenciações geográficas e sociais, citemos o caráter bipolar, as oposições de uma porção da geografia brasileira. Assim, atravessar a populosa e plural cidade de Salvador, no estado da Bahia, pode ser uma aventura socioantropológica espantosa e única. Cidade indecisa é Salvador, como o são tantas outras cidades do Brasil. Um aglomerado confuso e hesitante de beleza, de riqueza, de visibilidade, acompanhados por seus extremos inseparáveis, o feiume, a pobreza, a invisibilidade, como o destacam as crônicas de Jorge Amado5, mas também como o podem confirmar os testemunhos do povo que habita as periferias ou os centos dessa cidade. Entre debruçar-se no gradil do andar intermediário do MAM6, para admirar o espetáculo de luz e sombra promovido pela reverberação dos raios de sol sobre as águas da baia, e caminhar sem destino certo por entre becos e ruelas do bairro popular de Pau da Lima 7, entre aqui e lá, haverá talvez a estupefação, a constatação do absurdo, de que a razão está ao revés, de “que este mundo está errado e que é preciso refazê-lo para melhor” (AMADO, 1945). Aqui, a beleza incrustada como diamante nos rochedos a beira mar, banhada por ondas calmas, é restrita a uns poucos. Desde um dos luxuosos apartamentos da Avenida Contorno8 pode-se contemplar a vastidão da baia que banha essa porção da cidade. Lá, ver-se-á a simplicidade das casas e casebres mal acabados, um vasto comércio de proximidade, o calor da gente, e a vida que avança frenética dentro dos ônibus superlotados e perfumados pelo odor gourmand das marmitas cuidadosamente preparadas para o meio-dia. Aqui, é Centro. Lá, periferia. No entanto, o mais importante dentro desses dois contextos paradoxais, deve ser o elemento humano. Afinal, o que seria da beleza absoluta do Mundo, sem o olhar contemplativo do ser humano, sem sua presença (in)consciente e transformadora? Certamente o Mundo não atravessaria os limites fronteiriços entre o “ser (re)significação” e o “estar”, e estaria, apenas, contido na sua existência cósmica e universal. Assim sendo, dos pontos de vista humano e étnico, o bloco soteropolitano 9 tem sua 4

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“Classes socioespaciais” [Tradução nossa]. Para um conhecimento teórico mais aprofundado sobre as desigualdades socioespaciais e como o tratamento das relações hierárquicas entre Centro e Periferia exigem a criação e o emprego de dispositivos específicos de justiça social, que podem ajudar na atenuação das desigualdades, consultar Alain Reynaud em sua obra Société, Espace et Justice. Paris : PUF, 1981. AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios (1945). Edição eletônica, disponível em:http://minhateca.com.br/vanilsonmartins/Livros+II/Jorge+Amado/Bahia+de+todos+os+Santos,120596780.pdf. Acessado em 15/12/2014. Museu de Arte Moderna da Bahia, instalado no Solar do Unhão, uma construção arquitetônica que data do século XVII. Barro popular, situado na região do Miolo Central da cidade de Salvador. Avenida Lafaiete Coutinho, mais conhecida como Av. Contorno, situada no centro da cidade de Salvador. A cidade de Salvador pode ser tomada como recorte exemplar, um protótipo do que representa o Brasil em termos étnico-culturais, longe, no entanto, de ser considerada como um exemplo integral e uno da multiplicidade que existente no país, o que seria

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densidade baseada na presença de uma população majoritariamente racializada: Negra e Mestiça, e é essa maioria do contingente populacional que ocupa os espaços periféricos da capital baiana, confirmando o caráter antagônico entre as classes - do ponto de vista econômico - e a relação disso com a questão racial e de cultura. Quem diz periférico diz subordinado, marginalizado? Se concordamos que “la littérature vient droit de la realité” 10 (ECO, 2013), encontramos o que nos convém para tomarmos, a partir daqui, a Literatura brasileira como artefato imediato, como nosso objeto cultural de interesse e que nos servirá de cabedal analítico. Veremos que as noções de “Centro/Periferia” podem se desdobrar em cascatas, derramando-se no interior de vários outros conceitos taxonômicos, como os de gênero/sexualidade e raça/etinia, conceitos dos quais nos ocuparemos igualmente. O conceito de “Periferia” é considerado, como já vimos, como ocupando uma posição hierárquica de inferioridade em relação ao “Centro”, e é importante perceber que esse termo pode servir de membrana encapsuladora para diversas condições humanas produtos de apartamento: o marginalizado(a) e o clandestinizado(a), são algumas dessas condições. Pensar em tais condições nos permitirá então, ir em direção aos “confinados” nas margens, no real e no ficcional brasileiros, como veremos ao longo do desenvolvimento deste nosso estudo. Mas como escapar do claustro do “ser clandestinizado”? Haverá maneira de recuperar elementos rejeitados – sejam eles culturais ou humanos – para a (re)constituição de um corpo social, enfim, mais ou menos completo, e com órgãos funcionando sob a influência recíproca das participações? A Literatura, bem como outras expressões artísticas do Brasil e no Mundo, se desenvolveu no interior da “sala de estar”, lugar reservado aos patrões, senhores, sinhás, mas sobretudo aos homens (Brancos). Em visita a esta sala-corpus, passando em revista as estantes, escrivaninhas, as capas, as orelhas e os conteúdos dos seus livros, (quase) tudo versa sobre a experiência delas e deles mesmos, livros-deuses, nos quais a representação do mundo ocorre a suas imagens e semelhanças. A elite letrada brasileira, de cultura embrionada e desenvolvida in vitro, a partir da matéria europeia, e descansando confortavelmente durante mais de quatrocentos anos no berço da exploração humana de índios e africanos, pretende construir e apresentar através da Literatura, os supostos caráter e identidade brasileira, sonhavam em representar algo uno, uniforme, sobretudo a partir do Romantismo e seus brios por um nacionalismo desejado. O que conseguirão eles e elas? É no período pós-independência que as elites brasileiras, os homens de letras, começam a pensar um projeto de cunho cultural, político e mesmo ideológico, que pretendia estabelecer as premissas de uma autonomia em relação às influências extremamente redutor, visto que, dentro do território brasileiro, é possível encontrar outros diversos fenótipos oriundos da hibridização das três principais matrizes étnicas que se combinaram para dar forma aos rotos das gentes do Brasil, ou dos “Brasis”, como o destaca o antropólogo Darcy Ribeiro no elucidativo O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995). 10 “a literatura vem direto da realidade” [Tradução nossa]

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do Portugal com os primeiros romances de temática nacional e/ou regional, e que tem na trilogia indianista do escritor José de Alencar (1829-1877) - O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) - suas primeiras expressões. De acordo com Bernd (1995), de Alencar à Euclides da Cunha, a produção literária do Brasil conseguiu, com a tentativa de fundar um caráter nacional através da Literatura, inventar um Índio cavalheiresco e riscar - quase que completamente - dessas páginas, as identidades Afro e Afrodescendente. Apenas para ilustrarmos a dinâmica do pensamento das elites e das autoridades no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, o testemunho do antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss é revelador da tentativa de apagamento das outras identidades no país. Ele relata, durante sua participação em uma missão transcorrida no Brasil, em passagem pela Bahia: “Je suis tout occupé à photographier des details d’architecture, poursuivi de place en place par une bande de négrillons à démi nus qui me supplient : tira o retrato, tira o retrato! “Fais-nous une photo”. A la fin […] j’accepte d’exposer un cliché pour contenter les enfants. Je n’ai pas marché cent mètres qu’une main s’abat sur mon épaule: deux inspecteur en civil, qui m’ont suivi pas à pas depuis le début de ma promenade, m’informent que je veins de me livrer à un acte hostile au Brésil : cette photo, utilisée en Europe, pouvant sans doute acrediter la légende qu’il y a des Brésiliens à peau noire et que les gamins de Bahia vont nu-pieds.” 11 (1955:26)

Grande detração seria, para os donos do Brasil – periferia -, que a Europa – centro - tomasse conhecimento da existência de pessoas Negras nesta porção dos trópicos. Antes vendermos o exotismo com o mito do indígena, o “bom selvagem”. Era preciso a todo custo invisibilizar esse aspecto da identidade brasileira, a negação do Outro, constituindo-se enquanto uma espécie de grave doença moral desencadeada pelo racismo, pelo preconceito, pelo sexismo. Após estes breves apontamento acerca das representações identitárias forjadas em literatura, passemos à leitura das linhas de uma realidade particular desse Brasil quase desconhecido, aquele das periferias e das margens, através da literatura e do discurso de um sujeito empurrado para vias periféricas pelo racismo e pelo sexismo.

11 “Eu completamente ocupado em fotografar detalhes da arquitetura, seguido de um lado a outro por um bando de negrinhos seminus que me imploram: tira o retrato, tora o retrato! “Fais-nous une photo”. No fim […] eu aceito tirar uma chapa para satisfazer as crianças. Eu não ando nem cem metros e uma mão se abate sobre meu ombro: dois agentes da polícia civil, que me seguiram de perto desde o começo do meu passeio, me informam que eu acabo de realizar um ato hostil no Brasil: essa fotografia, utilizada na Europa, podia, sem dúvida, confirmar a lenda de que exitem Brasileiros de pele preta e que os garotos da Bahia anda de pés descalços” [Tradução nossa].

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1.1 Carolina: A (bio)grafia de uma vida Carolina Maria de Jesus (1914-1977), este é o nome, o gênero, a identidade sobre a qual basearemos este estudo. Identidade-mosaico, em pequenas peças, formada de mecanismos, por retalhos ou cacos, máquina de viver no mundo ou de sofrer. Sacramento, é a cidade do interior do Estado de Minas Gerais que testemunha o nascimento, no dia 14 de março de 1914, da autora brasileira que ainda na infância tentava visualizar o mundo para além daqueles limites que lhes diziam ser permitido de ver e de alcançar, como Preá 12, mas que, ao contrário deste miserável apaixonado, escalou o cume do seu próprio Ego para, de lá, perceber com seus sentidos, o quão vasto era o mundo. Seguindo-se os caminhos que marcam a travessia de Carolina de Jesus, saída da interiorana Sacramento até sua chegada à capital paulista, em 1937, à época com 23 anos de idade, diversos são os lugares de passagem e as dificuldades vivenciadas até sua instalação no espaço favela Canindé, às margens do rio Tietê, margens da vida em sociedade, mas, ao que parece, não às margem de si mesma. Das origens familiares pode-se ouvir o próprio eco caroliniano através de algumas das mais de cinco mil páginas de manuscritos. Todos os sons reverberam do Quarto de despejo (1960), do Diário de Bitita (1982), da Casa de Alvenaria (1961), ou ainda dos importantes e ricos trabalhos13 que se constituírem em torno da vida da autora, além de dissertações e teses 14 igualmente ricas que a partir dos anos 2000 surgiram dentro dos universos acadêmicos brasileiro, quando Quarto de despejo foi selecionado pela Comissão Permanente do Vestibular (Copeve) como livro integrante das leituras para os vestibulares da Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Brasília, conjuntamente com a obra Shenipabu Miyui: História dos Antigos (edição bilíngue (Kaxinawá-Português), sobre os mitos da nação indígena Kaxinawá, além de obras como Primeiras Histórias, de João Guimarães Rosa, Macunaíma, de Mario de Andrade, entre outros autores. Lugares de passagem físicos – “Franca, Uberaba, Ribeirão Preto, Jardinópolis, Sales Oliveira, Orlândia” – e/ou mentais – “uma casa decente”, “de tijolo”, “confortável” – dão sentido à trajetória e formam esta geografia de multíplice dimensão dos caminhos percorridos por Carolina de Jesus. A 12 Personagem do conto “Vasto Mundo”, de Maria Valéria Rezende. In__ STRAUSZ, Rosa Amanda. 13 melhores contos de amor da literatura brasileira. Ediouro, 2002. 13 Para conhecer mais a respeito da biografia de Carolina de Jesus, aconselhamos uma visita à obra Muito bem, Carolina!: Biografia de Carolina Maria de Jesus (2007), realizada pelas pesquisadoras Eliana de Moura Castro e Marília Novais da Mata Machado ou ainda Ciderela negra: a saga de Carolina de Jesus (1994), dos pesquisadores José Carlos Sebe Bom Meihy et Robert Levine. 14 Carolina Maria de Jesus: o estranho diário de uma escritora vira-lata, de Germana Henriques Pereira de Souza, tese de doutorado apresentado à Universidade de Brasília, 2004. Ou ainda Os Caminhos literários de Carolina Maria de Jesus: experiência marginal e construção estética, de Fernanda Rodrigues de Miranda, dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 2013. Gostaríamos de citar aqui, igualmente, a pesquisadora e doutora Maria Madalena Magnabosco que, gentilmente nos cedeu uma cópia da sua tese de doutorado Reconstruindo imaginários femininos através dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus, apresentada ao departamento ao Curso de Pós-Graduação em Literatura Comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002.

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capital paulista sendo a porção que impera em Quanto de despejo, é o espaço no qual deteremos nossa atenção e olhar analítico no sentido pontuar questões sobre a permanência e as vivências da autora dentro desse espaço, sendo-nos, talvez, impossível de não vagar pelos outros cosmos produzidos por De Jesus, inclusive aqueles de geografias mais oníricas que a ajudam a distanciar-se da realidade que a circunda: “Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despenei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê.” (sic) (JESUS, 2014: 39) “Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso” (sic) (ibid., p. 120)

Filha de mãe solteira, nascida no seio de uma família relativamente numerosa, De Jesus teve que assumir como herança sucessória uma vida de pobreza e miséria transmitida por uma estirpe de homens e mulheres Negro(a)s quase acabados de sair do contexto da escravidão (ela nascera apenas 26 (vinte e seis) anos após o fim desta). Sua base educacional era somente os dois anos primários que realizou numa instituição de tendência espírita na cidade de Sacramento e, já adulta, Carolina de Jesus, em 1937, após a morte de sua mãe, Maria Carolina - ou Cota, como era conhecida - antes companheira de travessias, seguiu sozinha sua empreitada até chegar à cidade de São Paulo onde desempenhou algumas atividades profissionais, “que iam desde empregada doméstica até artista de circo” (BOM MEIHY, 1998:85). Recusando-se, contudo, a permanecer sob o jugo e a opressão dos patrões, decidiu por bem e direito, conduzir sua vida independente, e deliberou pelo trabalho nas ruas, pela “liberdade” de recolher dos lixos e lixões o que se podia (re)aproveitar para a venda ou consumo pessoal. Assim, tendo deixado para trás a subjugação da casa dos patrões, Carolina de Jesus, então grávida do seu primeiro filho, João José de Jesus, em 1948 (tendo mais tarde outros dois filhos, João Carlos de Jesus em 1950 e Vera Eunice de Jesus, em 1953) foi obrigada a mudar-se para a recém-criada favela do Canindé, onde viveu, talvez, a fase mais dura da sua existência. Colocar-se no lugar do outro muitas vezes pode ser uma empresa difícil, quase impossível. Imaginar o que é uma favela? Como é a vida na favela? Ousamos propor ao leitor(a) deste estudo, e a 16

nós mesmas, o desafio de tentar romper a barreira espaço-temporal que nos separa da favela do Canindé, moradia de Carolina de Jesus e de outras tantas famílias pobres e/ou migrantes do Brasil, para tentarmos ultrapassar os limites que nos impõe nosso conhecimento e/ou nossa cultura sobre os espaços de pobreza do país. A imagem a seguir deve funcionar para nós como uma espécie de portal ou de passagem secreta como aquela do armário que conduz ao mundo paralelo nas Crônicas de Narnia 15, locus fantástico, salvo que aqui não se trata de um mundo imaginário:

Imagem 2: Favela do Canindé, atual Marginal Tietê, São Paulo, 1961.

15 Romance em sete tomos, do escritor irlandês Clives Staples Lewis.

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Quais são as primeiras impressões a partir do mergulho através da imagem anterior? E sensorialmente falando, quais os estímulos, as sensações despertadas por esta visão quase desértica? Desolação? Caos? Cenas de um período Pós-Guerra? É como se uma campanha de bombardeios tivesse sido realizada neste lugar. No plano geral da composição apenas montes de terra revirada, entulhos, alguns civis que vagam o resto de vida em meio aos destroços. Esta é a favela do Canindé de fins dos anos 1950, local onde foi erigida umas das obras mais importantes da Literatura brasileira. Esse é o Quarto de despejo tão bem descrito e desvelado por Carolina Maria de Jesus. O “Quarto de Despejo mais imundo que há no mundo” (JESUS, 2014: 138), o império da fome e locus de criação. As descrições textuais corroboram para que sintamos com mais exatidão o ambiente representado na fotografia, pois, segundo a autora, “o unico perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga” (Jesus, 2014:47). Nesse Quarto, o universo profissional de Carolina de Jesus se desenvolve a partir da reciclagem de materiais que encontra pelos caminhos, através da cidade de São Paulo. “Sai, e fui catar papel”, catar papel, catar pepel...É assim, a repetição é quase infernal, como se durante a leitura estivéssemos caindo em um abismo sem fim. E a fatiga aparece em confissões ao longo de muitas passagens do diário, nas quais De Jesus exprime o cansaço e o peso da via crucis do corpo e da alma: “Que suplício catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços” (JESUS, 2014: 22). A mulher reluta, diz que não, tenta de todos os modos conseguir um pouco de comida para ela e mais três crianças, mas em um momento ou outro, quando a fome se faz presença incômoda, dolorida, ela apela para os restos e, além de papéis e ferros, apanha sobras de alimentos ou aquilo que foi descartado por supermercados e/ou fábricas. Isso é a garantia de mais um dia de vida. Essa vida no Canindé parece ser regida por suas próprias regras e leis. O habitat de homens e mulheres que, renegados pelo conjunto das instituições do Estado, tentam sobreviver marchando sobre a podridão que lhes é reservada. Quando a organização social falha, ou ainda, quando os “responsáveis” por esta organização deliberam por não assistir esta ou aquela parcela do corpo social, ou persegui-las com teorias raciais (como está brevemente expresso no capítulo II deste estudo), certos órgão desse corpo entram em colapso, e o corpo-sociedade adoece. Uns marcham pelo caminho do crime e/ou da prostituição - “...Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o emporio do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado com uma bala” (sic); “...Tem barracões de meretrizes que praticam suas cenas amorosas na presença das crianças”- outros

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ainda, decidem pelo zelo de alguns princípios morais e éticos que pensam ser importantes para a vida individual e em conjunto, como é o caso de uma vizinha, a D. Mariana - “Uma mulher agradavel e decente. Tem 9 filhos e um lar modelo. Ela e o esposo tratam-se com iducação. Visam apenas viver em paz. E criar filhos.” (sic) - e da própria autora - Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater.” (sic) (Jesus, 2014: 16, 22, 45). Assim, o morador(a) da favela, personagem social quase místicos, infundindo medo e abominado pelo não-favelado, habitando o mundo de lodo das margens dos rios-sociedade, tem sua vivência esquadrinhada e apresentada em forma de escrita por um dos seus membros. Da tragédia social, que é sua tragédia, Carolina de Jesus alimenta sua escrita, tece os entremeios da sua revolta e escreve quase tudo para continuar vivendo ou para existir enquanto ser, e porque sabe que viver em meio ao “corvos” – imagem que De Jesus escolhe como substituto para “urubus”, aves de rapina que compartilha a podridão com os homens e mulheres na favela, nos lixões – não é normal, não há justiça em morrer-se de fome num país tão cheio de riquezas. E ela revela: “Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho […] Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No Lixão. Como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me: - Leva, Carolina. Dá para comer. Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros ruídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, sai pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz fertil igual ao meu […] No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram [...] Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguem procurou saber seu nome. Marginal não tem nome” (sic) (Jesus, 2014: 39-40)

Após olharmos através do portal pictórico - e textual - que nos conduziu até o ambiente da favela do Canindé, precisamos revelar que, com efeito, na imagem anterior, o que parece ser um plano de conjuntos (ou geral), representa, no entanto, a metade de uma imagem que, sem perder a carga de significação que a pouco comentamos, restituiremos sua totalidade para, a partir disto, estabelecermos como se deu a gênese de Carolina Maria de Jesus como autora de literatura dentro do mundo editorial brasileiro e mundial. Eis a completude da imagem:

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Imagem 3: Carolina Maria de Jesus e Audálio Dantas, favela do Canindé, São Paulo, 1961. Foto: Acervo Ruth de Souza.

Restituição feita, o mundo dantesco ou, para dizer melhor, favelesco, continua em plano de fundo causando assombro à vida dos favelados e à imaginação dos não-favelados. Na foto, os sorrisos das duas figuras que caminham em primeiro plano, à esquerda, no entrelaçamento de um abraço amigável, deixou marcado nos arquivos da história o encontro entre Carolina Maria de Jesus e Audálio Dantas, então jornalista da Folha da Noite. As vidas se cruzaram como rotas traçadas no ano de 1958 quando Dantas esteve na favela do Canindé encarregado de realizar uma reportagem sobre um parque infantil recém-inaugurado na favela, e ouviu as reclamações de Carolina de Jesus ao ver homens brincando com os jogos das crianças, dizendo que ia escrever tudo no seu livro. “Que livro”? Perguntaria Dantas. Então, conduzido por Carolina de Jesus até seu barraco, ela mostrou-lhe os diversos cadernos contendo os registros diários da (sobre)vida na favela. Em prefácio à 10ª edição de Quarto de despejo, Dantas revela que “a história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte

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cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”. Dois anos depois do encontro, em agosto de 1960, foi publicado a primeira edição do livro que levaria em seu frontispício a ideia referente à analogia que De Jesus faz da favela na cidade de São Paulo. Quarto de despejo: diário de uma favela saiu com uma tiragem inicial de 30 (trinta) mil exemplares, pela Livraria Francisco Alves e alcançou um impressionante sucesso, sendo, pouco tempo depois, traduzido para 14 (catorze) idiomas, incluindo inglês (Child of the Dark), francês (Le dépotoir), espanhol (La Favela: Casa de Desahogo), alemão (Tagebuch der Armut), japonês (Karorina no nikki), entre outros idiomas. Contudo, a presença do conjunto da obra de Carolina Maria de Jesus como incorporação da Literatura do Brasil causa ainda hoje certo embaraço e incômodo junto a uma crítica que insiste em ligar o sucesso da autora apenas ao momento histórico - a segunda metade dos anos 1950 como sendo um “ano especial”, com o destaque do “elenco dos novos tipos sociais do Brasil préditadura” (BOM MEIHY, 2002: 24-25) - e ao trabalho de Audálio Dantas com relação ao marketing e a edição dos manuscritos - que entendemos, evidentemente, como um trabalho de grande importância para um melhor alcance publicitário que se pretendia, tanto da parte da autora quanto da dos seus editores – encarando-a apenas como “personagem talhado para o investimento”, dizendo-se igualmente que “ não há mais como negar a invenção de Carolina Maria de Jesus como fruto mercadológico” (ibdi.,p. 24). O que se faz necessário, sem dúvidas, é abandonar as malhas da história pure et dure16 e associar as discussões às tecituras discursivas do texto caroliniano, num atitude que transcenda o puramente histórico. Não devemos desconsiderar o fato de que De Jesus alimentava a ideia – para alguns quase delírio quimérico - de um projeto literário, havendo confirmação disto no interior da sua escrita, como o veremos. Ainda uma vez, no momento do encontro com Dantas, Carolina de Jesus tentou (e conseguiu) levar sua escrita a público, coisa que, em oportunidades anteriores, nunca tinha ocorrido. Todo o descrédito e a falta de reconhecimento eram, certamente, advindos do fato de a escrita ser a ação de um sujeito implantado deliberadamente no interior de categorias de estigmatização. Ela, uma mulher, moradora de uma favela, semianalfabeta, Negra, mãe solteira, que reconhecia em si mesma valores que eram capazes de inseri-la num meio altamente elitizado, Branco e masculino, (como é o caso do meio letrado de então), ou ainda, esses mesmos valores podiam agir sobre sua vida como um fator de desterritorialização do meio favelado. À época do lançamento de Quanto de despejo a cena política, econômica e cultural do país estava em plena efervescência, como o mostram vários pesquisadores (BOM MEIHY, 1998; RODRIGUES, 2013; PERES, 2006). Entretanto, a escrita de um sujeito hors 16 “pura e simplesmente” [Tradução nossa].

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norme17, a quem interessaria, genuinamente? E até que ponto? Através dos registros historiográficos, tomamos conhecimento que interessou, à época, a muita gente, aqui e além, pois mais de um milhão de cópias de Quarto de despejo:diário de uma favelada , foram vendidas por todo o mundo. Best seler, tornou-se o livro da mulher que dedicava seu tempo livre a agenciar linguagem e pensamento a partir da experiência individual e coletiva, em conteúdos escritos. O trabalho editorial foi feito durante, mais ou menos, dois anos, pelo jornalista Audálio Dantas, com publicação de “trechos-isca” do diário no jornal Folha da Noite18 e na revista O Cruzeiro19. E, para a publicação final, por exigência dos editores, Dantas realizou amputações severas nos trechos mais repetitivos, correção de pontuação e “assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha”, revela o jornalista, em prefácio à obra Quarto de despejo (BARCELLOS, 2015: 263-264). Até o presente, nos concentramos em falar apenas de Quanto de Despejo, como se apenas dessa obra fosse constituída a criação literária de Carolina de Jesus. Porém, como resultado da sua saga criativa, Carolina de Jesus legou, tanto para a Literatura quando para a história do Brasil, aproximadamente “cinco mil páginas com romances, contos, poemas, provérbios, canções, a maioria inédita”, como revela o pesquisador José Carlos Sebe Bom Meihy, que obteve da parte de Vera Eunice de Jesus, filha da autora, precioso apoio para visitar e microfilmar 20 os manuscritos (BARCELLOS, 2015: 264). Um ano passado do estrondoso sucesso editorial da primeira obra, e já habitando espaços um pouco menos indignos – e se dizemos desse modo, é por que afinal Carolina de Jesus descobrira também os inconvenientes da se viver na “sala de estar”21-, numa casa comprada por ela no bairro de Santana (São Paulo), a autora continua a escrever, trazendo a público em 1961, Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada22, que retraça sua experiência e o percurso desde a saída da favela até sua instalação no espaço não-favelado. A autora conseguiu publicar ainda o romance Pedaços da fome

17 “fora de norma” [Tradução nossa]. 18 Em matéria assinada por Audálio Dantas em 09 Maio de 1958, tem-se no título “O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo sórdido em que vive” (São Paulo, ano XXXVII, n 10.885. In__Barcellos (2015). Apenas que pelo título da matéria é possível notar que o objetivo era vender, não a escrita ou a autora Carolina Maria de Jesus, mas sobretudo disponibilizar para o leitor não-favelado uma visão da favela, mundo paralelo - mas não mais sórdido do que aquele do qual ele faz parte, a sociedade brasileira, sendo apenas uma microesfera em órbita no cosmus social - a partir da perspectiva de uma habitante deste espaço, com o intuito de despertar o interesse do público. 19 O mesmo tipo de matéria jornalística que aparece em Folha da Noite é publicada na revista “Retrato da favela no diário de Carolina”. 20 De acordo com o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, todos os microfilmes, registrando os manuscritos de Carolina de Jesus, foram doados à Fundação Biblioteca Nacional (RJ), a Library of Congress (EUA) e ao Acervo de Editores Mineiros, da UFMG. 21 Carolina de Jesus e seus filhos são hostilizados pelos vizinhos de classe média e a autora se depara com o fato de que a natureza humana pode seguir por vias obscuras, tanto aqui quanto lá. Em trecho de entrevista De Jesus revela suas percepções sobre o mundo fora da favela dizendo: “Decepção. Pensei que houvesse mais idealismo, menos inveja. Mas aqui há não só muita ambição, mas também o desejo de vencer a qualquer preço. Mesmo que os meios empregados sejam pobres. Quando matei um porco, lá na favela do Canindé, alguns vizinhos exigiram um pedaço de carne. Rodavam meu barraco feito bicho que fareja presa. Lá na favela era o porco, aqui é o dinheiro. No fundo é a mesma coisa. Lembrei do meu provérbio: “Não há coisa pior na vida do que a própria vida”. 22 Editora Paulo de Azevedo LTDA.

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(1963)23 e, com recursos próprios, o livro Provérbios (1965), além de outras importantes obras vindas à luz postumamente como o são os casos do Diário de Bitita (1982)24, Meu estranho diário (1996)25 e Antologia Pessoal (1996)26 Após Quarto de despejo, pouca ou nenhuma atenção receberam as outras obras de Carolina de Jesus, seja da parte do público ou da crítica. Os holofotes se apagaram e as viagens ao estrangeiro, as sessões de autógrafo e a vida de autora ilustre ficaram no passado e na memória da autora que, em 1969, retira-se de cena, como nos mostra esta citação de Barcellos (2015: 339) : “Recolheu todas as economias conseguidas com a venda dos livros e adquiriu uma propriedade agrícola na periferia da cidade grande. Retornou às suas origens em Parelheiros. De enxada nas mãos, utilizando o sarilho e balde para tirar água da cisterna, sem deixar de escrever sob a luz do lampião”

Do cume à queda desgraciosa no abismo do esquecimento, a obra caroliniana permaneceu sob escombros sombrios durante várias décadas. Seu nome não versa ainda nos compêndios de Literatura brasileira, sua história e suas obras ainda não são vistas como artefatos artísticos e culturais da Literatura assim como o são as de outras mulheres e homens (Branco(a)s), seus contemporâneo(a)s. Por vezes descrita, pelo próprio Audálio Dantas, como uma pessoa incomum, complexa e profundamente insubmissa, é esta subjetividade que nos interessa analisar, mas também é do nosso igual interesse tentar entender as perspectivas e os mecanismos que ainda fazem de Carolina de Jesus sombra na história literária do Brasil. Finalizamos esta seção com um importante observação sobre o lugar do cânone literário e as mulheres no Brasil: “Marisa Lajolo chama a atenção para um fenômeno curioso na composição cultural dos anos de 1960. Nota-se que, por essa época, havia um grupo de mulheres com “ideia na cabeça e caneta na mão”. Lajolo refere-se a essas autoras que então assumiam posição de relevo na cena intelectual brasileira. Bem-nascidas e educadas, personalidades como Clarice Lispector e Nélida Piñon compunham-se com algumas autoras que já haviam marcado época, como Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Ligia Fagundes Telles. Consagradas, essas escritoras tiveram seus livros – contos, romances, poesias (jamais diários) – aceitos sem grandes dificuldades [...] Por que umas e outras não?” (BOM MEIHY; SILVA, 2004:24)

23 Em carta escrita ao Sr. Gerson Tavares, em dezembro de 1986, disponível em fotograma de número 524, do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Carolina de Jesus confessa : “Quando eu escrevi esse livro, pedaços da fome: O título, era - “A Felizarda” – Mas, o ilustrador Suzuki, muito antipático trocou o nome do livro – para pedaços da fome […] Quando puder, quero mandar imprimi-lo do jeito que escrevi” (BARCELLOS, 2015: 145). 24 Livro editado pela primeira vez na França, pela editora Matelié. 25 Livro com trechos dos manuscritos de Carolina de Jesus organizados pelos pequisadores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine. 26 Livro organizado peplo historiador José Carlos Sebe Bom Meihy.

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1.2 Literatura brasileira: os ecos das Carolinas Há aqueles que leem as coisas nos livros e aqueles que leem as coisas diretamente no livro do mundo. Para Arthur Schopenhauer (1788-1860), os primeiros são os eruditos, “filósofos livrescos”, os últimos são filósofos por gênio e natureza: os pensadores. No entanto, nas favelas brasileiras não se tem tempo para mergulhar no obscurantismo do espírito. Os estados contemplativos são reservados àqueles que têm pão? Nas favelas a vida avança célere e a barriga dói. É fome. É fome. Pode parecer exagerado, mas esses são os ecos incômodos e grotescos que nos chegam da favela do Canindé, no Estado de São Paulo, de fins dos anos 1950. Uma mulher; racializada/Negra; favelada; semianalfabeta – note-se, dona de uma identidade inserida em multíplices periferizações -, conseguiu aliar pensamento, escrita e fome no seu diário íntimo, publicado em 1960. Livro pouco conhecido do público – e tentar adquirir um exemplar pode exigir tempo e paciência - pouco citado pela crítica especializada e esquecido – se não rejeitado – pelo meio acadêmico, Quarto de despejo: diário de uma favelada tem sua representatividade e importância fundadas no fato de ser, para além do diário de Carolina de Jesus, o diário das gentes periféricas do Brasil, um registro que fala de e sobre si, não negligenciando, no entanto, a dinâmica da alteridade – seja no igual ou no diferente. Mulher sisifiana era Carolina. Com efeito, a narrativa do seu diário constitui-se como um verdadeiro trabalho cíclico na busca pela sobrevivência dela e de seus três filhos. A ação acontece todos os dias e quase idêntica: procurar restos nos lixos e lixões, catar material reciclável, tentar comer, que significa o mesmo que tentar fugir das mãos da morte. Essa repetição, que em literatura seria considerado como um recurso retórico-estilístico empregado para promover na leitura e no leitor certo tipo de efeito ou sensação, sinaliza, em realidade, o movimento continuado e quase interminável em busca da remediação para duas necessidades que se apresentam como extremas: comida e sapatos. Metáfora utilizada para denunciar sua posição dentro da “casa-sociedade” brasileira, “quarto de despejo” é aquele cômodo usado para depositar toda espécie de quinquilharia, de objetos inúteis, de “trastes velhos” e que, geralmente, fica afastado dos outros cômodos da casa. “A favela é o quarto de despejo de São Paulo” (JESUS, p.129). Efetivamente, o que talvez tenha liberado Carolina de Jesus da sua condição sisifiana tenha sido o fato de ela ter colocado em prática seu desejo de aprisionar em folhas de papel, sonhando com um livro escrito e publicado, os acontecimentos de uma vida constituída de travessias periféricas. Como veremos, as ações se processam e se concretizam no interior desse “modo Sísifo” 27, espécie de redemoinho quotidiano, no qual há o “cansaço” acompanhado de “alguma coisa de desanimador” além 27 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Paris : Les Éditions Gallimard, Édition numérique réalisée en 2010.

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da sensação de um pesado “clima da absurdidade”, impostos à Carolina de Jesus durante sua experiência de vida dentro da realidade periférica na sociedade brasileira, e sua gravitação dentro da miséria imposta. Ela confessa: “aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros.” (CMJ, p 32). Cada linha escrita singulariza a escrita sobre si mesmo – pedra angular ou fundamento primeiro da escrita autobiográfica -, mas também a escrita da alteridade, a escrita saída da observação, da interação e dos seus sentimentos do mundo, da angustia de existir uma existência diferente e muito mais dura que aquela do Outro. Mas, uma vez terminada a leitura de Quarto de despejo, a percepção sobre o relato é a de que Carolina de Jesus sabia-se, ela mesma, o Outro. Ela se sabia em posição secundária, abandonada, quase “abandônica”28 em relação aos Outros e se percebia existindo dentro de um sistema que para si se mostrava incoerente, desordenado e ilógico. Carolina de Jesus cogitou o suicídio, mas optou por erguer uma obra diante de si e para si, como a outra forma de liberar sua revolta. É preciso desconfiar, no entanto, de uma crítica que não reconheceu, ou que não o reconhece ainda hoje, qualquer qualidade literária no diário de uma mulher racializada do Brasil, mas que o reconhecerá, não obstante, em outras obras do mesmíssimo e igual gênero como, por exemplo, O Diário de Anne Frank – que permanece na lista dos mais vendidos no Brasil – adotando-o como um virtuoso modelo de literatura maior, de legado humano e histórico, de testemunho vívido de um tempoespaço trágico, envolto em medos, em angustias, em sofrimentos, como o foi no caso da Alemanha sob o jugo do terceiro Reich. Os dois diários em questão são produtos da experiência de dois sujeitos marginalizados pelas suas respectivas sociedades, pelo (des)humano – Anne Frank, marginalizada por ser judia, Carolina Maria de Jesus, por ser mulher Negra-semianalfabeta-favelada. No Brasil o diário desta é bem aceito, o daquela, não. Assim, o que nos parece evidente é que a tragédia humana pode ser recebida - assim como acontece com a obra literária - com valorações diferenciadas, dependendo de quem a vive – ou escreve, no caso da literatura. Estamos tratando aqui de duas escritas que em suma nasceram da mesma demanda, da mesma necessidade íntima de relatar, advinda de sujeitos mergulhados em opressão, enclausurados em suas vivências clandestinas. Para Frank, assim como para De Jesus, escrever era vital, era a supressão de toda limitação imposta em outros âmbitos da vida. Os discursos se entrecruzaram, de fato. Alvos de racismo e de intolerância, elas foram estigmatizadas: a menina de origem judia e a mulher: racializada/Negra-semianalfabeta-favelada transformaram a ação da escrita em “máquina” de fuga: 28 Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.

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"Terça feira, 4 de Abril de 1944

[...] Não me agrada a vida que levam a mãe, a sra. van Daan e todas essas mulheres que trabalham para, mais tarde, ninguém se lembrar delas. Além de um marido e de filhos, preciso de mais alguma coisa a que me possa dedicar! Quero continuar a viver depois da minha morte. E por isso estou tão grata a Deus que me deu a possibilidade de desenvolver o meu espírito e de poder escrever para exprimir o que em mim vive. Quando escrevo sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta [...] Ao escrever sei esclarecer todos os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias". (FRANK, 1944:239-240)29

“2 de Julho O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. [...] Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.” (sic) (CMJ, 1960: 44, 52)30

Carolina de Jesus demonstra ainda possuir algum conhecimento sobre a história do povo Judeu e a perseguição por ele sofrida, e ainda no entrecruzamento dos discursos, aos 14 de setembro [1955] tem-se da parte da autora brasileira uma referência em relação de correspondência entre Judeus e Negros: “...Hoje é o dia da pascoa de Moysés. O Deus dos judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente.” (sic) (CMJ, p. 121). O arranjo, lado a lado, d’O diário de Anne Frank e Quarto de despejo: diário de uma favelada nos assinala e faz interrogar sobre a apreciação de uma crítica, que apresenta uma atitude duo pondera duo modii31 em relação às duas obras citadas. Quais os critérios empregados para as considerações sobre estas obras e autoras? Recuando mais no tempo-espaço – assim ligados em uma única palavra composta porque um não pode ser divorciado do outro ou corre-se o risco de perdas de sentido ainda maiores do que àquelas ocasionadas pela capacidade falha que tem a memória – nos vem ao espírito a lembrança da leitura de Úrsula (1859), romance que, na época da sua publicação, não foi assinado por sua autora (mestiça), 29 Grifos nossos 30 Grifos nossos 31 Do latim. “Dois pesos, duas medidas”.

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Maria Firmina dos Reis (1825-1917), que no seu prefácio reconhecia com antecipação de espírito o árduo que seria sua entrada no mundo falo e etnocentrado da Literatura no Brasil, chegando a admitir sua consciência sobre a recepção da sua obra pelo público e pela crítica: “Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, por que escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados” (REIS: 2004,13. Cf. Da Silva, 2009)32

Mesmo que Maria Firmina dos Reis não possa ser comparada o fenômeno editorial Carolina Maria de Jesus, pensamos ser de igual importância a sua participação para as letras brasileiras. Notemos – e o que poderá parecer um tom acusativo tem sua legitimidade sustentada pelo contexto histórico da condição/posição da mulher(Negra e Mestiça) na sociedade - que sua época, o pensamento das gentes e a constituição social do seu tempo-espaço, ou seja, a autoridade e a dominação masculina (Branca), são as motivações que a desencorajaram de assinar a autoria do livro, identificando-se tão somente com o pseudônimo de “Uma Maranhense”. Ora, sendo a palavra “maranhense” um adjetivo qualificativo que pode ser empregado tanto para o gênero masculino quanto feminino, logo, é o determinante “uma” que ajuda a desvendar o gênero do sujeito da escritura: feminino. Separando-nos, no entanto, desses abreviados apontamentos sobre a questão autoral, passemos às questões literárias: primeiro romance de temática abolicionista escrito no Brasil por uma mulher, Úrsula constitui, em suma, uma representação literária do contexto sócio-histórico do Brasil, diferente do que se tinha feito até então. Notável escritura deixou Maria Firmina dos Reis como legado aos tempos: ontem, hoje, amanhã. Estilo acurado, trabalhado numa linguagem de ricas constituições enunciativas, Úrsula, a despeito de ter um triângulo amoroso entre aristocratas Brancos como pano de fundo da trama – e algo nos diz que pode ter sido uma provável estratégia autoral sabendo-se já dos problemas de recepção que enfrentaria – é um romance que tem como temas centrais a escravidão e a condição da mulher no coração no século XIX. Ir em direção a esse tipo de literatura abre diante de nós o campo dos outros possíveis e da apropriação da história e da memória cultural brasileira dessa época através do tom de outras vozes, das perspectivas de outros olhares, da escrita saída de outras plumas, da razão saída de outras subjetividades para compreendermos de maneira um pouco mais clara, ou de uma perspectiva 32 SILVA, Régia Agostinho da. A MENTE, ESSA NINGUÉM PODE ESCRAVIZAR”: MARIA FIRMINA DOS REIS E A ESCRITA FEITA POR MULHERES NO MARANHÃO. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Disponível em: http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0592.pdf Acessado em: 20/01/2016.

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diferente, uma representação de como talvez se processavam as desigualdades entre os gêneros e as raças no Brasil e, na leitura do corpo social através da literatura, podemos perceber como tais questões ainda permanecem contingenciadas em forma de reflexos na sociedade e na Literatura do Brasil de hoje. Para suster nossas reflexões acerca de Úrsula, mencionemos aqui as considerações de Del Priore (2002) que faz observações sobre a figura da personagem Úrsula, mulher perseguida e reprimida pela figura masculina do tio, e que anseia pela viagem que a levará para longe, para o mundo, chegando mesmo ao ponto de alimentar um sentimento de inveja de um ex-escravo que, liberto, teria maior mobilidade social do que ela. A história da personagem é entrelaçada com a narrativa da vida dos africanos e seus descendentes escravizados, que guardam melancólicas lembranças da África. Tito, Antero e Susana, são as personagens Negras escravizadas que, em suas representações, destoam em muito das representações inumanas, puramente óticas e esvaziadas de afetos, que afloram em exemplos no corpus da Literatura Brasileira. O que nos interessa nesse momento da nossa reflexão, igualmente, é nos servirmos do diário de Carolina de Jesus, assim como outros exemplos retirados da literatura brasileira, como mote para falarmos brevemente sobre a ausência, sobre a interdição, sobre as periferizações, mas igualmente sobre a “insistência” de autoras e artistas Negras em criar, em dar vasão a seus desejos mais íntimos e seus dons artísticos e/ou intelectuais mesmo sabendo-se interditado(a)s. Apresentando assim, dimensões de “corps sans organes”, a Literatura Brasileira, esse corpo ao mesmo tempo narcísico e amputado, até então incompleto, começa a testemunhar uma era de renovação e sua própria metamorfose através dos “agencements” desses novos rostos, vozes, gêneros e sujeitos discursivos (des) (re)terrritorializados.

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1.3 Ego e devenir na escrita de si

“JE est un mot d'ordre.” (Gilles Deleuze & Felix Guattari)

Antes mesmo de começarmos a traçar as primeiras reflexões sobre a questão de Ego e de devenir na escrita autobiográfica, pensamos ser necessário marcar este terreno, por vezes árido, com uma citação que para nós e para este estudo tem uma significação constitutiva da estruturação de uma razão que se quer desobstruída de todo prejulgamento e que, tendo-se proposto a duvidar de toda concepção prévia, vai de par com o percurso e a experiência de vida de Carolina de Jesus, autora cuja obra constitui-se enquanto coluna vertebral das nossas análises, e que demonstrou, através de tal percurso, que é preciso duvidar e (des/re)construir. Nos reportamos ao filósofo francês René Descartes (1596-1650), que iluminou sua filosofia com as chamas de uma razão que não se pretendia superior, mas antes diferente, justamente por explorar e conhecer o poder da razão, de enxergar no pensamento um atributo humano, entendendo-o como predicativo da questão do sujeito. Para ele: « ...la puissance de bien juger et distinguer le vrai d’avec le faux, qui est probablement ce qu’on nomme le bon sens ou la raison, est naturellement égale en tous les hommes ; et ainsi que la diversité de nos opinions ne vient pas de ce que les uns sont plus raisonnable que les autres, mais seulement de ce que nous conduisons nos pensées par diverses voies, et ne considérons pas les mêmes choses. Car ce n’est pas assez d’avoir l’esprit bon, mais le principal est de l’appliquer bien. Les plus grandes âmes sont capables des plus grands vices aussi bien que des plus grandes vertus ; et ceux qui ne marchent que fort lentement peuvent avancer beaucoup davantage, s’ils suivent toujours le droit chemin, que ne font ceux qui courent et qui s’en éloignent »33 (2002:6).

33 « ...o poder do bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é provavelmente o que chamamos de bon senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens ; e assim como a diversidade de nossas opiniões não advem do fato que uns sejam mais razoáveis que outros, mas tão somente do fato que nós conduzimos o pensamento por vias diferentes, e não encaramos as coisas da mensma forma. Porque não basta ter um espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes; aqueles que marcham muito lentamente podem avançar muito mais, seguindo o bom caminho, do que aqueles que correm e dele se afastam». [Tradução nossa]

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Em Le discours de la méthode (2002)34, Descartes, em busca da dúvida que conduziria à verdade de bases mais sólidas na construção dos saberes em ciências/tecnologias, deparou-se com uma certeza, a existência indubitável do Cogito e, consequentemente a afirmação do Ego: “[…] je pris garde que, pendant que je voulais ainsi penser que tout était faux, il fallait nécessairement que moi, qui le pensais, fusse quelque chose. Et remarquant que cette vérité : je pense, donc je suis, était si ferme et si assurée, que toutes les plus extravagantes suppositions des sceptiques n'étaient pas capables de l'ébranler, je jugeai que je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le premier principe de la philosophie que je cherchais”35 (DESCARTES, 2002: 22-23).

Primeira certeza resistente à dúvida metodológica e base da filosofia cartesiana, as sentenças em latim Cogito ergo sum (je pense, donc je suis) ou ainda Ego cogito, ego existo (je pense, j’existe36), originalmente conhecidas em português como “penso, logo existo”, tornaram-se um divisor de águas entre o pensamento medieval e a nova maneira de racionalizar e fazer ciência, tornando-se fonte de discussões e debates filosóficos, mas igualmente, servindo de fio condutor para a problematização sobre a questão do sujeito no mundo e dentro das relações “causais”, e, consequentemente, a ampliação desta noção fundamental para o ser humano moderno. Para o filósofo Edmund Husserl (1859-1938), um dos grandes méritos de Descartes « ce fut la découverte […] de l’ego cogito et de la référence à ce dernier qu’implique la fondation absolue de la connaissance qu’il requérait; en d’autres termes ce fut la conviction que la connaissance transcendantale de soi-même est la source originaire de toute autre espèce de connaissance »37 (1972: 6). Tentaremos, então, nos fixar na concepção de Ego a partir do ponto de vista cartesiano ou o Ego enquanto tendo conciência de si mesmo, « coisa pensante », sem querermos, no entanto, excluir as outras possiblidades interpretativas através dos inúmeros conceitos sobre o Ego ou sujeito.

34 O discurso sobre o método, título em português. A obra foi originalmente publicada em 1637 e tem por subtítulo Pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences. Em verdade, este tratado matemático-filosófico constitui-se a princípio como a parte introdutória e metodológica apicada a três estudos científicos realizados por Descartes, a saber La Dioptrique, Les Météores et La Géométrie, porém sua importância e celebridade junto aos discursos científicos e tecnológicos é tão grande que, normalmente, o texto pode ser encontrado como um ensaio à parte. 35 “[…] eu fiquei atento de que, enquanto eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E ao observar que esta verdade: “eu penso, logo eu sou”, era tão firme e tão certa, que as mais extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de estremecê-la, julguei que poderia considerá-la, sem escrúpulos, por princípio primeiro da filosofia que eu procurava” [Tradução nossa]. 36 “Penso, logo existo” [Tradução nossa]. 37 « foi a descoberta do ego cogito e a referência a este último que implica a fundação absoluta do conhecimento por ele requerido, em outras palavras, foi a convicção que o conhecimento trascendental em si é a fonte orifinária de toda espécie de conhecimento ». HUSSERL, Edmund. Philosophie Première (1923-1924): Théorie de la reduction phénoménologique. 2ème partie. Presses Universitaires de France: Paris, 1972.

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Vamos ligar o nome à pessoa, já que (quase) tudo está inscrito no título deste estudo. O fundamento desta subparte – que está conectada, evidentemente àquelas que vieram antes e àqueles que virão na sequência – é de postular algumas considerações observadas no discurso caroliniano com relação à noção de Ego. No Quanto… há mais de mil e duzentas (1200) instâncias do E(u)go, em sua marior parte autoreferênciais, mas também E(u)gos alheios representados pela modalidade de estilo narrativo em discurso direto livre. O fato mais particular do emprego e da marcação discursiva do Ego nesta obra é que o pronome pessoal « Eu » está ancorado diretamente à situação de enonciação, e não numa situação retrospectiva bastante distaciada na linha temporal, enunciações marcadas pelo uso frequente de verbos no pretérito perfeito do indicativo, em detrimento do empredo no pretérito imperfeito. A maioria das ações são retrospectivas a partir de uma perspectiva bastante proximal, os fatos aconteceram, em grande parte, há algumas horas, dias, meses atrás. A linha retrospectiva que remonta um período mais longínquo são pouco encontrados, mas se apresentam em enunciados como « […] minha saudosa mãe. Ela era muito boa” ou « Quando eu era menina [...] » (JESUS, 2014: 48, 53)38. O uso linguístico cotidiano, empregado pela autora, parece se destacar em relação ao uso linguístico que fazem outros membros do espaço favela. De Jesus se sobressai, positiva e negativamente, por saber ler, escrever e “falar bem”, ou seja, parece que ela emprega, na sua fala cotidiana, estruturas e sentenças que são pouco (ou nada) utilizadas pelas outras pessoas do seu entorno, e isto supõe uma diferença qualquer: “Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem” (sic) (JESUS, 2014: 22)39. É evidente que o (quase) domínio dos códigos formais utilizados pelo grupo dominante, significa, em suma, a existência de um movimento contínuo de descobertas, no caso da autora em questão, o sentimento e a percepção de possuir algo de valor que o grupo dominante reconhece como algo importante e quer proteger; o domínio do código escrito, o “bem falar”, maneiras e modos diferenciados que podem conduzi-la para fora ou para cima, em relação a sua posição subalternizada. Ela reconhece: “Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater” (ibdi. p.). Estaria a autora subordina às forças maquinais do grupo dominante com seus códigos e cultismos? Não exatamente. Ao que parece: « [...] plus tu obéis aux énoncés de la réalité dominante, plus tu commandes comme sujet d'énonciation dans la réalité mentale, car finalement tu n'obéis qu 'à toi-même, c'est à toi que tu obéis ! C'est quand même toi qui commandes, en tant qu 'être

38 Grifos nossos 39 Grifos nossos. Entenderemos melhor a relação do emprego deste pronome indefinido no feminino no capítulo III deste estudo.

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raisonnable ...On a inventé une nouvelle forme d'esclavage, être esclave de soimême, ou la pure « raison », le Cogito»40 (Deleuze ; Guattari, 1980 :162).

Não queremos fazer parecer com isto que Carolina de Jesus não ligasse o fato de saber ler e escrever a uma superioridade qualquer em relação aos outros moradores do espaço favela (e mesmo do espaço não-favela), até porque ela já comprara o “peixe descamado e embalado”, ou seja, é assim que a sociedade difunde o valor do intelecto, do letramento, da posse dos saberes e do conhecimento, como sendo algo que pode elevar o indivíduo possuidor de tais pecúlios a uma esfera mais prestigiada dentro do corpo social. No entanto, damo-nos conta de que esta presença imperativa do Ego carolineano é marcada sobretudo pelo tom de um discurso engendrado pelo cogito e que toma a forma mais absoluta que pode incorporar uma subjetividade que obedece apenas a si quando enuncia: a escrita autobiográfica. Desse modo, notamos que existe uma relação entre o cogito e a noção de “Ser” que apresentam-se também ancorados ao Ego, como podemos observar nas seguintes sequências: “Não sou dada a violência” (JESUS. 2014:17); “[…] eu sou forte! Não deixo nada imprecionar-me profundamente. Não me abato (ibid., 21); “[…] O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (sic) (ibid., 32); “eu sou poetisa” (ibid., 39); “Eu não sou desmazelada. Se ando suja é devido a reviravolta da vida de um favelado” (ibid., 4243). O contato com os livros é algo comum, cotidiano, o que parece ajudar a escritora no domínio (e (re)criação, como veremos mais adiante) dos códigos da escrita. Por outro lado, os universos de flutuação dos sentidos mudam em constância paradoxal ao longo dos textos, influenciados pelos fatores de complexidade que margeiam o contexto de produção de tais enunciados, ou ainda por conta das implicações subjetivas, também carregadas de paradoxos, que fazem parte da natureza mesma do sujeito, « […] on est toujours plusieurs quand on écrit, même tout seul, même sa propre vie. Et il ne s’agit pas de là des débats intimes d’un moi divisé, mais de l’articulation des phrases d’un travail d’écriture qui suppose des attitudes différentes» 41 (LEJEUNE, 1980 : 236-237) e, no caso de Carolina de Jesus, supõe igualmente estados de espírito diferentes, pois a fome parece aturar nela – e nos outros - como reagente químico produzindo humores ácidos e sensações caústicos, dolorosas, quase nucleáres: Eu quando estou com fome quero matar o Janio42

40 “Quanto mais vocês obedece aos enunciados da realidade dominante, mais comanda enquanto sujeito de enunciação na realidade mental, porque finalmente você obedece apenas a si mesmo, é a você que você obedece ! É você quem comanda enquanto ser racional...Inventou-se uma nova forma de escravidão, ser escravo de si mesmo, ou a pura “razão”, o Cogito”. [Tradução nossa]. 41 “Se é sempre muitos ao escrever, mesmo sozinho, mesmo sua a própria vida. E não se trata aqui de discussões íntimas sobre um eu dividido, mas da articulação de frases de um trabalho de escrita que requer atitudes diferentes” [Tradução nossa].

42 Referência a Jânio Quadros (1917-1992), político brasileiro e presidente da República por um curto período, entre janeiro e agosto de 1961.

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quero enforcar o Adhemar43 e queimar o Juscelino44. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (sic) (op. cit. p. 33); “Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconciente.” (sic) (ibid., p. 41); “A tontura da fome é pior do que a do alcool […] a da fome nos faz tremer. […] recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e tonurava-me”(sic) (ibid., p. 44). Assim, as articulações discursivas são, evidentemente, frutos do impacto violento com o mundo absurdo e com os Outros (mundos). Carolina de Jesus parece ver-se dentro de um processo em que parte de um estado para alcançar um outro, por meio das próprias ações ou dos quereres. “Ontem eu li aquela fabula da rã e a vaca. Tenho a impressão que sou rã. Queria crescer até ficar do tamanho da vaca” 45 (sic) (ibdi., p. 130). Ao que nos parece, a implicação mais profunda deste enunciado não está realmente na metamorfose radical em animal, mas implica sobretudo a enunciação dos movimentos da (in)consciência que podem conduzir aos avizinhamentos, no jogo das intersubjetividades. Se ela é, está ou se sente a pequena rã, quem será a grande vaca nesse jogo simbólico que, com efeito, apresenta características bipolares entre pequenez e grandeza? Devenir-animal, devenir-mulher, devenir-Negra, devenir-escritora. Tudo é apresentado em interligações, em redes de dispersões alimentadas pela energia da sofreguidão por novos territórios. Conceito estabelecido e explorando por Gilles Deleuze e Felix Guattari em Milles Plateaux (1980), devenir, a despeito do sentido imediato que conduz à ideia de transformar-se ou tornar-se, ultrapassa o sentido estrito do termo, para desembocar em uma (ou variadas) ideia de avizinhamento, ou seja, passar-se de um estado a outro sem, no entanto, deixar de pertencer ao estado anterior; é um processo criado e criativo, segundo os autores. Em um exame mais cuidadoso sobre algumas implicações sobre esta mecânica, percebemos que os processos de dominação e de subjugação são alguns dos motores que fazem funcionar a máquina do devenir, noção que está relacionada a argumentos dicotômicos como maioritário/minoritário, centro/periferia, noções complexas porque não se opõem apenas quantitativamente, mas implica sobretudo noções como “constante” - que apresenta uma função de centro: homem, branco, heterossexual, católico, por exemplo = maioria = sistema - e “variável” – de função periférica: mulher, 43 Referência a Adhemar de Barros (1901-1969) duas vezes governador do Estado de São Paulo, de 1947-1951 e depois de 1963-1966 e, entre tempo, foi prefeito da cidade de São Paulo entre os anos de 1957 e 1961. 44 Referência a Juscelino Kubitschek (1902-1976), influente político brasileiro que foi presidente da República entre 1956 e 1961. 45 Referência à fábula de Jean de la Fontaine (1621-1695), e que apresenta a história de uma rã que, invejosa do tramanho de uma vaca, incha-se até explodir e desaparecer. No livro Vida por escrito: guia do acervo de Carolina Maria de Jesus, estão disponíveis outros trechos do diário que não foram incluídos na edição, notadamente a continuação desta reflexão sobre a fábula da rã e a vaca. O trecho continua assim: “Eu desejei vários empregos, não aceitaram-me por causa da minha linguagem poética porisso eu não gosto de conversar com ninguém” (sic)(BARCELLOS, 2015: 267). Tinha, Carolina de Jesus, consciência de que o mundo olhava-lhe com desprezo, enquanto ela tentava, por sua vez, distender-se para além daqueles limites que lhes foram impostos?

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homossexual, Negro, candomblecista, etc = minoria = sub-sistema, hors-système. Assim sendo, para os autores, todo devenir é minoritário; o fluxo nunca irá desenvolver-se na direção do maioritário (sistema “homogêneo”), sendo pois que, o maioritário, tomando analiticamente dentro de uma abstração, não representa uma pessoa em especial, é Personne46, enquanto que a minoria (sub-sistema “heterogêneo”) implica em um “devenir de tout le monde”47, portanto, “le problème n'est jamais d'acquérir la majorité, même en instaurant une nouvelle constante”48, o fundamental está, então, em desterritorializar-se, abrir as portas dos guetos (étnicos, sexuais, religiosos, econômicos) para desterritorializar igualmente o mètre-étalon, a constate (DELEUZE & GUATTATI: 1980: 133-134). Na sequência, trataremos de outros devenirs carolinianos, mas nos concentremos, por este momento, no devenir-escritora que, para Carolina de Jesus, passará forçosamente pela desterritorialização do mètre-étalon, justamente por ela não cumprir plenamente as demandas e implicações linguísticas, raciais, de gênero, de classe social, que o métier de escritor(a) pressupõe (ou pressupunha). Aqui retomamos o mesmo questionamento do início: em que se constitui verdadeiramente o corpus literário de um país híbrido, como é caso do Brasil, onde a maioria quantitativa, não está – ou se vê mal – representada por um discurso monológico? Importante especialista no discurso autobiográfico, Philippe Lejeune, em analisando textos autobiográficos escritos por sujeitos hors modèle, fala da desvalorização da produção literária da memória popular e da sua não representação/representatividade, dizendo que: « Le discours sur leurs vie reste contenu dans la mémoire de leur groupe (de village, de campagnonnage) et depasse rarement ce cercle [...] En tant que forme individuelle, elle n’est porteuse, aux yeux des gens qui sont susceptible de fabriquer et de consommer de l’imprimé, d’aucune valeur […] Le vécu des classes dominées, en fait, n’est pas entre leurs mains. Comme le suggère Pierre Bourdieu, « les classes dominées ne parlent pas, elles sont parlées ». Leurs vécu est étudié d’en haut, d’un point de vue économique et politique, dans des enquêtes qui [...] ne passe pas par le récit de vie. Il est imagé dans le discours journalistique et romanesque des classes dominantes, dont il nourrit à la fois les rêves [...] et les cauchemars »49 (1980 : 253, 254).

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“Ninguém”. [Tradução nossa]. “devir de todo mundo”. [Tradução nossa]. "O problema não está em tomar parte na maioria, mesmo estabelecendo uma nova constante". [Tradução nossa]. "O discurso sobre suas vidas fica contido na memória do seu grupo (povoado, interior) e raramente utrapassa esse círculo […] Enquanto forma individual, ela não carrega nenhum valor aos olhos aqueles que são susceptíveis de produzir e consumir o [texto] impresso […] a experiência de vida das classes dominadas, com efeito, não está entre suas mãos. Como o sugere Pierre Bourdieu, « as classes dominadas não falam, eles são faladas ». Suas experiência são estudadas do alto, de um ponto de vista econômico e político, em investigações que […] não passam pela narrativa de vida. [O dominado] É representado no discurso jornalistico e romanesco das classes dominates, de quem ele nutre ao mesmo tempo os sonhos […] e os pesadelos". [Tradução nossa].

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Então, em meio ao silenciamento, uma voz eleva-se. Da falta de oportunidade no universo editorial, o texto imprime-se sobre o pepel com a ajuda da caneta, e a escrita torna-se concreta, artefato. E é de se esperar, contudo, que para certo número de pessoas que leram Quarto de despejo e, sobretudo, a crítica, o valor deste enquanto obra de arte e enquanto artefato cultural pertencente ao conjunto da Literatura brasileira, seja interrogado. Afinal é sabido, e provas hão dentro da sua própria escrita, que a “iducação”50 de De Jesus era trôpega, cambaleante, chegando mesmo ao ponto de esbarrar-se violentamente contra uma norma linguística culta e de prestígio, àquela protegida dos especialistas, o “bom” português, a língua irreprochável dos grandes poetas e dominada pelas elites. Língua é poder – de decisão, de comando, de imposição das vontades, de influência, de convencimento - e o seu não domínio, por uma mulher: Negra-semianalfabeta-favelada, representaria, para estes, a rejeição absoluta e total, o nada. Houve quem dissesse que de Jesus “foi equivocadamente trazida a público como escritora de literatura”, por ser sua escrita “cheia de erros gramaticais” e apenas conter o produto do empirismo de uma favelada de sabedoria “infusa”51. No entanto, um dos aspectos mais curiosos e surpreendentes da escrita de Carolina de Jesus, e que é, em realidade, um dos pontos em que alguns se ancoram para desqualificar a sua obra, é justamente o fato de a autora, com apenas dois anos primários de estudo formal, ter erigido uma obra que alcança em número quase cinco mil páginas de manuscritos, e em conteúdo engloba uma das experiências sociais mais complexas e difíceis do pós-colonialismo e do pós-escravismo brasileiros: a vida na favela. O fato de ser semianalfabeta faz com que a autora seja posicionada sobre o patamar do desprestigio, sem, no entanto, ter sido cogitada como exemplo de sujeito humano que, dotado de capacidade racional e linguística, pudesse servir de modelo de desarticulação de uma visão elitista sobre os saberes e sobre as artes de uma maneira geral. Ainda realizando um trabalho, em certa medida, de escavação, nós tentamos encontrar, ao longo da leitura de Quarto de despejo, os indícios de um discurso que pudesse parecer titubeante ou receoso, auto-questionador ou auto-depreciativo por parte da autora para consigo mesma pelo fato de ser semianalfabeta e mesmo assim alimentar o desejo de ser escritora - atividade que, a priori, se desenvolveria apenas na “sala de estar”-. Porém, não foram encontrados vestígios de desconfiança de si mesma nesse sentido, mas sim a afirmação das vontades, das intencionalidades - “Vou escrever um livro referente a favela […] Eu quero escrever o livro”52 (JESUS, 2014: 20). 50 Grafia de Carolina Maria de Jesus para a palavra“educação”. Tendo apenas dois anos de escolaridade, ela baseava-se na representação sonora das palavras, escrevendo foneticamente muitas delas. 51 FELINTO, Marilene. Clichês nascidos na favela. Jornal Folha de S. Paulo: 29/09/2009. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/29/mais!/28.html. Acessado em: 23/01/2015. Nesse artigo, Felinto coloca em questão o estatuto de literatura com o qual era tratada a obra de Carolina Maria de Jesus por alguns acadêmicos, negando-o. 52 Grifos nossos.

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Na sociedade brasileira, bem como em outras sociedades, o analfabetismo constitui-se como um estigma que pode, muito facilmente, promover a (auto)anulação do indivíduo para certas atividades sociais, sobretudo aquelas que são frutos do intelecto. « Écrire et publier le récit de sa propre vie a été longtemps, et reste encore [...] un privilège réservé aux membre des classes dominantes. Le « silence » des autres paraît tout naturel : l’autobiographie ne fait pas partie de la culture des pauvres »53, nos lembra Philippe Lejeune (1980 : 229), mas a autora em questão imprime grande esforço e debate-se na contra-corrente. Trataremos mais tarde sobre os mecanismos perversos de anulação subjetiva que pode produzir a questão do estereótipo e do estigma, porém é importante aqui assinalar que em Carolina de Jesus – ao menos nesse recorte que fizemos da sua obra, o Quarto... - há uma espécie de força motriz que não a impede de criar sua literatura e de buscar, com efeito, os meios que possibilitarão a publicação deste conteúdo e, consequentemente, o estabelecimento do seu nome como escritora, mesmo habitando as periferias de um uso linguístico desprestigiado. O que Carolina de Jesus produziu com a sua escrita, em português hors modèle, além de discurso e de um frontispício como habitação eterna do seu nome? Para além dessa linguagem única e do caráter testemunhal do seu discurso, das denúncias, ela produz igualmente outros (des)territótios e fluxos, e (quase que) inconscientemente, uma batalha moral e ética que confronta na arena social as dicotomias maioria/minoria ou ainda centro/periferia. Logo, na falta de conhecimentos mais aprofundados da norma linguística padrão - norma elitista, evidentemente, porque dominada por um grupo que a impõe como a única aceitável, interditando aqueles e aquelas que não fazem parte do mètre-étalon - De Jesus demonstra fazer uso e aplicabilidade dos mecanismos que gerenciam seu “princípio criativo”54, as suas leituras de mundo e de livros, para (re)criar, assim, a sua própria língua, que é o português brasileiro. Deleuze & Guattari (1980) demonstram a importância e a profundidade de tal processo dizendo que: « Le problème n'est pas celui d'une distinction entre langue majeure et langue mineure, mais celui d'un devenir. La question n'est pas de se reterritorialiser sur un dialecte ou un patois, mais de déterritorialiser la langue majeure. Les Noirs américains n'opposent pas le black à l'english, ils font avec l'américain qui est leur propre langue un black-english. Les langues mineures n'existent pas en soi [...]Telle est la force des auteurs qu 'on appelle « mineurs », et qui sont les plus grands, les seuls grands : avoir à conquérir leur propre langue, c' est-à-dire arriver à cette sobriété 53 “Escrever e publicar a história da sua própria vida foi por muito tempo, e ainda o é […] um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. O silêncio dos outros parece natural : a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres”. [Tradução nossa] 54 O “princípio criativo” é umas das características da linguagem que, segundo as concepções do filósofo e linguista Noam Chomsky (1928-), é um fato do conhecimento linguístico à priori dos seres humanos, o que nos diferencia dos outros animais. Em Linguistique Cartésienne (1966), ele coloca a linguística no ranking das ciências da natureza por supor a existência de uma relação entre “competência” e “performance” linguística que se apresenta de forma universal nos seres humanos, através dessa capacidade de “abertura ao infinito” que tem a língua.

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dans l'usage de la langue majeure, pour la mettre en état de variation continue »55. (p.132, 133)

Cristal de devenirs, matéria constituída do princípio imanente do desejo, um “corps sans organe”, Carolina de Jesus, pessoa de “personalidade complicada”, incomum, tendo gosto particular pelo inconformismo, tenciona para si outra(s) coisa(s) bastantes diferentes daquilo que já estaria prenunciado para si enquanto identidade periferizada, mesmo produzindo barulhos fortes que ecoam de dentro do Quarto… (ou da Casa de Alvenaria, do Diário de Bitita, dos poemas, das folhas rotas arquivadas). Ainda que tivesse como seu objetivo principal unicamente o desejo de tornar-se escritora de literatura, com seus reconhecimentos e saudações, Carolina de Jesus cria, com a arquitetura do seu diário pessoal, muito mais do que apenas seu (des)território, ela se debate e empurra-se em direção ao “modelo” e, se não toma seu lugar, ao menos força um posicionamento para si, antes inexistente e, sobretudo, aloca o Outro dentro de um lugar também novo. Nestas coisas reside todo o sentido da obra? A elevação do Ego a um patamar de onde ele pudesse ser melhor apreciado, seria um dos motivos da escrita ? Do universo desejoso do homem, da mulher, em face do mundo “l'oeuvre est alors la chance unique de maintenir sa conscience et d'en fixer les aventures. Créer, c'est vivre deux fois »56 (CAMUS, 2010 : 88). A autora revela-se « germe » de devenir quando descreve os sentimentos mais particulares e íntimos ao ver o livro Quarto de despejo, enfim, publicado: « Fiquei alegre olhando o livro e disse : ‘o que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor’. E li meu nome na capa do livro. ‘Carolina Maria de Jesus’. Diário de uma favelada. Quarto de despejo’. Fiquei emocionada. É preciso gostar de livros par sentir o que eu senti » (JESUS, 2014:195). É preciso ter consciência de que o devenir não ocorre em modo de auto-reprodução. É necessário um movimento que o inicie, um mecanismo que comprima (ou oprima) e fissure o cristal para que ele esteja susceptível a ser minado. É sobre este movimento que trataremos no próximo capítulo.

55 "O problema não é o de uma distinção entre língua maior e língua menor, mas do devir. A questão não é de reterritorializar-se em um dialeto ou um patuá, mas de desterritorializar a língua maior. Os Negros norte-americanos não opõem o inglês vernáculo afroamericano ao inglês, eles fazem com a língua americana, que é sua própria língua, um black-english. As línguas menores não existem em si [...] Tal é a força dos atores chamados de "menores", e que são os maiores, os únicos grandes: ter que conquistar sua própria língua, ou seja, chegar a esta sobriedade no uso da língua maior, para colocá-la em estado de variação contínua" [Tradução nossa]. 56 "A obra é, então, a única chance de manter sua consciência e de consolidar as aventuras. Criar, é viver duas vezes". [Tradução nossa].

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II/ A REVOLTA METAFÍSICA NO QUARTO DE DESPEJO

“Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa” (Carolina de Jesus) «La rébellion humaine finit en révolution métaphysique»57 (Albert Camus)

Mesmo se o conflito é um fator que pode ser tido como inerente à condição humana, certas condições humanas parecem estar mais expostas ou vulneráveis a debutar um conflito do que outras. Visto que toda situação conflitante tem uma relação de causa e efeito dentro da interação sujeito x objeto (seja ele, o mundo ou o Outro), as consequências de uma ação prejudicial qualquer poderá recair tanto sobre o próprio sujeito quanto sobre o seu objeto, agente da causa. Por qual via seguir então, a da autoacusação ou a da retaliação? Disso dependem, talvez, fatores distintos, e um deles, a nosso ver, é representado pela consciência que cada sujeito tem de si mesmo, mas também do mundo e do Outro, e a noção (mais ou menos) aguda de preceitos como justiça/injustiça, moral/imoral, ético/não-ético, etc. Por exemplo, em alguns trechos de Quarto de despejo podemos ler sobre o conflito pessoal de Carolina de Jesus por não poder, sozinha, alimentar corretamente os filhos, dizendo: “Tem hora que eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos” (JESUS, 2014: 87). Damo-nos conta de que o efeito da causa, a culpa, nesse caso, recai sobre si mesma, porque o papel dos homens na vida da autora (e na sociedade brasileira de maneira geral) permite ainda que eles não se sintam responsabilizados pelos filhos que têm com uma mulher (Negra) com quem não contraíram matrimônio, percebendo-a tão somente através do prisma da objetificação, fonte de satisfação pessoal através do sexo. Essa situação de conflito gera em De Jesus a autoacusação, mas parece que a influi igualmente no processo de devenir-mulher, como o veremos no capítulo III deste estudo. Por outro lado, o sujeito do conflito pode ser conduzido à rebelião ou à retaliação rancorosa (ao crime ou ao suicídio) como forma reativa de lidar com a problemática ou a situação da absurdité que se lhe apresenta, face a um mundo que silencia diante do seu sofrimento. Assim, a ação que movimenta a revolta « s'appuie, en même temps, sur le refus catégorique d'une intrusion jugée intolérable et sur la certitude confuse d'un bon droit, plus exactement l'impression, chez le révolté, qu'il est « en droit

57 "Rebelião humana termina em revolução metafísica" [Tradução nossa].

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de... »58 (CAMUS, 2010:25) e estar “en droit de...” deve significar necessariamente uma evidência, “avoir conscience de quelque chose”59 (HUSSERL, 1953: 48), sendo a consciência de si um fato à priori, como o apontamos anteriormente. Quando De Jesus registra em seu diário o enunciado “minha revolta é justa” há, efetivamente, os traços de uma consciência aguda de que existe uma espécie de anormalidade na condição de vida por ela experienciada e, então, o enunciado se transforma em enunciação. A natureza inconformada e insubmissa de Carolina de Jesus, (re)apresentada através das páginas e dos ecos turbulentos saídos do Quanto… nos deixa entrever, então, essa outra pista que, aliada aos conceitos anteriormente abordados, a saber, a linguagem, o cogito/consciência de si e os processos de devenir, nos ajudam a uniformizar em um bloco sequencial mais ou menos coeso, nossa hipótese de partida, que é a de saber como estas instâncias marcam o discurso e a subjetividade caroliniana e como ela reflete (ou não) as relações sociais de gênero e de racialização no seu cotidiano. O conceito de “revolta”, ou mais precisamente a “revolta metafísica”, é a noção central da obra L’Homme Révolté (1951), do escritor e filósofo francês Albert Camus (1913-1960), que está diretamente relacionado aquele do cogito/consciência de si. Tal pressuposto constitui-se, enquanto noção, como uma espécie de “conceito-sequência”, surgido posteriormente à dialética sobre o pensamento individual, a problemática do suicídio e sua relação com a noção/sentimento do “absurdo”, desenvolvidos no ensaio camuniano Le Mythe de Sisyphe, de 1942. Para o autor o fato de revoltar-se funcionaria para o ser humano como uma escapatória para a absurdidade da vida e, segundo suas reflexões, « commencer à penser, c'est commencer d'être miné »60 (CAMUS, 1985 :17), proposição que em seu conteúdo guarda o mesmo caráter silogistico que as poposições sobre o cogito cartesiano. Camus revela que : « Le raisonnement se poursuit alors de la même façon. Je crie que je ne crois à rien et que tout est absurde, mais je ne puis douter de mon cri et il me faut au moins croire à ma protestation. La première et la seule évidence qui me soit ainsi donnée, à l'intérieur de l'expérience absurde, est la révolte »61 (2010:18).

Carolina de Jesus duvidaria de tudo, menos do seu próprio grito? E portanto, nós temos olhado através dos portais (textual e pictórico) que nos têm transportado para a favela do Canindé, mundo absurdo por excelência. Seguiremos os traços da revolta caroliniana, se ela existe, tendo como cicerone 58 “Apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intrusão considerada intolerável e na certeza confusa de um bom direito, mais precisamente a impressão, no revoltado, de que ele está em direito de…" [Tradução nossa]. 59 “Ter consciência de alguma coisa” [Tradução nossa]. 60 “Começar a pensar, é começar a ser minado”. [Tradução nossa]. 61 “O raciocínio segue, então, da mesma maneira. Eu grito que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas eu não posso duvidar do meu clamor e eu preciso ao menos crer no meu protesto. A primeira e única evidência que me seja dada, no interior da experiência absurda, é a revolta” [Tradução nossa].

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Albert Camus e o conceito de “revolta metafísica” que se apresenta, sobretudo, no capítulo I e parte do capítulo II de L’Homme Revolté, nos quais o autor explora este conceito através da interpretação da célebre “dialética do mestre e do escravo” - ou “dialectique du dominant et de l’asservi” -, conceito metodológico tomado de empréstimo da obra La Phénoménologie de l’Ésprit (1807) do filósofo alemão G.W.F. Hegel (1770-1831)62 Na “dialética do mestre e do escravo” o princípio defendido é a da consciência de si através do reconhecimento que o indivíduo solicita da parte do outro, ou seja, a relação de alteridade é fundamental na instauração desse processo. Camus retoma essa concepção e a desdobra num sentido bastante próximo, no qual existe uma ideia de valor pessoal no serviçal/dominado que o faz dizer “não”. “En somme, ce non affirme l'existence d'une frontière. On retrouve la même idée de limite dans ce sentiment du révolté, que l'autre « exagère », qu'il étend son droit au-delà d'une frontière à partir de laquelle un autre droit lui fait face et le limite” 63 (CAMUS, 2010: 25). Falaremos mais sobre isso na continuação. Antes, precisamos estabelecer algumas premissas sobre esta relação dominante/dominado uma vez que apresentaremos alguns apontamentos sobre a dialética da relação senhor/serviçal. Discorreremos brevemente, na sequência, sobre as (des)conexões entre igual e diferente, dominante/senhor e dominado/escravo, homem e mulher, a partir das discordâncias nas relações sociais provocadas pela estigmatização e pela estereotipia.

62 Apenas para resumir muito brevemente, sem termos, no entanto a intenção de querer simplificá-la, visto a complexidade e envergadura do projeto filosófico do autor, em sua fenomenologia, ele realiza elaborações meticulosas em que a “conscience de soi” é o ponto central das explicações hegelianas sobre como os fenômenos gerais da história e das civilizações podem influir nas fases de evolução do indivíduo humano, enquanto sujeito, e das suas percepções do mundo e das coisas, partindo da “consciência em geral” (na qual a educação e consciência individual têm seus lugares, via cognitiva pela qual o sujeito coloca-se face ao mundo exterior), atingido, através do processo, a “consciência de si” ou “autoconsciência” (na qual a certeza e a verdade objetivas conduzem ao desejo e a ação, via antropológica em que o indivíduo toma consciência do seu papel transformador no mundo, da sua liberdade. E essa consciência de si procura se beneficiar do reconhecimento de uma outra consciência, sendo o eu o meio e a alteridade a consequência), até alcançar o que o autor chama de razão pura (que envolve as leis da lógica e a via psicologica) que, por sua vez, conduzirá o sujeito a constituir-se enquanto “espírito” (sujeito + historicidade + leis, direitos, moral + família, o Estado, enfim, o indivíduo social) levado ao saber absoluto (que é o ápice que pode atingir uma consciência que, liberada da “aparência”, pode atingir o ponto no qual o fenômeno torna-se igual a “essência”, “finalement, quand la consciene saisira cette essence que lui est propre, elle désignera la nature du savoir absolu, lui-même) (HEGEL, 1939:77). 63 “Em suma, este "não" afirma a existência de uma fronteira. Encontra-se a mesma ideia de limite nesse sentimento do revoltado, que o outro "exagera", que ele estende seu direito além da fronteira a partir da qual um outro direito o encara e o delimita” [Tradução nossa].

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2.1 Estereótipo e estigma: dispositivos de interdição do Outro e as periferias

É impossível falarmos do agora sem passar em revista certos aspectos do ontem. A compreensão para os fatos, sejam eles sociais ou artísticos e, sobretudo, das relações humanas, torna-se muito mais clara quando nos propomos a uma aproximação entre presente e passado. O ponto de onde pretendemos partir para atingir o objetivo de falar sobre questões de estigma e estereótipo nas relações sociais, será junto a “praia”, sobre as marcas da pós-dominação, do massacre, da subjugação, da aculturação, da supremacia, do eurocentrismo, enfim, trataremos de forma bastante breve da dialética do período colonial brasileiro e sua relação com a conformação e a produção literária do país no colonial, mas também no pós-colonial. Literatura e identidade. Dois conceitos que se interligam quando falamos de brasilidades (gentes e literaturas). Desde a dispersão europeia pelo quatro cantos do mundo, conduzidos seja pela fé ou pela sede de saber e de ver, mas sobretudo, de possuir (patrimônio e poder), o mundo do Outro e o Outro, ele mesmo, passaram, então, a ser descritos através do olhar, da linguagem, das tradições e das percepções – por vezes distorcidas – do homem europeu. Registrados em livros, cadernos, diários de viagens, memórias, as concepções e remarques das diferenças encontradas em outros povos, esvaziados de qualquer objetividade e recheado amargamente por julgamentos subjetivos, que colocaram o Outro numa posição de extrema inferioridade em relação ao velho homem do Velho Mundo, “des inconnus, des étrangers dont je ne comprends ni la lagnue ni les coutumes, si étrangers que j’hesite, à la limite, à reconnaître notre appartenance comme à une même espèce”64 (TODOROV, 1982). Através d’O povo brasileiro, “obra-mural” do antropólogo Darcy Ribeiro, podemos ter umas vista bastante ampla e um entendimento muito mais claro do que significou os quase quatrocentos anos de permanências do elemento europeu em terras brasileiras. O desembarque dos portugueses na costa do Brasil, em 1500, em se tratando sobretudo das suas influências no aspecto humano - dizimando, escravizando e aculturando Índios, que já habitavam aquelas terras, e africanos, introduzidos, entre os séculos XVI e XIX, como mão de obra escrava. Deixando, igualmente, as marcas da cultura lusitana, a língua e as tradições que aqui se mesclaram as outras já existentes – influenciou profundamente o conjunto cultural brasileiro. Após o fim desse período sombrio para uns muitos, lucrativo e reluzente para uns outros poucos, restou instalado na cultura dessa porção no Novo Mundo, daquilo que a estruturou durantes séculos – a saber um sistema econômico baseado na exploração das “minorias” e a 64 “Desconhecidos, estranhos de quem não compreendo nem os costumes, tão estranhos que eu hesito, mesmo, reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie” [Tradução nossa].

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confluência dos tipos humanos das diferentes origens, o que deu um caráter de povo híbrido ao brasileiro – sobraram os reflexos daquele modo medieval de pensar o Outro, nesse caso o indígena e o africano (e seus descendentes), como elementos inferiores dessa cultura. Foi, com efeito, o caráter de nação miscigenada, ou “degenerada”, segundo alguns autores, que ajudou a definir o Brasil como um país democrático do ponto de vista racial, como o tentou argumentar o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre em seu conhecido Casa grande & senzala: a formação da família brasileira (1933) – recheado de métodos anticientíficos, por isso obra que precisa ser lida com perspicácia de espírito - no qual o autor tentar transparecer que no Brasil os três tipos humanos (ameríndio, africano e europeu) viviam em pura harmonia, sem conflitos, nem tampouco o país é uma sociedade constituída por classes sociais. A expressão “democracia racial”, mesmo que não verse na obra citada, foi explorada pelo autor, em outros escritos, para argumentar sobre a crença em um país onde a igualdade reinava entre todos. Com efeito, o “mito da democracia racial” no Brasil não passa de elaborações quiméricas fruto das observações e de um discurso impregnado de monologia, que não tem servido para explicar as desigualdades entre as classes (sócio-econômicas, raciais, de gênero) que constituem os povos dos Brasis. “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”65, mas deixou igualmente outros tipos de aparelhos de opressão, como a estigmatização do Outro, ou dos jogos vorazes da estereotipia, entre outros mordazes mecanismo de inferiorização. Mesmo o senhor Freyre, na obra anteriormente citada, revela os usos e abusos do corpo dos africanos e afrodescendentes, sobretudo o da mulher, que em suas lembranças, quase melancólicas, servia para a iniciação sexual dos jovens rapazes que, evidentemente, não tinham nenhum compromisso nem social nem humano com aquelas mulheres Mestiças e Negras, insinuando a satisfação das mesmas em servirem de objeto para os seus senhores. Livre, mas sem nenhuma perspectiva positiva diante de si, a população afro e afrodescendente do Brasil teve por único meio de continuar, o de resistir a partir da periferia, lugar social que lhes continuaria a ser reservado após o fim da escravidão, em maio de 1888. Atualmente, apenas cento e vinte e oito (128) anos passados da liberação, temos, evidentemente, importantes mudanças referentes ao lugar que o Negro(a) ocupa dentro do corpo social brasileiro – graças a inúmeros fatores que talvez não sejamos capazes de aqui elencar em sua totalidade: graças às subjetividades, às vontades, às intencionalidades, mas igualmente aos movimentos sociais conduzidos por membros da população Negra e as políticas afirmativas que espocam em número considerável pelo país, desde os anos 1970, empurrados pelo desejo de mudança de perspectivas e influenciados, doravante, pelos movimentos Negros norte-americanos - . Contudo, as disparidades e as dificuldades 65 Trecho retirado do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, presente no na obra Relíquias de casa velha, de 1906.

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ainda são muitas e notórias. No campo profissional, apenas para citar um dos aspectos no qual a população Negra foi (e continua sendo) profundamente prejudicada, tomamos de empréstimo a análise de Darcy Ribeiro, que mostra que: Examinando a carreira do negro no Brasil se verifica que, introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras, como mão‐de‐obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que, embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar‐se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço (1995: 231,232).

Contudo, o que significa ter uma “identidade social” Negra? Ou ainda, o que significa ter uma identidade social feminina? Pertencer, talvez, ao campo do “diferente de mim”, do “exótico”, do desqualificado(a) para “isto” ou “aquilo”, por “este traço” ou “aquele “defeito”? Para entendermos melhor como funciona o mecanismo da estigmatização, em uns e em outros, tomaremos por explicação as concepções do sociólogo e linguista Erving Goffman (1922-1982), que intersecciona a noção de estigma em três tipos principais: (a) as deformidades corporais; (b) os desvios ou taras do caráter (presidiários, drogados, alcoolatras, mentalmente perturbados, etc) 66 e (c) os estigmas tribais (raça, nacionalidade, religião, etc). Segundo Goffman, os indivíduos, dentro ou fora de seus grupos, guardam atributos que ficam evidente para o Outro no momento das interações nas trocas sociais. Aquilo que caracteriza cada indivíduo, ou seja, os “attributs dont on pourrait prouver qu’il les possède” 67, enfim, o que cada indivíduo é em realidade, o autor nomeia de identité sociale réelle68. Por outro lado, a identité sociale virtuelle69 constitui-se - com mais frequência do que podemos supor - quando uma identidade é concebida através das nossas exigências e/ou dos conceitos normativos que nós, enquanto Outro, imputamos ao Outro. “Je est un autre”, dito por Arthur Rimbaud (1854-1891), defendido por Jacques Lacan (1901-1981), citado por Philippe Lejeune. Trata-se, então, do sujeito, não só como polo de identidade, mas de identidades variadas, de representações diversas. 66 Apesar da sua importância para a psicologia social, é preciso ler a Stigmate: les usages socieux des handicap de uma perspectiva crítica e atrelado a estudos mais contemporâneos sobre doenças mentais. Por exemplo, entre os desviados de caráter, Goffman aponta o homossexual, e atualmente se sabe que a ONU (Organização Mundial de Saúde) retirou, em 1990, a homosexualidade da lista das doenças mentais. 67 “Atributos os quais se poderia provar que ele possui” [Tradução nossa]. 68 “Identidade social real” [Tradução nossa]. 69 “Identidade social virtual” [Tradução nossa].

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A partir daqui, refletiremos um pouco sobre as questões de estigma e de estereotipia que se apresentam como uma espécie de câncer, enraizado na mentalidade de uma parcela da humanidade (ou em sua totalidade), e que no Brasil pode ser considerado como a encubadora para vários problemas sociais, surgindo com metástase no corpus da Literatura. Em linhas gerais, trataremos do tema “preconceito”, que é com efeito, a concretização destes mecanismos de julgamentos colocados em ação por cada indivíduo em sua relação com o Outro. Ora, por onde começa o “descrédito profundo” ao Outro? Goffman nos dá algumas pistas dizendo que: « des signes peuvent se manifester montrant qu’il possède [l’inconnu, l’Autre] un attribut qui le rend différent des autres membres de la catégorie de personnes qui lui est ouverte [...] Ainsi diminué à nos yeux il cesse d’être pour nous une personne accomplie et ordinaire, et tombe au rang d’individu vicié, amputé. Un tel attribut constitue un stigmate [...] Il représente un desaccord particulier entre les identités sociales virtuelle et réelle » 70(1975:12)

Notemos, contudo, que tais “atributos” estigmatizantes podem ser visíveis/conhecidos ou imperceptíveis, estabelecendo desse modo, dois pontos de vista acerca de determinado indivíduo, tornando-o “descreditado” ou “descreditável”. Assim, tudo aquilo que se apresenta hors norme e que não se enquadra no estereótipo dos tipos socialmente aceitos - ou étalon majeur, como o prefere Deleuze & Guattari (1980) – cai no abismo do “descrédito profundo”. Os estereótipos sobre a categoria humana mulher e Negro – incluindo-se evidentemente, outras categorias racializadas e/ou consideradas excluídas, como judeus, asiáticos, indígenas etc - afloraram pela Literatura desde a Idade Média na Europa, através dos discursos de viajantes, naturalistas, literatos, filósofos, como em Voltaire (2011), em Kant (1990), em Hugo (1992), em Richet (2004) e dos ditos “homens de scicência” (sic)71; Enfim, compêndios inteiros dedicados à detração dos africanos e de 70 “Sinais podem se manifestar mostrando que ele possui [o desconhecido, o Outro] um atributo que o torna diferente dos outros membros da categoria de pessoas que a ele é aberta [...] Assim, diminuído a nossos olhos, ele deixa de ser para nós uma pessoa completa e comum, e cai para a categoria de indivíduo defeituoso. Um tal atributo constitui um estigma [...] Ele representa um desacordo particular entre as identidades sociais virtual e real" [Tradução nossa]. 71 Será através do racismo científico do século XIX, nascido na Europa e nos Estados Unidos, que no Brasil um número de cientistas começará a difundir um tipo de pensamento eugenista na segunda metade do século XIX e início do século XX. Em sua obra O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930 – (1993) a historiadora Lília Moritz Schwarcz refaz o caminho das primeiras instituições de direito e medicina do Brasil e como o país tornou-se um grande laboratório tendo em sua constituição humana miscigenada o seu objeto de estudo. Com a intenção de colocar o Brasil no patamar das grandes nações modernas, cientistas e homens de direito (civil e criminal) alienam-se no sentido de difundir os “modelos evolucionistas e sóciodarwinistas originalmente popularizados enquanto justificativas teóricas para práticas imperialistas de dominação” (SCHWARCZ, 1993: 30). Para estes homens, tendo o sentimento e a responsabilidade de “salvar” o Brasil da mestiçagem, a degeneração desta porção dos trópicos estaria em seu caráter de povo misto, com grande número de africanos, afrodescendentes, indígenas e seus mestiços, todos considerados inferiores pela ausência de arianismo. Nas revistas e artigos publicados por estes “homens de sciência”, “era a população pobre e doente que, exposta como se fosse um grande laboratório humano, explicava teorias e demonstrava os desvios” (ibid. p. 200).

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suas culturas. Expostos como animais, naquilo que se tornara para o Ocidente o grande orgulho e símbolo da sua modernidade em marcha - e para o divertimento do Ocidente, nos clubes noturnos e cabarés, circos e feiras - as Exposições Universais, a partir de 1890, apresentavam nas suas “exposições étnicas”, homens, mulheres e crianças africanas 72 (e de outras nações) que, introduzidos na Europa e nos Estados Unidos, serviram como espetáculo para aquilo que ficou registrado na história da humanidade como “zoos humanos”, servindo de alimento à curiosidade racista do homem (e mulher) ocidental. A “Belle Époque” deve perder um pouco da sua resplandecência diante desses fatos. Enfim, não pretendemos com estes breves apontamentos, acender uma fogueira inquisitória na intenção de fazer expurgar os “pecados” do homem/mulher europeu e seu tratamento indigno com relação às outras raças, mesmo por que estes Outros possuem igualmente seus mecanismos e concepções excludentes – certos povos africanos não toleram o elemento albino, por exemplo – mas antes colocamos estas coisas com o intuito de esclarecer, para nós e para o leitor, a leitora, como tem se dado a questão da visão das diferenças entres os grupos humanos e demonstrar que - e na continuação deste nosso estudo - a questão do racismo se apresenta ainda de maneira bastante acentuada, no caráter dos povos, e o olhar sobre o Negro, assim arquitetado negativamente durante muitos séculos, continua existindo através da lente embaçada e mal regulada do racismo. Um fato que nos ocupa o espírito nesse momento, é o de que para que “eu seja o bom, o belo e o inteligente”, alguém precisa imperativamente ocupar o lugar das assertivas de negação das instâncias em que “eu” me coloquei. Assim, é na relação com o Outro que “eu” existo verdadeiramente para mim, que “eu” posso me humanizar cada vez mais, enquanto desumanizo o Outro. Falamos, desse modo, de uma ideologia do estigma? Do estigma/estereótipo como “utilité sociale” (BELOTTI, 1974)? Goffman nos aclara a razão dizendo que: « […] nous pensons qu’une personne ayant un stigmate n’est pas tout à fait humaine [...] nous praticons toutes sortes de discriminations, par lequelles nous réduisons efficacement […] les chances de cette personne. Afin d’expliquer son inferiorité et de 72 Sarah Saartjie Baartman ou, de verdadeiro nome, Sawtche (1789-1815), conhecida como a Vênus Hottentote ou Venus Negra, foi um dos célebres de trites exemplos de pessoa considerada como “raça inferior”, exibida e apresentada como animal em feiras e circos na Europa e nos Estados Unidos. De objeto de exposição a objeto sexual, objeto da ciência e depois à prostituição, vivendo em condições desumanas, Saartje morre em dezembro de 1815, apenas cinco anos após ter sido trasportada para a Inglaterra. Á época, o anatomista francês George Cuvier recupera o cadáver, realizando dissecações de suas partes e um molde de gesso do todo, que restará conservado do Musée de l’Homme em Paris. A partir de 1940 surgiram os primeiros pedidos de restituição do corpo vindos da África do Sul, especialmente do povo Khoikhoï, do qual Sarah era originária. Esses pedidos só se fizeram ouvir nos anos 1996, com o fim do apartheid e o apelo ao então presidente Nelson Mandela, entre outras personalidades africanas. Em 06 de maio a lei é votada e, enfim, em 2002, os restos mortais da africana, assim como os moldes do seu corpo, são solenemente enviados para África do Sul. Hoje, a Vênus Negra é a representação da reivindicação desses povos pela restituição de bens culturais e simbólicos que lhes foram injusta e criminosamente usurpados. Para ampliar os conhecimentos sobre a vida e a história de Sawtche , duas obras podem ser visitadas, que guardam o mérito de colocar em evidência a história dessa mulher, símbolo do racismo do homem/mulher Branco: o livro L’énigme de na Vénus Hottetonte (2000) do jornalsta Gérard Badou, e o filme Vénus Noire (2010) do premiado diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche e interpretado de maneira verossímil e emocionante pela atriz cubana Yahima Torres. Venus Noire pode ser uma viagem na história e uma experiência estética única.

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justifier qu’elle représente un danger, nous batissons une théorie, une ideologie du stigmate, qui sert aussi parfois à rationaliser une animosité fondée sur d’autres différences, de classe, par exemple»73 (1975 :15)

Deixemos, então, o passado, afim de constatar os seus reflexos no presente, uma vez que o passado não se constitui apenas em pretéritos, mais igualmente em interferências. Momento oportuno, tornamos, então, a falar da personagem da sua própria vida e da sua escrita, Carolina Maria de Jesus. Na sua história de vida existem profundas interferências do passado (e do presente) racista da humanidade e de seu país. Os estereótipos viajaram através dos séculos (de escravidão, de desumanização, de sexismo) e se colaram como resina corrosiva sobre sua pele “cor da noite”. Um defeito de cor?74 Uma deformação de gênero? Antes estigmas construídos e difundidos através dos tempos e dos quais a autora parece ter tentado se desvencilhar. Ser alvo de um estigma significa ser o que não se pretende, alienar-se, em muito dos casos. É como um exemplo bastante elucidativo utilizado por Goffman, que compara o estigma com uma espécie de fantasia que certa pessoa porta, mas não o tipo de disfarce que se escolhe voluntariamente para enganar o Outro sobre a sua identidade, mas uma fantasia colocada nela sem o seu consentimento, e que no caso serve para enganar a si mesmo, sobre sua identidade (1975:18). Contudo, deixar de “ser” ou pertencer a uma dada categoria é, por outro lado - e tocamos aqui no problema dos paradoxos e do devenir - começar a “ser” outra coisa ao mesmo tempo. E desterritorializar-se é, num mesmo sentido, buscar outros (re)territórios, novos e/ou menos grotescos. Assim, Carolina de Jesus, em suas memórias relata os eventos desde a pequena infância e testemunha o tratamento preconceituoso que sempre recebia do Outro apenas por ser uma criança

73 "[...] nós pensamos que uma pessoa que tem um estigma não é exatamente humana [...] praticamos todos os tipos de discriminação, pelos quais reduzimos eficazmente [...] as chances dessa pessoa. Afim de explicar sua inferioridade e de justificar que ela representa um perigo, nós construímos uma teoria, uma ideologia do estigma, que serve igualmente, por vezes, a racionalizar uma animosidade baseada em outras diferenças, de classe, por exemplo". [Tradução nossa]. 74 Referimo-nos ao discurso do ex-escravizado, abolicionista, advogado e poeta brasileiro Luiz Gama (1830-1882) que, em carta publicada no jornal Gazeta da Tarde “Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor, é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.” (COBRAD, 1978: 201), mas também ao romance de título homônimo da escritora brasileira Ana Maria Gonçalves, publicado em 2006, e que retraça, em seu conteúdo, a história da africana Kehinde (possível representação de Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama e participante em movimentos antiescravistas, que se desenrolaram na primeira metade do século XIX, notadamente o que ficou conhecido como “Revolta dos Malês), no Brasil dos tempos da escravidão, romance objeto nosso de estudo que deu origem à dissertação “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves : autodiegese e identidade feminina Negra em negociação, um estudo que focalizou o emprego do modo autodiegético de contar a história, dando a voz a uma personagem Negra, a heroína da sua própria saga, e como este aspecto narrativo pode influenciar na questão das negociações identitárias das categorias “mulher” e “Negro” tanto na literatura quando na sociedade brasileira. Este estudo foi apresentado ao Départament d’Études portugaises et brésiliennes da Université Blaise Pascal, Clermont-Ferrand, França, em 2015.

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Negra. Flagrada pela vizinha - Branca - D. Faustina, enquanto furtava mangas do seu quintal, ela relembra: “Dirigiu-me um olhar que amedrontou-me. Percebi que ela era avarenta. - Então é você quem rouba as minhas frutas. Negrinha vagabunda. Negro não presta. Respondi: - Os brancos também são ladrões, porque roubaram os negros da África. Ela olhou-me com nojo. - Imagina só se eu ia até a África pra trazer vocês...Eu não gosto de macacos. Eu pensava que a África era a mãe dos pretos. Coitadinha da África que, chegando em casa, não encontrou os seus filhos. Deve ter chorado muito” (JESUS, 1882: 55).

Eis como funciona a dinâmica do racismo e do preconceito, in(tro)jetados como veneno nas veias dos sujeitos desde a mais tenra infâncias, que sem ainda ter desenvolvido mecanismos de defesa, muitas das vezes não tem outra saída que não de internalizá-los, constituindo para si perturbações psicológicas e complexos graves – frutos dos complexos alheios - que podem durar toda uma vida. Essa é uma das mecânicas mais perversas do racismo e fato corriqueiro em culturas como a do Brasil. A esse respeito, citamos as reflexões de Belotti (1974), que esclarece que: « Les préjugés sont profondement enracinés dans les coutumes: ils défient le temps, les changements, les démentis, parce qu’ils présentent une utulité sociale. L’insécurité humaine a besoin de certitudes, et les préjugés em fournissent. Leur force stupéfiante réside justement dans le fait qu’ils ne sont pas trasnmis à des adultes qui, tout conditionnés qu’ils soient, pourraient avoir conservé assez de leur sens critique bien appauvri pour les analyser et les refuser, mais qu’ils sont présentés comme verité indiscrutable depuis l’enfance et ne sont jamais plus remis en question par la suite »75 (p. 18).

A consciência é, de mais a mais, um corpo que ganha volume e forma em alguns grupos ditos minoritários do Brasil, se é que podemos nos arriscar a dizer que algo mudou em uma substância tão complexa quanto a sociedade brasileira, visto que o número de mortes, o desemprego, a pobreza, entre outras mazelas sociais, ainda atingem a maioria Negra e Mestiça e pobre do Brasil. Não iremos aqui apresentar dados estatísticos, porque este não é o objetivo do nosso estudo, mas continuaremos a estruturar nossa análise no sentido de entender como Carolina de Jesus constrói sua subjetividade – ao 75 “Os preconceitos são profundamente enraizados nos costumes: eles desafiam o tempo, as mudanças, as contraposições, porque apresentam uma utilidade social. A insegurança humana necessita de certeza, que são fornecidas pelos preconceitos. Sua força impressionante reside justamente no fato de que eles não são transmitidos aos adultos que, por mais condicionados que sejam, poderiam ter conservado o bastante de seu empobrecido senso crítico para analisá-los e recusá-los, mas eles são apresentados como verdade irrefutável desde a infância e nunca mais são questionados”. [Tradução nossa].

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que parece, desde a infância, como pudemos notar na sua citação anterior – tendo como obstáculos o racismo e o sexismo. A partir dessas disposições, começamos a visualizar algumas pistas que ajudam a colocar em relação esses mecanismos de interdição do Outro a um dos temas que fundam deste estudo; a rebelião, a reação contra os fatos da opressão. Segundo Belotti, para refutar e mesmo desconstruir o preconceito: «[…] Il faut non seulement une prise de conscience très aigüe, mais aussi le courage de la rébellion qui n’est pas le fait de tous. La rébellion suscite l’hostilité et la réprobation envers celui qui tente de subvertir les lois de la coutume, plus profondes et plus tenaces que les lois écrites. Elle peut même susciter le rejet, l’exclusion sociale. »76 (BELOTTI, 1974:18, 19)

76 “É necessário não apenas uma tomada de consciência bastante aguda, mas também a coragem para a rebelião, que não é um fato de todos. A rebelião desperta a hostilidade e a reprovação com aquele que tenta subverter as leis dos costumes, mais profundas e mais tenazes que as leis escritas. Ele pode até mesmo causar a rejeição, a exclusão social” [Tradução nossa].

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2.2 A revolta metafísica e afirmação do Ego

Dos estigmas tribais, Carolina de Jesus parece carregar quatro das fantasias ou disfarces que ela mesma não escolheu, mas que foram nela colocadas a sua revelia: mulher, Negra, pobre/favelada, semianalfabeta. Qual o peso de conduzir estes adereços burlescos? Se há todas as interdições, há igualmente os agenciamentos discursivos e a disposição para enunciar, anunciar, testemunhar, manifestar(-se); seguir pela via desejosa de abandonar a superfície do silêncio – que também em certos casos é discurso e comunica coisas do tipo “nós não nos importamos com seu sofrimento” – e de respondê-lo com o grito, diário. A publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada causou um grande impacto de público e de crítica, que foi sentido por alguns, mas sobretudo pela própria autora – enfim a “sala de estar”, em noites de autógrafos, assinatura de contratos, encontros com personalidades, viagens ao exterior, entrevistas, boa comida ao alcance dos olhos e das mãos, um tento em alvenaria, etc – que em algum mo mento de 1960, tendo diante de si o microfone deixou-se embarcar na revelação dos sentimentos sobre a experiência na favela: “Eu era revolta, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser, eu escrevi a realidade.” (JESUS, 2014: 197)77

As interdições impostas, a pobreza e a revolta. Aqui tomamos o fio condutor para interligarmos a “dialética do mestre e do escravo” às instâncias discursivas reveladoras da “revolta metafísica” como uma integrante da subjetividade caroliniana. Contudo, o que nos torna humanos? Os fatos da linguagem? A razão? Os homens e mulheres da favela comprovam suas humanidades nos atos comunicacionais produzidos pela interação pensamento/linguagem, também através de mil outras ações (ou inações). Mas eles e elas são conduzidos, pela condição penuriosa em que vivem, ao avizinhamento com o animalesco, ao devenir-animal. Lembramos bem do caso do “pretinho bonitinho” da citação na página dezenove (19) deste estudo, tendo que reproduzir os modos alimentares necrófagos das aves de rapina. Homem e abutre-do-NovoMundo78 justapõem-se, mesclam-se em algo maior. A animalização é um tema que atravessa a obra de caroliniana. Recuperar os restos de comida nas latas de lixos/lixões da cidade e viver à margem do rio 77 Grifos nossos. 78 Aves como urubus e os condores, da família dos catartídeos, são também conhecidos como “abutres-do-novo-mundo”, em diferenciação aos abutres (do Velho Mundo), da família acipitrídeos.

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Tietê, do rio-sociedade, é compartilhar tais espaços com estes e outros animais. E De Jesus reflete esta grotesca aproximação registrando em seus diários as imagens produzidas em suas construções mentais. Esses homens e mulheres são um tipo de avatar, supplicié(e) dos tempos modernos, e a relação de analogia homem/mulher-animal se apresenta em trechos como: “Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos.” (JESUS, 2014: 41); “...Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando a margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos” (ibdi., p.54). Corvo ou abutre-do-Novo-Mundo?79 Esse é o tipo de avizinhamento ou devenir que parece mais absurdo e mais evidente em comparação aos outros tipos de devenirs? Ao menos nos parece o mais impactante a primeira vista. Contudo, estas absurdidades, que aniquilam as características humanas e separam homens e mulheres em classes ainda mais desiguais, é um fator que, ao que parece, contribui ao reveillement do sujeito, e como vimos que a rebelião “n’est pas le fait de tous”, para que haja a (re)concretização do mundo humano, ou ao menos o fim da condição favelada, Carolina de Jesus toma posição, caneta em punho, para expor o absurdo da vida na favela e reivindicar a saída da posição de “escrava”, a extinção mesmo do espaço favela, tendo na escrita a escapatória da realidade de opressão. Essa é, para Albert Camus, a precisa dife rença entre revolta e revolta metafísica. Enquanto o escravo/dominado (em qualquer outro tipo de relação hierárquica e de poder) reivindica seus direitos a partir deste estado (a posição hierarquicamente desfavorecida) o revoltado(a) metafísico(a) reage para defender sua condição humana toda inteira e, “dans les deux cas, en effet, nous trouvons un jugement de valeur au nom duquel le révolté refuse son approbation à la condition qui est la sienne”80 (CAMUS, 2010:39).

79 Um fato bastante curioso, e que entendemos funcionar como um recurso estético-estilístico importante dentro do texto caroliniano, é o uso do vocábulo “corvo”, em lugar de “urubu” (também conhecido como abutre-do-Novo-Mundo), que poderia parecer, aos olhos e gosto da autora, uma palavra ligada a um animal menos atraente esteticamente, uma vez que sabemos que os urubus são animais “malditos” para o imaginário popular, ligados à crenças e superstições, como sendo prenunciadores da morte, da má sorte, do agouros. Evidentemente, estas são apenas conjecturas, porém, precisamos considerar o fato de que não existem corvos na América do Sul, a não ser algumas poucas espécies de Gralhas (da família dos corvídeos) que ocorrem “na Bacia Amazônica, Mata Atlântica e […] em cada um dos seguintes biomas: Cerrado, Pantanal e Caatinga”, aves que se diferenciam muito em aparência e cor negra dos corvos, como o ponta o especialista Luís Fábio Silveira em seu texto Corvídeos: enorme variação de tipos, disponível para consulta no link http://www.ib.usp.br/~lfsilveira/pdf/a_2013_ceccorvos.pdf. Outro fato que sustenta como certa nossa desconfiança do uso da palavra “corvo” como recurso estético é que Emili Casanova Herrero em suas Reflexões sobre a variação lexical no campo da fauna nos dados para o Atlas Linguístico do Brasil analisa as diferenças de uso entre “corvo” e “urubu” concluindo que “do ponto de vista linguístico-filológico corvo vem do latim corvus […] Urubu por sua vez é palavra de origem tupi, uru’uu”, explicando que a variação de nomenclatura para aves pretas que consomem animais em decomposição deve ter sido influência linguística dos portugueses colonizadores que, chegando ao Brasil, nomearam as aves pretas com o nome que já conheciam, corvo. Apensar de as duas variantes representarem o mesmo animal para os informantes do ALiB, o autor observa que na distribuição diatópica, realizada através de questionário com 200 informantes, em 25 capitais brasileiras, verificou-se “que 98% dos informantes (186/200) referem-se a urubu como a ‘ave preta que come animal morto, podre’”, contra apenas 4,5% que denominam a mesma ave como corvo, corroborando, assim, com uma possível confirmação das nossas pressuposições. 80 “nos dois casos, de fato, encontramos um juízo de valor em nome do qual o revoltado recusa sua aprovação à condição a qual ele pertence”. [Tradução nossa].

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Ao que parece, a experiência ou o sentimento do “absurdo” é uma agitação individual que em seus desdobramentos críticos, dentro do processo consciente e do movimento da revolta, torna-se, para o sujeito, uma experiência coletiva (CAMUS, 2010:30), e podemos encontrar esse traço no discurso da autora em questão: “...Aqui na favela quase todo mundo luta com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros.”81 (JESUS, 2014:36). Tal conceitualização encontra sua referência dentro da esfera textual em que Carolina de Jesus registra os mais de vinte anos passados no interior do microcosmos caótico do espaço favela. A ação e os movimento de idas e voltas, de entrada e saídas, desenvolvem-se em massas rotatórias, repetições agudas - “sai para catar papel”, “cheguei na favela”, “saí à noite, e fui catar papel”, “...Cheguei na favela: eu não acho geito de dizer cheguei em casa” (sic), “saí e fui catar papel”, “Cheguei no inferno”- entre espaço favela e espaço não-favela, que são os marcadores observacional a partir dos quais a autora estabelece as analogias entre aqui e lá, entre “Eu” e “Outro” – “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (sic)(ibdi., p.37)82 – . Se ela se sente um “objeto fora de uso”, por outro lado o Ego demonstra não ter nenhuma tendência ao silêncio sobre a percepção desse apartheid social que representa o espaço do Outro e aquele em que “eu vivo”. Como já vimo anteriormente, Carolina de Jesus demonstra realizar uma adesão a si mesma, que se concretiza na ação da escrita como manifestação do “até aqui, sim, a partir daqui, não”. Diante da situação e da condição absurda: “Se taire, c'est laisser croire qu'on ne juge et ne désire rien et, dans certains cas, c'est ne désirer rien en effet […] Mais à partir du moment où il parle, même en disant non, il désire et juge. Le révolté, au sens étymologique, fait volte-face. Il marchait sous le fouet du maître. Le voilà qui fait face. Il oppose ce qui est préférable à ce qui ne l'est pas. Toute valeur n'entraîne pas la révolte, mais tout mouvement de révolte invoque tacitement une valeur”83 (CAMUS, 2010: 22)

Face à absurdidade, entre as indas e vindas, os estados de espírito apresentados são dos mais sombrios possíveis e o cansaço desse mundo humano (quase animal) torna-se presente, tão intermitente quanto a fome, ou a morte. No Quarto...os campos semânticos dão-nos uma ideia da atmosfera cinza, do peso quase insuportável dos dias, a grande rocha que Sísifo (ou Carolina) faz rolar até o cume do 81 Grifos nossos. 82 Grifos nossos. 83 “Calar-se é deixar crer que não se julga nem deseja nada e, em certos casos, é não se desejar nada, de fato. Mas, a partir do momento em que ele [o revoltado] fala, mesmo dizendo não, ele deseja e julga. O revoltado, em sentido etimológico, (re)volta-se. Ele caminhava sob o chicote do mestre. Eis então quem enfrenta. Ele confronta aquilo que é preferível àquilo que não é. Nem todo valor conduz à revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor” [Tradução].

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monte todos os dias - “Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta”; “Sai indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte”; Trabalhei apreensiva e agitada” (JESUS, 2014:12,19)84. O cansaço torna-se começo e fim ao mesmo tempo, pois enquanto marca a dinâmica de uma « vie machinale, […] inaugure en même temps le mouvement de la conscience. Elle l'éveille et elle provoque la suite [...] Au bout de l'éveil vient, avec le temps, la conséquence: suicide ou rétablissement »85 (CAMUS, 1985:20). Assim, esse “qualquer coisa de desanimador” parece empurrar a mulher Carolina em direção a um precipício que ela considera existente, e até supõe olhar dentro dele, flertando com o nada. “Tout bouge et court au néant, mais l'humilié s'obstine, et maintient au moins la fierté” 86 (Id.,2010:59) porque existe também esta outra coisa que empurra ainda com mais força para fora do precipício. De Jesus testemunha em seu texto, que as dificuldades, as grandes, sobretudo, podem conduzir o indivíduo a atitudes drásticas, a buscar um fim para o sofrimento: “O que me entristece é o suicidio do senhor Tomás. Coitado. Suicidou-se porque cansou de sofrer com o custo da vida. Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome” (sic) (JESUS, 2014: 161-162)87. Neste trecho, ao mesmo tempo em que temos a declaração dos seus sentimentos doridos pelo fim alheio, podemos interpretar igualmente um momento de consciência de si e a afirmação do Ego de que há algo em si que “vale a pena”, demonstrado na sua falta de aspiração ao nada, que é o suicídio. Contudo, o suicídio não se constitui, para a autora, em ato desprezível, vergonhoso, fazendo com que o sujeito seja encarado como indigno da vida diante dos outros, como de fato pode ocorrer quando se critica um ato suicida. Ao contrário, De Jesus aponta o dedo (em forma de texto) para aquele que ela considera como culpado pela desdita de certos membros do grupo, afirmando que a culpa é da omissão do Estado: “Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. (...) A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. (...) Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matarse porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!” (sic)(ibid., p.62-63)88

84 Grifos nossos. 85 “vida maquinal [...] inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Ela o desperta e provoca a continuação. Ao final do despertar, vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento” [Tradução nossa] 86 "Tudo se move e corre para o nada, mas a humildade persiste e mantém pelo menos o orgulho" [Tradução nossa]. 87 Grifos nossos. 88 Grifos nossos.

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Evidentemente, também Carolina de Jesus, tocada pela absurdidade da realidade que a circunda, chega a contemplar a ideia de fuga drástica, ida à beira do precipício, todas as vezes que a situação se mostra complexa e “son absurdité exige qu'on lui échappe, par l'espoir ou le suicide”89 (CAMUS,1985 : 21). Ela relata, ao longo do seu diário, que as dificuldades dessa existência confusa não é fácil de superar e/ou entender, e diversas vezes, sob a influência do cansaço e do desânimo, ela lamenta sua condição: “Como é horrivel levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar.”; “...Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer”(JESUS, 2014: 99, 102, 174). Notemos que, dentro desse raciocínio solipsista, que se apresenta na parte final do enunciado, “quem vive precisar comer”, a vida é um valor. Valor este que é compartilhado com os filhos, vizinhos e vizinhas, com a humanidade inteira, valor comum, marca de uma metafísica que se mescla aos sentimentos de revolta. É cogitar fraternalmente, mesmo que a partir de uma renovada concepção de altruísmo, porque dessa vez alimentada pelo apreço a si mesma. E há, sobretudo, o amor pelos filhos, assim « se tuer, dans un sens, et comme au mélodrame, c'est avouer. C'est avouer qu'on est dépassé par la vie ou qu'on ne la comprend pas. »90 (Camus, 1985:18), e o suicído, enquanto « aspiração ao nada » não se adequa ao modo de ser caroliniano, que como vimos, é um Ego que pretende e quer tudo. Todavia, a outra saída, essa outra « ligne de fuite ou de déterritorialisation»91, o movimento da revolta contra os fato da opressão e da servidão, encontra igualmente sua manifestação nas linhas que atravessam o diário. Os traços que exprimem mais firmemente uma consciência intima com relação a sua condição e seu valor, estão expressos através de uma das sentenças mais vivas em cogito e em afirmação dos direitos do Ego: “Eu estou começando a perder o interesse na existencia. Começo a revoltar. E minha revolta é justa” (JESUS, 2014: 35). Ainda não sabemos exatamente a partir de que momento, na trajetória de Carolina de Jesus, instalaram-se os “germes” da revolta e do devenir - ainda há no conjunto da sua obra, os caminhos para talvez encontrarmos formas de interpretar esta gênese mas a questão que nos colocamos é: quando esta mulher começou a perder a paciência? a desejar tudo, a vislumbrar a liberação de certos cativeiros? Outra característica que podemos considerar como sendo fruto da revolta metafísica, e que encontramos traços no discruso caroliniano, é a interpelação sobre a intervensão de uma entidade maior 89 "sua absurdidade exige que se lhe escape, pela esperança ou pelo suicídio" [Tradução]. 90 “matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se pode compreendê-la”. [Tradução nossa]. 91 “linha de fuga ou de desterritorialização” [Tradução nossa].

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que protegería e guiaria a humanidade, mas que se esquece do favelado(a). A ideia de Deus e, poderíamos dizer, uma fé considerável, é pois existente em Quanto de despejo, sem ser, no entanto, uma manifestação religiosa levada às últimas consequências em seu dogmatismo, mas antes a crença numa entidade que seria supeior à matéria humano, em suma, a mesma ideia de Deus difundida através dos séculos pela tradição judaico-cristã. Carolina de Jesus era, o que podemos chamar de deísta, pessoa que crê e afirma a existência de um poder superior. Porém há uma incronguência entre a ideia difundida sobre Deus e a humilhada condição humana vivenciada dentro da favela. Não há uma negação completa, antes a dúvida diante do caos e da falta de intervenção de um Deus que dizem amoroso, benevolente, que cuida dos humilhados - « os humilhados serão exaltados » – mas que parece ter esquecido uma parcela da humanidade. Em certa passagem De Jesus lamenta : « Será que Deus sabe que existe as favelas e que os favelados passam fome? » (JESUS, 2014:46). Evidentemente, uma mente que cogita, que racionaliza sua experiência, em um momento ou outro pode acender a chama da dúvida, e com a autora não acontece de maneira diferente. Está claro que dentro da favela a maioria não vive uma vida humilde, mas sim uma experiência mergulhada em huilhação, degradação, e Carolina de Jesus sabe diferenciar estas duas instâncias, humilde X humilhado. Ela reflete a respeito do discurso de um religioso, que seria o representante de Deus na terra e que está sempre na favela a aconselhar os moradores a terem mais filhos : « Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, ai eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteri orados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras.” (ibdi., p. 85-86)

Albert Camus esclarece ainda que “Le révolté métaphysique n'est donc pas sûrement athée, comme on pourrait le croire, mais il est forcément blasphémateur” 92. Teria o Frei Luiz considerado como blasfematórias as reflexões de Carolina de Jesus, se delas tivesse tomado conhecimento? Enfim, de nada sabemos a este respeito, porém o que nos impele na continuação deste estudo é o fato de termos podido até aqui, desvincular em partículas o discurso caroliniano, para melhor compreender o funcionamento desta subjetividade. No capítulo III do nosso estudo, veremos de que forma o Ego caroliniano lida com dois dos dispositivos de exclusão que, para alguns(mas) seriam desqualificadores 92 "O revoltado metafísico não é, certamente, ateu, como se poderia pensar, mas ele é necessariamente blasfemador" [Tradução nossa].

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de sua pessoa e/ou de sua obra: as questões sobre racialização (Negro) e gênero (feminino). Encontraremos, pois, outras marcas da revolta metafísica ao longo de nossas análises? Porém antes, falaremos de maneira sucinta sobre o interesse mercadológico nessa “estética da revolta”.

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2.3 A estética da revolta: a fome como originalidade ? “Quem mata muito é fome, é bala, é chicote...” (Barravento, 1962)

Na foto, as autoras brasileiras Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus. Veremos qual a relação existente em breve. Antes “A barriga precisa doer mesmo. Então, quando tiver uma ferida bem grande, todo mundo grita de vez”. É verdade que esta sentença poderia ter sido proferida ou registrada por Carolina de Jesus em seu diário, porque sabemos que a fome a autora conheceu de perto, e soube o que é a dor de um corpo que se consome a si mesmo, em autocombustão, para fazer continuar funcionando essa máquina humana. Porém a frase não é da autora, mas como sabemos que ela frequentava sessões de cinema, fazendo-o com certa assiduidade (PERES, 2006: 50), e que à época do lançamento do seu diário também em matéria de cinematografia realizavam-se ideias também inovadoras no Brasil - época de movimentação cultural que deu origem ao Cinema Novo - incorporamos aqui a frase que é proferida pelo inconformado e revoltado Firmino, personagem emblemático do filme Barravento (1962), de Glauber Rocha. Esta obra é, para efeitos de sentido discursivo, talvez a condensação da ideia glauberiana de “estética da fome”, que encontra reação através das ações de Firmino, que após um período afastado da aldeia de pescadores em que vivia, no litoral baiano, volta para tentar convencer os outros moradores de que eles precisam reagir aos abusos do comerciante que é dono da rede de pesca que 56

estes utilizam para conseguir o peixe que consomem. Firmino manipula situações – provocando mortes e gerando conflitos – que demonstram sua da revolta pelo conformismo dos outros. Esse é apenas um dos exemplos de um tipo de cinema que foi iniciado na segunda metade dos anos 1950 e que tinha como um dos seus objetivos, o engajamento político e social. Em seu texto Uma estética da fome93, o cineasta brasileiro Glauber Rocha (1939-1981), em tom menos de desconsolação que de insurgência, expões os sintomas da doença de uma recepção paternalista das artes latino-americanas pelos estrangeiros e o vazio ou a “redução política da arte” do Brasil diante do mundo, que difundem “até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizaram os problemas sociais)” e que provocam uma série de visões equivocadas que contaminam tudo, e sobretudo o “terreno geral político”. Além disso, ele critica as formas - pouco atraentes, em sua concepção - de se produzir arte no Brasil, fruto de uma pequena burguesia que não abandonava a segurança dos seus mundos, dos seus saraus, galerias, encontros no exterior, suas bibliotecas, universidades, mundos do qual, segundo Rocha, “o autor se castra em exercícios formais que todavia, não atingem a plena possessão de sua formas” (ROCHA, 1965: 1), também não atingindo uma representatividade massiva do que é o Brasil em termos políticos, culturais e humanos, precisamos salientar. Glauber Rocha pensava essa arte, como sendo uma arte para “inglês ver”, como uma nova forma de colonialismo, uma vez que os mecanismos de compreensão do colonizador não eram plenamente alcançados, e a “linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento”, era apenas compreendida na superfície do humanismo excessivo. E, referindo-se à fome latina, enquanto “sistema alarmante” e ponto nevrálgico da sociedade, ele diz que é “Aí que reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ibdi.,p.2). “Aruanda” (1960)94,“O pagador de promessas” (1962)95,“Vidas secas” (1963)96, , “Barravento” (1962), “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) 97, a lista é extensa - “personagens comendo terra, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, escuras” - o novo cinema retratou a fome do brasileiro, mas mesmo querendo mostrar as faces do holocausto tupiniquim, o Cinema Novo via estes velhos atores sociais – e não novos, como o pretende Sebe Bom Meihy (2002) – do alto, como uma parcela impedida de vociferar e que precisava da “câmera na mão e uma ideia na cabeça” dos jovens dessa época, para se fazer ver e ouvir. Mas o que mudou depois que o Ci93 Texto disponível no link http://cineclubedecompostela.blogaliza.org/files/2006/11/esteticafome.pdf. Acessado em janeiro de 2016. 94 95 96 97

Curta-metragem do diretor Linduarte Noronha. Filme de Anselmo Duarte, baseado na peça de título homônimo, do autor Alfredo Dias Gomes. Filme de Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance de título homônimo do escritor Graciliano Ramos. Filme de Glauber Rocha.

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nema Novo mostrou seus Brasis profundos? Não grande coisa, mas o que é certo é que alguns cineastas – ou profissionais do jornalismo, ou editores, e mesmo os homens da política - inclusive Glauber Rocha, erigiram suas premiadas carreiras através de suas películas, de seus surpreendentes clichés e obras carregadas de discurso político e de fome98. Uma das principais contribuições do neorrealismo italiano99 para o cinema foi a ampliação do ponto de vista de cena, que agora não era mais a partir de câmeras fixas, mas em movimento livre que capturavam o cotidiano em seu estado de realidade direta. Os passantes, as ruas, os animais, as feiras, o movimento ao redor, tudo servia de composição para este movimento cultural desejoso de mostrar a realidade sócio-econômica da Itália “en opposition avec les experiences élitistes de la prosa d’arte et du calligraphisme”100, ideias que influenciaram fortemente o movimento cinemanovista do Brasil. Em matéria de literatura, uma vague neo-realista também apresenta-se no Brasil bastante mais cedo que no cinema, através de uma escrita marcadamente influenciada pelo período histórico - a modernidade - mas também pelos ideais marxistas e pelos postulados psicanalíticos de Sigmund Freud. Eram pelos anos de 1930 e evidentemente a “estética da fome” já se fazia presente através das linhas escritas de alguns autores e autoras que denunciavam a condição do homem e mulher pobres do Serão, da seca, dos êxodos urbanos, da exploração do trabalho. “Vidas Secas”, “O Quinze” (1930) 101, “Menino de Engenho” (1932)102, “São Bernardo”103, Capitães da areia104 (1937), apenas para citarmos algumas premiadas obras da literatura desse período que tematizam a “estética da fome”, obras que guardam uma grande importância por seus conteúdos temáticos e belas escrituras. E aqui retornamos ao Quarto de despejo no qual encontramos a confirmação do (pós?)realismo - “Um sapateiro perguntou-me se o 98 Nos vem à mente ainda outros exemplos de profissionais com obras premiadas a partir da “estética da fome” como o são os casos do cineasta brasileiro Marcos Prado (1961) e o fotojornalista sul-africano Kevin Carter, (1960-1994), o primeiro é premiadíssimo nacional e internacionalmente pelo impressionante filme documentário Estamira (2004), que conta a história de Estamira Gomes da Silva, uma mulher interessante pelo seu discurso filosófico, portadora de problemas mentais, beirando sempre a lucidez e a loucura, e que se deixou capturar pelas câmeras de Prado na dinâmica do seu dia-a-dia num aterro sanitário, onde passava a maior parte do seu tempo em companhia de outros moradores do lixão, no Jardim Gramacho, Estado do Rio de Janeiro. O segundo foi premiado com o Pulitzer de fotografia especial em 1994 pela fotografia que correu o mundo e leva o título de La fillette et le vautour capturada em 1993 durante a guerra civil no Sudão e que retrata em primeiro plano uma criança em estado profundo de desnutrição e em plano de fundo um abutre que parece esperar a sua morte para devorá-la. À época Carter recebeu muitas críticas do público que o acusava de não ter ajudado a criança sudanesa. Kevin Carter talvez não tenha suportando toda a miséria que viu através de suas viagens, a desumanização, a culpa, e suicidou-se em julho de 1994. Quanto a Estamira, morreu em 2011 de infecção generalizada após ser atendida com descaso – segundo relatos do filho e do próprio Marcos Prado, que teria ajudado no internamento – no Hospital Miguel Couto, na Gávea, como podemos constatar através da reportagem do portal eletrônico Último Segundo, disponível no link http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/morre-protagonista-do-documentario-estamira/n1597106728373.html. 99 De acordo com o verbete “Neorealisme italien”, do Dictionnaire du Cinéma Italien, publicação da Encyclopaedia Universalis (2016), a palavra surge na crítica italiana em 1929, no dia seguinte ao lançamento de Indifferent, primeiro romance de Alberto Moravia, célebre escritor que prefacia a tradução italiana de Quanto de despejo e reconhece na escrita caroliniana “uma profundidade shakespeariana”. 100 "Em oposição às experiências elitistas da prosa d’arte e do calligraphisme” 101Romance de Raquel de Queiroz. 102Romance de José Lins do Rego. 103Romance de Graciliano Ramos. 104Romance de Jorge Amado.

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meu livro é comunista. Respondi que é realista” (JESUS, 2014: 108) - cenário da revolta formalizada em texto, não mais representação pequeno-burguesa da fome, mas estética de uma revolta metafísica e de uma metafísica germinada e difundida em corpo socialmente interditado, por que Negro, feminino, semianalfabeto e pobre. A estética da revolta caroliniana foi transfigurada em uma “estética da fome”, não apenas por que em seu conteúdo a pobreza extrema aparece com frequência, mas pela ambição do mercado editoral, para “melhorar” seu valor, para que fosse melhor comercializável, interessados em vender a miséria que ajudaria a saciar e apaziguar a “nostalgia de primitivismo” dos estrangeiros, tanto dos daqui quanto dos de longe. E encontramos traços no acervo da obra de Carolina de Jesus que mostram que havia um genuíno interesse pela pobreza e não pela sua produção literária e a problematização da questão das habitantes do espaço favela, a miséria e outros males sociais registrados através dos seus escritos. Em carta redigida a Gerson Tavares, cineasta brasileiro, em dezembro de 1976, disponível no fotograma de número 524 do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Carolina de Jesus confessa : “Quando eu escrevi esse livro, pedaços da fome: O título, era - “A Felizarda” – Mas, o ilustrador Suzuki, muito antipático trocou o nome do livro – para pedaços da fome […] Quando puder, quero mandar imprimi-lo do jeito que escrevi” (BARCELLOS, 2015: 145). Enfim, apresentamos esse extrato apenas para demonstrar como alguns retalhos de fome parecem interessar e vendem mais do que uma “Felizarda”. Ao citar o romance A hora da estrela (1977) de Clarice Lispector (1920-1977) Rodrigues (2013) lembra o fatídico ano de 1977 em que o Brasil perdeu tanto Clarice Lispector quanto Carolina Maria de Jesus para a morte, e lembra que a temática da denúncia, ou do grito - “Porque há o direito ao grito. Então eu grito”, revela o narrador de A hora da estrela – “sendo uma capacidade comum, fora trabalhada por ambas em suas obras, e aqui, possivelmente, terminam as semelhanças” (p.26). Semelhanças e diferenças. Temos caminhado bastante entre estes dois polos ao longo destas linhas analíticas. Poderíamos, então, adicionar mais algumas aproximações entre as autoras? Quem sabe aquela menina com seu livro em Felicidade Clandestina105 poderia chamar-se Carolina, visto suas paixões respectivas e quase carnais pelos livros? Ou ainda o fato de escreverem em estilo realista, algumas realidades do cotidiano (seja ele diegético ou não)? E o que dizer de as duas terem encontrado-se numa sessão de autógrafos em uma livraria carioca em que “uma Clarice Lispector ansiosa (na lembrança de Nélida Piñon) disse para Carolina […] que a escritora do Canindé escrevia de verdade ou escrevia a verdade, reforçando o poder de sua escrita106”? A foto afixada no início deste subcapítulo testemunha o momento 105Conto presente no livro de título homônimo de 1971, de Clarice Lispector. 106 ALVES, Uelinton Farias. A literatura de Carolina Maria de Jesus: do ‘Quarto de despejo’ para o mundo. Artigo do jornal O Globo, 06 de Setembro de 2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-literatura-de-carolina-maria-de-jesus-do-quarto-dedespejo-para-mundo-13843687#ixzz4Fb3d7Qcw.

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do encontro entres as duas autoras. Porém, para além desses pequenos fatos, aparentemente banais, encontramos também vestígios de uma estética em “deflação” no percurso literário de Clarice Lispector, curiosamente alguns anos após o sucesso estrondoso de Quarto de despejo - com a criação, entre 1973 e 1977, de um tal Objeto gigante de intenções declaradamente “anti-literárias”, uma literatura que mudava drasticamente em conteúdo e forma daquela poética até então produzida por Lispector. Em seu interessante e rico estudo Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de Clarice (2002), a pesquisadora Sônia Roncador se debruça sobre o manuscrito de Lispector, Objeto gigante, e que, grosso modo, é um estudo dedicado a investigação destes últimos escritos, antes da morte da autora, período literário em que a temática da pobreza extrema, da miséria e das desigualdades sociais se apresentam na atmosfera da produção da autora, que “decide, por esses anos, escrever a maneira de um diário pessoal”107 ou cronicizada, evitando os formalismos e o conteúdo “psico-filosófico” das abstrações e epifanias de suas personagens anteriores. Essa “propensão a escrever autobiografia”, o uso da metalinguagem para relatar as circunstâncias de produção da obra, problematizando, assim, o fazer literário enquanto “locus de privilégio de uma aprendizagem” - reservado a alguns membros “seletos”, nossos conhecidos mètres étalons – são apresentados em um estilo que, segundo Roncador, causa um “rebaixamento do nível retórico” da prosa de Lispector. Assim como Carolina de Jesus previa que sua escrita realista não agradaria a muita gente que não estava acostumada com “esse tipo de literatura”, também Clarice Lispector parece ter temido a recepção desta obra tão diversa de tudo aquilo que ela tinha feito até então, uma obra “emplastrada” de si mesma e sem transcendência, na opinião da crítica: “você se transcendia e se ‘resolvia’ em termos de criação literária; agora a ‘literatura’ desce a você e fica (ou aparece) como imanente ao seu contidiano; você é seu próprio tema”, diz José Américo Pessanha (apud., Roncador, 2002:57), em correspondência troca com Lispector. E os diálogos continuam sendo estabelecidos, pois cada uma das autoras, tanto Lispector quanto De Jesus, a partir de seus respectivos locus de produção, parecia ter consciência de que seria, de uma maneira ou de outra, rechaçada:

“[…] meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser, eu escrevi a realidade.” (JESUS, 2014: 197) “[…] todas as vidas são vidas heroicas. Eu também sou heroica. Aliás é só por heroísmo também que publico este livro que vai ser vaiado e cujas intenções de anti-literatura serão captadas por poucos” (Lispector, apud., Roncador, 2002). 107Grifos nossos.

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Era, talvez, desse lugar quase intocável em que foi colocada a Literatura através dos tempos, que Clarice Lispector tentou se rebelar, demonstrando com Objeto gigante, o desejo de não mais “respeitar certas regras artísticas de composição” (RONCADOR, 2002: 57). Finalmente cedendo às pressões da crítica, ela abandonou a ideia de um Objeto gigante, realizando revisões e cortes que deram origem às obras Água Viva (1973) e o belíssimo A via crucis do corpo (1974). O mais curioso é que o dito “empobrecimento” ou “deflação” da obra de Clarice Lispector é comparado, pela crítica, a diversos fazeres literário da sua época, sobretudo o de autores estrangeiros, mas em nenhum momento se desconfia de que, talvez, uma “estética da fome” oriunda do (pós)realismo brasileiro, poderia também ter servido de inspiração para que Lispector se arriscasse a produzir uma literatura mais próxima do físico que do metafísico. Será que Clarice Lispector não poderia ter bebido da fonte “suja” e, podemos dizer, heroica, de Carolina Maria de Jesus? Depois destes nossos apontamentos, passemos, então, à questão central deste estudo, que é de tentar identificar no discurso caroliniano a existência interrelações entre os traços da revolta metafísica e a maneira como Carolina de Jesus interpreta ou entende questões das relações sociais que estão ligadas a dois dos dispositivos de interdição aqui já citados: o de racialização (categoria Negro) e de gênero (categoria mulher).

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III/ METAFÍSICA E SUBJETIVIDADE EM CAROLINA DE JESUS: DUAS PROPOSIÇÕES

3.1 Dispositivo 1 : Racialização/ Negro

Qual Carolina para qual causa negra? Passemos à existência ou a inexistência da causa, após termos interpretado a existência da revolta metafísica. O discurso da crítica especializada sobre a obra caroliniana forma um eco nervoso, por vezes ilógico: daqui ouvem-se “voz marginal”, “escritora favelada”108, “experiência marginal”; d’acolá ainda isto, “ela não lutou pela causa”, “inexiste um eu enunciador negro” em seu discurso (BOM MEIHY (org.), 1996), ao mesmo tempo que a trata de “escritora negra”, “nunca teve consciência negra” (LEITE & CUTI, 1992:138, apud., RODRIGUES, 2013:71) e por fim a escritora leva o adjetivo de “titubeante”. Afirmar que Carolina de Jesus em sua obra não demonstra um “compromisso com a causa negra” (MAIHY & LEVINE, 1994) é, no mínimo, molhar os pés nas águas perigosas da ingenuidade e estar desatento às profundezas que engendram as ideias sobre causa e negritude; é não ter em consideração, igualmente, o fato de grande importância que é a questão da subjetividade exposta nas linhas carolinianas. Ler Carolina de Jesus significa tomar parte numa batalha intelectual e física, quotidianas, no sentido de desterritorializar-se e projetar seu Ego para fora do ambiente do espaço favela, espaço absurdo. A arquitetura desse desterritório, em muitas passagens do seu livro, apresenta-se de maneira bastante ambígua, patinando no lamaçal movediço e escorregadio dos paradoxos. Ela não se sente fazendo parte. Ela está temporariamente parte, como tantos outros homens e mulheres no Canindé 109. E aqui “estar”, verbo-valise que comporta significados para além do aspecto modal, nos conduz, por assim dizer, à ilustração do não sentimento de pertença; é preciso manter-se o mais afastado possível dos limites de tudo que esteja conectado à atmosfera favelada: da falta de “inducação” 110, da violência 108 Concordamos com as reflexões de Miranda (2013: 16) de que “o epíteto de “escritora favelada” não condiz com a construção literária de Carolina de Jesus, uma vez que restringe seu campo discursivo ao universo do qual ela própria buscou afastar-se”. A questão do desterritorializar-se fica evidenciada em profundidade na obra Quarto de despejo. Sua autora demonstra sentir repulsa tanto pelo espaço físico da favela, com sua insalubridade, quanto pela periculosidade que podem apresentar certos comportamentos humanos, distanciados de conceitos de moral e ética que a autora entende como sendo importantes para a dinâmica social e boa vida em conjunto. Ela deseja deslocar-se para o espaço não-favela. Mas é preciso esclarecer também que o epíteto em questão não apenas restringe o campo discursivo, que na verdade engloba na mesma “capsula” as percepções tanto do espaço-favela quanto do não-favela, mas também, e em larga medida, limita a sua personne enquanto autora de literatura, no exterior de um cabedal mais amplo que é a Literatura brasileira. 109 Encontramos no texto de Fernanda Rodrigues de Miranda que, citando Meihy & Levine (1994) mostra que a favela do Canindé era considerada, tanto pelo poder público como pelos moradores e moradoras, um lugar de transitoriedade. Esse lugar de passagem seria o intermédio entre aqui e lá, entre o êxodo e a adaptação à vida na capital, a conquista de um trabalho e, consequentemente, à melhoria na condição de vida. (MIRANDA, p. 15). 110 Ortografia caroliniana para a palavra “educação”.

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dos homens, dos corpos nus das mulheres expostas aos olhares, do alcoolismo, da fome, da vizinhança com os abutres, enfim, de tudo aquilo que degrade os corpos e as humanidades. No discurso caroliniano as proposições sobre as diferenças étinico-raciais aparecem em reflexões e resignificações, expressas também por instâncias linguísticas como ‘preta’, ‘preto’, ‘negra’, ‘negrinha’, ‘branco’, ‘branca’, e adquirem uma estrutura rizomática, que apresenta a função de emitir outros rebentos, ou sentidos polissêmicos, de acordo com o contexto enunciativo, desenrolando-se, como o veremos na sequência, para o campo das contradições. Em um dos trechos de Quarto de despejo, lamentando o atraso de seu parceiro amoroso, De Jesus erige os limites que separam sua negritude daquela do Outro, da Outra: “[...] eu desejava ser preta. - Mas você não é preta? - Eu sou. Mas eu queria ser destas negras escandalosas para bater e rasgar as tuas roupas” 111 (JESUS, 2014:135136). Esta tentativa psicológica de desterritorialização se metamorfoseia em corpo discursivo através do ato da linguagem, que se propaga como raios luminescentes e refletem no seu interlocutor, retornando para De Jesus em forma de questão retórica acerca da sua condição racial, cuja resposta ela se encarrega de reformular com o cuidado devido de resguardar o Ego, que no discurso, é marcado pela presença da conjunção coordenativa adversativa em destaque e a exposição de outras mulheres Negras como exemplo. Sem levarmos em conta a parte de humor que há neste dialoga que Carolina de Jesus estabelece com um seu parceiro Manoel, neste exemplo a cor da pele toma formas para fazer referência aos comportamentos considerados moralmente desviantes e que ela observa em outras mulheres Negras. Mirando-se através desta perspectiva, a autora não se considera preta, fato que não deveria ser surpreendente, se avaliarmos que além da tentativa constante de proteger o E(u)go, a autora compartilha este espaço favela quase que apenas com outras mulheres (e homens) Negra(o)s e Mestiça(o)s - Branca(o)s sendo esmagadora minoria -. Assim, dentro da sua formulação conceitualística e a partir da experiência proximal, apenas as mulheres Negras promovem escândalos em público, ou têm comportamento que desviam daqueles socialmente estabelecidos e aceitos. Desse modo, o Outro(a), a mulher/homem branca(o)s, permanecem ‘imunes’, fora deste referencial negativo. Por outro lado, aquilo que parece seguir em sentido uno movimenta-se numa corrente, muitas vezes agitada, de alternativas: é preciso (re)territorializa-se, o que pode ocorrer por diversas vias, e maneiras também diversas, dependendo do meio e da psicologia em movimento de cada sujeito. É importante salientar que, antes da tomada de consciência de si, pode ocorrer, por exemplo, uma adesão, consciente ou inconsciente, a alguns aspectos físicos e/ou culturais do Outro, apresentado e reconhecido como modelo majoritário – o mètre étalon de que tratamos no capítulo I deste estudo, a 111 Grifos nossos.

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“constante” -. O que alguns chamam de “assimilação”, aqui preferimos considerar como o processo psicológico do eretismo afetivo112 de que trata Frantz Fanon (2008), porque ultrapassa a visão da noção de conjunto/grupo (com seus costumes, tradições etc) para permitir a análise de tal adesão na perspectiva das relações interindividuais e/ou interétnicas. Mas o que aqui e acolá tem possibilidade de se confirmar ou refutar com relação ao eretismo afetivo, no caso do discurso carolineano é problematizado, resignifica-se, tornando-se conteúdo racional, por intermédio desse sentimento de revolta que é o motor, também, da sua metafísica. Ela encontra a maneira de exprimir aquele “não”, comentado por Camus, e impor um limite, uma fronteira à detração e, consequentemente, à possível adesão: “16 DE JUNHO [1955] ...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: - É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta” (sic) (JESUS, p. 64).

Pretendemos entender o trecho acima citado num nível que ultrapasse o puramente evidente ou o que está na superfície do entendimento. Auto-centramento? Autovaloração? Em realidade, nossa desconfiança é de que toda esta massa densa e complexa de fatos, sujeitos, discursos e historicidades nos quais a autora está imersa, não são capazes de desarticular ou desestabilizar a poderosa base subjetiva na qual ela se sobrepõe. De Jesus encrava seus pés no cimento fresco da subjetividade, no sentido mais benvenistiano do termo, “como unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas, assegurando a permanência da consciência” (1966), consciência através da qual ela deduz que a assertiva do Outro, acerca da sua cor de pele, é falaciosa, injuriosa, reelaborando-a, assim. Mas é preciso fixar e dizer. São necessidades que De Jesus demonstra e é através da criação 112 É essencial ter em conta que esse tipo de “agitação” psicológica encontra seu estopim no problema da estigmatizarão, que promove a desumanização e exclusão de certos grupos sociais como vimos no capítulo I deste estudo. Podemos citar exemplos de eretismo afetivo colhendo-os da memorialística da própria Carolina de Jesus. Ela relata que sua tia Ana Marcelina, “a mulata [clara] que não gostava de preto”, “impediu a sua filha [branca] de casar-se com um preto. Dizendo que queria que a sua filha casasse com um branco para purificar a raça”, situação que resultou no suicídio do jovem casal. “Minha tia vestia roupas finas iguais as dos brancos. Esforçava-se para viver igual aos ricos [...] Quando nós, os sobrinhos pretos, íamos visitá-la, não tínhamos o direito de entrar. Casa de mulato, o negro não entra.” (CMJ, 1986:67,71-72). Indiferença, rejeição, desprezo, eram os sentimentos percebidos pela menina Carolina no comportamento da sua tia Ana Marcelina, exemplo de sujeito ereticamente afetado. Segundo o psicólogo Frantz Fanon, “tout éréthisme affectif [no indivíduo negro emergido em contexto colonial/pós-colonial] est la resultante de la situation culturelle. Autrement dit, il y a une constellation de données, une série de propositions qui, lentement, sournoisement, à la faveur des écrits, des journaux, de l’éducation, des livres scolaires, des affiches, du cinéma, de la radio, pénètrent un individu — en constituant la vision du monde de la collectivité à laquelle il appartient [...] cette vision du monde est blanche parce qu’aucune expression noire n’existe. [...] Si la structure psychique se révèle frangile, on assiste à un écroulement du Moi. Le Noir cesse de se comporter en induvidu actionnel. Le but de son action sera Autrui (sous la forme du Branc), car Autrui seul peut le valoriser. Cela sur le plan éthique : valorisation de soi » (2008 : 158-160).

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literária, que se tem, em termo, a concretização, a solidificação desta voz, desta subjetividade e do ato da intencionalidade. Como forma de alcançarmos uma compreensão mais aberta e dinâmica dos enunciados a que nos propomos aqui analisar, é imperativo para nós desarticular cuidadosamente algumas instâncias linguísticas, separando-os em “blocos” de significações para uma melhor apreciação e interpretação do conteúdo da mensagem e seu funcionamento dentro da sequência que movimenta a metafísica carolianiana. Retomemos, então, a citação anteriormente apresentada, que carrega em seu conteúdo reflexões acerca das proposições sobre a “fratura étnica” no Brasil ; “[...] eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado113 do que o cabelo de branco [...] o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado”114. O que evidencia a balada dos vocábulos dentro dessa rota sintagmática e simbólica? “Est “ego” qui dit “ego””, como nos lembra Benveniste (1966), e aqui nos damos conta de que a noção de racialização, que desemboca em Negritude, adquire um contorno todo novo quando o Eu Negro(a) é atingido violentamente pelas concepções racistas do Outro(a). Mas essa transfiguração ou (re)significação discursiva não ocorre sem antes a manobra e a inversão de valores e dos parâmetros de julgamento do interlocutor racista115, presentes no discurso através da combinação mais + adjetivo + do que, formula linguística que dá vida a uma sentença cujas disposições sintagmáticas acabam por produzir um efeito comparativo de superioridade, fenômeno que para nós se explica se considerarmos que dentro do movimento da revolta, essa parte de si que o sujeito pretende fazer projetar e respeitar, ele/ela a aloca em um plano superior, essa parte “il la met alors au-dessus du reste, et la proclame préférable à tout” (CAMUS, 2010;27)116. Com efeito, aqui somos obrigadas a realizar um retorno à teoria que trata da criação (auto)biográfica, e que diz que « à partir du moment où les milieux paysans et ouvriers accedéront à la pratique de l’écriture (et en particulier au récit de vie), ils le feront à partir d’images d’eux-mêmes déjà constituées qu’ils trouveront sur leur chamin »117 (LEJEUNE, p. 254). Não encontramos na concepção lejeuniana, contudo, a justeza devida quando tomamos por estudo o caso de Carolina de Jesus, o que 113 Forma caroliniana para a palavra “educado”. 114 Grifos nossos. 115 Evidentemente, esse processo pode, também, ser visto segundos as concepções de Goffman (1975), que o entende como um mecanismo de defesa, um meio que o sujeito estigmatizado encontra de “corriger ce qu’elle estime être le fondement objectif de sa déficience” (“corrigir o que ela pensa ser o fundamente objetivo da sua diferença” [Tradução nossa]). Porém em Carolina de Jesus essa “correção” da condição Negra ultrapassa os limites em que a sensibilidade psicológica do sujeito estigmatizado “simpatiza” (e quando simpatiza, aceita a ideia de que é tocado por um estigma) com o “modelo de referência” (nesse caso, o homem-branco). Já citamos como exemplo a sua tia Ana Marcelina (“mulata clara”) que recusa profundamente os Negros, tendendo afastar-se, e pretende, através da mestiçagem, “melhorar a raça”, para chegar ao (re)conhecimento de si ou, ao menos, a um ponto que ela pensa mais elevado de onde possa observar seu moi-valeur. 116 “ele [o revoltado] a coloca, então, acima de todo resto, e a proclama preferível a tudo” [Tradução nossa].

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demonstra que a teoria não pode tudo abraçar dentro das suas intenções generalistas. O que podemos denotar através do discurso de De Jesus é, para além da negação, de um grande e sonoro “não”, um estado de consciência individual em movimento, em vias de reconduzir por caminhos muito menos tortuosos e nefastos, a representação ou o juízo que ela faz de si mesma no interior da sua Negritude, e há muito mais verdade nisto do que naquilo, por permitir que a personne Carolina tome grande distância nos fatos que podem gerar a alienação. Ainda sobre a citação anterior, a autora tem a intenção de dizer mais? É preciso escrutinar os sentidos, de olhos abertos sobre os jogos dos “não-ditos”. Carolina de Jesus brinca com os sentidos, e consequentemente os transfigura. Toma as texturas capilares de Negros e Brancos para empregá-las dentro de um movimento lógico interessante e afirmativo; ao contrário do que se difundiu (e difunde), é o cabelo crespo - aquela textura “lanosa” fortemente desprezada por Voltaire em suas proposições racistas sobre as gentes africanas e seu fenótipo -, ou o cabelo “rústico”, como a autora de Quarto de despejo prefere chamar, que é mais disciplinado do que o cabelo liso, porque sua textura crespa permite modelá-lo ao gosto e a vontade de quem o porta. Apesar de ter a sua produção artística recusada e ser submetida ao racismo, De Jesus não permite que o conteúdo da sua personne seja esvaziado pelo Outro(a), que a desqualifica e interdita por ela ser Negra. “O outro me pensa, mas eu me defino”, nos diria De Jesus? Ora, se as proposições desprestigiosas sobre o Negro são falsas, consistem em elaborações das quais a autora não participa e tampouco está de acordo (mesmo se existe a parte de paradoxo), além de poderem ser reformuladas, existe, então, uma problemática muito mais específica a ser tratado dentro do tema Negritude que a suposição de um problema inerente à condição Negra em si mesma. A questão, afinal, e segundo o que podemos interpretar a partir do discurso caroliniano, não está nos sujeitos afros e afrodescendentes, nem no tom “cor da noite” que guardam suas peles, mas num possível “complexo de superioridade” (bem explorado por Frantz Fanon) que o Branco alimenta com relação aos Negros. Carolina de Jesus parece dar-se conta desta ocorrência, apresentando-nos em forma de manifesto discursivo sua percepção sobre a relação Negritude/Branquitude, a partir da visão lógica de que há na natureza constitutiva de cada ser humano, sua parte biológica de igualdade. Ela, vivamente, questiona a veracidade desta suposta superioridade branca: “[16 DE JUNHO, 1955] “O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o

117 "a partir do momento em que o meio rual e a classe operária alcançarão a prática da escrita (em especial a história de vida), eles o farão a partir de imagens deles mesmos já elaboradas, que ele encontrarão pelo caminho" [Tradução nossa].

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preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro tambem. A natureza não seleciona ninguém” (sic) (CMJ, p.65)118.

Ainda desta citação podemos extrair “peças” que nos ajudarão a interpretar as imagens e os sentidos do mosaico colorimétrico (ou racial) e discursivo que instalamos diante de nós. Peças as quais usaremos como conectivos na tentativa de fazer funcionar nossa “máquina” interpretativa ou, para sermos mais claras, para subsidiar nossa percepção e entendimento acerca da visão caroliniana para os fatos do racismo. Este tipo de mecânica sempre produz um pouco de barulho, ou muito. Os ecos se propagam por toda parte, incomodando alguns ouvidos “sensíveis”. Carolina de Jesus coloca as coisas desse modo: “O branco é que diz”, ele é que declara sua superioridade. Posto desta maneira e com a utilização da locução grifada, que em sua função “constitui o processo sintático mais usado para colocar em evidência qualquer constituinte da frase”, conquanto o elemento a ser enfatizado ocupe a posição pré-verbal (CASTELEIRO, 1988: 418), De Jesus realiza em perfeição esse jogo sintático; o resultado é a produção de um sentido contrastivo; o branco, “e não todos”, é que diz que é superior, poderíamos assim reformular a sentença caroliniana. A autora trabalha sua percepção do mundo seguindo uma lógica conglomerativa, Preto(a)s e Branco(a)s constituem uma unidade que, por assim dizer, está subordinada à sua natureza de ser humano. Podemos, por assim dizer, que existe um pensamento humanista que atravessa a obra da autora, o velho e bom universalismo que em tantos autores é motivo de apreciação, mas que em Carolina de Jesus é tema para crítica. Temos nos esforçado para encontrar o mínimo traço de coerência no discurso de uma crítica que se quer especializada na obra carolinina, quando diz que: “a questão da identidade racial se apresenta como um dado negativo na escritora, ou, conforme reconhece Bom Meihy (1994), considerando-se especificamente o discurso literário que nos legou, seria impossível situá-la como uma defensora da causa negra” (SILVA, 2008:63)

« La littérature est un agencement, elle n'a rien à voir avec de l'idéologie, il n'y a pas et il n'y a jamais eu d'idéologie »119 (Deleuze & Guattari, 1980 :10). Assim, e o que de importante podemos ressaltar é que gênese do Quarto... ocorre através da intenção, dos argumentos obtidos – “Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos”120 (Jesus, 2014: 118 Grifos nossos. 119 "A literatura é um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, não há e nunca houve ideologia”. [Tradução nossa]. 120Grifos nossos.

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20) - e não da ideologia, mesmo que o leitor(a) deixe-se facilmente enganar por algumas passagens do diário. Desse modo, De Jesus parece não aderir a nenhuma causa pré-existente, mas em lugar disso, ela, através da linguagem, subjetiva a questão do racismo e transforma-a em seu próprio objeto de problematização. Quando tenta desfaz o emaranhado grotesco em torno do qual as concepções eurocêntricas de racialização tentaram amarrá-la e amordaçá-la, Carolina de Jesus estabelece a pedra angular daquilo que distinguimos como um pensamento Negro, ao atravessar, evidentemente, o processo de devenirNegra - e não de querer ser Branca, que se caracterizaria em eretismo afetivo, como vimos - . Quando, ao colocar, em forma de ação crítico-reflexiva, os termos da profunda diferenciação (sofrida e percebida) com relação à condição dos Negro(a)s em comparação a Branco e Mestiços, através de uma observação que toca primeiro as redes comunicacionais e interacionais, ainda no seio familiar, em Sacramento, para, na sequência, servir de guia na tentativa de compreensão do mundo fora deste ciclo, a autora acaba por fundar para si uma noção de Negritude. Note-se, contudo, que esta ideia de Negritude é uma noção ainda em vias de tessitura, em cujos fios podemos encontrar a resistência que ajuda a compor uma espécie de “casulo protetor”, que parece desempenhar a função de colaboração para um desenvolvimento seguro daquele moi-valeur ligado ao movimento de revolta. Tal noção em Carolina de Jesus, é, no entanto, bastante distinta - mas nem por isso desconectada - daquela Négritude121 colocada em ação no conforto do número 07 da Rua Hébert, em Clamart, mais precisamente no salão literário da martinicana Paulette Nardal 122 (1896-1985). Também se difere, por uma parte, daquela Negritude em voga na São Paulo dos anos dourados, embrionada no interior do ciclo intelectual que ficou conhecido como “imprensa negra”123 e sua militância.

121 Termo ligado à corrente de pensamento do mesmo nome e empregado pela primeira vez pelo poeta antilhano Aimé Césaire (19132008) na obra Cahier d’um retour au pays natal. 122 O salão literário das irmãs Nardal será o local onde vão ser lançadas as premissas do movimento da Négritude. Mulher de letras e jornalista, Paulette Nardal foi a primeira mulher Negra a estudar na Sorbonne, onde frequentou o curso de inglês. Segundo um verbete da obra Presse et mémoire : Frances des étangers, Frances des libertés (1990), ela « participe á la redaction du journal La Dépéche Africaine, dès sa creation en février 1928. Avec ses soeurs, et en partuculier avec Jane, elle-même collaboratrice de La Dépéche Africaine , Paulette Nardal « tient salon ». Les Martiniquaises établissent le lien entre les Africains et les Antillais de France et le mouvement americain de la « Negro-Renaissance », dont les plus ilustres representants Claude Mc Kay, Langston Hughes ou Countee Cullen sont regulièrement de passage à Paris. Dans La Revue du Monde Noir, créée en novembre 1931. Paulette et Jane Nardal partent en quête de leur « âme métisse », « afro-latine », et recensent les manifestation du génie artistique noir. En avril 1932 dans le dernier numéro de La Revue du Monde Noir, Paulette souligne l’importance d’un phénomène nouvau, né en exil et qu’elle appelle « l’éveil de la conscience de race ». En mars 1935 Paulette Nardal collabore aux côtés de Léopold Sédar Senghor et Aimé Cesaire, à L‘Étudiant Noir que marque l’entrée en scène du mouvement de la négritude. » (p.130). Além de Sénghor e Césaire, também René Marin (18871960), autor do premiado romance Batouala - Véritable roman nègre (1921), tomará parte nas discussões anticolonialistas e sobre a condição do homem negro/africano no Ocidente, sua arte, seu pensamento, sentimentos, enfim, sua representação. Além disso, uma característica desse movimento foi a adoção do termo Negro(a), entes usada com intuitos ofensivos pelos senhores Brancos para demonstrar desprezo e instalar o sujeito afro e afrodescendente dentro de uma espécie de “boîte maligna”. Daí nasce a Négritude, no interior deste ciclo de intelectuais da diáspora, importantes nomes do Monde Noir, que estabelecem as premissas das teorias afirmativas. 123 Para se obter mais informações sobre o período citado, consultar A imprensa negra paulistana (1986), de Miriam N. Ferrara.

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Em Quarto de despejo a Negritude é percebida e pensada no espaço de tempo que resta entre uma tentativa e outra de achar nas lixeiras da cidade de São Paula os restos descartados que servirão, a De Jesus e a seus três filhos, de possibilidade de seguir mais um dia (sobre)vivendo. É do seio murcho da fome; do estômago que remói e dói, oco; entre náuseas e vômitos, suores frios e tonturas, males súbitos, febres crônicas, neuroses, talvez; entre parasitas e vermes que corroem o corpo (“na barriga da gente tem estes bichos?” (CMJ, 1986: 76)), nascidos da insalubridade do espaço-favela e que ela tenta combater e distanciar de si, vermes e favela, seja por intermédio de “lavagem de alho” ou da escrita do (combate) diário - linhas de fuga - que a autora se reveste de certa camada de Negritude: “Preta é a minha pele” (id., p.167), para continuar seguindo. Esta Negritude caroliniana que, como já vimos, pode apresentar um caráter bidimensional, chegando a ser considerado tanto no nível individual/subjetivo quanto dentro de uma coletividade Negra, não é uma causa a ser defendida, é antes o efeito do prejuízo que o Outro lhe imputa através do fenômeno do preconceito de cor. Para autora, parece que a questão da racialização é vista como uma espécie de lente mal projetada que acaba por render disformes as possíveis igualdades humanas. Durante uma das suas reflexões críticas sobre o preconceito de cor, De Jesus argumenta que “os norteamericanos são considerados os mais civilizados do mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar com os produtos da Natureza.” 124 (JESUS, 2014; 122). Mas enfim, o que ela produz com esses enunciados se não desterritorializar mais uma vez aquele que se coloca numa posição superior, mas que, no entanto, não é capaz de compreender uma obviedade? São os “civilizados” que não se permitem reconhecer (não [se] convenceram)125 a verdade no fato de serem todos os homens e mulheres crias ou produto de uma mesma entidade que a eles seria superior, seja ela “Deus” - “Deus criou todas as raças na mesma epoca” (id., p. 122) - ou a “Natureza”. A partir dessa leitura do diário, podemos destacar que, se não existe uma causa negra a ser defendida, porque não existe um problema ou um enigma universal em ser Negra(o), por outro lado, o que fica claro é que existem diversos problemas éticos e morais, obtusos e pouco compreensíveis, no estado dos julgamentos raciais. Esses problemas morais alastram-se, e são perceptíveis tanto no espaçofavela quanto no não-favela. Podemos notar que aquele que se impõe como modelo de referência, recebe sua parte no julgamento; é responsabilizado pelo aspecto caótico do mundo:

124 E aqui encontramos um diálogo intertextual com o “Eu lírico” de Aimé Césaire que em seu Cahier d’un retour au pays natal (cantando a negritude que “n'est ni une tour ni une cathédrale/elle plonge dans la chair rouge du sol/ elle plonge dans la chair ardente du ciel » (p. 15), no qual apresenta argumentos que sustentam a ideia de fusionamento entre homem Negro e os elementos da Natureza. A obra pode ser acessada através do link : http://www.oasisfle.com/ebook_oasisfle/aime-cesairecahier_d'un_retour_au_pays_natal.pdf. 125 Grifos nossos

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“[...] fui ver os sacos. Eram sacos de arroz que estavam nos armazens e apodreceram. Mandaram jogar fora. Fiquei horrorizada vendo o arroz podre. Contemplei as traças que circulavam, as baratas e os ratos que corriam de um lado para outro. Pensei: porque é que o homem branco é tão perverso assim?” (CMJ: 148); “Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações” (id., p. 70)126.

Como já pudemos constatar, quem é do “horror” é também da “revolta”. Face ao oco da fome e ao desespero da opressão, a caneta corre sobre o papel, e o julgamento do mundo jorra desde os interiores de si para sobre as folhas amarrotadas. Provavelmente a saliva é pastosa e amarga na boca, pela falta da comida. Mas o pensamento movimenta ainda as ideias em cadeia, as imagens, os fatos, constatações absurdas. Daquilo que podemos retirar da citação acima, o que inexiste, de fato, é a meaculpa. Dito de outra maneira, encontramos aqui ainda outros traços de um pensamento que exime o Negro(a) - Ego primus, evidentemente - por certos aspectos apodrecidos do mundo, de algumas culpabilidades hediondas. Entretanto, como bem se utilizar da faculdade de julgar sem formar, ao fim e ao cabo, conceitos que despenquem com grande perigo no fosso das noções de bom/mau, melhor/pior, belo/feio? Como dizer bom sem querer dizer pior ou melhor? Como encontrar a justa medida, aquele grau de naturalidade no olhar que pode ser lançado sobre todas as coisas e seres, se “respirer, c'est juger”? Não sabemos ainda trazer à luz uma resposta satisfatória a esta questão. Ao que parece julgar significa forçosamente ponderar, a dificuldade estando, justamente, em encontrar o equilíbrio. Os rastros do discurso são evidentes, indeléveis no tempo, e precisam ser apreciados de maneira a extrair todos os elementos necessários à comprovação de uma hipótese e aclarar toda desconfiança. Estimamos, com efeito, que em Quarto de despejo a existência de uma noção de Negritude pode ser considerada como sendo uma noção em seu estado mais puro, se é que assim podemos chamar a ideia que a autora faz da diferença entre os sujeitos e as raças. E quando dizemos “puro”, não o queremos empregar no sentido do ingênuo ou do castiço, mas num sentido que conduz a ideia de legítimo, ou seja, à aquisição subjetiva do resultado dos processos de racialização gerido a partir da experiência direta, e não baseado em discursos livrescos acerca das questões raciais. O fundamento da desigualdade racial a autora talvez não conheça a partir de uma retrospectiva histórica, não tenha informações sobre quando ocorreu a gênese da demonização e da estigmatização de uns para a superelevação e a glorificação de outros. No entanto, chegam até ela as reverberações de um passado que influi profundamente em seu estar no mundo e toda complexidade que isso acarreta. Ainda assim ela tenta lançar sua compreensão sobre o que percebe, sente e sofre, e o desvenda (ou tenta) na experimentação 126 Grifos nossos

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de fazer parte do rejeito, de ser o “entulho” abandonado no “quarto de despejo”-favela, tomando para si certa liberdade no ato de julgar, sem influências estrangeiras, o tema Negritude, as relações interraciais, expondo para o leitor, a leitora, sua visão a respeito de uma totalidade que já chegou até ela seccionada em “raças”.

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3.2 Dispositivo 2 : Gênero/feminino ou “Corra para o arco-íris, Carolina!” Silvia, Florela, Analia, Aparecida, Rosa, Cecilia, Maria dos Anjos, Leila, Maria José, Florenciana, Rosalina, Maria Puerta, Carolina: vizinhas no Canindé, avizinhadas pela fome e perseguidas pela miséria; todas atrizes sociais, personagens da obra, mulheres que vagam suas existências na via crucis do espaço-favela e do gênero feminino, gênero do devenir, segundo as proposições em cascata que oferecem Deleuze e Guattari (1980), mas também gênero considerado desviante. Entre os devenirs e desviar das “cúmplices” de Eva, está a presença do homem. Arnaldo, Benedito, Euclides, Alcino, Policarpo, Lalau, Orlando, Cigano; igualmente avizinhados pela presença intermitente da miséria; pela falta de emprego e de escolaridade, pelo alcoolismo e outras mazelas às quais seu grupo social os impôs. Eles, dentro desse retalho sócio-periférico, que é o espaço-favela, exercem, ainda assim, a truculência poderosa do “Quem manda na senhora, sou eu!” (CMJ, 1986:81), “dádiva” autoadquirida pelo “primeiro sexo”. Espancamentos, assédio moral, violência sexual, histórias de poligamia (cujos ecos nos fazem retornar ao belo Niketche127 e a Tony, o masculino total), incestos, exploração, corrupção e descaso dos altos escalões e da elite (do espaço não-favela, na “sala de estar”); enfim, todo tipo de abuso recai sobre os corpos e assim, as fragilidades defraudadas saltam diante dos olhos do leitor, da leitora, durante o “passeio” brutesco e belo pela realidade do Canindé carolineano, fragmento representativo do caos cósmico brasileiro. A evidência se apresenta em estado hipertrofiado; a desigualdade nas relações sociais de gênero está presente através das linhas do discurso, transcrições das bermas, do que é marginalizado nas rotas sociais. Tentaremos, então, seguir o mapa discursivo de Carolina de Jesus com relação às questões genéricas, mas com atenção devida, porque há caminhos que se bifurcam ao seguirmos os traçados do discurso; há aquele que conduz ao feminino, outro ao masculino, modèle d’identification majoritaire (Deleuze; Guattari, 1980: 38), e a bifurcação intermediária do Ego entre feminino e masculino. Sujeição e opressão também podem se desenvolver em cascatas, para evoluir de quadro em quadro e ganhar novas feições (e gêneros), dependendo das posições que ocupam na relação opressor(a)/oprimido(a), dominador(a)/dominado(a). Tal dinâmica segue obrigatoriamente, como já vimos, num sentido que vai do majoritário até o impacto cáustico no elemento minoritário que, por sua vez não está isento de exercer, em certas ocasiões, o papel de opressor(a), mesmo que em grau menor na escala das probabilidades dentro das relações de poder. Veremos que em Quarto de despejo, “le 127 Romance da moçambicana Paulina Chiziane que tem por subtítulo Uma História de Poligamia.

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paradoxe est l’affirmation des deux sens à la fois” 128 (DELEUZE, 1969: 9) e que pode-se encontrar tanto isto quanto aquilo, e igualmente o oposto de cada afirmação no que se refere às humanidades masculina e feminina deste diário. Há, contudo, um fato importante e que deve ser levado em conta em Quanto de despejo. O de que nele os estados de tensão, o caráter flexuoso das interações, as atmosferas conflituosas, não atravessam apenas as relações inter-gênero -

“[...] pensei: em relação aos homens, eu tenho

experiencias amargas” (sic); “Eu nunca tive sorte com homens” (ibid, p. 40; 189) - mas crivam igualmente, mesmo que com vigor de punho menos aniquilador, as relações intra-gênero - “Tenho pavor destas mulheres da favela”; “As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo.” (sic) (ibid, p. 14; 16). Então, os embates se estendem dentro de um cerco muito mais complexo do que se pode supor e, ainda seguindo a concepção do Ego primus e do movimento da revolta metafísica, estes duelos e oposições se estabelecem num campo de multidimensões em que a subjetividade (não em pureza de estado, mas tocada pelos fatos da cultura, um modo de pensar e de fazer as diferenças de gênero) se estilhaça entre si mesmo e os Outros/Outras. Para melhor conduzir nossas reflexões acertas das relações de gênero e dos embates discursivos do Quarto...achamos por bem estabelecer diante de nós uma estrutura metodológica que nos ajude a dar conta da complexidade dos paradoxos relacionais e o Ego mulher ou Ego femina, para usar a expressão em Latim, expressos por Carolina de Jesus em sua obra. Desse modo, ordenaremos nosso plano analítico em três eixos combinatórios, que são: (1) Ego-femina vs. Elas (para demonstrar aspectos da relação da autora com as outras mulheres no seu entorno e seus (pré) conceitos sobre este gênero); (2) Ego-femina vs. Eles (para estabelecer algumas nuances da sua relação com a figura masculina) e por fim (3) Ego-femina vs. Ego devenir-femina (modo que encontramos de categorizar o embate pessoal do sujeito feminino no processo de devenir-mulher) - “Quando eu era menina meu sonho era ser homem”; “Tem hora que eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos”; “Tem hora que eu tenho desgosto de ser mulher.” (ibid, p. 53, 87, 178)129. Existe, no entanto, certo grau de impossibilidade em decompor ou extrair daquilo cuja constituição é demasiado complexa, um substrato simples, mas tentaremos entender se em algum sentido o movimento maquinal da revolta influencia nos juízos de valor que Carolina de Jesus alimenta - ou que nela foram germinados - sobre mulheres, homens e até sobre si mesma.

128 “o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”. [Tradução nossa]. 129 Grifos nossos.

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Levando em conta que “le devenir est le processus du désir” 130 (Deleuze & Guattari 1980:334), começamos por desrespeitar a ordem das categorias anteriormente colocada e partiremos, em nossa análise, da instância (3) Ego-femina vs. Ego devenir-femina. Um conhecimento mais aprofundado sobre esta categoria, nos auxiliará, evidentemente, no exame mais coerente das outras duas categorias por nós estabelecidas. Analisar o processo de devenir-femina, nos reenvia a outros fragmentos da vida e da escrita de Carolina de Jesus. São retalhos de memórias dos primeiros anos da infância, passados na sócio-interação com seu grupo familiar, ainda na cidade de Sacramento (MG), grupo no interior do qual o masculino-total - representado pela figura de Benedito José da Silva, avô do lado materno que, com punhos cerrados e o autoritarismo “reservado” a esse gênero - ditava e conduzia, soberano, a vida familiar, nas esferas tanto pública quanto privada131. Teremos a oportunidade de confrontar as “Carolinas” dentro da dupla linha temporal - passado, presente - que nos mostra que os diários se complementam, e as “Carolinas” igualmente. Logo, durante nossas reflexões sobre a condição feminina da autora; filha, mãe solteira, escritora, vizinha e avizinhada, amante, trabalhadora, etc, pensamos ser imprescindível um retorno, mesmo que breve, a um tempo no qual Carolina Maria de Jesus habitava ainda a pele da menina Bitita132 - sem jamais tê-lo deixado de habitar - momento em que passou a acionar o movimento da revolta rumo ao devenir-femina, quando toma consciência da condição diminuída da mulher dentro das convenções sociais. Há dois eventos - mas também outros - em Diário de Bitita (1982) que para nós podem ser capitais para entender e demonstrar os efeitos psico-comportamentais e sociológicos da dominação e do poder masculino sobre as mulheres e, inegavelmente, sobre a menina Bitita. Eventos nos quais o desejo e a intencionalidade se fixam para estabelecer as bases de uma revolta metafísica direcionada às relações entre homens e mulheres. O “não” desta revolta talvez tenham ocorrido mais cedo do que suponhamos. Ao primeiro dos acontecimentos, nomearemos de “evento do homem com um machado”, o outro de “evento do arco-íris”. Sobre o primeiro, a autora rememora e revela:

130 “o devir é o processo do desejo” [Tradução nossa] 131 Para ir além no entendimento de como as relações sócio-familiares influenciam tanto na formação quanto no desenvolvimento das identidade sexuais/de gênero feminina e masculina, seguimos atentamente dois estudos constituídos sobre bases psicanalíticas e observacionais: Une voix différente - Pour une éthique du care (2008), da filósofa e psicóloga norte-americana Carol Gilligan, que fundou o conceito de ética do care (cuidado, soin, solicitude, em tradução livre) que suscitou, desde o seu lançamento nos anos 1982, inúmeros debates e reflexões, sobretudo, no campo do ativismo feminino. Especialmente no capítulo um, Place de la femme dans le cycle de vie de l’homme, Gilligan escrutina o papel da mãe na construção das identidades de meninos e meninas Ainda sobre o condicionamento social e o desenvolvimento das identidades sexuais também a pedagoga feminista italiana Elena Gianini Belotti em seu ensaio sociológico Du côté des petites filles (1973), através da observação nos grupos familiares, nas creches e escolas, coloca em evidencia o poder dos estereótipos impostos a meninos e meninas desde antes mesmo de seu nascimento e que se estendem durante toda a primeira educação. Estereótipos que estabelecem diferenças comportamentais entre os dois gêneros e legando as meninas um valor social menor em relação aos meninos, estabelecendo para elas um lugar inferior dentro dos conjuntos sociais. 132 Apelido pelo qual Carolina de Jesus era tratada pelos familiares quando era criança.

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“Quando eu ia buscar lenha com a minha mãe [...] vi um homem cortar uma árvore. Fiquei com inveja e decidi ser homem para ter forças. Fui correndo a minha mãe e supliquei: Mamãe...eu quero virar homem. Não gosto de ser mulher [...] - Vai deitar-se. Amanhã, quando despertar, você já virou homem. Quando eu virar homem vou comprar um machado para derrubar uma árvore. Sorrindo e transbordando de alegria, pensei que precisava comprar uma navalha para fazer a barba, uma correia para amarrar as calças. Comprar um cavalo, arreios, chapéu de abas largas, um chicote. Pretendia ser um homem correto. Não ia beber pinga, não ia roubar... [...]” (Jesus, 1986: 10-11)133.

Poderíamos, então, definir este evento – ligado, eventualmente, a outras situações - como o “germe” do devenir-femina caroliniano? Fato é que, aquele “não” que caracteriza o movimento da revolta, deve ter acontecido desde antes deste evento que é apenas simbólico, se levarmos em consideração que ele não se constitui enquanto o estopim do devenir-femina, antes o desejo objetivado em decisão, não no sentido de tornar-se homem enquanto gênero biológico (ou sim), mas de tomar parte na autoridade e no poder masculinos. Assim, ela parece despertar a consciência para o desejo de tirar proveito das vantagens de que gozavam estes membros dentro do seu grupo social. Vemos, portanto, que do universo masculino ela decide por selecionar aqueles utensílios e artefatos que para ela a ajudará a complementar a travessia, a reterritorialização, a sua tão desejada metamorfose em (poder)masculino, dentre os quais o cavalo e o chicote são reveladores, para nós, como símbolos de poder, de livre mobilidade e de controle através da força, características quase que exclusivas daqueles descendentes de Adão dentro do recorte temporal em questão, anos 1920, mais ou menos. Este evento pode-se nos apresentar como sendo um artefato de importância para abrir-nos as vias do entendimento sobre as relações de gênero apresentes em Quarto de despejo. Em verdade, o que podemos, de início, colocar em evidência, é que deste evento conseguimos extrair algo que se aproxima em muito da matéria da qual é forjada a subjetividade caroliniana que tivemos a ocasião de analisar até aqui, ou seja, uma capacidade de consciência de si e um poder de discernimento de que ela, enquanto membro do “segundo sexo”, ela esteja, de algum modo, em desvantagem, sempre sujeitada com relação ao “primeiro sexo” e sua posse de poder - de decisão, de comando, de domínio, etc. Em outros momentos da leitura do Diário de Bitita, vemos que as desigualdades e prejuízos causados ao gênero feminino, são reelaboradas em forma de questionamentos. Por que siá Maruca, mulher do seu avô, não reagia aos insultos e agressões que sofria por parte deste ? - “Não, minha filha. A mulher deve obedecer ao homem” - Por que sua mãe transparecia ter predileção pelo seu filho homem, tratando-o com menos rispidez? Por que as mulheres brigavam entre si pelos homens? - “Fiquei abismada. Será que homem é 133 Grifos nossos

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tão bom assim? Então o homem é melhor do que cocada, pé-de-moleque, batatas fritas com bife?” (Jesus, 1986). Foi lá, ainda no contexto social dos anos 1920-30, é bom lembrar, que Carolina de Jesus deve ter iniciado seu percurso na dura rota do devenir-femina, o que, consequentemente, nos ajuda a perceber os primeiros traços do movimento de uma revolta metafísica com relação às desigualdades nas relações sociais de gênero. O outro acontecimento, aquele que nomeamos anteriormente de “evento do arco-íris”, coadunase ao primeiro para contemplar a simbólica do Ego-femina vs. Ego devenir femina carolineano, que não permite deixar-se turbilhonar - ao menos não completamente - pela opressão masculina. A promessa que sua mãe lhe fizera, a de que ao acordar na manhã seguinte estaria já ela transfigurada em homem, não se realiza, evidentemente. Ante o choque de acordar pertencendo ainda aquele gênero desviante, desrespeitado e inferiorizado, Bitita protesta, expressando-se em tom de revolta: “- Eu não virei homem! A senhora me enganou. E ergui o vestido para ela ver. Segui a minha mãe por todos os recantos, chorando e pedindo: - Eu quero virar homem! Eu quero virar homem. Eu quero virar homem. [...] Minha mãe tolerava e dizia: - Quando você ver o arco-íris, você passa por debaixo dele que você vira homem. [...] Por que é que você quer virar homem? - Quero ter a força que tem o homem [...] Quero ter a coragem que o homem tem. Homem que trabalha ganha mais dinheiro que a mulher” (JESUS, 1986: 11, 12)134

O evento é mencionado tanto aqui quanto lá, ou seja, ao demarcá-lo estabelecemos também a rota transversalizada pelo tempo e que nos reenvia do Diário de Bitita de volta ao Quanto de despejo, no qual as rememorações sobre o “evento do arco-íris” passam por uma reatualização, colando-se à efervescência do contexto sócio-político do Brasil de fins da década de 1950: “...Quando eu era menina meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para minha mãe: - Porque a senhora não faz eu virar homem? Ela dizia: - Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem. Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante do povo [...] Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar [...] Eu voltava e dizia para a mamãe: - O arco-iris foge de mim” (sic) (Jesus, 2014: 53, 54).

134 Grifos nossos.

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Dizer “o arco-iris foge de mim”, talvez fosse igualmente compreender “a masculinidade foge de mim”? Os salários melhores fogem de mim? A força foge de mim? Contudo, além de dizer “não” e iniciar sua rebelião, De Jesus fossiliza em si certas imposições feitas ao gênero feminino. Assim, sentenciada ao “cárcere” de ser mulher (apresentado culturalmente como sendo sinônimo de franqueza, estagnação, sujeição, ocupando lugar secundário enquanto filha de Eva 135), ela consubstancia, como camadas e mais camadas de substrato viscoso estendida sobre a superfície de si – ou em profundidade – os estigmas que são aplicados ao ser feminino. Ao longo do seu percurso do vivido e do contato com o império e a dominação masculinas, ela adere a certos princípios éticos, morais e comportamentais exigidos das mulheres por uma sociedade sistematizada em “masculinocracias”. Porém, é bom sermos razoáveis do fato de que estamos tentando nos fixar na instabilidade, no terreno resvaladiço dos paradoxos carolineanos. Logo, o que pode ser apre(e)ndido aqui pode muito bem sofrer interferência e tomar outros sentidos quando da difração, ou do choque com o Ego. Isto posto, podemos receber de boa vontade – mesmo se não estejamos em concordância com - certos posicionamentos da parte de Carolina de Jesus acerca das vizinhas de Canindé e as tensões existentes entre elas, o que nos permite passar, assim, à primeira (1) instância que nos propusemos analisar. Mesmo se em muitos sentidos a metafísica caroliniana manifesta sua particularidade por um olhar todo novo e uma consciência aguçada sobre alguns fatos do mundo e da existência humana, em outros aspectos ela continua sendo objeto da sua parte de ser social tocado pelo pensamento do seu tempo-espaço, por um contexto sócio-histórico e ideológico que situam as condições de produção dos seus escritos (ORLANDI, 2007). Assim, devemos encarar esta produção não apenas como produto do sujeito que a criou, mas também como “des constructions qui révèlent la civilisation qui les produit” 136 (LEJEUNE, 1980 :09). Logo, ao desenvolvermos aspectos da instância (1) Ego-femina vs. Elas, será também a ocasião de colocarmos em evidência duas particularidades importantes no campo das tensões aqui discutidas: uma delas é a visão de Carolina sobre este gênero, o seu próprio, e sua relação com as mulheres. Mas também teremos a ocasião de expormos um pouco do que é a realidade feminina dentro do Canindé-Brasil. “Nas favelas, os homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres” (JESUS, 2014: 21). Este é um bom exemplo do que pretendemos tratar dentro de uma das concepções genéricas do Quarto… Para nós, não existe uma clarificação na aplicação da afirmativa em destaque, 135 A representação da figura feminina nas páginas da história da humanidade, principalmente na porção ocidental do mundo, foi extremamente influenciada pelas ideias religiosas concebidas pelo judaísmo, e amplamente difundidas pelo cristianismo. O nome Eva deriva do hebraico stela, significando “costela”, “infortúnio”, e é assim que, na história bíblica da gênese, a mulher é concebida como sendo uma partícula do homem, um subproduto, ou seja, produto secundário de algo já pronto e estabelecido. 136 “construções que revelam a civilização que as produz” [Tradução nossa].

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ou seja, ela ainda nos escapa, instala-se como uma densa bruma que encobre os caminhos discursivos que conduzem ao entendimento mais amplo das relações de gênero. Afinal, em qual sentido os homens da favela demonstram essa tal tolerância e essa tal delicadeza, se aqui e acolá, e por toda parte - dentro e fora do Quarto de despejo - as intransigências masculinas cintilam? É preciso que o leitor(a) atentese, ao dobrar as esquinas e cruzar as bifurcações da obra. Pode haver um monumento erigido no centro, e a figura agigantada do homem pode estar instalada de maneira que quase confirma sua hegemonia de sujeito total. A “bagunça” promovida pelos homens e mulheres do Canindé-Brasil está sendo apresentada em linhas trágicas por Carolina de Jesus, que tenta organizar e dispor as suas “bagunças” pessoais em folhas de cadernos rotas, amareladas, capturadas no lixo. Quais percepções ela alimenta e vive sobre mulheres e feminilidades, homens e masculinidades? Ela insiste, no entanto, em expor os traços do seu juízo - de caráter pouco meticuloso em muitos casos - sobre o feminino : “Deixei o leito às 5 horas e fui pegar agua. Era só homens que estavam na torneira. Ninguem falava. Enchiam as vasilhas e saíam. Pensei: se fosse mulheres...”137 (sic)(ibid, p. 137). Nesse caso, a utilização do recurso textual da reticência nos indica apenas uma hesitação momentânea, espécie de reticência-eco, modo colocado em marcha que ajuda a trabalhar em economia com outro recurso retórico-estilístico largamente explorado pela autora: o da repetição. Em suma, em muitas passagens anteriores a esta, a autora reverbera, em ciclos repetitivos, sua revolta contra grande parte das personagens femininas da favela e os aborrecimentos que estas parece lhe causar. Assim, o espaço vazio da reticência pode ser preenchido, sem dificuldade, afim de pode-se obter numerosas justificativas para este “se fosse mulheres...” justificativas estas que são frutos de uma visão do feminino profundamente alimentada pelo senso comum, mas que não deve servir, no entanto, de anulador para o fato de que a mulher pode, também, desempenhar um papel opressor: “- Elas costuma esperar eu sair para vir no meu barracão expancar os meus filhos. Justamente quando eu não estou em casa” (sic) (ibdi. p. 19). Em Quarto de despejo, o espaço favela, enquanto espaço fruto do apartamento social, parece não contar com a mesma rigidez de leis, códigos comportamentais e costumes que conduzem as relações interpessoais em outros espaços sociais. Em muitos casos, é a violência e o abuso que regem as relações, com exceção do Ego que tanta em muitas passagens fazer transparecer sua idoneidade moral - “Ela [a Zefa] alude que eu não expanco os meus filhos. Não sou dada a violência” (sic)(Jesus, 2014:17). E dentro desta bolha-favela, da qual Carolina de Jesus evade-se quase que diariamente para buscar nas latas de lixo e nos lixões da cidade os restos que servirão para alimentar-se a si e seus três filhos, diários também são os embates com o feminino de si e das outras dentro deste espaço infernal. A 137 Grifo nosso.

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gravidade dos problemas pode ser lida nas linhas e nas entrelinhas do discurso, e é na adjetivação empregada para referir-se a algumas destas mulheres que se pode sentir o peso do mal-estar: “bestas humanas”, “mulheres feras”, “rascoas da favela”, “bagunceiras”. A violência que não pode ser exercida diretamente sobre o corpo da mulher Carolina, em muitos casos é direcionada àquilo que significa o prolongamento desse corpo: seus três filhos. E a opressão deságua em cascatas, na direção do minoritário: “Cheguei no inferno. Abri a porta e pus os meninos para fora. A D. Rosa, assim que viu o meu filho José Carlos começou impricar com ele. Não queria que o menino passasse perto do barracão dela. Saiu com um pau para espancá-lo. Uma mulher de 48 anos brigar com criança! As vezes eu saio, ela vem até a minha janela e joga o vaso de fezes nas crianças. Quando eu retorno, encontro os travesseiros sujos e as crianças fétidas” (sic) (Jesus, 2014: 15-16).

E é na resposta a tal violência que se inscreve, ou apresenta-se, ainda uma diferença entre o Ego-femina e Elas. O Eu se eleva e continua invocando seus valores, como pode ser possível observar:

“Eu nunca chinguei filhos de ninguem. nunca fui na pona de vocês reclamar contra seus filhos. Não pensa que eles são santos. É que eu tolero crianças. Veio a D. Silvia reclamar contra os meus filhos. Que os meus filhos são mal iducados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradaveis. O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me. eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater.” (sic) (ibid,p. 16)138

No entanto, a sombra masculina atormenta e aprisiona a existência e as relações de Carolina de Jesus dentro do grupo social - “Elas alude que eu não sou casada”; “Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens”; “Ela [D. Rosa] odeia-me. Diz que sou preferida pelos homens bonitos e distintos” (sic) (Jesus, 2014:16, 22). Porém, o feminino apresenta-se, de igual maneira, como um elemento alquímico responsável por sobrelevar o amargor da experiência da autora no espaço-favela. A única torneira desse espaço, da qual todos se servem para buscar a água que consomem nas casas, é um dos lugares mais abominados por De Jesus. É lá que, segundo a autora, a maioria das mulheres se reúne, “latas em fila”, para tudo contar, tudo ouvir, tudo difundir uns sobre os outros - “Não gosto de estar entre as mulheres porque é na torneira que elas falam de todos e de 138Grifos nossos.

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tudo”; “Que coisa horrivel é ficar na torneira” (sic) (Jesus, 2014: 90, 91). Podemos compreender melhor o “se fosse mulheres...” de antes? Quando encontramos Carolina de Jesus na torneira somos capazes de interpretar em seu discurso as dificuldades por ela enfrentadas na coabitação com Elas, as Outras (e vice-versa), e em certos momentos a sorte pode se travestir em ausências - “Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei” (Jesus, 2014: 21)139. Havíamos falado, antes, de algumas fossilizações, espécie de bolhas de conteúdo não maturado, nem refletido, esferas que, arremessadas em direção ao Outro(a), espocam como projéteis. Aqui apresentaremos apenas e ainda alguns poucos fragmentos, a totalidade, a recepção dos outros sentidos deve ser buscada na leitura da obra. Porém, e de acordo com o quadro enunciativo de Quarto de despejo, a mulher é sempre exposta como ocupante - ou devendo ocupar, em relação ao homem – de um lugar de subserviência, cumprindo as tarefas que lhe cabem enquanto mulher e mãe, segundo as imposições sociais. O vizinho Vitor, serve de exemplo. Ele não sofre julgamento por ter duas mulheres por esposas, coabitando no mesmo barraco, mas enfim, De Jesus exprime sua visão caso uma mulher proceda de igual maneira, dizendo que “um homem só chega [basta] para uma mulher. Uma mulher que casou-se precisa ser normal”140 (sic) (ibid, p.126), enunciado que demonstra que para a autora a mulher sexualmente livre deve ser situada no campo do desviante e do anômalo, caso tenha mais de um parceiro/companheiro. Do problema social que é a prostituição, que na visão da autora é a “derrota moral de uma mulher […] como um edifício que desaba”, não é atribuída culpabilidade a nenhuma outra parte, a não ser à mulher, lasciva e corrupta(ora): “Esta historia das mulheres trocar-se de homens como se estivesse trocando de roupa, é muito feio” (sic) (ibid, p. 126), palavras de uma mãe solteira, cujos três filhos são, cada um, de um pai diferente. No interior desse universo de interdições, o feminino vaga sua existência em trilhas absolutamente restritivas, dentro do oco de um mundo quase que imaterial, “corps sans organe”, no qual existe grande cobiça e desejo de possessão e domínio do corpo e da alma feminina, de toda uma geração alimentada pela peçonha da “masculinocacia”, seja para a exploração do físico, com o trabalho -“Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais (sic) (ibid, p. 20) - seja para os abusos do sexo - “Ele [o Cigano] atrai as mocinhas, dizendo que casa com elas. Satisfaz seus desejos e depois manda elas ir embora”; “A C. disse que pediu dinheiro ao seu pai para comprar um par de sapatos, e ele disse: - Se você me dar a...eu te dou 100. Ela deu. E ele deu-lhe só 50. Ela rasgou o dinheiro [...]”; (ibid, p.156; 179) - seja 139 Grifos nossos. 140 Grifos nossos.

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ainda para o exercício da brutalidade e da violência como o pratica, ao longo dos anos, o “turbulento” Alexandre, sobre o corpo da esposa Nena – “Ele deu-lhe com um ferro na cabeça. O sangue jorrava” (ibid, p. 184). Mesmo tendo uma força física que não pode ser equiparada a da maioria dos homens, o Egofemina caroliniano realiza o enfrentamento a despeito da violência masculina. A metafísica destila o que consegue do entorno, cogita saídas para não ter nem o corpo e nem a dignidade violados, e mesmo tendo a vida por um fio, sangue magro circulando nas veias da matéria de aparência deprimente – “Já habituei-me a dar suja” – de espírito deprimido – “Triste como se tivessem mutilado os meus membros” (Jesus, 2014: 22, 154), ela demonstra reconhecer a força da palavra quando responde às ameaças de espancamento e de morte do vizinho Vitor: “Ele é de ferro eu sou de aço. Não tenho força fisica, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis” (sic) (ibid, p. 48). Em se tratando da crítica à obra caroliniana com relação às questões genéricas, do eco divergente da “máquina de fazer ativistas”141 ainda pode-se ouvir que Carolina de Jesus “não foi uma feminista militante”142, segundo uma perspectiva que tenta encaixotar os trabalhos de autoras Negras, como Carolina de Jesus e tantas outras que surgem na atual cena literária, no interior de doutrinas ou correntes de pensamento, como é o caso do feminismo, que mesmo tendo uma grande importância para a explicação e problematização das relações sociais entre os gêneros, não se constituem em modo imparcial de interpretação de uma produção cujo vivido é a matéria-prima do projeto literário. Quando Carolina de Jesus registra em seus cadernos “Tenho pavor das mulheres da favela [...]”, isto pode ser rapidamente interpretado por esta mesma crítica como sendo uma “representação negativa da figura feminina” 143, assim como outros trechos por nós destacados mais acima neste texto. O importante aqui é observar que para além de algumas questões centrais, como o são a subjetividade (Ego-femina, ego primus) e os fatos ligados à cultura da dominação masculina, nem todo sentimento de desprezo ou pouca estima que a autora expressa por grande parte das mulheres do Canindé pode ser obrigatoriamente convertido em “representação negativa”, antes de tentar-se uma imersão, mesmo que mínima, na experiência do vivido, presente nas linhas de um texto autobiográfico de função referencial e que precisa, como tal, ser analisado. O que se pode observar é que o ponto de vista ou a perspectiva analítica de parte da crítica, pretendendo 141Referência ao artigo A máquina de fazer ativistas não respeita subjetividades, de Stephanie Ribeiro, disponível no site Geledés: instituto da mulher Negra, acessível a partir do link: http://www.geledes.org.br/maquina-de-fazer-ativistas-nao-respeitasubjetividades/. 142 COSTA, Renata Jesus da. O universo feminino de Carolina de Jesus. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. A autora do texto, mesmo destacando importantes aspectos das relações de gênero em Quarto de despejo, insiste no fato de que a negação de Carolina de Jesus em contrair matrimônio está ligada a um suporto caráter feminista da autora. O que por um lado não pode, nem deve ser completamente descartado enquanto hipótese, mas que pode ser conduzido por caminho mais razoáveis e menos rígidos, o mesmo tipo de comportamento sob o prisma caleidoscópico da subjetividade carolinina. 143 BELLIN, Graicy. A representação da figura feminina em “Quanto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.3, Número 1 A, Jan. -Abr. 2012.

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a objetividade extrema e o distanciamento absoluto, acaba por formular análises com conteúdo sem um depuramento mínimo e olham a obra apenas sob o grifo do ativismo. Assim, é preciso tomar por evidente que esta obra é produto da escrita de si, de um texto informativo, não-ficcional, no qual a expres são autobiográfica é a imperatriz de causas e efeitos, e o objeto literário deve ter a função de janela aberta diante de nós, através da qual podemos contemplar as realidades – textual, histórica, sociológica, etc. E, mesmo que o trabalho de escrita seja uma maneira de representar o mundo, ela se constitui muito menos em espelho distorcido que a escrita ficcional. A esse respeito, Philippe Lejeune nos faz atentar para o fato de que : Du côté de l’objet, il signifie d’abord que l’histoire est vraie, c’est-à-dire qu’il ne s’agit pas d’une fiction, inventée. Le lecteur n’aura donc pas à adopter l’attitude feinte credulité, l’attitude de jeu qui est liée à la fiction, et qui permet au lecteur de s’en distancier à volonté. Ici la credulité doit être entière, puisque le texte est référentiel. Le lecteur est comme devant un reportage à la télévision. Tout ce dont on lui párle appartient à un monde où il vit lui-même. Et non au monde du papier et de l’écriture. »144 (Lejeune, 1980 : 206)

Ainda sobre o papel do leitor, o especialista em textos autobiográficos diz que: « On lui promet que ce livre lui procurera une impression de vie : il ne va pas lire, c’est la vie qui vas lui sauter au visage, « comme si vous y étiez » 145 (1980 :p. 206). Logo, o que podemos tirar destas proposições é que esse tipo de escrita ultrapassa, em certa medida, a dimensão da representação enquanto mimesis, enquanto « mensonge vraisemblable»146, como ocorre no caso das técnicas representativas utilizadas na concepção dos textos ficcionais, nos quais a imaginação pode ser largamente empregada para transgredir o real sem prejuízo nem desconfiança da parte do leitor. É o “como se”. Logo, em Quarto de despejo, o espetáculo da vida é apresentado para a apreciação do leitor(a), que deve ter em mente, no entanto, que esta escrita é, doravante, influenciada por fatores diversos tais como a subjetividade e o caráter pretérito dos acontecimentos/fatos que nela são expostos. Uma escrita que transita entre aqui e lá, passado e presenta, sendo mais apropriado encará-la como sendo uma re(a)presentação do real, olhando-a das duas perspectivas, tanto do lado do passado (o da autora), quanto da perspectiva presente (do ato da leitura hoje), modos que podem ajudar a conservar a parte de “verdade” que tem a obra, sem 144 “Do lado do objeto [textual], significa em primeiro lugar que a história é verdadeira, ou seja, que não se trata de uma ficção, inventada. O leitor não terá, portanto, de adotar uma atitude falsa de credulidade, a atitude de brincadeira que está ligada à ficção, e que permite ao leitor, distanciar-se à vontade. Aqui a credulidade deve ser inteira, porque o texto é referencial. O leitor é como ante uma reportagem de televisão. Tudo aquilo que se fala pertence ao mundo onde ele vive. E não ao mundo do pepel e da escrita”. [Tradução nossa]. 145 "Promete-se a ele que esse livro lhe promoverá uma impressão de vida: ele não vai ler, é a vida que vai lhe saltar diante dos olhos, "como se você estivesse lá". [Tradução nossa]. 146 Aristóteles. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

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deslegitimar o testemunho autoral – “...Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá...isto é mentira! Mas, as miserias são reais” (sic) (JESUS, 2014:49). « Le paradoxe est d’abord ce qui détruit le bon sens comme sens unique, mais ensuite ce qui détruit le sens commun comme assignation d’identités fixes »147 (Deleuze & Guattari, 1980: 12), e Carolina de Jesus desbarata (parte) o senso comum quando desconstrói o que está preestabelecido, rearranjando o lugar do Ego-femina e desobrigando-o a cumprir as sujeições e interdições que sua condição racializada (Negra) e de gênero (feminino) lhe imputam, dando mais mobilidade a sua própria identidade. E ela continua a produzir escombros quando, de um sentido único, elabora bifurcações para possibilitar a travessia dessa nova proposição de sujeito hors norme. E um desses caminhos conduzem à escrita literária. Assim, seguindo o curso da sua existência por vias controversas, a autora demonstra sua revolta contra a opressão através do ato de resguardar o próprio Ego e os valores de sua personne. A partir daqui, passaremos a realizar observações sobre a terceira (3) instância a qual nos propusemos estudar, Ego-femina vs. Eles, que até certo ponto, já foi abordada ao longo dessa subparte. Colocamos diante de nós, então, um dos tantos fragmentos reveladores da percepção caroliniana sobre a condição da mulher. Ela realiza suas escolhas quando se dá conta de que a presença do um homem em sua vida, de um possível companheiro, pode representar o cerceamento de si, e através do discurso expressa o “não” que caracteriza a rebelião: “O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal.” (sic) (Jesus, 2014:49)148

Acusada, no entanto, de não propagar de maneira ainda mais explicita, em seu discurso, flashs dessa luz fresca da (auto)emancipação em direção à coletividade feminina, Carolina de Jesus, mulher abandonada dentro do fosso grotesco da miséria e da fome, alimentando-se de destroços e podridões, “mulher-abutre”, consegue mesmo assim erigir aquilo que podemos considerar como uma espécie de fortificação para o Eu-mulher. Seu discurso, mesmo derivando entre paradoxos, pode servir de base dissidente para as discussões sobre as dimensões da dominação masculina e o lugar ainda limitado das mulheres (e limitadíssimo para a mulher Negra) dentro dos grupos sociais. A ascensão aos degraus desta dissidência pode dar-se através do ângulo da identificação com a história individual, por exemplo 147 "O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como senso único, mas em seguida, o que destrói o senso comum como atribuição de identidades fixas". [Tradução nossa]. 148 Grifos nossos.

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- “Não casei e não estou descontente. Os [homens] que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horríveis.” (sic) (ibdi., p. 17). Dentre as tantas heranças malditas deixadas pela escravidão, dentro de uma sistema social de bases patriarcalistas e eurocêntricas, a posição da mulher Negra é uma das mais problemáticas, porque duplamente marcada pela estereotipia e a estigmatização de portar uma identidade ao mesmo tempo feminina e Negra. Mesmo Freyre (op. cit.) vociferou com um tom de naturalidade o ditado “Banca para casar, mulata para f...e preta para trabalhar”, reproduzindo o discurso de um eugenista alemão Hendelmann (apud. CERCEAU NETTO: 2008) para justificar o gosto do homem (pseudo)Branco brasileiro pelo sexo com mulheres Mestiças, casando-se com as Brancas, que guardavam o status social de mais respeitabilidade em relação às outras, relegando o lugar de “burro de carga”, máquina de trabalho, à mulher preta. Evidentemente, podemos interpretar traços desse ranço machista e racista através do discurso carolinino e podemos desconfiar o que significa para ela enquanto mulher racializada a relação (objetificada) com o homem que foi completamente desresponsabilizado de respeitar e ver esta mulher enquanto sujeito e não apenas objeto sexual. De Jesus revela porque decidiu dedicar-se aos seus projetos pessoais, dizendo: “Não posso preocupar com homens. Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus filhos. Eu nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguem. Os homens que passaram na minha vida só arranjaram complicações para mim. Filhos para eu criálos” (ibid, p. 189).

A partir do exemplo da pessoa dessa autora, nos questionamos acerca dos discursos feministas reivindicam quando falam da emancipação da mulher. A qual mulher estão se referindo, se antes de Carolina Maria, Maria Carolina sua mão, e talvez a mãe desta, e a sua bisavó, e tantas outras mulheres Negras do Brasil têm sido forçadas a formarem a marcha da solidão para cuidarem sozinhas dos filhos e filhas, fazendo parte da horda de mães sem companheiros, emancipadas a suas revelias pelos seus grupos sociais? Enfim, através da citação anterior, obtemos, então, duas perspectivas claras diante de nós; uma conduz ao papel do homem na vida da mulher Negra e, por outro lado, a assunção do Ego. Porém, essa espécie de desvio da norma, preferir ser uma mulher não-casada (seja por falta de opção ou de desejo) desestabilizam a visão sobre sua personne dentro do grupo. Desse modo, não ser uma mulher casa, aloca a autora, diante da sociedade e das outras mulheres da favela, em uma posição que é encarada por todos como sendo uma condição desvantajosa, desviante, incompleta e que durante muito séculos no Brasil representou a incapacidade civil, mas que Carolina de Jesus (re)apresenta como sendo toda sua liberação. Sua metafísica é conduzida por uma razão que se move quase sempre no mesmo sentido, o de si mesma: “Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem

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marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas” (sic) (Jesus, 2014: 16). Através deste mesmo trecho da obra conseguimos interpretar que, observando o mundo, aprendendo no livro do mundo, a autora calcula e coloca em cheque o papel, por vezes irrelevante e cruel, que pode representar um marido na vida da mulher (Negra). Notamos, então, que a revolta metafísica que nasce com a tomada de consciência de si, faz girar constantemente o mecanismo que anima a liberação do Ego-femina da subjugação masculina : “[...] elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilameme [...] ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.” (ibid, p. 16, 17)

A revolta é una, unânime, coesa? Com efeito, se « à partir du mouvement de révolte, elle [la souffrance] a conscience d'être collective »149 (Camus, 1951: 36), o que toca nossa percepção até aqui é o fato de que mesmo este movimento de revolta pode se desenvolver com intensidades diferenciadas a depender de cada instância ou circunstância que dá forma a vida do oprimido. Olhando-se com mais minúcia para a citação anterior, veremos pelo tom do discurso que a revolta é penetrada de densa camada de individualidade (não significando, no entanto, que em outros trechos da obra não seja perceptível um movimento de revolta que será encarado como “l'aventure de tous”, como por exemplo, nas circunstâncias da pobreza), e até de um tom enunciativo que pode traduzir um desprezo pelas mulheres que a acusam por não ser casadas, mas que servem de objeto para a ira de seus companheiros. Em Quanto de despejo, as bifurcações, as vias paradoxais são numerosas, como o apontamos, então, não nos surpreende que mais adiante, aqui ou ali, em algum recanto do texto, em algum ponto do cansaço do Ego diante das grandes dificuldades para manter um lar pobre com três crianças, as contradições brotem agitadamente: “Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (ibid, p. 22).

149 "a partir do movimento da revolta, ele [o sofrimento] tem consciência de ser coletivo". [Tradução nossa].

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, talvez seja do “espaço de fruição”, do momento silencioso e abandonado da leitura, que a obra de arte, o livro, poderá ser apreendia como a possibilidade de uma dialética da condição dos sujeitos (BARTHES, 1987:08), a obra desempenha também sua função de alimento para reflexões acerca das partículas que formam cada indivíduo, das moléculas de humanidades que forma os tecidos sociais. E adotando aqui as reflexões de Gilles Deleuze e Felix Guattari, (1980), tomaremos como nosso também as suas avaliações a cerca da escrita, concordando que: «On ne demandera jamais ce que veut dire un livre, signifié ou signifiant, on ne cherchera rien à comprendre dans un livre, on se demandera avec quoi il fonctionne, en connexion de quoi il fait ou non passer des intensités, dans quelles multiplicités il introduit et métamorphose la sienne, avec quels corps sans organes il fait lui-même converger le sien . Un livre n'existe que par le dehors et au-dehors. Ainsi, un livre étant lui-même une petite machine, dans quel rapport à son tour mesurable cette machine littéraire est-elle avec une machine de guerre, une machine d'amour, une machine révolutionnaire, etc - et avec une machine abstraite qui les entraîne ? […] la seule question [...] c'est de savoir avec quelle autre machine la machine littéraire peut être branchée, et doit être branchée pour fonctionner.»150

Afinal, com qual outra “machine” ou “corps sans organe” pode-se conectar a literatura produzida, enfim, por mulheres Negras – ou protagoniza por elas - para fazer funcionar outros mecanismos? Máquina subversiva, dissidente, insurgente? Contra quem ou a favor de qual corrente? Aqui nos visita outra desconfiança: a de que a obra literária produto da escrita de mulheres Negras não é subversiva em caráter imanente, não se quer essencialmente rebelde. Embora possa parecer que essa literatura é constituída de um caráter subversivo par nature, de uma identificação anti-cânone, embora seja vista por muitos como a “mocinha desobediente”, ela não nasce, a nosso ver, com tais intenções. E, enquanto objeto da língua/linguagem – e não representando engajamento social, mas antes “l’aire d’une action, la définition et l’attente d’un possible [...] réflexe sans choix” 151, um horizonte para o ser humano (BARTHES,1972) - entendemos toda literatura como “negociação” ou agencement com o 150 « Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significante ou significado, não se buscará compreender nada em um livro, perguntar-se-á com o quê ele funciona, em conexão com o quê ele faz ou não passar intensidades, em qual multiplicidade ele introduz e metamorfoseia a sua, com qual corpo sem órgão ele próprio faz convergir o seu. Um livro existe apenas por fora e do lado de fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, em qual relação, por sua vez mesurável, essa máquina literária está com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária, etc – e com uma máquina abstrata que as conduz? […] a única questão [...] é de saber com qual outra máquina a máquina literária pode ser conectada, e deve ser conectada, para funcionar » [Tradução nossa]. 151 "área de ação, a definição e a expectativa de um possível [...] reflexo sem escolha". [Tradução nossa].

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mundo, com o Outro e, enquanto agencement, “elle n'a rien à voir avec de l'idéologie”152 (Deleuze, 1980 p. 10). A literatura poderá nascer do assombro, do sentimento do absurdo, ou do amor, ou da revolta, mas jamais da ideologia, ou então ela corre o grave perigo de perder a alma, de ser corpo nascido e já morto. Deste modo, afirmar que a escrita feminina tem por natureza a característica de ser revolucionária, significa anarquizar em profundidade uma autoridade preconcebida e estabelecida, aquela “liberdade condicional de criação” de que falamos na introdução a esse estudo, aniquilando, assim, a questão autoral e aprisionando essa escritura no interior de um corpo “adulterado”, trancando a alma – aqui entendida como essa “negociação”, consciente ou inconsciente, entre língua, linguagem, razão e mundo – num corpo frankesteniano que necessite de uma fagulha de luz advinda do Outro – no caso a escrita produzida por homens Brancos - para ganhar vida. Acreditamos que a literatura, assim como todas as outras formas de arte, se constitui como poder imaterial, sendo produto dos trabalhos do espírito e do estar no mundo, e esse fato não deveríamos negligenciar. Portanto, se quando dizemos “Literatura” isso nos faz pensar em um grande conjunto de obras que representa “um tesouro cultural no qual uma coletividade se reconhece”, é imprescindível, então que este corpus apresente, em suas partes constitutivas, uma heterogeneidade que dê conta de representar também a heterogeneidade de gêneros e sujeitos que dão forma a tal coletividade. Nesse sentido, faz-se já bastante tarde que as literaturas ditas “menores”, como é o caso da produção de Carolina Maria de Jesus, deixe de ser assunto apenas dentro dos círculos ditos marginalizados, e seja em definitivo entendida e entendida como parte também importante do corpo cultural brasileiro. Como pudemos observar, Carolina de Jesus, enquanto sujeito, não permite um consentimento total das identidades que lhes são atribuídas. Ela não se permite obedecer, subjugar-se, e isso parece ser uma característica sua, da sua consciência. No interior da hostilidade do seu percurso existencial, existência tocada profundamente pela historicidade do seu contexto, a autora estabelece para si atributos éticos, morais e pessoais para se afirmar enquanto ser humano. De humanismos parece estar impregnado o conjunto da obra caroliniana, e podemos encontrar nela o peso de uma universalidade que caracteriza igualmente as obras daqueles ditos “grandes” da Literatura; o tratamento dos problemas da existência humana, as dificuldades e os tormentos do Ser e sua relação com o Outro. A saga do Ego que aqui foi expressa, pode ser também compreendida e compartilhada, “l’aventure de tous”, mas como o vimos, em muitos sentidos o movimento ontológico presente nessa obra de Carolina Maria de Jesus

152 "ela não tem nada a ver com ideologia”. [Tradução nossa].

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vai de par com a fatiga presente em L’unique153, e talvez teria ela expressado sua rebelião também professando: “Quelle cause n'ai-je pas à défendre? Avant tout, ma cause est la bonne cause [...] Dieu et l'humanité ne se préoccupent de rien, de rien que d'eux-mêmes. Laissez-moi donc, à mon tour, m'intéresser à moi-même, moi qui, comme Dieu, ne suis rien pour les autres, moi qui suis mon tout, moi qui suis l'unique.” (STIRNER, 1844: 19)154.

153 L’unique et as proprieté (1844) essaio filosófico de Max Stirner. 154 “Que causa eu não tenho a defender? Acima de tudo, minha causa é a boa causa […] Deus e a humanidade não se preocupam com nada, nada que não seja de si mesmos. Deixe-me, então, de minha parte, interessar-me por mim mesmo, eu que, como Deus, não sou nada para os outros, eu que sou meu tudo, eu que sou a única”. [Tradução nossa].

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