A saúde tem cura

May 26, 2017 | Autor: Lilian Feres | Categoria: Gestão
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A saúde

O sistema de saúde que cuida de todos nós vive uma crise mundial. Mas já há um remédio para isso, como afirma o mestre da estratégia, Michael Porter, nesta entrevista exclusiva e você acredita que estratégia é um assunto que diz respeito apenas ao universo dos negócios, da diplomacia e da guerra –ou, no máximo, à economia familiar–, está profundamente enganado. Estratégia tem a ver com tudo que importa para nós, incluindo o mais importante: a saúde. Tanto que o maior especialista mundial em estratégia, consultor favorito dos mais poderosos governos e corporações mundiais, resolveu debruçar-se sobre o assunto. Sim, Michael Porter, professor titular da Harvard Business School, acaba de lançar nos Estados Unidos o livro Redefining Health Care – Creating Value Based Competition on Results (ed. Harvard Business School Press), em parceria com Elizabeth Olmsted Teisberg, da Darden Graduate School of Business, escola de administração da University of Virginia. A edição brasileira do livro está sendo preparada pela editora Bookman e deve chegar às livrarias em 2007. Porter analisa principalmente o fracasso do sistema de saúde norteamericano, que tem um modelo de assistência privada à saúde –os planos de saúde privados cobrem quase 75% da população. Mas não é preciso avançar muitas páginas do livro para perceber que sua análise se aplica ao 

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sistema de saúde do mundo inteiro. Nesta entrevista, Porter explica que a falta de estratégia é o diagnóstico dos males encontrados. E a estratégia correta, da competição baseada em valor, é o remédio que levará à cura. Toda vez que se fala em competição na área de saúde, as pessoas torcem o nariz. Mas, nesse caso, a competição pelo valor é diferente, porque ela propõe uma redução de custos no longo prazo, estratégica, fruto da melhora da qualidade da saúde. Aos pacientes e médicos, Porter dá um recado: o paciente deve ser ativo na gestão de sua saúde. E o médico deve apoiar essa conduta. Seu novo livro, Redefining Health Care, afirma, em outras palavras, que o sistema de saúde é um fracasso. Trata-se de um fracasso mundial ou de um fracasso norte-americano? Hoje não acredito que possamos considerar qualquer sistema de saúde no mundo verdadeiramente um sucesso. Mas meu foco foi o sistema de saúde dos Estados Unidos, que é particularmente problemático, porque mostra que investimento de dinheiro não é sinônimo de qualidade. Gastamos mais do que qualquer outro país do mundo com saúde, proporcionalmente, e, mesmo assim, registramos um desempenho sofrível no que diz respeito a qualidade, erros, tratamentos que não funcionam etc. É incontestável que os resultados não são

bons, apesar de os gastos aumentarem rapidamente –essa área já constitui uma parte enorme do orçamento do nosso país. Em alguns países europeus, como Alemanha, Holanda ou Reino Unido, os gastos têm diminuído e algumas estatísticas de qualidade se mostram melhores que as nossas. Por exemplo, registram índices de mortalidade infantil –relativos ao número de bebês que morrem logo depois do nascimento– menores que os dos Estados Unidos. Em expectativa de vida, o sistema europeu, gastando menos, alcança marcas semelhantes às norteamericanas. Portanto, imagina-se que o sistema europeu funcione melhor. E, em certo sentido, funciona mesmo, porque em muitos países europeus o sistema é universal (atende toda a população), o que significa que todos podem ter acesso a um médico, especialmente para um primeiro atendimento. Mais preventivo, esse atendimento é fundamental para o sucesso de um sistema de saúde, pois, orientando o paciente no início de uma enfermidade, o médico consegue evitar que ele fique ainda mais doente. As pesquisas mostram, no entanto, que os custos e os problemas de qualidade na Europa também estão crescendo muito rapidamente. Acho que os líderes europeus estão tão preocupados com o sistema de Número 1 – setembro-outubro 2006

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“O valor oferecido ao paciente é o resultado em saúde que ele obtém por dólar gasto no sistema”, explica Porter

saúde quanto nós dos EUA ou vocês do Brasil. Ninguém tem as respostas sobre como desenvolver um sistema de saúde realmente eficaz. O sr. encontrou uma resposta? Temos de pensar sobre sistemas de saúde de modo totalmente novo; essa é a única solução possível. E o aspecto mais importante é pensar sobre a Número 1 – setembro-outubro 2006

maneira como o sistema é estruturado do ponto de vista do valor oferecido ao paciente. O que é isso? É o resultado em saúde que o paciente obtém por dólar –ou real, no caso brasileiro– gasto no sistema. O único modo de resolver o problema do sistema de saúde é aumentar o valor gerado para o paciente, ou seja, conseguir melhores resultados

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de saúde para o paciente, por um custo menor. E isso se faz pela competição baseada em valor. Mas não é complicado pensar em custo menor quando se trata da saúde dos nossos filhos, por exemplo? Não parece um sentimento muito cristão... O custo menor já é a tônica da competição atual. O objetivo da nova competição que propomos é exatamente outro: o aumento do valor gerado. O valor está diretamente relacionado a quão bom é o resultado para o paciente. Veja bem: não falamos em competir com base em resultados de lucratividade, mas em resultados de saúde. Essa é uma diferença básica. Você não pode reduzir custos se isso não contribui para a saúde do paciente. Hoje o sistema de saúde compete com base no “empurra-empurra” de custos entre as partes. O médico tenta cobrar mais do plano de saúde; este procura pagar menos para o médico. O paciente também quer pagar menos ao plano de saúde, e cobra do governo que este banque mais, oferecendo melhor atendimento gratuito. Já o governo tenta fazer com que o paciente pague mais, investindo em planos de saúde. Em resumo, a competição que existe hoje não é boa para o paciente. Nosso livro é sobre como criar um sistema de saúde que seja desenhado realmente para melhorar a saúde do paciente. Precisamos achar modos de redesenhar e reestruturar a entrega do atendimento de saúde a fim de aumentar o valor. Por isso, precisamos de uma abordagem estratégica, para entender como organizar a entrega do atendimento de saúde e que escolhas cada participante do sistema deve fazer, a fim de aumentar o valor. Health & Management



Isso é possível? Nós somos otimistas, achamos que pode haver grandes melhoras nos resultados de saúde com baixos custos. E o paciente sairá vencedor, segundo nossa teoria. O sr. pode explicar por que esta estrutura de entrega está errada? Há três grandes problemas estratégicos no sistema atual, do ponto de vista da entrega do atendimento. O primeiro problema é que ele está desenhado em torno de instituições generalistas –hospitais que fornecem todos os serviços. Todos os hospitais do sistema oferecem todos os serviços. E o valor gerado para o paciente não aumenta pelo fato de haver uma linha de serviços ampla. O valor gerado para o paciente depende de quão bem o hospital ou o médico se sai em cada área de especialidade médica –em caso de ataque cardíaco, ou em uma crise de asma. É assim que o valor é determinado e ter uma linha de serviços ampla não



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contribui muito, porque se você é bom em ortopedia não quer dizer que será bom em cardiopatias. Cada problema médico é diferente. O sistema deve ser desenhado de modo a permitir que cada instituição seja excelente em uma área específica e tenha volume suficiente de pacientes para se destacar nisso. O segundo problema reside no fato de a medicina hoje, não só nos EUA, mas na maioria dos países do mundo, estar organizada a partir de especialidades médicas, como nefrologia, radiologia, cirurgia, endocrinologia e assim por diante. Mas, ao cuidar dos problemas do paciente, é preciso unir essas especialidades em uma cadeia de atendimento integrada. Em vez disso, o que acontece hoje é que o paciente tem de ir a muitos médicos diferentes, que não conversam entre si. Não se trata apenas de ver a pessoa inteira... pense em um problema ortopédico, no tornozelo; há muitas habilidades necessárias envolvidas no atendimento desse problema: cirurgia, reabilitação

etc. Tudo isso tem de ser coordenado, ao longo de todo o ciclo da doença. Da forma fragmentada atual, temos muitos problemas, mas também há muitas oportunidades de aumentar o valor para o paciente. O terceiro problema é que o sistema é organizado em torno de módulos muito locais. Parte-se do pressuposto de que o paciente irá ao hospital local, em vez de descobrir que médico ou que hospital é realmente excelente para enfrentar o problema médico específico dele. A não ser em emergências, isso seria perfeitamente possível. Como podemos fazer com que essa transformação seja viável? Todos que participam do sistema têm de fazer mudanças. A boa notícia é que estamos diante de uma oportunidade do tipo ganha–ganha; se der certo, todos ficam melhor: o paciente, o médico, o hospital, o plano de saúde, o governo. Hoje, como nosso foco não é aumentar o valor, vivemos um processo ganha–perde, ou seja, para que alguém fique melhor, o outro precisa ficar pior. Em nosso livro, oferecemos muitos exemplos de como podem ser essas transformações (veja quadro na página ao lado). Não há dúvida de que esse modelo realmente funciona. A questão é como começar a fazer a transição. Acreditamos que o passo mais importante seja medir resultados. Precisamos gerar a informação que é necessária para alimentar esse tipo de competição: resultados médicos comparados com os custos. Isso significa que, para cada hospital que esteja fazendo cirurgias cardíacas, precisamos medir, antes de tudo, se o paciente sobreviveu, se houve complicações e quão rápido o paciente voltou para casa. Do mesmo modo, precisamos começar a medir os custos totais do atendimento, comparando-os com os resultados alcançados. Não sei como é no Brasil, mas, nos EUA, tendemos a pagar por serviço: há uma nota fiscal para o cirurgião, uma nota para o hospital, uma para os remédios. Isso nos deixa sem idéia do custo total de todos esses serviços envolvidos. Número 1 – setembro-outubro 2006

Sinais de transformação Em seu livro Redefining Health Care, Michael Porter e Elizabeth Teisberg citam vários casos de organizações que começaram a fazer mudanças em busca do novo paradigma do valor para o paciente. Entre eles, destaca-se o governo do estado norte-americano de Massachusetts, que expandiu drasticamente a cobertura de saúde, tornando-a universal e obrigatória, por meio de um processo de cinco etapas: 1) O governo matriculou no Medicaid (um dos dois sistemas de saúde pública dos EUA) todos os cidadãos que tinham o perfil de paciente exigido pelo Medicaid (determinada faixa de renda e condição social), mas não estavam matriculados –aproximadamente 100 mil pessoas. Foi fazendo isso à medida que as pessoas buscavam auxílio médico na rede pública. 2) O governo estadual criou um plano de saúde básico com cobertura menos extensiva, e menos cara, que o plano

Nos EUA, já existem instituições que medem o desempenho? Temos exemplos de áreas de problemas médicos específicos que já medem resultados, como a de cirurgias cardíacas. Nesse caso, podemos comparar médicos e hospitais sob a perspectiva desses resultados. Mas não basta que os resultados sejam medidos, eles precisam vir a público, o que ainda não acontece de modo regular. É quando isso ocorre que se começa a criar uma competição para melhorar os resultados. E também é isso que leva ao compartilhamento de conhecimento sobre as práticas mais adequadas. Sem essa comparação pública, nada feito... Para o sucesso do setor de saúde, é fundamental o contínuo aprimoramento e aprendizado de como fornecer atendimento de alta qualidade. Então, até que comecemos a medir e divulgar Número 1 – setembro-outubro 2006

de seguro mínimo então disponível, tornando a assistência privada à saúde acessível a muito mais famílias –a estimativa era de que esse plano custasse US$ 140 mensais por pessoa, em vez de US$ 500. 3) Com o plano mais barato, o governo estadual pôde exigir que todo cidadão residente em Massachusetts tivesse um plano de saúde, impondo sérias penalidades a quem não o tivesse. 4) Para famílias com renda baixa que não podiam ser cobertas pelo Medicaid, o governo estadual criou –e bancou– uma rede assistencial do tipo “rede de segurança”, que faz a medicina preventiva, evitando doenças ou minorando seus efeitos. 5) Por fim, o governo estadual está debatendo vários modos de assegurar que os empregadores que não oferecem planos de saúde a seus funcionários possam contribuir com o custo de saúde dos não-segurados bancados pelos cofres públicos. Uma das possibilidades é aumentar as taxas que esses empregadores pagam ao Medicaid.

resultados de forma transparente, para que sirvam de comparação entre os diversos fornecedores, não será possível compartilhar conhecimento na amplitude desejável. Já há muito compartilhamento de conhecimento nos EUA e o que acontece aqui é que medimos muitas coisas, mas não resultados, e sim processos de atendimento: os médicos fizeram isso, fizeram aquilo etc. Devemos passar da orientação para processos à avaliação de resultados. Esse é provavelmente o maior passo aqui nos EUA. No Brasil, a idéia de avaliação parece ter sido substituída pela propaganda boca a boca. Fulano sabe que cicrano é o melhor médico de tal especialidade... Sim, também nos EUA muitas das decisões se baseiam apenas em reputação e relações pessoais. Há rankings de hospitais e médicos, mas,

no fundo, são baseados apenas em reputação. Não há evidências, resultados objetivos. E descobrimos que a reputação freqüentemente está errada aqui nos Estados Unidos. Em nossa pesquisa, constatamos que alguns centros médicos de prestígio, ligados a universidades, obtêm resultados piores do que hospitais comunitários. Não são em todos os casos, mas em algumas áreas médicas. A quem cabe essa mensuração: aos hospitais? Ao governo? Sim, mas não só. As empresas de planos e seguros de saúde também devem dar muito mais importância ao esforço de avaliar os diferentes fornecedores. E devem orientar o paciente a procurar os fornecedores que possam fazer o melhor trabalho. É preciso desenvolver esse novo papel para os planos de saúde e as seguradoras. Essas empresas acham que seu trabalho é apenas pagar a conta... Essa é uma armadilha do sistema de saúde: quando se tenta controlar custo, tem-se grande chance de aumentar custo. Essa é uma discussão complicada. Na nossa opinião, a melhor forma de controlar custo é aumentar a qualidade do atendimento de saúde; é a qualidade que reduz custos. Ou seja, fazer o melhor diagnóstico, ter menos complicações pós-operatórias etc. Muito do pensamento desse setor tem sido o de perguntar: “Como posso economizar dinheiro?”. Está completamente errado. A preocupação deveria ser: “Como posso impulsionar a qualidade?”, pois essa é a forma de economizar dinheiro no longo prazo. É a única solução para o problema. Quais são as implicações dessa mudança para nós, os consumidores do sistema de saúde? As pessoas devem entender que o atendimento de saúde é um serviço produzido pelo médico e pelo paciente juntos. O médico pode fazer um ótimo trabalho, mas, se o paciente não colabora, não toma os remédios, não controla o peso, não Health & Management



faz exercícios, o médico não pode ser muito bem-sucedido. O paciente é co-responsável; trata-se de uma produção conjunta. Não costumamos ver esse tipo de atitude nos pacientes. Predomina a visão de que isso é trabalho do médico e de que não há muito que se possa fazer. Precisamos mudar radicalmente essa atitude –e os médicos devem apoiar isso. As evidências são claras ao mostrar que as pessoas podem ter grande impacto sobre sua saúde. Temos de criar uma nova relação e um novo senso de responsabilidade por parte dos pacientes. Não apenas em termos de prevenção, mas também no tratamento da doença, no que se chama hoje de “gestão da doença”: se você tem um problema crônico, como diabete, é necessária uma nova abordagem, segundo a qual você trabalha com a assistência médica para controlar o problema, para que não fique pior e não tenha de ir para o hospital. Os planos de saúde já estão incentivando essa abordagem de cooperação, por exemplo, ao cobrar mais de um fumante que não participa de nenhum programa para tentar parar de fumar.

Quais são as implicações para os diversos fornecedores do setor? Há muitos fornecedores no sistema de saúde, de equipamentos médicos a remédios. Basicamente acreditamos que os fornecedores devem começar a competir com base no valor também. Há uma tendência dos fornecedores de competir com base em volume, em vez do valor. Eles querem que o maior número possível de seus remédios, ou de seus equipamentos, sejam adotados. Concluímos que esse modelo não é bom para os pacientes a partir de evidências de que muitos tratamentos fracassam. E muitas drogas não atingem os mesmos resultados em todos os pacientes. Cada um é diferente. Então, em vez de maximizar o volume, eles devem pensar em valor e medir muito melhor os resultados de longo prazo que advêm dos tratamentos. Eles devem trabalhar em parceria com os médicos para se assegurar de que os tratamentos estão estruturados e gerenciados adequadamente nos hospitais; deve haver uma transformação da mentalidade dos fornecedores.

Regis Filho

O Instituto do Coração, ligado ao Hospital das Clínicas, em São Paulo, é um exemplo de instituição especializada de excelência

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Quais são as implicações para as empresas que pagam planos e seguros de saúde para seus funcionários? Os empregadores têm a grande oportunidade de ser um dos mais importantes agentes de transformação na reforma do sistema de saúde. Eles pagam boa parte do atendimento de saúde e podem ter grande influên­ cia sobre o sucesso ou fracasso do sistema. Historicamente eles têm perdido a oportunidade de desempenhar um papel-líder no setor de saúde. Sempre tomam suas decisões na busca do menor preço pago pelo plano de saúde. Esse é o modo errado de abordar o assunto e vou explicar por quê. Primeiro: tentar sempre obter o menor preço faz com que as coisas piorem no sistema de saúde. Você deve buscar a melhor qualidade, pois isso leva ao menor custo no longo prazo. Segundo: é preciso reconhecer que faltas por doença, por exemplo, são um grande custo. Funcionários mais saudáveis trazem enormes vantagens para as empresas do ponto de vista da produtividade. Algumas empresas líderes dos EUA já começam a ver os planos de saúde não como custo, mas como itens fundamentais para a produtividade e a relação de longo prazo com os funcionários –e não apenas da boca para fora. É o começo de uma transformação. Outro indício da transformação está nos empregadores que dão aos funcionários incentivos e ajuda para que permaneçam saudáveis, com programas de exercícios, por exemplo. Terceiro: já vemos algumas empresas colaborando com outras no sentido de pressionar o sistema de saúde em algumas das direções de que falamos: medir a qualidade, orientar o paciente para encontrar o médico certo etc. Há grande oportunidade para as empresas empregadoras fazerem diferença; elas só precisam defender a visão adequada sobre o sistema de saúde e a melhor estrutura para esse sistema. Lílian Chein Féres Número 1 – setembro-outubro 2006

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