A Sagração da Primavera: A dança como discurso

July 23, 2017 | Autor: Beatriz Vasconcelos | Categoria: Communication, Dance
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A Sagração da Primavera A dança como discurso Prof. Jacinto Godinho Discurso dos Media

Beatriz Silva Vasconcelos Pereira Nº 37903 Ciências da Comunicação 2ºano Turma A 2013/2014

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Índice 

Introdução…………………………………………………………………………………………………………… pp.3



Contextualização o A primeira Sagração……………………………………………………………….………………….. pp.4 o A Sagração de Pina Bausch……………………………………………………………………….... pp.5



Os coreógrafos: o Vaslav Ninjinski………………………………………………………………………………………… pp6 o Pina Bausch………………………………………………………………………………………………. pp.6



A peça: o Música………………………………………………………………………………………………………. pp.8 o As coreografias………………………………………………………………………………………….. pp.8 o Os Cenários e figurinos………………………………………………………………………………. pp.9



Análise crítica da Sagração da Primavera o Análise crítica………………………………………………………………………………………….. pp.11 o Análise Contextual…………………………………………………………………………………… pp.12 o Comentário……………………………………………………………………………………………... pp.13



Conclusão…………………………………………………………………………………………………………… pp.14



Bibliografia…………………………………………………………………………………………………………. pp.15



Anexos………………………………………………………………………………………………………………... pp.16

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Introdução: Discurso, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa, é o “ato ou efeito de discursar; exposição de ideias proferidas em público ou escritas como se tivessem de ser ditas em público; (…) raciocínio ”. Já vários autores estudaram esta área, salientando-se Michel Foucault. Este último na sua obra A ordem do discurso afirma que “o discurso (…) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é objecto de desejo; (…) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual, e com o qual se luta, o poder do qual nos podemos apoderar.” O discurso é algo intrínseco à comunicação humana, é uma forma de expor uma ideia, de materializar um pensamento. Para que haja discurso é preciso que se interiorize o que passa no meio envolvente, uma vez que sem o contexto é impossível organizar um discurso. Tudo o que nos rodeia contém uma mensagem e como tal tudo é um discurso que nos influencia de uma forma direta ou indireta. Existem vários tipos de discurso: político, jurídico, religioso, publicitário e artístico. Dentro deste último podemos falar de várias sub-categorias de discursos: música, dança, teatro, poemas podem analisados como tal. Pina Bausch, bailarina e coreógrafa é a prova de que a dança é um discurso, uma forma de expressar a vida: “A dança deve ter outra razão além de simples técnica e perícia. A técnica é importante, mas só um fundamento. Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes porém em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança, e por razões inteiramente outras, não por razões de vaidade. Não para mostrar que os dançarinos são capazes de algo de que um espetador não é. É preciso encontrar uma linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de ânimo, que faça pressentir algo que está sempre presente. Esse é um saber bastante preciso. Nossos sentimentos, todos eles, são muito visíveis. Sempre tenho a sensação de que é algo com que se deve lidar com muito cuidado. Se eles forem nomeados muito rápido com palavras, desaparecem ou tornam-se banais. Mas mesmo assim é um saber preciso que todos temos, e a dança, a música, etc, são uma linguagem bem exata, com que se pode fazer pressentir esse saber. Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida. E, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte.” (Cypriano, 2005, pp.27 e 28) Neste trabalho vou analisar uma peça contemporânea, que se tornou um clássico da dança,- A Sagração da Primavera-, coreografada por dois artistas de épocas diferentes mas que marcaram o mundo da dança: Nijinski e Pina Bausch. No ano em que a Sagração faz 100anos da sua estreia, proponho-me a analisar não só a mensagem que exprime, mas também o contexto em que surgiu, aquilo que originou e os seus criadores. A Sagração da Primavera é uma obra que se baseia num ritual pagão sagrado em que uma jovem virgem é sacrificada, como forma de agradecimento ao Deus da Primavera. A escolhida deve dançar até à morte com o objectivo de ganhar a benevolência deste Deus. É uma peça extremamente pesada e violenta, com um elevado grau de significação. Todos os movimentos efectuados pelos bailarinos têm um sentido próprio e uma carga emocional extrema.

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Contextualização: A sagração da primavera é uma das obras mais mediáticas do mundo da dança. Foi apresentada pela primeira vez em Paris no Teatro dos Campos Elísios, pela companhia de ballet Ballets Russes, coreografada por Vaslav Ninjinski. Foram muitos os coreógrafos conceituados que recriaram esta peça ao longo dos tempos: Leónide Massine, Maurice Béjard, Pina Bausch, Millicent Hodson, Martha Graham, Marie Chouninard e até a portuguesa Olga Roriz que recriou uma peça para a sua companhia e, este ano, um solo para si.

A primeira Sagração Com música de Igor Stravinsky e coreografia de Vaslav Nijinski a Sagração da Primavera original foi um choque para a época em que estreou, e certamente que nos dias de hoje iria igualmente causar alguma polémica. (Anexo 1) Na noite de estreia (29 de maio de 1913) foram muitos os interessados que correram ao teatro para ver uma bailado que prometia ficar na história. Habituados às músicas românticas, às bailarinas em pontas e tutus e a movimentos delicados, não esperavam que Nijinski apresentasse uma obra que agora podemos categorizar de moderna, mas que na altura não era classificável. Em posições paralelas, movimentos descoordenados e frenéticos eram executados pelos bailarinos ao som nada normal de um fagote. Familiarizados com os cânones do ballet clássico e chocados com a brutalidade do tema, após 3min de peça o público começou a vaiar, o que levou a que os poucos fãs se levantassem a aplaudir. Estes dois grupos acabaram por entrar em discussão e até surgiram cenas de pancadaria. A polícia entrou no teatro, as luzes da plateia começaram a acender numa tentativa de acalmar o motim, mas o caos estava instaurado. Enquanto tudo isto acontecia, o espectáculo continuou: os bailarinos não pararam de dançar, nem os músicos de tocar. O barulho era tanto na sala que quando Stravinsky chegou ao palco encontrou Nijinski em cima de uma cadeira gritando os tempos aos bailarinos que não conseguiam ouvir a orquestra. A jovem Maria Piltz, que desempenhava o seu novo e difícil papel de eleita encontrava-se numa péssima situação, uma vez que foi durante o seu solo final que a plateia mais se revoltou. A peça acabou por só subir a palco oito vezes, não cumprindo com aquelas a que se tinha comprometido. A coreografia foi esquecida e só passado uns anos é que voltaram a pegar nela.

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A Sagração de Pina Pina Bausch apresentou a sagração em 1975, apenas dois anos após a criação da sua companhia Tanztheater Wuppertal. Tendo em conta o historial desta obra e a importância que a peça criada por Nijinski tem em toda a história da dança, a carga de responsabilidade que qualquer coreógrafo carrega sobre os ombros quando a decide recriar é muita. Pina certamente que sentiu o mesmo, uma vez a companhia era recente e apesar do seu trabalho já ser conhecido e possuir uma certa fama, ainda não era um novo conceituado da dança e o seu trabalho como coreografa ainda não tinha sido bem explorado. No entanto o resultado final é algo incrível e extremamente bem pensado. Na minha opinião além de ser das mais belas versões da Sagração da Primavera, é das peças mais bonitas desta célebre coreografa. Aos bailarinos foi exigido muito, a entrega é tal que a cada movimento que efectuam há algo que é dito, há um sentimento que é expresso. É uma peça muito emotiva e densa que prende qualquer um e que nos leva a um suspiro final quando a jovem sacrificada morre a dançar. (Anexo 2) Bausch tem uma noção exata do corpo dos seus bailarinos. A forma como circulam pelo palco, como executam os movimentos exige não só um elevado grau técnico como também uma capacidade de interpretação intensa, o efeito resultante é de uma harmonia poderosa e brutal.

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Os Coreógrafos Vaslav Ninjinski Vaslav Ninjinski (Anexo3) nasceu em 1889 ou 1890 em Kiev, no império russo. Filho de bailarinos circenses polacos desde sempre que esteve ligado à dança, entrando desde os 4anos nos números dos seus pais. Aos 10 anos, o seu pai abandona-o e o jovem vai viver com a mãe e a irmã para a Rússia. Foi nessa altura que entrou para a Imperial Ballet School, sendo que aos dezoito anos foi o par da bailarina Anna Pavlova e no ano seguinte, em 1909, viajou para Paris com a companhia Ballets Russes de Sergei Diaghilev, na qual obteve reconhecimento internacional. Nijinski e Diaghilev tiveram um relacionamento amoroso que acabou quando o bailarino se apaixonou por uma bailarina, Romola, com quem veio a casar e a ter duas filhas. Por esta altura o bailarino já era então coreógrafo das peças L'après-midi d'un faune, Jeux e Sagração da Primavera. Nijinski sempre teve um temperamento muito instável, mas foi após o fracasso da Sagração da Primavera que se detetou as suas crises de esquizofrenia. Ele dizia possuir uma doença de espírito que o fazia ouvir Deus e dançar até à exaustão, mas o seu comportamento agressivo e incoerente forçaram a que fosse internado. Mas isso nunca o impediu de criar coreografias, poemas e até pinturas. Considerado o deus da dança, Vaslav tinha uma técnica perfeita e uma expressão única, sentia realmente o que dançava – era esta a sua forma de expressão, era em cima de um palco que se sentia bem. “Vaslav era como uma dessas criaturas irresistíveis e indomáveis, como um tigre fugido da selva, capaz de nos aniquilar de um momento para outro” (Nijinski, 2004, pp.11) Dançou pela última vez em público a 19 de Janeiro de 1919, num hotel nos alpes suíços. Era uma peça que evocava os horrores da guerra que muito chocou o público: era uma “dança da vida contra a morte”. Após 30 anos internado num sanatório desde 10 de março de 1919, morre em Londres em 1950. “Sou um louco que ama a humanidade. A minha loucura é amar a humanidade.”

Pina Baush Pilippina Bausch (Anexo 4) nasceu a 27 de Julho de 1940 na Alemanha. A terceira filha de August e Anita Bausch, desde pequena que sempre ajudou os pais no hotel e restaurante que tinham. O corrido de pessoas parecia-se com um espectáculo, o fascínio pela observação do quotidiano dos outros e as histórias de desconhecidos sempre a fascinaram. Talvez tivesse sido isso que a fez romper com a quarta parede do teatro e estabelecer uma forte relação entre artista e público. Pina sobe pela primeira vez ao palco aos 5anos, mas só aos 14 anos na década de 50 é que entra para a escola de Folkwang em Essen, uma escola de ensino artístico. “Na época de estudante, Bausch já chamava à atenção da Folkwang. [O director da escola, o conceituado 6 Beatriz Vasconcelos Pereira

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coreógrafo Kurt] Jooss não poupava elogios: «é o maior talento que eu já vi»” (Cypriano, 2005, pp25). Em 1958 recebe uma bolsa e atravessa sozinha meio mundo até Nova Iorque onde entra na conceituada Julliard School. Foi aqui que bebeu grandes influências de outros bailarinos e coreógrafos, como Merce Cunningham ou Martha Graham, que fundiu com a dança-teatro alemã. Como bailarina fez parte da companhia Metropolitan Opera Ballet, participou em trabalhos de Paul Taylor e colaborou ainda em dois projectos da companhia de dança de Paul Sanasardo e Donya Feuer, entre muitos outros trabalhos. Em 1973 Pina é chamada para dirigir a Wuppertal Opera Ballet, que renomeou de Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Fundou um novo método de criação coreográfica em que questiona sistematicamente os bailarinos, cruzando-se ideias e memórias até se obter um produto final que resulta num espectáculo que traz o quotidiano ao palco: cabelos soltos, saltos altos, corridas, cadeiras espalhadas pelo espaço e cenário sempre relacionados com a natureza. “Na dança teatro de Bausch o corpo passa por novos desafios (…) O corpo se torna um espaço de resistência frente às diversidades e nega o carácter supra-humano em que a técnica, em geral, busca formatá-lo. Assim, o corpo e sentimentos representam no palco uma unidade; ambos são a expressão da fragilidade da existência humana” (Cypriano, 2005, pp29). Pina foi visionária sem saber: abalou a essência da alma humana, as ideias pré-definidas da individualidade, as hierarquias entre os homens, a desvalorização da diferença, a convenção do amor e do sexo. Bausch casou-se com Rolf Borzik, um designer de cenários e figurinos que morre de leucemia em 1980. Um ano depois conhece Ronald Kay com quem tem um filho. Pina Bausch morre a 30 de junho de 2009, vítima de um cancro no pulmão causado pelos vários anos como fumadora. São inúmeras as suas obras e a maioria, senão todas, são conhecidas mundialmente, estando muito bem consagradas: Sagração da Primavera, Nelken, Café Muller, Masurca Fogo, Palermo Palermo, Árien, Viktor, e muitas outras. Para Pina Bausch “Tudo pode ser dança. Ela está ligada a uma tomada de consciência, a uma forma de estar no ser próprio corpo e a uma grande precisão: saber respirar ter atenção ao mínimo detalhe. A questão é sempre «como». A dança está em toda a parte, também nos opostos. (…) Na época em que vivemos é particularmente na vivência dos sentidos que a dança deve verdadeiramente nascer, mas sem vaidade.” (Galhós, 2010, pp 197) “Para mim dança é muito mais do que as pessoas pensam que é”

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A peça A música A música da Sagração da Primavera foi criada por Igor Stravinsky. Esta peça musical foi realmente chocante para a época pois o instrumento principal era o fagote, um instrumento que até então tinha um papel muito secundário e reduzido. “ A música de Stravinsky, com os seus acordes altos, estáticos e dissonantes, a sua síncope propulsora (a partitura exigia uma orquestra alargada e uma grande secção de percussão) e melodias inquietantes que atingiam registos extremos, era igualmente brutal e desorientadora” (Homans, 2010, pp. 349) Stravinsky utilizou um ritmo muito irregular, uma precursão em dissonância, polirritmia e inúmeras repetições. Além disso a combinação de sons assemelha-se à voz, algo que é muito característico desta obra. A cacofonia de sons tão diferentes, aos quais o público não estava habituado levou a que este se revoltasse e considerasse este espectáculo um ultraje. O próprio autor confidenciou a Nijinski que iam ter de esperar muito tempo até que se habituassem à linguagem deles. Nos dias de hoje qualquer pessoa consegue classificar a Sagração da Primavera como uma obra excelente e extremamente bem conseguida. O tema de adoração da terra e do sacrifício da jovem combinam perfeitamente com a musicalidade que nos é apresentada: um ritmo descoordenado e forte, com sons que nos são estranhos mas que transmitem uma mensagem própria.

As coreografias Numa época em que só existia ballet clássico, onde a técnica e a expressão eram o ex-libris da dança, Nijinski vem revolucionar este mundo com a exigência de expressões vazias e corpos disformes. A Sagração é uma obra com uma coreografia desconcertante e inquietante: “figuras corcovadas a arrastar-se, batendo com os pés e pondo-o em poses estranhas, virados para dentro, e braços enroscados e cabeças tortas. Os movimentos eram bruscos e angulosos, com os bailarinos reunidos a monte, dobrados, tremendo e comprimindo-se, ou circulando furiosamente em danças de roda tradicionais e depois irrompendo compulsivamente do círculo em saltos selvagens” (Homans, 2010, pp. 349). Nijinski criou uma coreografia tão diferente que obrigava os bailarinos a fazerem movimentos de pernas a um ritmo e movimentos de braços e cabeça num ritmo oposto. Eles batiam palmas, caiam, voltavam a pôr-se em pé num ápice. A coreografia parecia uma imensa confusão, uma descoordenação total, no entanto o controlo, a ordem e a razão nunca foram postos de parte. Os bailarinos dançavam em cannon, isto é, imaginemos um ritmo de UM-dois-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-um-DOIS-três-quatro-cincoseis-sete-oito-um-dois-TRÊS-… , em cada uma das acentuações do ritmo há um grupo de bailarinos que começa um movimento diferente, mas este grupos estão dispersos pelo palco. Além disso há uma parte do bailado em que há 44solos, isto é, os movimentos descoordenados dos bailarinos foram definidos individualmente pelo coreógrafo. (Anexo 5)

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“O bailado de Nijinski não era selvagem nem divagante: era uma representação friamente racional de um mundo primitivo e irracionalmente alterado. (…) Nijinski investira todo o seu talento numa ruptura com o passado, e o entusiasmo que ele (e Stravinsky) trabalhou no bailado era uma indicação da sua vontade feroz de inventar uma linguagem completamente nova para a dança. Foi isso que o motivou, e que tornou Le Sacre du Printemps o primeiro bailado verdadeiramente moderno.” (Homans, Jennifer, 2010, pp. 351) A coreografia de Pina Bausch é muito diferente da de Vaslav Ninjinski. Vejamos de forma pormenorizada a coreografia. Primeiro em palco só estão presentes as mulheres que efectuam solos, duetos ou trios, até que há a perceção do vestido vermelho que é sinónimo do sacrifício. Começam então os movimentos repetitivos, metódicos e violentos: a adoração da terra de forma intensa. O grupo dos homens entra e evita o vestido. A adoração da terra continua com um conjunto de duetos de homens e mulheres e uma coreografia de grupo. Aos poucos o sábio afasta-se do grupo pois tem de decidir qual a jovem que será sacrificada. As mulheres, que se encontram em círculo, vão empurrando uma rapariga de cada vez até ao sábio para que este opte por uma. A sacrificada é apresentada ao grupo que assiste ao seu solo até morte por exaustão. A recriação desta coreógrafa alemã é composta por movimentos secos e exatos que contrastam com movimentos fluídos e chamemos-lhes mais balleticos, com braços arredondados, meias pontas, linhas de arabesque e pernas rodadas para fora (Anexo 6). A expressão é algo com muito valor, pois é uma das formas mais fáceis de expressar para o público a sensação de quem dança. Assim que a eleita assume o seu papel, ela parece como que dominada pelo vestido vermelho. A sua expressão de terror e depois de desgaste é algo que passa para o público, que acompanha em uníssono cada respiração, cada gemido, cada queda. Já o sábio aparenta não ter qualquer tipo de sentimento ao escolher a rapariga, enquanto a veste os seus movimentos são precisos e não mostra qualquer tipo de compaixão. A sua expressão é neutra, no entanto há algo que é dito ao espetador só através do seu olhar compenetrante. Há relatos de bailarinos de Bausch que dizem deixar sempre uma parte de si no palco, que acabam a Sagração a chorar, com a sensação de ter ultrapassado o seu limite, de perder a consciência e alcançar outro estado de perfeição total. “Pina Bausch exigia para além do limite as seus bailarinos. Exemplo emblemático disso mesmo é a sua famosa versão da Sagração da Primavera, de 1975, onde os bailarinos dançam literalmente até à exaustão. (…) numa cena de filmagem (…) A bailarina que faz de «vitima» dança até não poder mais dentro da roda de corpos esgotados e fundidos na natureza (…) Às vezes cai em total desgaste físico e emocional. Mas desta vez, a queda foi mais dramática. Desmaia. Não se levanta mais.” (Galhós, 2010, pp.96)

Os cenários e os figurinos A primeira sagração contou com cenários e figurinos de Nicholas Roerich. Este inspirou-se nas antiguidades e têxteis étnicas da colecção princesa Maria Tenisheva. As roupas seguiam um simples padrão em forma de T, mas eram decoradas com círculos, curvas, quadrados, linhas e cruzes organizadas simetricamente (Anexo 7). A complexidade visual dava um efeito primitivo e de desordem que combinava com a música e a coreografia.

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Estas roupas vieram chocar ainda mais o público que estava habituado a bailarinos com roupas juntas de modo a ver-se as formas do corpo, a tutus e a pontas e é lhes apresentado fatos de corpo inteiro. Nenhuma parte do corpo estava a descoberto: as mulheres tinham longas perucas e os homens chapéus, à volta das pernas fitas e na cara uma maquilhagem forte. Dançar esta primeira Sagração foi muito desagradável para os bailarinos. A coreografia energética de Ninjinski não combinava com as pesadas roupas de flanela e lã que causavam um calor insuportável e faziam-nos suar intensamente. Os cenários de fundo retractavam paisagens naturais e eram pintados a aguarela. “Os cenários de Roerich mostravam uma estranha paisagem árida e rochosa, com chifres de veado espalhados nalguns pontos” (Homans, 2010, pp. 349). As vestes e o cenário estavam em perfeita sintonia com o tema e ajudaram a que o público ainda mais indignado ficasse. Na Sagração de Pina as roupas já são bem mais simples e muito características do registo desta coreografa. Mulheres vestem um vestido branco de alças e os homens, em tronco nu, umas calças pretas. Desde o início que um vestido vermelho se encontra no chão- o vestido da eleita. Quando a rapariga que vai ser sacrificada é escolhida, é lhe trocado o vestido branco pelo vermelho. Este vestido é de um tecido transparente que permite ver o corpo da bailarina mostrando a sua fraqueza e vulnerabilidade. (Anexo 8) Quanto aos cenários, é já característico desta coreógrafa usar elementos naturais. Neste espectáculo os bailarinos dançam sobre um chão coberto de terra, o que leva a que quando a terminem estejam contaminados pelo cenário, cobertos de pó, lama e suor. Há assim uma fusão entre o meio e o bailarino. O jogo de luz, sob um fundo negro, ajuda a tornar o ambiente mais pesado e repleto de sentidos. O público não tem qualquer elemento que lhe permita distrair-se da dança, pois tudo se funde.

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Análise crítica da Sagração da Primavera Análise Crítica A Sagração da Primavera é uma peça muito mediática e que mudou o mundo da dança. Se a analisarmos de uma forma mais superficial é uma mera narração, uma representação de um ritual pagão: uma jovem virgem tem de ser sacrificada em honra do Deus da Primavera, símbolo da fertilidade e da produção. A obra divide-se em duas partes: a adoração da terra e o sacrifício. Na primeira parte os jovens encontram-se num ambiente obscuro dominado pelas forças naturais. Os seus movimentos alegres vão dando lugar a algo mais primitivo e selvagem, há como que uma luta entre tribos rivais a que um velho sábio põe fim. Após um momento de silêncio e acalmia, recomeçam os movimentos frenéticos de adoração da terra. A segunda parte começa com a eleição da rapariga que será sacrificada. Esta jovem condenada, que se sente medrosa e assustada, ainda a aceitar o facto de ser condenada, encontra-se sozinha e vulnerável no meio do grupo onde terá de dançar até à morte por exaustão. O apogeu da peça é atingido quando a jovem sacrificada vai caindo ao chão simultaneamente, praticamente sem forças, soltando os seus últimos suspiros. Cai de vez, o ritual está cumprido, o Deus ficará satisfeito. Sentimentos paradoxais estão bem patentes nesta peça: a necessidade do grupo e a influência da massa contrasta com o isolamento e a discriminação que a jovem sacrificada sofre, mas este isolamento é uma decisão do grupo em busca de um bem comum. A eleita sente-se frágil, tendo de enfrentar um destino fatal, mas enfrenta uma luta interior, um ir mais além e superar-se a si mesma em nome da tribo. Quando Nijinski apresentou a Sagração ele não queria simplesmente contar uma história. Nijinski queria romper com as bases clássicas e provar que a dança não é apenas um movimento de corpos perfeitos, sincronizados com a música, com um cenário fantástico de fundo. Esta peça é uma negação do gosto e do estilo romântico, uma forma de combater o conformismo do público elitista que na altura ia ao ballet e à ópera. Ele tentou mostrar que a técnica e a expressão não eram a sustentação da dança, mas sim o expressar de uma mensagem, de ideais em concreto, que é possível através da dança não só retratar determinado acontecimento, mas também influenciar e causar impacto na sociedade. Como já foi dito anteriormente, Vaslav queria criar uma nova linguagem do ballet e conseguiu uma vez que o primeiro bailado considerado verdadeiramente moderno é a sua Sagração da Primavera. Louco ou apenas um visionário futurista incompreendido? Talvez as duas coisas, o problema foi Nijinski estar demasiado à frente para o tempo em que viveu. Os seus ideais foram postos de parte e nem sequer tidos em consideração, foi acusado de estragar a graciosidade e isso levou-o à decadência. O mediatismo criado à volta desta peça foi tanto que foi preciso retirálo do centro da contestação e isola-lo. Inconscientemente, a mentalidade retrógrada e puritana do início do século XX acabou com uma carreira promissora e impediu que o ballet evoluísse durante uns tempos. Este louvor ao Deus da Primavera é no fundo um grito de libertação. Expressa uma necessidade de rutura, de pôr fim a um ciclo vicioso. É o querer ir mais além, o querer quebrar barreiras e libertar-se do passado. Além disso esta obra estabelece um paralelismo aos horrores da I Guerra Mundial que ainda não eram conhecidos, ou seja, foi um mostrar antecipado das 11 Beatriz Vasconcelos Pereira

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mortes inocentes que iam acontecer em prol de uma suposta sociedade melhor. A obra de Nijinski não vale apenas por aquilo que é, mas sim pelo que causou e pelo impacto que teve. Esta obra é de tal forma relevante que não há nenhum coreógrafo no mundo que não queira pelo menos uma vez coordenar um grupo de homens e mulheres que dançam até ao esgotamento, que dão tudo de si para que o público receba qualquer coisa de único e especial, seja ela energia, um sentimento ou uma mensagem. Pina Bausch conseguiu fazê-lo. Pegou na música de Stravinsky e decidiu assumir a responsabilidade. No entanto para Pina, nenhuma obra sua tem uma descrição definitiva e tentar fazê-lo é trair a essência dessa obra. Uma vez que cada indivíduo como espetador é auto determinado, “ Eu tento criar uma obra que é tão aberta que qualquer pessoa pode encontrar nela um lugar que possa significar algo para si” (Galhós, 2010, pp. 79). Não querendo de qualquer forma quebrar com a filosofia de Pina, na minha opinião a sua Sagração leva-nos a entrar em contacto com algo mais arcaico e interior que desconhecemos. Ao assistir à Sagração da Primavera de Pina Bausch há algo recalcado que vem ao de cima. Durante os aproximados 40 minutos em que ficamos a assistir à peça, há como que uma transcendência. O corpo fica na plateia, mas há algo interior que passa a habitar por instantes naquele palco, que paira sobre os bailarinos, que se mistura com o pó e a lama do cenário, que sente cada acorde e vibração dos instrumentos musicais. Esta é mais uma das obras de Bausch em que os bailarinos que a interpretam aparentam estar presos a um sonho distante ou a uma memória inibida. E quem assiste à Sagração sente que algo recôndito desabrocha, há como que uma libertação do espírito.

Análise Contextual A Sagração da Primavera é um bailado que se baseia num ritual pagão. Ao analisarmos pormenorizadamente esta obra não conta apenas uma história, ela faz referências de forma implícita a uma necessidade de libertação e de exteriorização de sentimentos. Associamos o sacrifício às cenas quotidianas de violência e confronto, a rituais modernos de sacrifício. Nos dias de hoje nas sociedades modernas, já não existem rituais de sacrifício tão explícitos. Guerras e crises económico-sociais são formas discretas de desprezar certos indivíduos em nome de um bem maior. Sujeitos individuais, vulneráveis e frágeis, são sacrificados no sentido em que lhes é retirada a vida ou parte dela, para que o país fique em paz ou recupere de uma crise. São vítimas infelizes que o Poder apelida de heróis, para tentar encobrir esta atrocidade do século XXI. Nos conflitos bélicos são muitos os civis que morrem simplesmente por estarem no sítio errado à hora errada. Queda de bombas e tiroteios em plenos centros de vida comunitária são algo constante. São inúmeros os sujeitos que são apanhados desprevenidos e sofrem na pele o terror e a violência destes conflitos. Também os soldados que são enviados em nome da nação estão em constante risco de vida; os que sobrevivem podem voltar a casa extremamente feridos ou com traumas psicológicos que têm repercussões depois na sua vida quotidiana. Já durante as crises económico-sociais, as medidas de austeridade resultam em cortes nos rendimentos e num aumento do desemprego. Estas medidas que tem com objetivo a 12 Beatriz Vasconcelos Pereira

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recuperação da economia levam a que grande parte da população perca poder de compra e acabe a viver em pobreza extrema. Parece não ser real, mas nas sociedades atuais há pessoas que não conseguem fazer mais do que uma refeição por dia ou até mesmo que vivem na rua por não ter dinheiro para uma casa.

Comentário Como já vimos ao longo de todo o trabalho a Sagração da Primavera é um discurso, pois transmite uma mensagem. Ela é a transformação de uma ideia, de uma história para algo material que é visível. Vejamos: os bailarinos (locutores) contam uma história (mensagem) através do corpo (canal) para o público (recetor). Qualquer uma das obras analisadas aqui são objecto de apropriação. São obras mediáticas e com tal tornam-se vulneráveis a vários desvios da sua forma original. Nijinski foi o primeiro criador e autor a assinar a obra da Sagração, mas foram muitos aqueles que lhe sucederam, nomeadamente Bausch que recriou totalmente o bailado. Do original só manteve a música e a história, mas a interpretação foi totalmente sua e independente de qualquer outra Também o pública efetua um processo de apropriação, pois retém a mensagem. Qualquer pessoa do mundo que veja esta peça, seja ela coreografada e dançada por quem for, retira dela algo que toma como seu e acrescenta ao seu próprio mundo de significados. O que retira pode não ser comum a todos, mas o discurso é algo aberto e que dependo do contexto em que o enunciador se encontra, mas também é o recetor que interpreta consoante a sua educação, cultura, mentalidade e valores. Há assim uma contradição daquilo que Foucault chama de sociedade de discurso no seu livro A Ordem do Discurso. A sociedade de discurso para este filósofo tem a função de “conservar ou produzir discursos, mas para os fazer circular num espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que os seus detentores sejam desapossados por essa própria distribuição” (Foucault, 1997:31).

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Conclusão Após terminado este trabalho, tornou-se evidente que existe uma mensagem por trás de cada discurso. Os bailados, que são visto pelo censo comum como uma mera forma de entretenimento, apresentam, afinal, uma grande carga de sentido que o público inconscientemente apreende. Seja através dos movimentos ou da expressão há algo que sai do palco e entra no sujeito espetador que interpretará a peça à sua maneira. Sendo a Sagração da Primavera uma das minhas peças preferidas, foi extremamente gratificante analisá-la de duas formas distintas: como movimento e como discurso. Vaslav Nijinski e Pina Bausch são dois grande nomes do mundo da dança pelos quais nutro uma especial adoração. A sua influência no mundo da dança é grande, mas o impacto dos seus trabalhos na sociedade é também de salientar. Penso que consegui desconstruir este bailado e analisar a mensagem subliminar. No entanto é de realçar que qualquer peça de dança tem um valor e um sentido diferente para cada pessoa do auditório. É um discurso aberto e que não é fácil de analisar, pois possui demasiados elementos complexos que é preciso escrutinar separadamente, como a música, figurinos, cenário e mais importante a coreografia. Enquanto seres racionais, possuímos uma necessidade de ligação aos outros e de estabelecimento de laços afectivos. Todos os sujeitos do mundo têm capacidade de produzir, desconstruir e analisar discursos, uma vez que estes são uma prática comunicacional e a comunicação é alho intrínseco ao Homem. O discurso é algo universal, uma vez que trata assuntos que de alguma forma são comuns a todos aqueles que o ouvem/vêem/sentem e livre pois não há limitações quanto ao teor do mesmo.

14 Beatriz Vasconcelos Pereira

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Bibliografia: Cypriano, Fabio , Pina Bausch , editora Cosac Naify, 2005 Foucault, Michel , A ordem do discurso, editora relógio d’água, 1997 Galhós, Claudia, Pina Bausch- sentir mais, editora D. Quixote, 2010 Homans, Jennifer, Os anjos de Apolo, editora: edições 70, 2010 Nijinski,Vaslav, Cadernos: o sentimento, editora Assírio e Alvim, Setembro de 2004 Pasi, obra dirigida por Mario, El ballet – Enciclopédia del Arte Coreográfico, editora: Aguillar, 1980 Pritchard, edited by Jane, Diaghilev and the golden age of the ballet russes 1909-1929, editora: V & A Publishing, 2010 http://en.wikipedia.org/wiki/Vaslav_Nijinsky, consultado pela última vez a 15 de Novembro de 2013 http://en.wikipedia.org/wiki/Pina_Bausch, consultado pela última vez a 15 de Novembro de 2013 http://www.keepingscore.org/sites/default/files/swf/stravinsky/full, consultado pela última vez a 16 de Novembro de 2013 Filme: Pina, realizador Wim Wenders Filme: Coco Chanel & Igor Stravinsky, realizador Jan Kounen Filme: Pina Bausch Lissabon Wuppertal Lisboa, realizador Fernando Lopes

15 Beatriz Vasconcelos Pereira

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Anexos: ANEXO 1 – A sagração de Ninjinski

http://www.youtube.com/watch?v=ewOBXph0hP4 (Reconstituição da original Sagração da Primavera de Vaslav Ninjinski, pelo Joffrey Ballet) http://www.youtube.com/watch?v=grFJDynzvzo (Excerto do filme Coco Chanel & Igor Stravinsky, onde é retratado detalhadamente as reacções do público)

ANEXO 2 – A sagração de Bausch

http://www.youtube.com/watch?v=VUfj3vGo4n4 (A sagração da Primavera por Pina Bausch)

16 Beatriz Vasconcelos Pereira

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ANEXO 3 – Fotografias de Vaslav Ninjinski

ANEXO 4 – Fotografias de Pina Bausch

17 Beatriz Vasconcelos Pereira

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ANEXO 5 – Fotografias da Sagração da Primavera de Nijinski

ANEXO 6 – Fotografias da Sagração da Primavera de Pina Bausch

18 Beatriz Vasconcelos Pereira

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ANEXO 7 – Figurinos Originais

ANEXO 8 – Bailarinos de Pina Bausch (figurinos e cenário)

19 Beatriz Vasconcelos Pereira

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