“A salvaguarda da azulejaria portuguesa ultramarina (1958-1974)”

June 9, 2017 | Autor: Vera Mariz | Categoria: Cultural Heritage, Cultural Heritage Conservation, Conservação e restauro, Azulejo
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. A SALVAGUARDA DA AZULEJARIA PORTUGUESA ULTRAMARINA (1958-1974) Vera Félix Mariz; Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Alameda da Universidade 1600-214 Lisboa; [email protected] RESUMO O Estado Novo (1933 e 1974) advogou, numa lógica nacionalista e autoritária, a ideia de Império Português. Neste sentido, os seculares monumentos portugueses ultramarinos, pelo seu impacto visual, carga memorial e ancestralidade, foram entendidos e divulgados como os mais expressivos testemunhos da legitimidade lusitana naqueles territórios. Todavia, aqueles eloquentes testemunhos memoriais, face visível das glórias quatrocentistas e quinhentistas que o regime pretendia celebrar e reproduzir, encontravam-se, na segunda metade do século XX, num gravíssimo estado de conservação cuja decadência mimicava, ironicamente, a agonia do colonialismo europeu. Deste modo, perante a paulatina afirmação do anticolonialismo na segunda metade do século XX, e, não menos importante, do estado de ruína em que se encontravam os pretensos bastiões de uma nação colonizadora, o regime desenvolveu um complexo programa cujo objectivo era inequívoco: afirmar a legitimidade do imperialismo português através da recuperação dos seus mais ancestrais testemunhos. Este complexo programa que visou, essencialmente, o inventário, classificação, conservação, restauro e divulgação dos monumentos portugueses ultramarinos numa época de pressão internacional, foi desenvolvido, de forma centralizada, a partir do ano de 1958. Neste âmbito, o arquitecto responsável pela orquestração e execução deste programa – Luís Benavente – deparou-se, evidentemente, com um valioso património azulejar integrado, sobretudo, em construções religiosas. Tendo em consideração as intervenções desenvolvidas nos monumentos em causa, interessanos analisar duas questões concretas: o modo como o arquitecto entendeu a azulejaria com parte integrante do património a recuperar; a metodologia e prática de intervenção que permitiram, numa escala de resultados distinta, a salvaguarda dos referidos conjuntos azulejares. PALAVRAS-CHAVE: Património azulejar ultramarino; Luís Benavente; Estado Novo. 1.

INTRODUÇÃO O presente estudo irá incidir num campo específico das investigações relacionadas com o património azulejar português, nomeadamente a sua salvaguarda num período concreto da História, correspondendo este ao Estado Novo (1933-1974), e num espaço bem definido, ou seja, os territórios ultramarinos que, à época, estavam sob administração portuguesa. Durante a ditadura civil que liderou o presente e o futuro do país ao longo do século XX, os monumentos foram entendidos como eloquentes testemunhos da História nacional, cujas glórias interessavam recordar como elementos legitimadores e inspiradores da actualidade política, cultural, religiosa, financeira e social. Na Metrópole, esta valorização dos monumentos foi feita através da acção da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, cabendo-lhe, enquanto organismo dependente do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, a promoção da sua conservação e restauro, de acordo com a mensagem nacionalista que, a determinada altura, se pretendia passar.

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. Todavia, como se sabe, durante o Estado Novo, Portugal estendia os seus limites até à África e à Ásia, dando continuidade a uma política colonial iniciada no século XV pelos antepassados institucionais dos governadores do presente. Neste sentido, como é natural, o universo patrimonial português estendia-se, também ele, ao além-mar, surgindo, materialmente e simbolicamente, como o maior testemunho da missão portuguesa de conquista e civilização. No entanto, ao contrário do que seria expectável, estes monumentos ultramarinos não mereceram, até ao final dos anos 50 do século XX, a atenção do Governo do Metrópole que, pela sua insciência e distanciamento, tardou a entendêlos como os mais eloquentes e impressionantes testemunhos da presença, administração e herança portuguesa no além-mar ao longo dos séculos. Já nos anos 50, a política colonial portuguesa, como consequência directa do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), da criação da Organização das Nações Unidas (1945) e dos interesses das novas potências mundiais, viu-se altamente contestada e combatida pelos movimentos independentistas dos territórios colonizados. Ora, foi precisamente neste momento, fruto da conjuntura política e do interesse de um homem – o arquitecto Luís Benavente – que o Governo central deu início a um abrangente programa de salvaguarda patrimonial, acreditando, plenamente, que recuperando os testemunho do passado estaria, simultaneamente, a demonstrar a ancestralidade e, mais importante, a legitimidade da presença portuguesa naqueles territórios. Não obstante a atenção prestada, em alguns casos, ao património móvel, os bens imóveis foram, sem dúvida, os focos de interesse deste programa liderado pelo Arquitecto Benavente entre 1958 e 1974. Ora, inevitavelmente, o património erguido pelos portugueses ao longo dos séculos no Ultramar, espelhando a portugalidade da arte e cultura, contava com diversos casos de coberturas azulejares de características distintas. Deste modo, com este estudo, pretendemos demonstrar a forma com o Governo central, através do Arquitecto Luís Benavente, e, por outro lado, uma instituição privada, a Fundação Calouste Gulbenkian, através de João Miguel dos Santos Simões, olharam, do ponto de vista da salvaguarda, para o património azulejar português ultramarino durante o Estado Novo 2. A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO PORTUGUÊS ULTRAMARINO DURANTE O ESTADO NOVO A acção da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais desde o ano da sua criação, em 1929, salvo actuações pontuais, não abrangeu o património arquitectónico português construído, ao longo dos séculos, nos territórios ultramarinos e, consequentemente, a salvaguarda dos conjuntos azulejares integrados em muitos daqueles monumentos ficou altamente condicionada. No entanto, quando chegamos aos finais dos anos 50 do século XX opera-se uma mudança que podemos classificar como política, diplomática e social, cujos efeitos serão inegavelmente decisivos para a forma como o património ultramarino passará a ser entendido e, consequentemente, valorizado. Referimo-nos, neste momento, às consequências do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), à criação da Organização das Nações Unidas (1945) e à Conferência de Bandung (1955), ou seja, ao fortalecimento dos sentimentos nacionalistas e independentistas por parte dos países colonizados e, não menos importante, como recorda Aniceto Afonso [1], ao apoio manifestado pelas novas potências, os Estados Unidos da América e a União Soviética. De facto, observando as evoluções do mapa de África ao longo das décadas de 40 e 50, deparamo-nos com mudanças paulatinas na zona setentrional e subsariana, datando, por exemplo, de 1951 a independência da Líbia face à Itália, de 1956 as vitórias de Marrocos sobre a Espanha e França, da Tunísia sobre a França ou do Sudão sobre a Grã-Bretanha, de 1958 o final do jugo francês na Guiné e de 1962 a vitória do movimento de libertação argelino (1954-1962) sobre a França. Todavia, como sabemos, a intransigência do Estado Novo, prolongou o colonialismo português em África até bem depois da

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. queda do regime, interessando-nos, neste momento, observar um dos instrumentos utilizados pela estrutura política para assegurar e legitimar o Império Português num período de alta contestação internacional do colonialismo europeu. Efectivamente, quando chegamos ao final da década de 50 do século XX, é possível observarmos um fenómeno que, não obstante a disparidade temporal, reflecte plenamente o que se passava na Metrópole desde o início da ditadura militar (1926-1933) e cujo auge será, inegavelmente, alcançado durante a ditadura civil (1933-1974): a utilização dos monumentos como testemunhos memoriais das glórias pretéritas. Ora, estando o regime à procura de uma forma de legitimação da sua política ditatorial, nacionalista e colonial, nada mais natural que ver nos monumentos, erguidos em momentos de glória da História de Portugal, o elo de ligação entre Passado e Presente. Assim, se no passado aqueles monumentos foram erguidos e celebrados como símbolos das glórias nacionais, caberia ao presente, a um regime consciente da sua missão, reabilitá-los materialmente e espiritualmente. Deste modo, havendo, na opinião de António de Oliveira Salazar (1889-1970) [2], uma “Nação a reconstruir”, isto do ponto de vista político, económico, cultural, social e religioso, não é de estranhar que, a par das obras públicas, “a defesa do nosso património artístico” se tenha tornado “das maiores obras da Ditadura, das maiores e talvez das menos conhecidas”. Tendo em consideração a importância destas duas ideias basilares, ou seja, imperialismo e a valorização dos monumentos como testemunhos históricos, seria expectável que, à semelhança do que se verificou na dita Metrópole, entre os anos 30 e 70 do século XX, conforme demonstrou Maria João Neto [3], se tivesse assistido à programação e concretização de um complexo projecto de salvaguarda patrimonial também nos territórios ultramarinos. Isto porque, afinal, nada materializaria com tanto rigor e impacto o majestoso período das Descobertas Portuguesas que se pretendia recordar e reviver num novo momento de excelência da História de Portugal, como os monumentos erguidos além-mar a partir do ano de 1415 com a conquista de Ceuta. Contudo, fruto do desconhecimento, da extensão dos domínios ultramarinos, dos empecilhos burocráticos e de questões financeiras, o que se verificou não foi de todo ao encontro do expectável, tão pouco mimicou o que se passava na Metrópole em termos de intervenção patrimonial e, consequentemente não foi ao encontro do anseio, datado logo de 1934, do Presidente do Conselho [2], segundo o qual “temos de ir para as nossas Colónias como quem não sai da sua terra, como quem não vai para o estrangeiro…”. Ainda assim, não obstante o desfasamento temporal, a verdade é que o regime acabou por compreender que o restauro dos monumentos erguidos há seculos atrás nos territórios ultramarinos, poderia ser um instrumento poderoso para demonstrar a herança portuguesa naqueles territórios cuja independência era então reclamada e, consequentemente, sublinhar a legitimidade da continuação da contestada presença e administração portuguesa no Ultramar. Deste modo, depois de anos de incúria, ignorância e desinteresse por parte do Governo da Metrópole, não havendo, por parte do Ministério do Ultramar, qualquer definição relativa a este assunto, no ano de 1958, através do Decreto nº41:787 de 7 de Agosto [4], a Direcção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do Ultramar, foi, finalmente, incumbida do inventário, classificação, conservação e restauro dos monumentos ultramarinos, preenchendo, deste modo, uma grave lacuna. Havendo, então, uma inegável consciência patrimonial direccionada da Metrópole para o Ultramar, bem como legislação e motivação política, havia, ainda, que encontrar-se um técnico cujas capacidades permitissem coordenar um programa cuja complexidade seria, tendo em consideração as dimensões do Império Português, invariavelmente intrincado. Neste sentido, o arquitecto Luís Benavente (1902-1993), director do serviço de Monumento Nacionais, transitou, a 23 de Setembro de 1958 [3], para o Ministério do Ultramar em comissão eventual, tendo como primeira missão estudar,

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. em São Tomé e Príncipe, duas igrejas e duas fortalezas, ou seja, a igreja da Madre de Deus, a capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, a Fortaleza de São Sebastião e a de S. Jerónimo. 3. A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO AZULEJAR ULTRAMARINO DURANTE O ESTADO NOVO Feita uma breve introdução ao modo como a consciência patrimonial direccionada para os monumentos portugueses ultramarinos foi evoluindo ao longo do Estado Novo, interessa-nos, neste momento, debruçarmo-nos, concretamente, na questão da protecção e valorização dos conjuntos azulejares encontrados naqueles mesmo territórios além-mar. Neste sentido, e em duas partes, passemos a analisar e reflectir acerca dos contributos dados pela esfera pública e privada para o conhecimento e, sobretudo, salvaguarda do património em estudo neste congresso internacional. 3.1 Os contributos do Governo da Metrópole e de Luís Benavente Foi ao longo desta missão iniciada no ano de 1958 em São Tomé e Príncipe, cuja importância, como procurámos demonstrar [5] é, devido ao seu pioneirismo, incontornável, que encontrámos os primeiros sinais da sensibilidade de um indivíduo ao serviço do Governo para com o património azulejar português ultramarino. De facto, logo a partir do primeiro contacto com a igreja da Madre de Deus, templo de origens quinhentistas, o arquitecto Benavente compreendeu que o restauro do conjunto, profundamente afectado por uma flora invasora e destruidora [6], implicaria, incontornavelmente, a recuperação das coberturas azulejares que, neste caso, se estenderiam, até meia altura, em torno de todas as paredes interiores, bem como nos altares laterais e altar-mor. Assim, nesta ocasião, além do registo fotográfico, o arquitecto terá advogado, tal como veremos num caso abordado mais adiante, a remoção do azulejo existente de modo a compreender a forma como este estava adossado na parede. Nesta ocasião, como daria conta em 1970, o arquitecto Benavente concluiu [7] que esta igreja “Possuiu já azulejos por três vezes. O da primeira constava de azulejo de barro vermelho vidrado toscamente a verde de cobre, trabalho este caracteristicamente português do século XVI, em lambris de pouca altura, no qual participava igualmente azulejo branco, de material idêntico. Recebeu depois no altar-mor azulejo de padrão em azul e amarelo colocado em diagonal, de motivos separados, por faixas de meio azulejo com lambrilhas nos cantos, idêntico ao da sua congénere em Lisboa, no coro baixo antigo, hoje servindo de passagem. Este foi colocado sobre a argamassa do primeiro, depois de caído ou arrancado. Está por nós documentado fotograficamente. Pela mesma época recebeu na nave, em lugar do primitivo, azulejo holandês “Enkele tegel”, cantos ‘Ossekop’. Conseguimos obter um inteiro que se encontra no Museu de azulejaria de Lisboa, por nós ali depositado.” Perante este cenário e efectuadas as prospecções necessárias, o arquitecto Benavente projectou aquelas que seriam as composições cujas criações datariam do período renascentista do templo, requisitando a sua reprodução, de acordo com as suas indicações e muito influenciado pela igreja homónima de Lisboa, à Fábrica Cerâmica Viúva Lamego. Sem descurar a colocação dos azulejos no interior desta igreja da Madre de Deus, o arquitecto [8], aquando do recrutamento de um pedreiro para trabalhar nas obras de restauro dos monumentos de S. Tomé e Príncipe, sublinhou a importância deste, neste caso José Teixeira da Cunha, ter a aptidão necessária para assentar azulejo antigo, a par, por exemplo, da execução da cobertura com telha portuguesa. Ainda em São Tomé, a importância do azulejo para a recuperação integral dos monumentos de origem portuguesa, voltou a surgir aquando das obras de restauro da capela da Nossa Senhora do Bom Despacho, templo virado para a Baía de Ana Chaves. Tal como no caso anterior, neste templo cuja data, segundo José Manuel Fernandes [9], datará de cerca de 1617, o procedimento foi semelhante, procedendo-se às prospecções iniciais, levantamento dos azulejos antigos e reprodução

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. de acordo com as indicações do Arquitecto Benavente, ainda que, desta feita, a obra tenha sido executada pela Fábrica de Faianças e Azulejos Sant’Anna, para o altar-mor e arco-triunfal. Depois do início da missão em São Tomé e Príncipe, Luís Benavente estendeu a sua acção às ilhas de Cabo Verde no ano de 1962, dando início àquele que consideramos ser [10], porventura, o programa mais complexo de intervenção patrimonial desenvolvido por este arquitecto para o Ultramar. Todavia, relativamente a este caso de salvaguarda do património azulejar português naquelas ilhas atlânticas durante o Estado Novo, interessa-nos abordar, por momentos, alguns precedentes que consideramos ser da maior importância na medida em que testemunham uma sensibilidade precoce para com os bens artísticos em estudo. De facto, em plena I República, no ano de 1922, o Governador de Cabo Verde, o Contra-Almirante Filipe Carlos Dias de Carvalho (1868-1934) [11], ordenou, através do Boletim Oficial da Província que se cumprisse a Portaria nº40 de 22 de Janeiro daquele ano, cujo tema se prendia com a conservação dos monumentos portugueses locais enquanto eloquentes testemunhos da memória e identidade nacional. Ora, numa das disposições apresentadas como vias para a valorização e travagem da destruição da Ribeira Grande de Santiago, vulgo Cidade Velha, o legislador classifica as ruínas da Sé, localizada no Bairro de S. Sebastião, como monumento nacional e, adicionalmente, proíbe “arrancarem-se das suas paredes os azulejos que as cobrem”. Não obstante esta manifestação de uma arreigada consciência patrimonial direccionada para os azulejos desta Sé construída a partir do ano de 1556 graças à iniciativa do Bispo Francisco da Cruz, a verdade é que estes não chegaram até à actualidade. Na verdade, à acção humana foi, sem qualquer dúvida, um dos grandes factores que contribuíram para a ruína da Cidade Velha ao longo dos séculos, e terá sido, exactamente, graças a esta intervenção externa, a mesma que noutros casos dos mesmo conjunto assegurou a conservação dos monumentos, que os azulejos da sacristia se perderam. Segundo o Arquitecto Benavente [7], cujo primeiro contacto com a ilha de Santiago de Cabo Verde datou do ano de 1962, o padrão polícromo, em azul e amarelo, que forrava a totalidade da parede, dataria do início do século XVII e seria constituído por dezasseis azulejos. Na mesma ocasião, o arquitecto avança, ainda, com informações, cuja confirmação não nos possível averiguar, que estes azulejos teriam sido levados por uma missão americana, encontrando-se, desde então, “num museu nos Estados Unidos, não tendo conseguido averiguar até agora, onde e em qual.” Contudo, na ausência dos azulejos que integrariam o conjunto da Sé de Cabo Verde, o arquitecto Luís Benavente teve, ainda, um fértil campo de acção na mesma Ribeira Grande: a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Este templo, localizado num promontório sobranceiro à rua Carreira, será, actualmente, o monumento mais antigo da Ribeira Grande, contando no seu interior com uma capela lateral cuja data de execução, conforme podemos averiguar pela sua abóbada nervurada, nos faz recuar até ao período tardo-gótico. Ao longo dos séculos, provavelmente devido à riqueza da Confraria de Nossa Senhora dos Pretos à qual estava associada, e que é recordada por António Brásio [12], esta igreja manteve-se num notável estado de conservação, sendo de sublinhar a sua aparente interrupção enquanto lugar de culto. Certo é que quando, no ano de 1962, o arquitecto Benavente [7] se depara com a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, ao contrário do que acontecera na Sé, esta contava ainda, não obstante as “grandes faltas que devem vir de longa data”, com as paredes interiores cobertas de azulejos. Neste caso, tratar-se-ia de um motivo policromado, em azul e amarelo, constituído por dezasseis azulejos, cuja data de execução dataria, possivelmente, do século XVII. Perante esta situação, ou seja, a pré-existência de azulejos, o problema das falhas em algumas das zonas e a necessidade de devolver à igreja a sua legitimidade enquanto eloquente testemunho da missionação portuguesa no além-mar, o arquitecto Benavente traçou um plano que passou pela execução de uma

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. reportagem fotográfica do motivo, levantamento do mesmo para averiguar o modo de assentamento na parede, reprodução dos azulejos e, finalmente, a sua recolocação. Não obstante a metodologia aparentemente incontestável, a verdade é que esta intervenção, verdadeiramente iniciada a partir do ano de 1969, levantou uma série de problemas do ponto de vista da teoria do restauro. Antes de mais, num momento em que a Carta de Veneza sobre a conservação e restauro de monumentos e sítios (1964) [13], da qual o arquitecto fora redactor e signatário, já estava vigente, este defendeu que [14], ao invés de deixar visível a “marca do nosso tempo”, a produção dos novos azulejos, a executar pela Fábrica e Faianças e Azulejos Sant’Anna, deveria ser de “modo a não se conhecer o antigo do actual”. Por outro lado, e de forma contraditória, o trabalho final não foi, de todo, fiel à ideia de esconder a intervenção dos anos 60, sendo isto, pelo menos, notório para quem observa as fotografias pré-restauro e as referências anteriormente citadas. Isto porque, a verdade é que, aquando do restauro liderado pelo Arquitecto Benavente nesta igreja de Nossa Senhora do Rosário, o espaço interior outrora totalmente revestido de azulejaria policroma, não obstante os catorze mil trezentos e setenta e cinco azulejos num valor de 190.700$80 que a Fábrica de Sant’Anna [15] afirma ter realizado, passou a ser, unicamente, revestido até meia altura. Por outro lado, e considerando que o primeiro ter-se-á devido a motivos económicos, a questão mais gritante prende-se com a montagem do motivo. Ora, a verdade é que o padrão que actualmente se repete não corresponde, pelo menos na totalidade, ao pré-existente, derivando, na nossa opinião, de uma má montagem ou de alguma liberdade de projecto. De facto, comparando o padrão que actualmente se encontra montado na igreja em estudo, com os padrões e cercaduras do século XVII, apercebemo-nos que estes azulejos fazem, possivelmente, parte de um outro padrão de 6x6 azulejos, esse sim de utilização muito recorrente no período em causa. Por outro lado, comparando esse mesmo padrão com aquele que estaria aplicado, antes do restauro, no espaço correspondente ao púlpito, parece-nos possível identificar uma coincidência total. De resto, é curioso observamos que a própria Fábrica de Faianças e Azulejos Sant’Anna, reconhece que os azulejos montados na igreja de Nossa Senhora do Rosário da Ribeira Grande, fazem parte da sua colecção “Colares”. No entanto, como os próprios reconhecem, a montagem dos azulejos não terá sido a habitual, criando um padrão distinto daquele que seria o recorrente na colecção em causa. Ainda a propósito desta missão de Luís Benavente em Cabo Verde e, concretamente, da integração da azulejaria nos seus programas de restauro dos monumentos ultramarinos, é importante referir que, do ano de 1970, momento em que o arquitecto ainda se encontrava a trabalhar na igreja de Nossa Senhora do Rosário, data um testemunho incontornável para o estudo da salvaguarda do património azulejar nos territórios de além-mar durante o Estado Novo. De facto, em Janeiro de 1970, a Agência Geral do Ultramar, a pedido da Fundação Calouste Gulbenkian, solicitou ao arquitecto Luís Benavente, enquanto técnico em comissão de serviço no Ministério do Ultramar, que elaborasse um esclarecimento relativo à existência de azulejaria portuguesa nos monumentos do além-mar. Ora, estando já familiarizado com os casos de São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, o arquitecto discorreu, brevemente, acerca dos factos seus conhecidos. Assim, além das alusões aos casos que já abordamos relativos a Sé e igreja de Nossa Senhora do Rosário na Ribeira Grande de Santiago, bem como à igreja da Madre de Deus em São Tomé, o arquitecto referiu, ainda, a existência de conjuntos azulejares na igreja de Nossa Senhora da Nazaré em Luanda, bem como na igreja e convento de Nossa Senhora do Carmo na mesma cidade angolana. Estes dois últimos templos, classificados como monumentos nacionais desde 1932 e 1945, respectivamente, estavam sob a alçada da Comissão dos Monumentos Provinciais de Angola e desconhecemos, neste momento, se os seus painéis representando o milagre de D. Fuas Roupinho, o combate da batalha de Ambuíla e a execução do rei do Congo, no caso da Nazaré, ou o azulejo de padrão do Carmo, foram

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. intervencionados durante o Estado Novo. Certo é que, à época, era possível encontrar muitos outros conjuntos azulejares nos monumentos de Angola, como são os casos, por exemplo, da Fortaleza de São Miguel, cuja construção inicial data do século XVI, ou da igreja de Nossa Senhora dos Remédios, construção seiscentista. Vistas as intenções de salvaguarda do património azulejar português ultramarino por parte do Governo da Metrópole na sequência do decreto centralizador de 1958, interessa-nos sublinhar que esta acção, não obstante o seu valor, não se revestiu de um carácter único. 3.2

Os contributos da Fundação Calouste Gulbenkian e de João Miguel dos Santos Simões O interesse manifestado, no ano de 1970, pela Fundação Calouste Gulbenkian em relação à produção azulejar portuguesa integrada nos monumentos do Ultramar, não foi, de todo, acto pontual e descontextualizado, mas muito pelo contrário. Efectivamente, a Fundação Calouste Gulbenkian contou, desde o ano de 1956, com o seu Serviço de Belas-Artes, conhecido então, como sublinhou Jorge Rodrigues [16], enquanto Serviço de Museu e Belas-Artes, cuja actividade no campo do estímulo à produção artística acompanhou, ao longo dos anos, o desenvolvimento da História da Arte em Portugal e, muito concretamente, os estudos do património azulejar nacional. Conhecendo, certamente, a importância da Fundação Calouste Gulbenkian e do referido Serviço, no panorama da promoção da arte e da sua investigação em Portugal, conforme relata Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara [17], João Miguel dos Santos Simões (1907-1972), figura maior do estudo da azulejaria, apresentou, no ano de 1957, ao Presidente do Conselho de Administração da instituição supra citada, um projecto incontornável para o estudo da salvaguarda do património azulejar português. De facto, nesta ocasião, o estudioso e teórico desta temática, apresentou um projecto ambicioso cujo objectivo passava, essencialmente, pela realização de um Corpus da Azulejaria Portuguesa. Ora, o projecto foi aceite pela Fundação Calouste Gulbenkian e, deste modo, nasceu a Brigada de Estudos de Azulejaria, prevendo-se que os estudiosos se debruçassem sobre o inventário, estudo e divulgação dos núcleos azulejares do Continente, Açores, Madeira e, ainda, do Brasil. Tendo em consideração esta abrangência, poderíamos, desde já, apontar as ausências de outros núcleos fundamentais e que, à época, faziam ainda parte do dito Império Português. Ainda assim, e não obstante as falhas óbvias, é importante referir que a actividade da brigada estendeu-se, igualmente, a Marrocos, onde terá havido contacto com a Societé Cooperative des Zelligueurs em Fez e pesquisa feita no Palácio Jamai em Meknes, Tunísia, conhecendo-se o espólio do Museu Nacional do Bardo, e Angola, nomeadamente na igreja de Nossa Senhora da Nazaré e na capela de Nossa Senhora dos Navegantes, ambas em Luanda. Apesar deste projecto, gizado por Santos Simões e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, não ter abrangido a totalidade do universo azulejar português, deixando de fora, por exemplo os núcleos que vimos anteriormente, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, não podemos deixar de apontar a incontornabilidade daquele, pois, afinal, o inventário é, indubitavelmente, o primeiro passo em qualquer programa de salvaguarda patrimonial, uma vez que não podemos proteger o desconhecido. Deste modo, apesar da Brigada de Estudos de Azulejaria ter sido oficialmente extinta a 1 de Dezembro de 1969, não podemos deixar de considerar que o facto da Fundação Calouste Gulbenkian se ter dirigido à Agência Geral do Ultramar que, por sua vez, recorreu ao Arquitecto Luís Benavente, é um sinal incontestável do caminho aberto por Santos Simões no âmbito dos estudos do património azulejar português além-mar.

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. 4.

CONCLUSÃO Tal como João Miguel dos Santos Simões defendeu, no século passado, aquando da sua proposta de elaboração de um Corpus da Azulejaria Portuguesa, é necessário, ainda hoje, continuarmos a advogar o interesse e, sobretudo, a importância de um conhecimento global do nosso património azulejar. Neste sentido, os estudos sobre esta temática deverão, obrigatoriamente, abranger, com igual entusiasmo e rigor, os núcleos existentes nos territórios que, outrora, fizeram parte da nação portuguesa. Por outro lado, os estudos relativos à teoria do restauro em Portugal, ambicionando o desenvolvimento e crescimento desta área de conhecimento, têm, obrigatoriamente, de abranger esses mesmos territórios, pois, afinal, também neles encontramos monumentos que, com maior ou menor incidência, foram alvos de verdadeiros sinais de consciência patrimonial. Foi pois com este entendimento que nos propusemos, nesta ocasião, a elaborar um estudo dedicado ao tema que nos tem absorvido, ou seja a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino durante o Estado Novo, cujo conhecimento completo, como procurámos demonstrar, implica, necessariamente, um olhar atento para os conjuntos azulejares que, ainda hoje, se encontram além-mar, testemunhando a herança portuguesa naqueles territórios. Num momento em que é desnecessário continuar a haver incómodo em estudar o regime ditatorial que marcou o nosso país ao longo de tantas décadas, temos, obrigatoriamente, reconhecer que os monumentos ultramarinos, como aqueles da metrópole, beneficiaram, sem dúvida alguma, do espírito nacionalista do Estado Novo. De facto, independentemente das intenções motivadoras destas intervenções patrimoniais a verdade é que estas, de uma forma melhor ou pior conseguida, mas sempre de acordo com os critérios da época, contribuíram para o prosseguimento da vida daqueles verdadeiros testemunhos memoriais. Neste sentido, também o azulejo encontrado no Ultramar, entendido, no campo das artes, como expressão claríssima da identidade portuguesa, beneficiou do afã protector e valorizador verificado, sobretudo, nos anos 60 e 70 do século XX. No final deste estudo, tendo-nos debruçado, com maior pormenor nos casos de intervenção patrimonial desenvolvidos em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde sob a orientação do Arquitecto Benavente, podemos considerar que, nestes casos, o azulejo foi, sem dúvida alguma, entendido como parte integrante da arquitectura e, como tal, a intenção da sua salvaguarda foi inquestionável. Não obstante a valorização dos conjuntos azulejares observados, como foi, por exemplo, o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Ribeira Grande de Santiago em Cabo Verde, não podemos, naturalmente, deixar de ter dúvidas relativas aos critérios da época. Isto porque, aquando das intervenções, ou seja, do estudo, destacamento, reprodução, remontagem dos padrões e recolocação dos azulejos, muito se perdeu. Afinal, e recordando o caso supra citado, os azulejos antigos cuja existência deu lugar a novos que, para exacerbar, foram colocados numa disposição e distribuição distinta da anterior, deveriam ter sido, imperativamente, remetidos para uma entidade responsável pela sua conservação, ao invés de terem ficado no local nas mãos de uma zelosa habitante daquele espaço. Acreditamos, pelos dados obtidos, que esta seria a intenção dos responsáveis pelos restauros mas que as dificuldades burocráticas e, sobretudo, a conjuntura política e económica, condicionaram a sua aplicação plena. Ainda assim, não obstante os pontos criticáveis, não podemos deixar de reconhecer, a par do entendimento do azulejo como parte integrante da arquitectura, a intenção de valorizar, conservar e salvaguardar este património durante as missões desempenhadas no Ultramar no período correspondente ao Estado Novo. Para terminar, sublinhamos a importância da consciência e entusiasmo de Santos Simões, a par, obrigatoriamente, da sensibilidade da Fundação Calouste Gulbenkian, pois também estes,

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. através da Brigada de Estudos de Azulejaria, constituem testemunhos da vontade de conhecer e, posteriormente, proteger e divulgar o património azulejar português ultramarino. Concluindo, sublinhe-se que, como vimos pelo reduzido número de casos abordados, o trabalho de inventário sistemático, investigação, sensibilização e promoção da conservação e restauro do azulejo está, ainda hoje, incompleto, merecendo, por parte de todos nós, o maior interesse e dedicação. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] AFONSO, Aniceto, GOMES, Carlos Matos. Guerra Colonial. 4ª Edição. Lisboa: Editoral Notícias, 2005. [2] FERRO, António. Entrevistas a Salazar. Lisboa: Parceria A.M. Pereira, 2007. [3] NETO, Maria João. Memória, Propaganda e Poder: o restauro dos Monumentos Nacionais (19291960). Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001. [4] Ministério do Ultramar. Diário do Governo, I Série, Número 172, Imprensa Nacional, 1958, pp.756761. [5] MARIZ, Vera. O caso pioneiro de São Tomé e Príncipe no panorama da salvaguarda dos monumentos portugueses ultramarinos durante o Estado Novo. Colóquio Internacional – São Tomé e Príncipe numa perspectiva interdisciplinar, diacrónica e sincrónica. Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL e Instituto de Investigação Científica Tropical, 2012, (no prelo). [6] BENAVENTE, Luís. Relatório de 5 de Janeiro de 1959. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Luís Benavente, Caixa 70, Pasta 490, Documento 19, 5 de Janeiro de 1959. [7] BENAVENTE, Luís. Existência de Azulejaria Portuguesa no Ultramar. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Luís Benavente, Caixa 152, Pasta 1221, Documento 1, 14 de Janeiro de 1970. [8] BENAVENTE, Luís. Contratação de um pedreiro. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Luís Benavente, Caixa 71, Pasta 491, Documento 49, 16 de Agosto de 1960. [9] FERNANDES, José Manuel, BARATA, Filipe Themudo, coord. Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitectura e Urbanismo. África, Mar Vermelho, Golfo Pérsico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. [10] MARIZ, Vera. Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino (1962-1974). Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné Bissau: Percursos do Saber e da Ciência. Instituto de Investigação Científica e Tropical e Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2012, (no prelo). [11] Governo de Cabo Verde. Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, Série I, Número 14, 8 de Abril de 1922, pp.94 e 95. [12] BRÁSIO, António. Monumenta Missionaria Africana. II Série, vol.V. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1979. [13] Carta Internacional sobre a Conservação e Restauração de Monumentos – versão portuguesa sobre o texto original II Congresso Internacional dos Arquitectos e Técnicos dos Monumentos Históricos. Luís Benavente – arquitecto, Lisboa, 1997, pp.69-71. [14] BENAVENTE, Luís. Memória Descritiva. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Luís Benavente, Caixa 67, Pasta 459, Documento 48, 6 de Maio de 1969. [15] Fábrica de Faianças e Azulejos Sant’Anna. Factura. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Luís Benavente, Caixa 117, Pasta 800, Documento 21, 12 de Setembro de 1972. [16] RODRIGUES, Jorge. O Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian e a Brigada de Azulejaria. João Miguel Santos Simões 1907-1972. Lisboa, 2007, pp.141-143. [17] CÂMARA, Maria Alexandra Trindade Gago da. A Brigada de Estudos de Azulejaria – A génese de um inventário em Portugal. João Miguel Santos Simões 1907-1972. Lisboa, 2007, pp.145-152.

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