A Segunda Invasão Francesa e os Mosteiros do Norte

May 22, 2017 | Autor: Gonçalo Marques | Categoria: Historia Militar, Invasões Francesas
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A Segunda Invasão Francesa e os Mosteiros do Norte



Ao longo da História, os Mosteiros sempre se constituíram como um
"microcosmos", um refúgio da realidade mundana e um oásis de retemperamento
espiritual e cultural. Graças, em grande parte, à larga visão de S. Bento –
um dos maiores reformadores do monaquismo ocidental (no século V-VI D.C!) –
as instituições monásticas acabaram por criar junto das populações uma
sombra protectora que, paulatinamente, se estendeu aos seguintes aspectos:
Sobrevivência material: o Mosteiro garantia aos "moços" (jovens
criados) ou ao restante pessoal externo à comunidade religiosa
trabalho remunerado (na sua maior parte na lavoura e em todas as
operações a ela ligadas). Os empregados das casas monásticas podiam
receber géneros agrícolas (normalmente, uma parte do que cultivavam
era para seu consumo próprio) ou então dinheiro (normalmente, no caso
de funções externas à vida agrícola), sendo certo que os Mosteiros
lhes asseguravam direito de pousada – ou seja, de residência – tendo
aposentos próprios (sobretudo nas casas monásticas de maior dimensão e
rendas)
Amparo e protecção na doença: os Mosteiros de Entre Douro e Minho
possuíam enfermarias[1] e boticários nos quais "tratavam da saúde" de
religiosos e leigos, dando corpo a uma das funções do monge: a
assistência.
Refúgio e abrigo: em situações de carestia extrema ou de guerra, era
às portas da "Santa Madre Igreja" que a população se dirigia. Não nos
esqueçamos que, num quadro de desprotecção social bastante grande, era
à Igreja Secular (Dioceses e Paróquias) ou Regular (Mosteiros,
Conventos e Abadias) que a população se dirigia para encontrar
alimento e abrigo, dado que alguns conquistadores prometiam não
destruir os edifícios religiosos e poupar as suas comunidades.

Dada a sua grande implantação no Entre Douro e Minho, as Ordens
Religiosas criaram laços de fraternidade com as populações, através do
estabelecimento de laços de dependência típicos da realidade feudal. Estas
cumplicidades acabaram por ser decisivas na criação de uma "retaguarda"
defensiva face à "grande armée". Nesta lógica patriótica – destacada por
João Francisco Marques[2] – os Mosteiros acabaram por ser hospitais de
campanha, perfeitos centros de mantimentos e de reorganização logística
face ao inimigo francês. E veremos exemplos disso mesmo ...


Porquê atacar os Mosteiros?


A voragem sequiosa da França Napoleónica pela pilhagem fez-se sentir
na passagem dos seus homens pelos cenóbios minhotos (não nos esqueçamos que
Soult autorizou os seus homens a saquear o Porto durante 3 dias, como era
uso). Além de tesouros, os Franceses levavam aquilo que, na realidade
prática da campanha, lhes era mais útil: água, mantimentos, cavalos e
outros instrumentos que lhes permitissem continuar em frente ... mas as
populações (com o apoio claro dos religiosos), em pouco tempo, organizaram
uma verdadeira resistência patriótica que acabou por tornar a presença
francesa num inferno para os próprios ...


A Fonte


O testemunho privilegiado em que baseamos o nosso trabalho encontra-
se depositado no Arquivo Distrital de Braga (localizado no antigo Paço
Episcopal) e, inserido no fundo da Congregação de S. Bento, é designado e
vulgarmente conhecido pelo nome de "Estados"[3].
O que são Estados? Tratam-se de relatórios que, em cada triénio (e
desde 1622), os Mosteiros Beneditinos apresentavam à reunião magna dos
responsáveis da ordem – o Capítulo Geral – que se realizava na casa mãe: a
Abadia de Tibães. Nestes relatórios cada um dos Mosteiros dava conta da sua
situação (financeira, espiritual e "política"). Aqui se encontram,
portanto, curiosidades sobre a vida interna das comunidades que importa
explorar e conhecer no caso das invasões francesas.


Um roteiro nada turístico


O percurso por nós elaborado está relacionado com um itinerário que
as fontes nos determinaram e com uma escolha pessoal de um conjunto de
Mosteiros que, pela sua dimensão e importância, merecem uma nota de
destaque. Por um lado, todos os Mosteiros apresentados são de observância
beneditina; por outro lado, foram escolhidos tendo por base uma área
geográfica que se estende pela Província de Entre Douro e Minho.
Os Mosteiros que farão parte deste roteiro são os seguintes:
Santo Tirso (S. Bento)
Santo André de Rendufe
São João de Alpendurada
São Miguel de Bustelo
São Salvador de Paço de Sousa
São Salvador de Ganfei
Santa Maria de Pombeiro
S. Bento da Vitória


O rasto da destruição francesa


Os "raids" permanentes dos franceses e as suas acções de "rapina"
foram registados pelos monges estadistas com todo o cuidado. A pena deixa
antever alguma mágoa, mas regista de forma translúcida o cenário de
desolação e de dificuldades que o Norte de Portugal viveria durante esta
Segunda Invasão Francesa. Senão vejamos:


Em Alpendurada ...


O Mosteiro sofre algumas obras de renovação nas zonas da Capela-mor,
da Sacristia, Celas dos Monges e outras dependências associadas mas, em
momento algum se fala, taxativamente na "invazão dos franceses". Por outro
lado, estão registados gastos avultados com despesas extraordinárias – 5
contos 443 936 réis, que podem muito bem ter custeado reparações igualmente
extraordinárias provocadas pela passagem francesa. Será que a situação geo-
estratégica do Mosteiro de Alpendurada, encaixado no vale do Douro e bem
próximo da famosa confluência de Entre-os-Rios, não foi aproveitada pelos
franceses?
O elemento que mais curiosidade nos mereceu no tratamento do "Estado"
deste Mosteiro foi a aquisição, por parte da Livraria da Historia Secreta
de Buonaparte. Note-se que, neste triénio, são adquiridas outras obras (de
temática sacra) que, em conjunto com esta publicação que ora mencionamos
levaram a livraria a investir 45 600 réis.
Pelas pesquisas que pudemos desenvolver em bibliotecas internacionais
trata-se, com uma elevadíssima dose de probabilidade da obra de Lewis
Goldsmith intitulada "História Secreta do Gabinete de Napoleão Bonaparte
incluindo a sua vida privada (etc ...)". Repare-se que este investimento
implica, por um lado, um (grande) interesse da comunidade monástica de
Alpendurada na aquisição de conhecimentos mais estruturados e desenvolvidos
sobre o Imperador dos Franceses, bem como uma rede de contactos com outras
instituições monásticas e livreiros que facilitariam aos monges de
Alpendurada o acesso a obras como a que acabamos de referenciar.

Em Paço de Sousa ...

O Estado de 1810-12 descreve a situação no Mosteiro da seguinte
forma: "Compozerão-se todas as portas das cellas de madeira fechaduras e
chaves e mais reparos precisos, segundo o estrago que nellas tinhão feito
os Francezes. Pozerão-se todos os vidros nas janellas das cellas e
officinas que elles estragarão, bem como o tempo". Esta informação revela-
nos algo que muitos autores já têm vincado: os Franceses usaram os
Mosteiros como ponto privilegiado de aboletamento e de reorganização das
suas forças. Aqui terão descansado – até aproveitando as infraestruturas
existentes no Mosteiro – e aproveitado para estabelecerem uma "base
provisória". Sublinhe-se que os Monges Estadistas tiveram uma preocupação
de isenção neste relato: os estragos devem-se aos franceses "bem como [a]o
tempo". Desta forma não se inflacionou o peso que os franceses tiveram na
degradação do edifício de Paço de Sousa ..
Não há sinais de "passagem" francesa pela igreja ou sacristia, não
sendo mencionado qualquer extravio de imagens, paramentos ou alfaias
religiosas, o que nos poderá levar a pensar que os religiosos terão
escondido estes preciosos objectos da cobiça francesa[4]. Curiosamente, nos
alcances dos géneros, verificamos que o Mosteiro de Paço de Sousa
contribuiu para o alimento das Forças Armadas. A título de exemplo, foram
dados "à Tropa" 120 alqueires de cereal de "segunda".

Em S. Bento da Vitória ...

Bem no coração da urbe portuense, o Mosteiro da Vitória viu-se
transformado num verdadeiro hospital de campanha: "A maior parte do
Mosteiro está servindo de Hospital Militar, asim como todas as officinas à
excepção da Livraria que está fechada e a chave se acha em nosso poder e do
mesmo modo o santuario das reliquias: ocupamos unicamente o lance para a
parte do Nascente que corre desde o coro até a ultima sacada exclusive; em
cima e em baixo, incluza a casa da portaria principal e o lance do Claustro
que vai em direitura à Sancristia incluzive; Todo o resto do Mosteiro está
feito Hospital e delle estamos inteiramente separados por tapamentos de
tabique que se fizerão este triennio". Note-se que há uma enorme
preocupação em proteger o acesso ao "santuario das reliquias" (ficando a
chave em poder dos monges) e em reservar à comunidade religiosa apenas a
ala nascente do edifício monástico. Como última nota, o Estado refere que
foram gastos 15 675 réis com "colchões colmo e muinha".

Em Santo Tirso ...

Apesar do Mosteiro de Santo Tirso ser, do ponto de vista fundiário e
do seu domínio directo, talvez o mais relevante na província de Entre Douro
e Minho no Antigo Regime (pese embora a macrocefalia de Tibães na Ordem
Beneditina), não há grandes relatos de destruição nesta casa, sendo até
curioso que em nenhum ponto deste Estado seja referido a palavra
"francezes".
Há um investimento claro em produtos alimentares e materiais de
construção. O poderio financeiro do Mosteiro fica desde logo bem patente no
investimento feito em "gastos do Mosteiro": 22 contos e 427 560 réis. Das
obras mais relevantes efectuadas neste triénio destacamos: "Solhou-se huma
cella, fez-se-lhe repartimento de tabique, pintou-se, abrio-se-lhe hum
postigo com caixilhos e portas e fez-se-lhe huma porta nova. Dealbarão-se
por dentro cinco cellas. Na cella abbacial pozerão-se 20 quadros, que
exprimem os factos mais notaveis da vida de Pio VI [...] Dealbou-se o
Mosteiro por fora [...] Concertarão-se os telhados e vidraças".
Não deixa de ser curioso que, num triénio em que se vive o drama da
reconstrução de muitos edifícios e do cuidado a muitos desamparados, o
Mosteiro de Santo Tirso tenha a preocupação de adquirir 20 quadros sobre os
"feitos mais notaveis" do pontificado de Pio VI. Recorde-se que este foi o
Papa que atravessou o instável período da Revolução Francesa e que teve
como lema a defesa da ordem tradicional face aos radicalismos
revolucionários. Pio VI reinou 24 anos (o mais longo desde S. Pedro) e
terminou o seu pontificado de forma trágica – sendo capturado por
revolucionários e levado para Valença do Ródano, onde faleceu aos 81 anos.
A homenagem dos monges tirsenses à figura de Pio VI é um elemento que
ilustra a sua erudição e conhecimento da realidade europeia coeva.

Em Bustelo ...

Nesta casa monástica "concertarão-se e dividirão-se os quartos dos
creados que tinhão sido arruinados pelos Francezes, puzerão-se-lhes seis
barras novas e alguas portas com fechaduras. Compos-se o relogio da torre
renovando-se alguas peças, que faltavão e concertou-.se também o de sala".
Uma grande parte da sacristia – incluindo reposteiros, cortinados e outros
paramentos – "fora destruída pelos Francezes".
Aqui está mais um exemplo de utilização da propriedade monástica como
forma de aboletamento das tropas. A situação de Bustelo, entre as terras
bracarenses e a vizinhança do "termo do Porto" terá sido um ponto
obrigatório de passagem das forças de Soult na sua marcha até à cidade
invicta.
Em Ganfei ...

A vaga destruidora dos Franceses não parece ter passado por este
mosteiro valenciano. Não há sinais documentais, mas é certo que há um
conjunto de "reformas" e de obras com uma dimensão estrutural que, cremos,
não se devem ter ficado a dever apenas aos efeitos do decurso do tempo.

Em Rendufe ...

Outro importante e rico mosteiro minhoto. Neste caso, tal como no
anterior, o Estado de 1810-12 não refere qualquer escolho causado no
Mosteiro pela presença francesa, apesar de serem feitas (como é normal em
cada triénio) obras de beneficiação e recuperação de alguns espaços mais
necessitados. O principal exemplo é o encanamento de águas para a cozinha e
para as dependências dos monges.

Em Pombeiro ...

Talvez o mais martirizado de todos os mosteiros beneditinos na
segunda invasão francesa. Segundo Geraldo Coelho Dias "dos mosteiros
beneditinos, o mais afectado foi o de Pombeiro. As tropas francesas, em
retirada apressada, ao saberem que o General Silveira lhes cortava o passo
em Amarante, inflectiram a caminho da ponte da Misarela no rio Rabagão
[...] ao passarem por Pombeiro, o edifício mais imponente que se lhes
deparava, descarregaram toda a sua raiva incendiando o Mosteiro. Estava-se
a 13 de Maio de 1809. O mosteiro ardeu praticamente todo"[5]. Com efeito,
os homens de Loison não pouparam o vetusto mosteiro do qual pouco sobrou.
O "Estado" de 1807 faz a descrição detalhada da situação do Mosteiro
antes e depois do grande incêndio ateado pelos Franceses: "antes do fogo
tinha se firmado em cal todo o telhado da galaria e tinha-se feito de
(e)stuque o salão que ficava por cima da Portaria e o corredor da mesma
galaria já estava immadeirado e ripes pregadas para ser também (e)stucado.
As duas cellas grandes de cima estavão solhadas forradas e repartidas com
portas de vidraças nas devizões a que se destinava para os prelados tinha a
sala das visitas de stuque e hua grande agoa fortada sobre a cella interior
que abrangia toda a sua extensão e toda a cella estava acabada tanto de
trolha, como de carpinteiro [...] Depois do fogo desentulhou-se todo o
Mosteiro não só nos baixos mas também por cima das abobadas e ao tirar do
entulho houve todo o cuiidado em escolher os pregos, e toda a qualidade da
ferragem. Ficão quazi todos os pregos direitos e a maior parte ao fumo
dentro da chaminé para evitar as ferrugens. Todos os tijolos se
aproveitarão assim os enteiros, como os partidos: e os enteiros ficão
postos em rima e cubertos de telhas para a chuva os não amolecer.
Immadeirou-se todo o dormitorio que fica ao meio dia athe ao meio da
cozinha que foi aonde se pode atalhar ao fogo e todo se cubrio de telha ao
fazer deste immadeiramento procurou-se remediar quanto foi possivel o
defeito que tinha o Mosteiro de ser baixo e com o remedio que se lhe deo,
podem as cellas vir a ter mais dois palmos de elevação, o dormitorio dois e
meio e o claustro trez".

Outras manifestações da Segunda Invasão

As marcas da presença francesa foram sentidas também na vida
económica das instituições monásticas: a desarticulação dos circuitos
comerciais (onde persistiam as figuras dos almocreves e caixeiros
viajantes), o aumento dos preços e as quebras de produção constituíram
efeitos difíceis de transpor. Damos como exemplo o aumento significativo
dos custos na "importação" de vinho que os Mosteiros necessitavam para o
seu funcionamento interno. Lembre-se que o número significativo de criados
exigia uma produção de vinho verde constante e que nos períodos de obras
esta necessidade aumentava consideravelmente ... por outro lado, os monges
estavam impedidos, por via canónica, de operarem misturas de vinho maduro
com água/vinho verde. O consumo do vinho maduro acabou por se impor entre
os religiosos, talvez pela sua "leveza" e grau de acidez mais baixo face ao
vinho verde.
Em conclusão: os Mosteiros desempenharam um papel decisivo na
"Restauração de Portugal", como lhe chama Acúrsio das Neves, através das
seguintes manifestações:
reorganização defensiva (pondo ao serviço da resistência popular os
edifícios monásticos e o conhecimento do terreno)
recursos económicos (géneros agrícolas para manutenção das forças
resistentes)
contribuição activa na luta contra os ideias franco-maçónicos e,
mesmo, nos combates "militares" (contando-se a presença de religiosos
nas forças para-militares e a sua liderança intelectual num momento de
grande instabilidade no Reino)
os Mosteiros que parecem ter sido mais atacados pelos franceses foram,
sem dúvida, Pombeiro, Bustelo, Paço de Sousa e S. Bento da Vitória





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[1] Confronte-se as referências constantes às enfermarias nos "Estados" dos
Mosteiros Beneditinos, conservados no Arquivo Distrital de Braga no fundo
da Congregação de São Bento (CSB).
[2] MARQUES, João Francisco – "O Clero Nortenho e as Invasões Francesas".
In "Revista da Faculdade de Letras – História", II Série, vol. IX, 82 pp.
Este autor fala num discurso eclesiástico que "combate ao estrangeiro,
usurpador e tirano, e a apologia do soberano reinante, legítimo penhor da
ordem político-social assente na solidariedade do Trono e do Altar" (p. 9).
Disponível em
http://aleph.letras.up.pt/exlibris/aleph/a18_1/apache_media/BHGMHLFN1ATFEHBF
J4KNX3G636CCQ6.pdf
[3] Veja-se no Inventário do Fundo Monástico-Conventual do Arquivo
Distrital de Braga: ADB – CSB – Estados.
[4] Tal sucedeu, por exemplo, na Sé Catedral do Porto, onde o altar de
Nossa Senhora da Vandoma foi coberto de gesso para que os franceses
pensassem que eram uma mera parede com reboco de pouco valor.
[5] DIAS, (Frei Geraldo) José Amadeu Coelho – O Mosteiro de Pombeiro e os
Beneditinos nas ordens de Felgueiras.
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