A Sementeira: poemas anarquistas

June 30, 2017 | Autor: A. Veleda Oliveira | Categoria: Contemporary History, History of Anarchism, Twentieth-Century and Contemporary Poetry
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Título: Poemas Anarquistas: o Caso d’A Sementeira Ana Rita Veleda Oliveira, doutoranda (quatro ano) em Discursos: História, Cultura e Sociedade, Faculdade de Letras e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Resumo A Sementeira é uma revista anarquista portuguesa, publicada, com uma interrupção de três anos, entre Setembro de 1908 e Agosto de 1919. Nesta, os textos literários –, que incluem contos, peças de teatro e poemas –, ocupam um espaço considerável, transmitindo, muitos, mensagens práticas, procurando ter impacto na vida social das populações. Divulgada por todo o mundo e vendida directamente em Portugal e no Brasil, é um mensário de carácter internacionalista. Pretende-se analisar a face artística desta publicação libertária, procurando demonstrar que a política nem sempre é incompatível com as artes. Palavras-chave: artes; poemas; anarquismo; A Sementeira

Title: The Sowing: Anarchist Poems Abstract A Sementeira (The Sowing) is a Portuguese anarchist periodical. It was published monthly between September 1908 and August 1919, with an interruption of three years. Literary texts, including short stories, theatre plays and poems, occupy a considerable amount of space amidst its pages. Many of these convey practical messages, trying to influence the social living of populations. Disseminated worldwide and sold directly in Portugal and Brazil, The Sowing is an internationalist periodical. In this article, i intend to analyze the artistic face of this libertarian publication and try to prove that arts and politics can sometimes walk hand in hand. Keywords: arts; poems; anarchism; A Sementeira (The Sowing)

«Que a arte, se não tem sido, deve ser pertença de todos, como a luz do sol […]» (A Sementeira, 2ª série, nº30 (82), Junho de 1918: 96). 1

«Desgraçado daquele que não sabe sair, quando é preciso, da regra social…» Anatole France, (A Sementeira, nº9, 1ª série, Maio de 1909: 67). A Sementeira Publicação Mensal Ilustrada – Crítica e Sociologia, foi uma publicação anarquista lisboeta mensal. Dirigida pelo arsenalista (operário especializado do Arsenal da Marinha de Lisboa) Hilário Marques, proprietário desta revista, da época da Primeira República Portuguesa –, tendo começado, porém, a ser publicada ainda antes de 5 de Outubro de 1910, entre Setembro de 1908 e Agosto de 1919. Entre estas datas, A Sementeira teve um período de suspensão entre Março de 1913 e Dezembro de 1915, devido à ida de Hilário Marques para Inglaterra. De acordo com João Freire (Freire, 1981: 767). «A Sementeira é o título da revista de propaganda e doutrina anarquista mais duradoura do primeiro quartel deste século [o século XX]» em Portugal. Até ao número 26 da revista, de Outubro de 1910, por coincidência a data de instauração da Primeira República no nosso país, o nome de Hilário Marques, «proprietário e diretor» do mensário, aparecia «isolado» no cabeçalho da capa. A partir do número 27 e quase até ao final da segunda série da Sementeira, à direita do nome do arsenalista (ou noutra ordem) estava escrito também «Editor – Ismael Pimentel». Este normalmente assinava os seus artigos como «Ismaelita» e foi editor de muitos números da Sementeira. Os colaboradores da revista reuniam-se com frequência na taberna Feijão Encarnado, segundo João Freire, sendo a redacção, administração e tipografia na rua das Salgadeiras, 44, 1º; passando, depois para a Rua da Barroca, 44, 2º. A revista era inicialmente impressa na Rua do Diário de Notícias, nº s147 a 151. Custou 40 réis até ao número 36, de Agosto de 1911, e metade, 20 réis, a partir do número 37, de Outubro de 1911. A segunda série tinha a sua redacção e administração no Cais do Sodré, número 88, em Lisboa, sendo a tipografia na Rua Poço dos Negros, número 81. Emílio Costa ou Neno Vasco, foram outras das figuras importantes que escreveram neste mensário. Sendo uma publicação periódica de propaganda anarquista, vivia apenas da venda dos seus próprios exemplares, sendo alguns leitores, que se vendia em Portugal e depois também em várias localidades do Brasil, também assinantes da revista. Como ali se afirmava: «É necessário fazer espalhar, tornar conhecida esta publicação.» (A Sementeira, nº 43, Maio de 1912: 56). Os temas «propagandeados» são: o ensino racional e os direitos das crianças, por exemplo, críticas à educação «actual» e ao trabalho infantil; o anti-militarismo; o feminismo e a emancipação da mulher; a

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ecologia; alimentação saudável e vegetarianismo; a justiça social (que abrange todos os outros), etc. A Sementeira pertence à vertente comunista do anarquismo, «no cotejo com as suas vizinhas “sindicalista” e “individualista”» (Freire, op. cit.: 772). Terá tido origem no grupo «acção directa», que existiu entre 1906 e 1908, do qual Hilário Marques foi, também, impulsionador. Porém, segundo João Freire (Freire, op. cit.: 785) é uma revista libertária e não operária. Um exemplo de texto literário que revela esse carácter de anarquismo comunista surge com a publicação No Café (Palestras ao Natural), de Errico Malatesta, autor que aliás tem vários textos na Sementeira. É um opúsculo de 94 páginas, mencionado na secção «publicações recebidas» (A Sementeira, nº 32 (84), Agosto de 1918: 123). Faz parte do número um da Biblioteca de Brochuras Sociais, editada no Porto. Na Sementeira (idem, ibidem) é-nos dito: «Tal como está, porém, é uma bela e límpida exposição do comunismo anarquista – bases, fins e meios, – digna de se pôr ao lado dos anteriores escritos do autor, como Entre camponeses e Anarquia.» O sociólogo João Freire considera a parte literária da revista manifestamente acessória (op.cit.: 771), embora ocupe cerca de um quarto do espaço impresso da mesma. No número nove da primeira série, por exemplo (A Sementeira, nº 9, Maio de 1909: 65), Portugal é apelidado criticamente de «paíz de poetas e de idealistas», e os portugueses convidados a olhar para «as questões e os movimentos da democrática França» e a verificar o que impulsiona esses operários a convulsionarem uma democracia. Não quer isto dizer que os poemas e outros textos literários da revista fossem do mesmo «género» dos textos literários assim criticados. Apesar de tudo, penso que se justifica um estudo dos textos literários d’A Sementeira e, neste caso concreto, dos poemas da mesma, que procurarei elaborar em seguida. De entre os autores portugueses de textos literários que colaboram na revista –, todos homens, embora existam alguns poemas feministas e textos escritos por mulheres –, contam-se: Luís Cebola, Edmundo d’ Oliveira, autor do soneto anti-militarista «O Heroismo» (A Sementeira, nº 35, Julho de 1911: 282); Eduardo Bramão d’Almeida, autor do soneto «Aos Jesuítas» (A Sementeira, nº 26, Outubro de 1910: 207); Bento Faria, autor dos poemas «Vozes do Cárcere» (A Sementeira, nº18, Fevereiro de 1910: 143), «O Sol» (A Sementeira nº 22, Junho 1910: 175), do soneto «Fronteiras», escrito em 1911 (A Sementeira, nº29, Janeiro de 1911: 231), etc.; Manuel Ribeiro (autor de «A Passagen da Bandeira» (A Sementeira, nº40, 1912: 27 e 28) e de «A um Espírito 3

Indeciso» (A Sementeira, nº 41, Março de 1912); João de Deus Ramos, Joaquim dos Anjos, Cláudio Manuel, autor do poema «Tréva e Luz» (A Sementeira, nº44, Junho de 1912); Guilherme de Azevedo, autor do poema «História Simples» (A Sementeira, nº 45, Julho de 1912: 67 e 68); Raimundo Reis, brasileiro autor do soneto «Dom Quixote» (A Sementeira, nº 49, Novembro de 1912: 101); Avelino de Sousa (autor das «Trovas Sociais»), Augusto Machado, autor do soneto «O Convento» (A Sementeira, nº 25, 1910: 2012); César Porto, Reis Carvalho, Xavier de Paiva, autor do soneto «A Tirania» (A Sementeira, nº23, Julho de 1910: 183); Santos Fidalgo, José Oiticica, autor de «O Sol», retirado do livro Sonetos (A Sementeira, nº 50, Dezembro de 1912: 111); ou Vítor Luís. Alguns textos de conhecidos escritores internacionais foram, também, publicados: de Ema Goldman, Luiza Michel, Émile Zola, Oscar Wilde, Anatole France, Ravachol, Gorki, Elisée Reclus, Octave Mirbeau, Hermann Sudermann, ou do «colaborador» habitual da Sementeira Errico Malatesta. As mulheres anarquistas não foram, porém, esquecidas. Ema Goldman e a sua publicação Mother Earth, editada nos Estados Unidos, são referidas inúmeras vezes aparecendo, inclusivamente na Sementeira, uma foto em destaque desta famosa mulher anarquista de origem russa.

Figura 1: Ema Goldman. Capa de A Sementeira, de Março de 1912.

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Poemas de A Sementeira

«Alguns, entretanto, aventuraram-se até aqui. Estas flores, que o tempo secou, trouxeram-nas mãos femininas; estas tábuas de texto cortado atestam a constância de alguns escritores; estas inscrições nos muros, inábeis e ingénuas, dizem que alguns simples, no maior furor da tormenta, não puderam afazer-se a renunciar a ti, Consoladora!». Do poema «Prece à que não se nomeia», assinado por Severine (A Sementeira, nº 14 (66), Fevereiro de 1917: 211). Se considerarmos que «Consoladora» se refere à Ideia anarquista, uma interpretação possível, este poema em prosa resume bem todas as participações literárias n’A Sementeira. Escolhidos mais pelas ideias transmitidas do que propriamente pelo estilo poético e literário, na minha opinião, os poemas da revista têm valor não só pelas ideias que transmitem, inseparáveis da vida de quem os escreveu (que não será aqui analisada por falta de espaço) e da época e objectivos da própria publicação, assumidamente anarquista. Existem, nesta, poemas de grande qualidade, para além do seu significado histórico e sociológico, como este «Aos Companheiros de Prisão» (A Sementeira, nº 37 (89), Abril de 1919), de José Oiticica, anarquista brasileiro que se encontrava encarcerado, tendo estado na prisão política da Ilha Rasa, no Rio de Janeiro, na sequência de um plano colectivo para derrubar o governo brasileiro, em 1918:

«Aos Companheiros de Prisão

Irmãos, eu vos saúdo! Embora presos, Ameaçados, malditos, sem futuro, Temos, em nossos braços indefesos, Azas de anjo e tendões de palinuro.

Estes focos azuis em nós acesos, – Luz da grande cidade que procuro – Hão de arder ante os sátrapas surpresos, Quando for Lei o que hoje é sonho puro. – Guerreiros da Anarquia – os sofrimentos São, para nós, auréola e honra sublime, 5

E mais nos honram quanto mais violentos Tenhamos por bemvindas nossas dôres; Que a dôr aos homens justos não oprime E torna os mais humildes, superiores. Rio [de Janeiro], (Quartel de Brigada), 29-11-1918.

No mesmo número da revista, a seguir a este poema vem um pequeno texto do anarquista brasileiro Astrojildo Pereira, companheiro de lutas de Ortinica, que é precisamente dedicado a este e também à anarquia (idem, ibidem):

Jamais se apagará em nós a fé, ó irmão e amigo! Na grande ideia azul porque todos sofremos: Mesmo nas horas débeis de melancolia, Ou sob a ameaça atroz do mais rude perigo, Os nossos corações, como heraldos supremos, Erguem-se-nos no peito em hurras à anarquia!»

A Sementeira foi propagadora de ideias anti-militaristas e contra a guerra, numa altura em que decorria a Primeira Guerra Mundial, e em que Portugal as opiniões se dividiam sobre a participação do nosso país nesta, inclusivamente entre os anarquistas.

Figura 2: Escultura «Os Frutos da Guerra», de Emile André Boisseau. (A Sementeira, Março de 1916: 40).

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«Dom Quixote», do poeta brasileiro Raimundo Reis, poema inédito escrito no Brasil, em Outubro de 1912, poderá (?) ser interpretado como uma sátira contra a guerra (embora esta não seja a única interpretação possível).

Dom Quixote A espada á cinta, a pluma ao vento, a lança em riste, – Eia, meu Rocinante, á conquista da Ideia! De lutar em lutar, de epopeia em epopeia, Ora com fúria brava, ora com airoso chiste,

Busquemos o que é lindo e grande entre a colmeia Doida da vida humana. O pleito é insano e triste… Venceremos porém: nada, nada resiste Ao condão que me anima– o amor de Dulcineia

Sus! É enorme e confusa a vastidão do Verso, É mesmo um radioso, um fulgido universo, Onde brilham, febris, almas, constelações, A Rima, a Ideia, a Forma… e onde, vaidosa e esquiva, Reina, domina a Musa – um sol de luz tão viva Que deslumbra e que abate e queima os corações! (A Sementeira, nº49, Novembro de 1912: 101)

O tema do feminismo, típico dos anarquistas libertários que procuravam maior igualdade entre os géneros, está como referi também presente em alguns dos poemas da revista. Para além disso, existem alguns artigos directa ou indirectamente sobre o tema nesta publicação, como contos ou artigos de opinião. César Porto, professor e militante libertário, escreveu «A emancipação feminina e os seus contra-argumentos» (A Sementeira, nº 12, Agosto de 1909: 91 e nº 13, Setembro de 1909: 102 e 103).

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Logo no primeiro número da primeira série de A Sementeira, de Setembro de 1908, é publicado o poema «A Mulher», assinado no final por Campos Lima:

«A Mulher» I Diz-nos a Bíblia que a mulher nasceu Duma costela só do pae Adão, Simbolisando assim a sujeição Que deve ao homem, o tirano seu.

Mas hoje sem a intervenção do céu Escreve o homem pela sua mão Toda uma Bíblia de libertação Em vez daquela que o Senhor lhe deu.

Aí se préga todo um mundo novo. Feito no sangue e coração do povo, Por uma bela e heroica madrugada.

Então ha-de ser livre e ser feliz. Toda a mulher na vida. Assim o diz Um dos versículos dessa Bíblia amada.

II Formar-se-ha um novo paraíso. Mais natural, humano e verdadeiro, Sem que haja um Deus irado e carniceiro A vigiar o nosso pranto ou riso. E não será assim nunca preciso. Proibir o fruto lindo e feiticeiro E ser quem o comer morto primeiro, Depois julgado num Final Juízo.

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E a Eva ha-de se erguer e ha-de mostrar Nos lindos olhos verdes côr do mar A esperança de toda a Humanidade

E em vez da negra morte prometida, Ha-de-lhe dar toda a ventura e a vida O saboroso fruto da Verdade.

Como mencionei, várias mulheres, anarquistas e não só (por exemplo, Marie Curie) têm fotogravuras na revista, por vezes aparecendo na capa da mesma. Uma destas é Maria Spiridinoff, socialista revolucionária russa, homenageada com uma fotogravura na folha suplementar das páginas centrais d’ A Sementeira, de Agosto de 1909.

Figura 3: Maria Spiridinoff (A Sementeira, folha suplementar, Agosto de 1909).

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As críticas ao catolicismo e ao falso moralismo por vezes propagado por fanáticos desta religião são também versadas na Sementeira, como se atesta pelo seguinte poema:

«Tréva e Luz», de Claudio Manuel

Numa praça sombria, estreita e tortuosa erguia o negro vulto a velha catedral; e eu tremia quando em noite tenebrosa tinha de passar junto ao gótico portal.

Excitado e nervoso, a mente encandecida na super-acuidade intensa dos sentidos mostrava-me febril, cheias de força e vida fantásticas visões, scenas de tempos idos. Coisas que nesse tempo atentamente lia numas historias velhas do meu velho abade que, se bem me recordo, ele me emprestou um dia ao ver como estudava alegre e com vontade.

E a imaginação, ardente e sensitiva sob o morno silencio hostil da escura praça, reproduzia viva, ali, a historia lida da alampada dum nicho á luz confusa e baça.

Ora julgava ouvir as patas de corceis e ver pelos vitrais uns sinistros clarões. e então eram uns hunos ávidos, cruéis, a renovar lá dentro as scenas de Chálões,

ora ecoava o som da voz dum trovador a divertir talvez a treda Fredegonda, cantando ao alaúde uma canção d’amor e os feito de Rolando, e a Tavola redonda; 10

e em contraste cá fóra, á volta dos telhados, do velho monumento, aqui e acolá, os demonios da noite em c’rujas transmigrados, convocavam talvez as bruxas ao sabath.

Mas uma noite má, que nunca hei de esquecer olhei á fechadura… ergueu-se-me o cabelo e fiquei semi-morto e vendo sem querer ver como sob a impressão dum negro pesadelo.

Era um auto de fé. A inquisição queimava num Maelstrom de fogo os velhos e as crianças. Ao fundo, Torquemada os olhos vagueava refletindo o clarão das chamas e das lanças. E eu sentia bem os gritos lancinantes que vinham atraves da espessa fumarada em protestos de dôr energicos, gigantes, contra a sede de sangue imensa e insaciada. No abismo voraz das colossais fogueiras em vão queriam queimar a salvadora ideia; em vão, porque no fim as torridas braseiras eram só um montão de cinza negra e feia

donde voara altivo o espirito imortal, o sagrado embrião que havia de ámanhã germinar e crescer e dar fruto afinal, no verbo de Lutero, e Voltaire e Renan. E eu fugira já dali, apavorado… Mas quem me visse então, podia adivinhar nos meus olhos febris o olhar dum revoltado no meu peito convulso a ansia de gritar.

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E quando ao outro dia, alegre e rubicundo, levando ao lado esquerdo a túrgida sacóla num bom dia d’abril de sol claro e fecundo, logo de manhã cedo entrava pela escola,

desaparecera já da antiga catedral a pávida visão, o escuro noite-vem; e da classe ao – Bom dia! – claro e jovial! sandava satisfeito, e a sorrir também

E vi, hoje que penso, e sei e o bem e o mal (apesar desta curta e leve mocidade) que entre a igreja antiga, e entre a escola actual se interpôs, sem remedio, o abismo da Verdade.

Dum lado, a velha crença e o templo, o seu emblema. E essa apenas tem, hoje corrupta e fria, uma só coisa grande – é Cristo e o seu sistema, é uma só coisa bela – a lenda de Maria. Do lado oposto a escola, a santa educadora que nos ensina a amar o labor arduo e duro apontando ao pequeno a via redentora por onde se caminha em busca do Futuro.

Cada escola que surge, é raio que fulgura na aurora da Verdade, imaculada e sã rasga na sombra a luz, e criadora e pura faz das crianças de hoje os homens d’ámanhã.

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A Sementeira – Primeira Série

Com início em Setembro de 1908, nesta primeira série da revista aparecem inúmeras fotogravuras de anarquistas, numa página central. Ema Goldman, Bakounine, Luiza Michel, Maria Spiridinoff, Maximo Gorki, Ibsen, Tolstoi… eis alguns exemplos. Entre os poemas contam-se: «O Homem Artista», (certos textos focam também o tema da arte) de Bento Faria (A Sementeira, nº3, Novembro de 1908: 18); «O Sol», de José Oiticica, do livro Sonetos. (A Sementeira, nº50, Dezembro 1912: 111).

Incluem-se ainda alguns contos de que é exemplo «A Caminho», de Vítor Luís (A Sementeira, nº 3, Novembro de 1908: 23). «A Última Carpa» é um conto brasileiro, de Valdemiro Silveira, incluído no número 49 da mesma. (A Sementeira, nº 49, Novembro de 1912: 101 e 102). Neno Vasco assina um texto sobre a escravidão com o título «Os Três Parafusos» (A Sementeira, nº 50, Dezembro de 1912: 109). Na revista encontram-se, também, peças de teatro, de que é exemplo «O Fardo da Liberdade. Comédia num Acto», adaptação portuguesa de um texto de Tristan Bernard. (A Sementeira, nº 51, Janeiro de 1913: 118 e 119 e nº52, Fevereiro de 1913: 124, 125 e 126). Na secção «Publicações Recebidas» fala-se dos já referidos Sonetos (1905-1911), por José Oiticica. (A Sementeira, nº 49, Novembro de 1912: 103). Como referi, a revista teve uma interrupção entre Fevereiro de 1913 (último número da primeira série) e Janeiro de 1916 (primeiro número da segunda série da Sementeira), pois o seu director, Hilário Marques, ausentou-se do país, por motivos profissionais. A redacção e administração muda nesta altura para o Cais do Sodré, número 88, em Lisboa. Porém, ambas as séries podem ser lidas de seguida e não se nota o lapso temporal que decorreu, sendo os conteúdos parecidos.

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A Sementeira – Segunda Série

A segunda série de A Sementeira, depois de uma pausa de três anos, reapareceu em Janeiro de 1916. Nesta foram publicados os seguintes poemas: «As Fronteiras», escrito pelo militar, autor teatral e poeta espanhol Leopoldo Cano em 1915, e traduzido por Bento Faria (A Sementeira, nº2 (54), Fevereiro de 1916: 22), retrata o tema da não necessidade de separação de territórios, como está bem expresso no seu último verso «A fronteira é um delito/contra as leis da Natureza!». «Os Ratos Reunidos em Conselho», que é a adaptação de uma fábula de La Fontaine, por João de Deus Ramos, de Abril de 1915. O poema mergulha no tema da coragem, satirizando a falta desta na acção colectiva. O terceiro poema da segunda série desta revista chama-se «O Amor» (A Sementeira, nº 5 (57), Maio de 1916: 76) e é de Bento Faria. Emilio Gante escreveu um poema curto, sem título: «A quem se ache sem pecúlio,/Lhe aproveite esta verdade: /Ampla pátria é… o mundo!/ Família? A Humanidade!». (A Sementeira, nº 6 (58), Junho de 1916: 91). O quinto poema da segunda série desta revista mensal chama-se «Ao Camponês» (A Sementeira ,nº 12 (64), Dezembro de 1916: 183) e está assinado por Diabo Lírico. É um elogio e simultaneamente uma crítica aos «cavadores» que sustentam papas e reis, enquanto eles próprios passam fome. A já mencionada «Prece à que não se nomeia» (A Sementeira, nº14 (66), Fevereiro de 1917: 211 e 212), é um bonito poema em prosa, assinado por «Severine» e foi escrito em Paris, em um de Janeiro de 1917.

Em Junho de 1919 edita-se um apelo à revolta dos poetas intitulado precisamente «Aos poetas» e assinado pelo ativista brasileiro Afonso Schmidt. (A Sementeira, nº 39 (91), Junho de 1919: 237).

A coluna «Trovas Sociais», inicialmente de Avelino de Sousa, inaugurou-se com o poema «Ferrer», sobre o famoso pedagogo libertário espanhol, fusilado a 13 de Outubro de 1909 na prisão de Montjuic, Barcelona. reproduzido a seguir. (A Sementeira, nº 10 (62), Outubro de 1916: 167):

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Ferrer

Ó Espanha negra e antiga Oh! monstro de luto e dôr… Fuzilaste o Pensamento em todo o seu explendor!

Espanha de Torquemada, Espanha medieval, tu és a pátria brutal da Reação e da Tourada. Espanha fanatizada da ideia Nova inimiga, velho crime em ti se abriga cujo sangue mancha, ensopa! És a vergonha da Europa, Ó Espanha negra e antiga

No Tenebroso castelo de Montjuich – vil, odioso, Maura, o bandido p’rigoso matou o apóstolo do Belo. o mártir que, com disvelo, espalhou na Terra, Amor… O sublime Educador Ferrer – pensador sublime! Educar! eis o seu crime! Oh! monstro de luto e dôr!

E supoz quem te governa, que com tal infâmia iníqua, matava a Obra profíqua, chamada Escola Moderna! Oh! Não. A Espanha hodierna 15

dar-lhe ha mais incremento… – Triunfou o teu intento, Espanha do jesuitismo; em prol do obscurantismo Fuzilaste o Pensamento

Mas, qual Feniz fabulosa, Ferrer não pode morrer e a Obra há de renascer mais gentil e grandiosa! Essa cabeça formosa do austero Pensador terá como vingador a própria obra ideal! Nova Aurora universal! em todo o seu esplendor

Avelino de Sousa continua no número 12, de Dezembro de 1916, na segunda série da revista, as suas «Trovas Sociais», com o poema «Deus» (A Sementeira, nº12 (64), Dezembro de 1916: 186). Neste, ridiculariza os milagres divulgados pela Igreja, considerando o Deus de diversas religiões um mito. A terceita Trova Social», do mesmo autor, intitula-se «O Diabo» (A Sementeira, nº 13 (65), Janeiro de 1917: 203). É uma espécie de elogio ao «demo, lúcifer ou satanás», como lhes chama Avelino de Sousa, que afirma «Se foi Deus que fez o Mundo,/fez o Diabo também!» (ibidem). No mesmo número 14 da segunda série da revista (op. cit.: 215), está escrita a IV trova social: «Dôr que Ri». É um poema sobre a decadência e os malefícios sociais da prostituição, que degrada as próprias mulheres que se prostituem. As Trovas Sociais a certa altura deixaram de ser assinadas por Avelino de Sousa, passando a sê-lo por P.F. Por exemplo a trova, vii, «O meu ideal» (A Sementeira, nº 18 (70), Junho de 1917: 285).

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Foram ainda publicados textos em prosa de que são exemplo N’guvo, o Selvagem, de Adolfo Lima (que termina no nº 8 (60) da Sementeira, Agosto de 1916: 114-116); ou o conto «O Modorro», de Joaquim Dicenta, escritor naturalista espanhol, sobre a vida miserável de um mineiro (A Sementeira, nº 35 (87), Fevereiro de 1919: 181-184).

Canções d’A Sementeira

Nesta segunda série de A Sementeira foi publicado o «cancioneiro da revolta», organizado e traduzido para português por Neno Vasco, pois, em Dezembro de 1916, escrevia-se na revista que «A canção revolucionária é um excelente meio de propaganda, largamente usado lá fora, e só em Portugal é que o cancioneiro socialrevolucionário está por organizar.» (A Sementeira, nº12 (64), Dezembro de 1916: 178). Esta ideia encontrava-se também ligada à ajuda da publicação na organização de festas libertárias. As canções começam, então, a ser publicadas na segunda série desta revista. A primeira canção publicada é «O Regimento dos Revoltados», traduzida do francês e com pauta musical (A Sementeira, nº 13 (65), Janeiro de 1917: 200). «O Canto da Juventude…Nova» (A Sementeira, nº 14 (66), Fevereiro de 1917: 211), é a música da canção popular «As Carvoeiras» e aparece com letra e pauta. No final de cada quadra há o estribilho: Quando é profunda/a rebeldia/é mais fecunda/que a luz do dia…/Rebeldes audazes/da mocidade./ânimo, rapazes,/viva a liberdade!» (ibidem). No número 37 da segunda série da revista, de Abril de 1919, é anunciado que, no número seguinte, se publicará A Internacional, o famoso hino revolucionário, com tradução, da letra de Eugénio Pottier, de Neno Vasco. Esta será acompanhada pela música de Pierre Degeyter, sendo transmitido aos leitores que, por este válido motivo, a tiragem do mês será aumentada. E, de facto, no número seguinte sai a marcha A Internacional, Canto Revolucionário, com pauta musical na primeira página e com a letra traduzida por Neno Vasco (sem pauta) na segunda. (A Sementeira, nº 38 (90), Maio de 1919: 216 e 217).

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Figura 4: A Internacional, com tradução de Neno Vasco (A Sementeira, Maio de 1919: 217).

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Estão também presentes na revista mensal inúmeras peças de teatro e textos em prosa, normalmente retirados de obras famosas de que é exemplo um excerto de A Odisseia, a «História Anedótica do Trabalho» (A Sementeira, nº 14 (66), Fevereiro de 1917: 217). Como exemplo de peças de teatro temos A Epidemia, peça em um acto, de Octave Mirbeau, uma sátira política que aparece por partes, em vários números da revista, (encontrando-se uma destas em A Sementeira, nº 14 (66), Fevereiro de 1917: 219 e 220). Há, ainda, na segunda série da revista, uma peça de teatro infantil, chamada «O Meu e o Teu», escrita por Adolfo Lima. Está dividida em seis partes, cada uma das quais publicadas num número de A Sementeira. A sexta parte, publicada em Abril de 1919, termina com a seguinte canção que tem letra de A. L. Vieira e música de T. Borba (A Sementeira, nº 37 (89), Abril de 1919):

Ó linda e boa oliveira do velho tronco cinzento, quando por ti perpassa e esvoaça o vento as tuas folhas cantam-nos baixinho, desta maneira, devagarinho:

«Eu dou o azeite brando que tempera e que alumia, eu acendo a luz do dia quando a noite vem tombando.»

Ó linda e bela oliveira etc.

Em casa do pobre eu sou o gôsto do seu jantar… Coitado de quem andou o dia inteiro a cavar!»

Ó linda e bela oliveira etc. 19

Foi também divulgado um espectáculo de teatro livre, a ter lugar Domingo, dia 16 de Junho de 1918, no Lisboa-Club, Rua da Atalaia, 138, 1º, uma «récita de propaganda social» promovida pelo grupo La Vero. (A Sementeira, nº 30 (82), Junho de 1918: 96). Na mesma página, na mesma secção, divulga-se o «Orfeom Operário de Lisboa», que deverá chamar-se… «A Sementeira», e «contribuir com a sua parcela de esforço sui generis para a amenização das festas operárias, dando-lhes um cunho artístico nem sempre fácil de obter.» (ibidem.: 96). Em Junho de 1919, A Sementeira anuncia a fundação, em Lisboa, do Grupo Dramático «A Luz do Futuro», que tem por objectivo levar à cena peças de educação e carácter social, com sede na rua Maria Pia, 120, e a proximidade da sua primeira récita de inauguração. A última peça de teatro publicada neste mensário, que ficou incompleta, chama-se A Escala, Fantasia num Acto, de Eduardo Norés. O texto foi publicado nos números 40 e 41 da segunda série da revista (A Sementeira, nº 40 (92), Julho de 1919: 254 e 255 e nº 41 (93), Agosto de 1919: 269 e 270). Nas últimas páginas d’A Sementeira (na penúltima ou última página) comentam-se as «publicações recebidas» na redacção da revista. Sendo a maior parte livros sobre o anarquismo, algumas destas obras são literárias e de poesia. Na segunda série da revista esta secção corresponde normalmente à página 15 ou 16 (A Sementeira, nesta mesma segunda série, tem sempre 16 páginas). Divulgam-se, ainda, outros jornais e revistas como o quinzenário A Aurora, do Porto, à venda na redacção d’A Sementeira. O Boletim da Escola Oficina nº1, continuador da revista quinzenal de pedagogia Educação, foi divulgado no número 31 da segunda série da Sementeira, de Julho de 1918, o que reafirma as preocupações desta revista anarquista com questões de educação. Também se divulgam muitas revistas anarquistas brasileiras e da América Latina, além de outras europeias.

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Conclusão – As Artes da Sementeira

Verificámos, de forma necessariamente pouco exaustiva, por falta de espaço, que esta publicação anarquista libertária, a mais duradoura das revistas deste género em Portugal, publicou inúmeros contributos literários interessantes, alguns inéditos e significativos do ponto de vista histórico e sociológico. Muitos destes textos questionam até o lugar da própria literatura e das artes e o papel e «missão» social de quem as pratica. Em jeito de quase conclusão, reproduzo em seguida Aos Poetas, de Afonso Schmidt (A Sementeira, nº 39 (91), Junho de 1919: 237), um apelo à revolta dos poetas, apelo à revolta que é o propósito de todos os poemas desta revista libertária internacionalista do início do século XX, a época conturbada do final da Monarquia Constitucional, da Primeira Grande Guerra e da Primeira República, peças nas quais o anarquismo, e o movimento operário em geral, tiveram um papel importantíssimo.

Aos Poetas Miséria Artistas! Se te oprime a esquálida miséria, Se a grande falta de ouro amarra as tuas asas, Rojando-te no chão, na lama da matéria, Mesclando a fome vil ao sonho em que te abrasas,

Não te importe o clamor dessas turbas tão rasas, Não te importe o pungir da carne deletéria… Num solo de veludo ou num solo de brasas, Caminha, fito o olhar numa esperança etérea!

Que te importa o banal, a propriedade, o mundo? Se te negam o pão, usa a fôrça, expropria! Em vez de te humilhar, faze-te vagabundo…

Vibra teu plectro azul por este mundo afóra, Mas lega, quando morto, à multidão sombria Um grito de revolta e uma estrofe sonora! 21

No seu último número publicado, de Agosto de 1919, pouco tempo após o fim da Primeira Guerra Mundial, A Sementeira lega-nos novamente uma mensagem pacifista revolucionária, com o artigo «A Arte depois da Guerra» (A Sementeira, nº 41 (93); Agosto de 1919: 259 e 260). É uma opinião do escritor francês Augustin Hamom, expressa em As Lições da Guerra Mundial, que também incide obviamente sobre a questão da própria arte e da sua força na sociedade. Este, como todos os poemas e textos de A Sementeira, têm uma actualidade incrível, como se nunca pudessem ficar fora de época: «A fôrça de vida da arte, de qualquer forma que seja, está acima dos antagonismos nacionais e por conseguinte actuará para que os artistas reatem rapidamente as relações internacionais rôtas pela doença social como é qualquer guerra.»

Referências Bibliográficas Freire, João, 1981, «“A Sementeira” do arsenalista Hilário Marques». Análise Social, segunda série, volume 17, nº. 67/69, pp.767-826.

Documentação A Sementeira, Publicação Mensal Ilustrada – Crítica e Sociologia. A revista tem duas séries: a I e a II, de Setembro de 1908 até Março de 1913; e de Janeiro de 1916 e Agosto de 1919, respectivamente. Fazendo parte do espólio Pinto Quartim, fundo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Laboratório Associado (ICS-UL); encontra-se digitalizada no projecto «Casa Comum», desenvolvido pela Fundação Mário Soares, disponível em: http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_7890, consultado a um de Setembro de 2015. [sítio web onde se encontram as cópias digitalizadas de A Sementeira].

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